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Conexões entre paradoxo narrativo e mímesis em narrativas de super-herói 1 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino 2 Resumo: Segundo Humberto Eco (2008), as narrativas de super-herói são construídas com base no que se pode chamar de paradoxo narrativo, referente ao conflito entre a intemporalidade do mito e a temporalidade cotidiana, característica da atmosfera do romance. O objetivo deste artigo é abordar uma possível relação entre paradoxo narrativo e a noção de mímesis conforme trabalhada por Costa Lima (1988; 2003). Ao se trabalhar esta relação, será levado em consideração como physis e antiphysis as duas vertentes da mímesis ganham expressão neste tipo de narrativa e como, com base nestas vertentes, a narrativa de super-herói caminha de um modelo clássico para um novo modelo. Palavras-chave: mímesis, narrativa de super-herói, paradoxo narrativo. 1 Artigo produzido para avaliação da disciplina Análise do Discurso Literário, ministrada pela professora Sônia Ramalho. 2 Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco.

Mímesis e paradoxo em quadrinhos de super-herói

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Este texto explora como os conceitos de mímesis e paradoxo, oriundos do campo de estudos literários, aplicam-se a histórias em quadrinhos de super-heróis

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  • Conexes entre paradoxo narrativo e mmesis

    em narrativas de super-heri1

    Cludio Clcio Vidal Eufrausino2

    Resumo: Segundo Humberto Eco (2008), as narrativas de super-heri so construdas

    com base no que se pode chamar de paradoxo narrativo, referente ao conflito entre a

    intemporalidade do mito e a temporalidade cotidiana, caracterstica da atmosfera do

    romance. O objetivo deste artigo abordar uma possvel relao entre paradoxo

    narrativo e a noo de mmesis conforme trabalhada por Costa Lima (1988; 2003). Ao

    se trabalhar esta relao, ser levado em considerao como physis e antiphysis as duas vertentes da mmesis ganham expresso neste tipo de narrativa e como, com base nestas vertentes, a narrativa de super-heri caminha de um modelo clssico para um

    novo modelo.

    Palavras-chave: mmesis, narrativa de super-heri, paradoxo narrativo.

    1 Artigo produzido para avaliao da disciplina Anlise do Discurso Literrio, ministrada pela professora

    Snia Ramalho. 2 Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco.

  • Figuras 1 e 2 Ilustraes do livro Superheroes Decadence, de Donald Soffritti (2009)

    O ilustrador Donald Soffritti (2009) fez um trabalho com o propsito de responder

    como supostamente ficariam os nossos heris na velhice. As imagens do Super-Homem

    e do Homem-Aranha, que abrem este artigo, so exemplares do projeto deste artista

    italiano.

    O efeito de comicidade que estas imagens suscitam se d porque Soffriti,

    conscientemente ou no, explora o que Humberto Eco (2008) chama de paradoxo

    narrativo, noo relativa ao modo como uma narrativa busca inserir-se em dois

    esquemas temporais distintos: o tempo do mito e o tempo do cotidiano.

    Os super-heris constituem-se com base numa dupla demanda ou apelo. So imunes ao

    tempo e suas vicissitudes - obedecendo ao apelo do carter mtico. Simultaneamente, o

    super-heri uma criatura inserida na vida cotidiana, no presente, aparentemente

    ligado s nossas mesmas condies de vida e de morte, ainda que dotado de faculdades

    superiores (ECO, 2008, p. 253). Nisto, o super-heri obedece ao apelo do romance, o

    qual abre mo da imunidade ao tempo. Portanto, quando se ri das charges de Soffritti,

    est-se encontrando uma forma de reagir diante do paradoxo narrativo que o super-heri

    instaura.

  • possvel dizer que o paradoxo narrativo est relacionado a uma questo que um dos

    principais fundamentos da arte ocidental: a confiana na physis (COSTA LIM, 2003,

    p. 238). A physis definida por Aristteles (2009), no livro II da obra Fsica, como

    fonte ou causa do movimento e do repouso que enredam os seres. Conforme este

    conceito, a physis ou natureza est diretamente ligada noo de forma, entendida tanto

    como matria quanto como organizao. Neste sentido, a physis o drama do ser

    envolvido nos processos de formao e transformao (e termos derivados como

    deformao).

    A arte, como ressalta Costa Lima (2003), vem para questionar os fundamentos da

    physis. Entenda-se questionamento no como sinnimo de negao, mas como o esforo

    de desvendar as nuanas existentes entre as polaridades da formao e da transformao

    caractersticas da physis. Este questionamento, que faz do ato de representar uma

    expresso do conflito entre a confiana e a desconfiana na physis, aproxima-se do que

    Costa Lima entende como mmesis, termo derivado dos dilogos de Plato. Costa Lima

    (2003, p. 238), ao relacionar physis e mmesis, acrescenta que esta no se cumpre sem

    um relacionamento (de semelhana e diferena) quanto quela.

    O paradoxo narrativo, do qual se reveste a narrativa de super-heri, pode ser

    relacionado ao enfrentamento da physis que a noo de mmesis implica. E neste

    enfrentamento, a mmesis joga com a semelhana e com a diferena, comportando-se

    ora como uma fiel combatente, ora como adversria da physis. Neste caso, manifesta-se

    o que Costa Lima (2003) chama de mmesis da antiphysis.

    Em se tratando das narrativas de super-heri, em seu formato contemporneo, a mmesis

    acaba por se comportar como mercenria. Ao comparar a mmesis com um mercenrio,

    aludo ao mesmo tipo de comparao feito por Dallenbach (1979, p. 52), em nota, para

    descrever o carter dbio e oscilante do processo intertextual da mise-en-abyme, a qual

    chamada por ele de mercenria textual. As narrativas de super-heri revelam o quo

    astuciosa a mmesis pode ser. O adjetivo astuciosa empregado por J. Guilherme

    Merquior (1971) para se referir a como a mmesis joga com o ocultamento e o

    desnudamento da semelhana e da diferena. Nas narrativas de super-heri

    contemporneas, h, como se ver, uma oscilao entre mmesis da physis e mmesis da

    antiphysis.

  • Ficar para outra oportunidade uma anlise diacrnica da manifestao da mmesis nas

    histrias de super-heris. Neste momento, o que se pretende destacar a dubiedade

    assumida pela mmesis. Por esta razo, este estudo foca as narrativas de super-heris

    contemporneas.

    A historiografia tradicional, com base na obra de Cristoph Cellarius (1638-1707)

    intitulada Universal History divided into an Ancient, Medieval, and New Period,

    designa como marco do perodo contemporneo a Revoluo Francesa, de 1789. Apesar

    de serem imprecisos e controversos, os marcos so teis para fins didticos e at mesmo

    como coordenadas para as objees que se levantam contra eles. Para fins da anlise

    que se almeja realizar neste trabalho, ser institudo como marco da contemporaneidade

    das narrativas de super-heri a dcada de 1960, perodo em que comeam a ser

    publicadas as histrias de um grupo de super-heris chamado X-men, representando

    uma mudana no modelo de super-heri at ento encampado. No decorrer da anlise,

    ser possvel entender o porqu da escolha deste marco que, a exemplo de qualquer

    marco cercado de limitaes, mas tambm fornece um direcionamento atividade de

    pesquisa.

    1. Identidade secreta e adeso ao sema da semelhana

    O plano de vingana do personagem Orestes, na pea de squilo, Choephoroe, fornece,

    como observa Costa Lima (2003) elementos para uma discusso sobre o modo como a

    mmesis opera com a semelhana e a diferena. A fim de retornar sem levantar suspeitas

    ao palcio, cujo trono havia sido usurpado por seu padastro, Orestes decide se passar

    por um mensageiro de uma nao estrangeira, enganar as sentinelas do palcio e entrar

    para deixar uma encomenda que subverter a ordem do lugar. Para isso, o personagem

    far uma imitao (mimeisthai) ou, utilizando outro termo, fingir a lngua e o sotaque

    dos fcios, alm de vestir-se moda deste povo.

    Costa Lima (2003, pp. 237-238) observa que o fato de a traduo de mimesthai ficar

    dividida entre o sentido de fingir e o de imitar sintoma de como sculos de

    tradio deformante so responsveis pela associao feita entre mmesis e imitao,

    levando-nos a identificar a mmesis com uma problemtica especular. Segundo Costa

  • Lima, afirmar que Orestes faz uma imitao da linguagem dos fcios termina por

    esvaziar a presena da voz grega como parte integrante do complexo mimtico relativo

    ao fingimento orestiano.

    O mimesthai empreendido por Orestes no consiste propriamente no gesto de imitar,

    mas sim, como observa Costa Lima (2003), em subtrair uma parcela que, contudo,

    compe o fenmeno. O xito da mimesthai de Orestes depende de a diferena

    permanecer oculta, insuspeitada, apenas aflorando o lado da semelhana (COSTA

    LIMA, 2003, p. 238). Da, Costa Lima (2003, p. 239) afirmar que o mimema, isto , a

    obra em que se realiza a mmesis lido pelo receptor da mesma maneira como havia

    sido lido pelo sentinela o disfarce de Orestes: a diferena que contm no tematizada.

    As parcelas que compem o complexo mimtico so chamadas por Costa Lima (2003)

    de semas. Os semas, elementos mnimos que se fundem para gerar significao,

    dividem-se em sema da semelhana e sema da diferena, sendo simultaneamente

    atualizados em todo processo de realizao da mmesis.

    Nesta perspectiva, o disfarce, com o qual a mmesis comparvel, surte efeito no por

    ser uma reproduo da realidade, mas por ser lido de acordo com a nossa codificao

    cultural. Os sentinelas se deixam enganar porque projetam suas expectativas de

    semelhana. Trata-se de uma adeso ao sema da semelhana.

    Um tipo similar de adeso ocorre nas narrativas de super-heri, estando relacionado a

    uma noo frequente neste tipo de narrativa: a noo de identidade secreta, que

    expressa o modo como o mito se procura se esconder por trs da mscara de homem

    comum, revestindo-se de cotidianidade. A despeito do que dir Eco (2008), resumindo

    a identidade secreta a uma estratgia que contribui para que se crie uma atmosfera de

    suspense, ela um momento de suspenso ora do sema da diferena, ora do sema da

    semelhana.

    Tome-se como exemplo o Super-Homem. Em sua identidade secreta, o Super-Homem

    Clark Kent, um homem tmido que trabalha como reprter de um jornal chamado

    Planeta Dirio. Apesar das mudanas pelas quais este personagem passou desde que foi

    criado, na dcada de 1930, algo nele permanece invarivel: os culos utilizados pelo

    personagem so o elemento desencadeador do mimesthai. Tanto Clark Kent quanto o

    Super-Homem tm a mesma aparncia fsica ou, como diria Costa Lima (2003) so

  • sintagmaticamente compostos pelos mesmos elementos, com exceo dos culos e do

    uniforme. Mas, isto no impede que os demais personagens da narrativa ajam como se

    Clark Kent e Super-Homem fossem duas pessoas distintas. O disfarce do Super-Homem

    uma verso do disfarce de Orestes, verso esta ferida pela hiprbole.

    Porm, considerar a operao de mmesis operada pela identidade secreta do Super-

    Homem como algo ingnuo deixar de levar em conta que no a simples presena ou

    ausncia dos culos que responder pelo xito do disfarce mimtico. Na verdade, os

    culos so somente a ponta do iceberg. O xito da mmesis no Super-Homem est

    ligado sua aura mtica, que, por sua vez, est relacionada ao acionamento de suas

    capacidades sobre-humanas. E importante destacar que, como explica Walter

    Benjamin (1975), a aura a presena de algo invisvel, por mais distante que este algo

    esteja. A presena aurtica do mito atua, portanto, como inibidora do sema da diferena

    que desmascararia o super-heri, expondo o elo que liga suas duas existncias

    (enquanto mito e enquanto homem comum). Uma decorrncia natural deste raciocnio

    se pensar que h uma aura de cotidianidade, a qual refora o sema da semelhana em

    Clark Kent, impedindo que ele seja investido do sema que se lhe contrape, isto , o

    sema da diferena relacionado aura mtica.

    Enquanto Super-Homem, a aura mtica do personagem comporta-se como sema da

    semelhana, o qual se converte em sema da diferena quando o personagem revestido

    da aura de cotidianidade. Este conflito entre semas, mediado pelo recurso dramtico da

    identidade secreta, est relacionado ao que Eco (2008) denomina mitificabilidade.

    A mitificabilidade inversamente proporcional cotidianidade. Eco (2008, p. 248)

    define, em termos literrios, o mito da seguinte maneira:

    uma personagem, de origem divina ou humana, que, na imagem, permanecia

    fixada nas suas caractersticas eternas e no seu acontecimento irreversvel.

    No se exclua que, por trs da personagem, existisse, alm de um conjunto

    de caractersticas, uma estria: mas a estria j se achava definida segundo

    um desenvolvimento determinado e passava a constituir, de modo definitivo,

    a fisionomia da personagem.

    Em contrapartida, no personagem romanesco, a fixidez emblemtica qual se refere

    Eco cede lugar imprevisibilidade. O mito representante da fixidez por ser uma

    representao emblemtica do eterno. Os personagens mticos, mesmo tendo seus feitos

  • contados de formas variadas, tm suas atitudes centradas na reiterao da estrutura

    mtica. Os personagens romanescos, contrariamente, tm sua existncia ferida pela

    imprevisibilidade. Da, decorre que so personagens no de reiterao, mas de ao. E

    para uma personagem, agir significa, consumir-se (ECO, 2008, p. 53). O mito, ento,

    tende a ser inconsumvel.

    A identidade secreta age como um marcador de fronteira, regulando a insero do

    super-heri nos domnios da ao e da reiterao, ou, em outras palavras, nos domnios

    do mito e do romance. Em sendo assim, nas narrativas de super-heri, a identidade

    secreta talvez seja o principal agente dosador da mitificabilidade, isto , da

    movimentao da narrativa entre o terreno do mito e o terreno do romance. Mas, esta

    marcao de fronteira problemtica e contraditria. E, por esta razo, instaura uma

    situao paradoxal, a qual Eco (2008) definir como paradoxo narrativo. Este, por sua

    vez, pode ser relacionado s duas principais expresses da mmesis que, conforme

    Costa Lima (2003), so a mmesis da physis e a mmesis da antiphysis.

    O que est em jogo na estratgia narrativa da identidade secreta a transio entre aura

    mtica e aura de cotidianidade. Esta transio, por sua vez, est relacionada s variaes

    do grau de mitificabilidade da narrativa.

    O vetor da identidade secreta um componente que no pode ser diretamente associado

    a nenhum elemento da construo sintagmtica da narrativa, a exemplo dos culos ou

    do uniforme do Super-Homem. O componente aurtico distingue Clark Kent e Super-

    Homem. Utilizando uma expresso de Costa Lima (2003), a aura atua, colocando o

    sema da diferena nos bastidores. Em resumo, a aura mtica e a aura de cotidianidade

    atuam como convenes internalizadas, fazendo da identidade secreta uma engrenagem

    da mmesis na narrativa de super-heri.

    Com base neste raciocnio, possvel dizer que a utilizao dos culos como marcador

    de fronteira da identidade secreta , na verdade, uma estratgia irnica, uma forma de

    desviar a ateno ou olhar do mimetes - definido por Costa lima (2003) como o agente

    da representao, seja ele ator ou autor do efetivo agente operacionalizador da

    mmesis: a conveno cultural internalizada (COSTA LIMA, 2003, p. 241).

    Porm, a internalizao de convenes culturais em narrativas de super-heri , de

    sada, problemtica, porque este tipo de narrativa oscila entre a conveno mtica e a

  • conveno da cotidianidade. A conveno cultural internalizada pelo mimetes na

    forma de um paradoxo narrativo.

    2. Physis, antiphysis e paradoxo narrativo no modelo clssico de super-heri

    Ao se aproximar do relato sobre o disfarce de Orestes, Costa Lima (2003) quis chamar

    ateno para como a mmesis est relacionada a uma estratgia de reconhecimento e

    identificao.

    Reconhecimento e identificao atuam como elos entre o agente da representao (autor

    ou leitor) e a physis, entendida por Costa Lima (1988) como a natureza segundo o

    modelo da filosofia clssica: unio harmnica entre as partes e o todo. O pressuposto do

    ideal da physis que suas leis mantm afastada a ameaa do caos.

    Como acentua Costa Lima (2003), associa-se noo de physis o efeito-reflexo, ou a

    ideia de que as representaes podem funcionar como uma duplicao da natureza. Por

    ser harmnica, ou seja, estvel e previsvel, a natureza seria apreensvel pelas

    representaes de forma direta como o reflexo de algo em um espelho plano. A

    harmonia da physis pressupe que a experincia do leitor pode ser controlada.

    Esta viso est ligada necessidade apontada por Plato de controlar moralsticamente o

    texto da fico. Assim, os elementos morais, na obra ficcional, deveriam seguir uma

    ordem e harmonia que supostamente refletiam a ordem e a harmonia da physis. Por isso,

    a mmesis relacionada physis opera com base em comportamentos singulares, a

    exemplo de fronteiras bem marcadas entre o herosmo e a perversidade.

    O prprio da physis, ressalta Costa Lima (2003, p. 246), servir de critrio para o

    princpio da identidade, baseado no controle, na unidade e no centramento. E ele

    refora seu ponto de vista, com uma citao da Fsica, de Aristteles: Tudo o que

    aqui nomeado se mostra como alguma coisa que se distingue em relao quilo que no

    , a partir da physis.

    Seria cmodo chamar de modelo clssico de super-heri aquele relacionado ao processo

    de mmesis pautado pela physis. Contudo, no h, nas narrativas de super-heri, mesmo

  • em sua modalidade clssica, a ausncia da antiphysis. Isto porque os prprios super-

    poderes, em sendo um dos principais elementos de caracterizao dos personagens

    (VIANA,2005), so pautados, em grande medida, pela antiphysis.

    Os super-poderes contestam os mecanismos de reconhecimento e de identificao com

    o topos ou modelo clssico de natureza. Percebe-se este carter contestador quando se

    analisa o modo como o tempo abordado nas narrativas de super-heri. Como destaca

    Eco (2008, p. 254), a definio clssica de tempo permanece sendo aquela sistematizada

    por Aristteles e endossada pela Crtica da Razo Pura, de Kant, nos seguintes termos:

    lei necessria da nossa sensibilidade e, portanto, condio de todas as percepes

    que o tempo precedente determine necessariamente o sequente.

    Os super-poderes, apesar da grande variedade, pautam-se pela subverso a esta noo

    clssica de tempo. Tome-se novamente como exemplo o Super-Homem. A super-fora

    e a super-velocidade do personagem so expresses do fenmeno nomeado por David

    Harvey (1992) de compresso do temp-espao. Segundo Harvey, o principal agente de

    compresso do tempo-espao a tecnologia, que torna possvel deslocar os

    acontecimentos dos marcos da temporalidade linear e inseri-los no marco da

    temporalidade simultnea, como exemplifica a possibilidade, mediada pela informtica,

    de realizao de mltiplos processos paralelamente.

    Nas narrativas de super-heri, o agente de compresso do tempo-espao pode ser de

    ordem tecnolgica, como acontece com o personagem Batman, cujos super-poderes so

    decorrentes de aparatos tecnolgicos que intensificam suas habilidades corporais. Mas,

    o que mais comumente ocorre que a compresso do tempo-espao tenha origem

    mtica, representada pela magia, pela ao dos deuses ou pela conexo mstica entre o

    super-heri e a natureza (como o caso do Super-Homem).

    Um super-poder como a viso de raio-x, que permite ao Super-Homem enxergar as

    coisas por trs da densidade da matria, demonstra a dubiedade que caracteriza os

    super-heris. A nomenclatura viso de raio-x expressa uma ligao com a

    cotidianidade, mas se trata de um super-poder de cunho mtico. Algo semelhante ocorre

    com a personagem Mulher-Maravilha. Ela possui um lao mgico, forjado pelo deus

    Hefestos, da mitologia grega. Este lao tem como principal caracterstica o fato de que

    quando enlaa algum, seja mortal ou divindade, obrigar tal pessoa a dizer a verdade. O

    criador da Mulher-Maravilha, William Marston, foi tambm inventor do aparelho

  • detector de mentiras ou polgrafo. Portanto, o super-poder desta herona, mesmo sendo

    expressamente vinculado mitologia, tem uma conexo implcita com a cotidianidade.

    Alm disso, o lao mgico da Mulher-Maravilha expe a fissura que o super-poder,

    enquanto mimesthai, apresenta entre physis e antiphysis. O lao mgico desafia a ordem

    natural clssica que trabalha com o a possibilidade de se optar ente verdade e mentira,

    mas, ao mesmo tempo, pauta-se pela ideia de que existe uma verdade suprema, captvel

    por detrs dos vus ou mscaras que o ser humano desenvolve na vida em sociedade.

    Este ideal de uma verdade suprema, inspirado pela filosofia platnica, est relacionado

    ao pressuposto de harmonia da physis. O lao mgico promove a aletheia, no sentido

    etimolgico de desvelamento, sentido este que, como chama ateno Loparic (2004), foi

    adotado por Heidegger em sua reflexo filosfica sobre a verdade. O lao mgico um

    agente de retirada dos vus que ocultam a verdade.

    Como j foi dito, a physis liga-se a noo de harmonia entre o todo e as partes que o

    compem. Este princpio reflete-se na figura clssica do heri, cujas aes tendem a ser

    emblemticas, ou, dito de outra forma, tendem a representar os valores da coletividade.

    Este princpio continua atuando no que se est chamando de modelo clssico de super-

    heri. No objetivo deste texto discutir como os super-heris representam

    coletividades. Mas, pode-se dizer que, ao representarem uma coletividade, os super-

    heris clssicos inscrevem-se na esfera de uma mmesis da physis. Exemplo cssico

    disto o Capito Amrica, um supersoldado, cujas capacidades sobre-humanas servem

    como moldura para a propagao do mito dos Estados Unidos enquanto mais poderosa

    nao do planeta e maior porta-voz de ideais como a justia e a verdade. E o que ocorre

    com o Capito Amrica no muito diferente do que acontece com o Super-Homem.

    Deve-se ainda levar em considerao que a prpria antiphysis, expressa por meio dos

    super-poderes do super-heri clssico, problemtica. Isso porque a subverso da

    ordem natural causada pelos super-poderes menos uma subverso efetiva do que uma

    licena potica. Promove-se a perturbao da ordem natural para que ela possa ser

    reajustada pela ao redentora do super-heri, um agente de reafirmao do iderio da

    physis.

    Anteriormente, observou-se que a narrativa de super-heris est dividida entre mito e

    cotidianidade. Como observa Eco (2008) a esfera do mito est ligada intemporalidade

    e previsibilidade. O mito no conhece fronteiras temporais, por ser eterno. O

  • acontecimento mtico antes de ter sua introduo j escoltado pela concluso. Alm

    disso traz inscrito em si o futuro. O antes, o durante e o depois, na esfera do mito, so

    resultado da miopia dos seres humanos, incapazes de sondar a identidade plena e

    imutvel do destino. Por estas caractersticas, Eco (2008) afirma ser a fbula a unidade

    narrativa padro da estrutura mtica.

    Por outro lado, a cotidianidade marcada pela temporalidade e pela imprevisibilidade.

    Introduo, desenvolvimento e concluso so, na estrutura da cotidianidade, resultado

    da conexo de estruturas do meu agir, segundo uma dimenso de responsabilidade

    (ECO, 2008, p. 256). Na cotidianidade, a dimenso temporal fornece a medida da

    efetividade das decises, diferentemente do mito em que a deciso praticamente no

    tem poder diante da grandiloquncia do destino.

    A cotidianidade imprevisvel porque escrita medida que eu decido e de que esse

    meu decidir se liga a uma srie indefinida de dever-decidir que envolve todos os outros

    homens (ECO, 2008, p. 256). Se o mito, em sua previsibiliade, irreversvel, a

    cotidianidade, em sua imprevisibilidade, torna todo fenmeno potencialmente

    reversvel. Esta a frmula do enredo, entendido por Eco (2008) como a unidade

    narrativa padro da estrutura da cotidianidade ou do romance: a inter-relao de aes

    marcadas pela imprevisibilidade e pela reversibilidade. importante mencionar que Eco

    utiliza o termo romance no sentido lato, no o restringindo s produes do

    Romantismo.

    Nas narrativas de super-heri, no bem resolvida a relao entre mito e cotidianidade.

    isto que leva Eco a entender que este tipo de produo literria (o prprio Eco

    classificar assim a narrativa de super-heri) como sendo envolta pelo que ele

    denominar paradoxo narrativo. Vejamos o que Eco (2008, p. 253) diz sobre o paradoxo

    narrativo, tomando como exemplo o Super-Homem:

    O Superman deve, portanto, permanecer inconsumvel, e, todavia, consumir-

    se segundo os modos da existncia cotidiana. Possui as caractersticas do

    mito intemporal, mas s aceito porque sua ao se desenvolve no mundo

    cotidiano e humano da temporalidade. O paradoxo narrativo, que os

    roteiristas do Superman tm, de algum modo, que resolver, mesmo sem

    estarem disso conscientes, exige uma soluo paradoxal na ordem da

    temporalidade.

  • Em resumo, o modelo clssico de super-heri est relacionado seguinte estrutura

    temporal:

    1. Tempo mtico esfera da intemporalidade.

    2. Tempo cotidiano esfera do tempo sequencial-causal.

    Perceba-se como a mmesis da physis e a mmesis da antiphysis jogaro com estas

    instncias temporais do paradoxo narrativo. Revestido pela identidade secreta, o

    personagem insere-se na esfera da cotidianidade, regida pelo tempo clssico (linear e

    causal), que expresso da physis. Nesta esfera de tempo, trabalham-se caractersticas

    da personagem que o aproximam do homem comum, aparentemente ligado s nossas

    mesmas condies de vida e de morte (ECO, 2008, p. 253). O super-heri, envolto pela

    identidade secreta desloca-se, como observa Eco (2008) do terreno dos mitos para o

    terreno dos tipos.

    Quando desveste sua identidade secreta e entra em ao como super-heri, ganha cena a

    antiphysis, subvertendo a lgica temporal da physis cotidiana. Contudo, este

    rompimento com o tempo sequencial-causal, no super-heri clssico, menos uma

    contestao da physis do que uma estratgia de reforo da aura mtica.

    H ainda a presena de elementos da physis no proceder tico do super-heri clssico,

    tambm pautado pela ideia de harmonia e equilbrio da episteme clssica. O super-heri

    no modelo clssico , em termos ticos, prximo ao iderio prescrito por Plato para os

    governantes da Repblica.

    Nesta perspectiva, a physis, em seu aspecto temporal, colabora para a cotidianidade,

    enquanto a antiphysis, em seu aspecto de subverso da temporalidade clssica, colabora

    com a aura mtica. Tambm colabora com a aura mtica a physis relacionada dimenso

    tica dos personagens. Da, pode-se concluir que, no balano geral do super-heri

    clssico, a aura mtica leva vantagem sobre a aura de cotidianidade pelo fato de contar

    com apoio tanto da physis quanto da antiphysis.

    Alm disso, Eco (2008) atenta para o fato de que o modo como so estruturadas as

    narrativas de super-heri tendem a mascarar o paradoxo narrativo por meio do que o

    autor chama de presentificao contnua. O super-heri pratica uma determinada ao

  • no mbito de uma histria ou de uma srie de histrias. Posteriormente, comea-se uma

    nova histria que tende a ter os vnculos com a histria anterior esmaecidos ou

    rompidos:

    Essas estrias desenvolvem-se, assim, numa espcie de clima onrico -

    inteiramente inadvertido pelo leitor onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois, e quem narra

    retorna continuamente o fio da estria como se houvesse esquecido de dizer

    alguma coisa e quisesse acrescentar alguns pormenores ao que j dissera

    (ECO, 2008, pp. 257-258).

    Desta maneira, as reescrituras das origens dos super-heris so um exemplo de como a

    narrativa trabalha para inserir o personagem no cotidiano sem correr o risco de que ele

    se consuma ou, nas palavras de Eco (2008), mascarando o caminhar do personagem

    para a morte.

    Logo, o mascaramento do paradoxo narrativo tambm refora a aura mtica no super-

    heri clssico.

    Como ser visto a seguir, o novo modelo de super-heri no ter mais, para utilizar o

    termo de Eco, obrigao de solucionar o paradoxo narrativo. Contrariamente, sero

    exploradas quando no aprofundadas as veredas deste paradoxo.

    3. Batman como personagem de transio do modelo clssico para o novo modelo

    de super-heri

    No incio deste trabalho, foi feita a proposta de escolher os X-men, um grupo de

    personagens criado na dcada de 1960, como representantes de um novo modelo de

    super-heri que se contrape ao modelo clssico representado pelo Super-Homem.

    Mas, antes de iniciar a anlise dos X-men, importante mencionar o personagem

    Batman que, apesar de ter sido criado no mesmo perodo que o Super-Homem (final da

    dcada de 1930), viria, principalmente a partir de 1980, a agregar elementos que o

    tornariam um super-heri de transio entre o modelo clssico e o novo modelo de

    super-heris.

  • Em Batman, manifesta-se uma das caractersticas principais da antiphysis: ela inverte

    ficcionalmente a tradio de que se nutrem as fices (COSTA LIMA, 2003, p. 246).

    Uma das tradies invertidas nas narrativas de Batman a oposio dualista entre luz e

    trevas. O personagem inspirou seu uniforme e sua identidade super-herica nos hbitos

    dos morcegos. Batman tem um temperamento tmido e soturno e, ao contrrio dos

    super-heris apolneos, como o Super-Homem, no cultiva a mansido e a solicitude,

    mas sim a inflexibilidade e a violncia. Batman tambm no compartilha do cdigo de

    honra que os super-heris clssicos herdaram do herosmo greco-latino. Segundo este

    cdigo, a batalha deve oferecer a ambos os oponentes a chance de lutar em igualdade de

    condies. Batman herda o lado vingativo e impiedoso de Aquiles.

    O Homem-Morcego, ao contrrio do Super-Homem, no se importa em preservar a

    integridade fsica de seus oponentes, tendo como nico limite a preservao da vida.

    Batman evita ao mximo tirar a vida de algum. um personagem comprometido

    integralmente com a defesa da justia e o combate ao crime. Nisto se expressa o lado de

    sua personalidade ligado ao imaginrio das luzes. Mas, o Super-Homem, cidado-

    modelo da Repblica de Plato, identifica os ideais de justia e verdade como estando

    ligados ao respeito Lei. Para Batman, a Lei fica em segundo plano. Seu juzo

    particular a fonte primeira que determina como ele vai agir.

    Desta forma, Batman segue como um personagem no qual h uma mistura confusa entre

    luz e trevas, o que o leva a, na luta pela justia, desenvolver atitudes que beiram o

    sadismo, mas so atenuadas pelo respeito vida. Alm disso, em Batman, a voz interna

    que clama por justia confunde-se com a voz de um trauma de infncia que o atormenta:

    o assassinato de seus pais durante um assalto. Um exemplo do cdigo de conduta deste

    personagem pode ser visto na reproduo a seguir do trecho de uma de suas estrias.

    Este trecho foi analisado, sob outro vis, por Vidal Eufrausino (2006):

  • Figura 03 Revista Super-Homem (n40) Super-Homem X Batman: 1 round! Editora Abril

    (1987, p.10).

  • Figura 04

    Revista Super-Homem (n40) Super-Homem X Batman: 1 round! Editora Abril (1987, p.23).

  • Figura 05

    Revista Super-Homem (n40) Super-Homem X Batman: 1 round! Editora Abril

    (1987, p.23).

  • A mistura dos apelos da luz e das trevas revela uma presena mais intensa da antiphysis

    em Batman do que em outros super-heris clssicos. E, certamente, a antiphysis

    aproxima Batman do homem comum (o homem tpico). Conspira, neste caso, a favor da

    aura de cotidianidade do personagem. Mas, numa mesma intensidade conspira a favor

    da aura mtica, relacionando o personagem ao que Nietzsche (2007) chama de carter

    dionisaco, ligado ao potencial de divindade associado desmedida e ao mistrio. H

    porm, ainda um forte apelo da physis, relacionada clssica trade: beleza, bondade e

    justia. Trata-se de uma physis de ndole ultraromntica: como se as atitudes de Batman

    trouxessem uma physis que atua nos bastidores da antiphysis, e que tem medo de sair

    luz do dia e enfrentar a crueza da realidade.

    A presena de uma antiphysis dividida entre prestar seus servios ao mito ou a

    cotidianidade e de uma physis que, embora potente, encoberta pelo vu da antiphysis,

    situam Batman numa zona de transio, tornando mais difcil o mascaramento do

    paradoxo narrativo, como ocorre com o modelo clssico de super-heri.

    4. Antiphys, physis e paradoxo temporal no novo modelo de super-heri

    Wolverine um personagem cujo principal poder est na capacidade de regenerao

    tanto corporal quanto psquica. No caso da regenerao psquica, ela se d por meio de

    um vu de amnsia lanado pela mente do personagem sobre os traumas sofridos por

    ele. Para se curar de traumas, o poder de Wolverine tambm opera substituindo as

    memrias traumticas por memrias inventadas.

    Em um dado momento da vida deste personagem, ele foi capturado e utilizado em

    experimentos destinados a gerar supersoldados para participarem da II Guerra Mundial.

    Durante estes experimentos, Wolverine foi vtima de lavagens cerebrais que

    implantaram nele falsas memrias. Devido a estes acontecimentos, ele termina por se

    tornar uma pessoa sem passado. O personagem no tem como diferenciar memrias

    falsas de memrias verdadeiras, no sabendo ao certo quem , mas, ao mesmo tempo,

    sendo assaltado por fortes convices que no sabe ao certo se esto relacionadas a

    memrias falsas ou verdadeiras. Por no saber definir quem amigo ou inimigo, o

    personagem opta por uma vida solitria.

  • Rogue uma jovem que traz na palma da mo a senha de acesso e controle do esprito

    das outras pessoas. Quando toca outras pessoas, ela consegue absorver delas memrias,

    habilidades, mas tambm a fora vital. Esta capacidade poderia soar como uma bno,

    mas revela-se uma maldio. Rogue no tem controle sobre este poder. Por esta razo,

    no pode ter qualquer tipo de contato corporal com os outros, sob risco de tirar-lhes a

    vida. Durante uma batalha, Rogue tocou duas vezes em Carol Danvers, absorvendo

    todas as suas memrias, habilidades e sua fora vital. Desde ento, duas psiques a da

    prpria Rogue e a de Carol Danvers disputam o controle pela alma de Rogue. Em

    determinados momentos, a psique de Carol Danvers assume o controle, fazendo com

    que Rogue tenha comportamentos e atitudes que no correspondem a sua personalidade.

    Jean Grey no foi mais a mesma depois de ter sido vtima de um acidente sofrido a

    bordo do nibus espacial que pilotava prximo rbita da Terra. O nibus caiu no

    fundo das guas de uma baa, mas milagrosamente a jovem sobreviveu. Jean Grey tem a

    capacidade de ler a mente de outras pessoas e de mover objetos com a fora de

    comandos mentais. Depois do acidente, estes poderes se intensificaram de forma

    espantosa.

    A personalidade da jovem tambm mudou drasticamente. Antes Jean Grey era uma

    moa tmida e recatada. Sem demora, ela se tornou audaciosa, assumindo uma postura

    debochada e agressiva, alm de um comportamento luxurioso. O seu tutor, o professor

    Charles Xavier, a fim de compreender esta transformao resolveu usar sua telepatia

    para ler a mente da jovem. Descobriu, ento, que aquela que estava ali no era

    exclusivamente Jean Grey. Junto a ela, coabitava uma entidade que havia tomado o seu

    corpo. Esta entidade era a Fora Fnix, umas das energias primordiais que agiram no

    processo de criao do universo. Esta fora csmica tomou o corpo de Jean Grey, no

    momento em que ela sofreu o acidente. O objetivo desta fora era experimentar a

    sensao de viver como um ser humano sujeito aos limites do tempo e do espao. O

    resultado da fuso entre o poder incomensurvel da Fora Fnix e as limitaes do

    corpo humano foi que Jean Grey enlouqueceu, sendo tomada pelas paixes da Fora

    Fnix, alimentadas pelo desejo desta fora de sair universo a fora drenando a energia

    das galxias.

  • As histrias relatadas acima, com base em Quesada (2005), so de trs personagens

    integrantes de um grupo de super-heris chamados X-men. Como se pode notar, h

    vrias mudanas entre estes super-heris e os super-heris descritos anteriormente.

    Uma primeira mudana a ser mencionada refere-se ao estatuto do super-poder. No

    modelo clssico de super-heri, o super-poder est relacionado, como se viu, a uma

    antiphysis que age para reafirmar a soberania da physis. O super-poder do super-heri

    clssico atua com base na premissa de que a harmonia da physis pode e deve ser

    restaurada. Trata-se de um poder salvfico, encarado pelos que dele dependem como

    bno. Alm disso, o super-poder clssico est sob controle do super-heri, o qual

    pode, por meio de sua deciso, delimitar o escopo, o raio de ao e os marcos inicial e

    final de atuao deste poder na linha do tempo.

    Numa outra direo, o super-poder do novo modelo de super-heri, representado pelos

    X-men, no est sob controle do super-heri, causando-lhe disfunes corporais e

    psquicas. A incapacidade de o super-heri harmonizar-se com seu prprio super-poder

    reflexo de uma relao mimtica pautada pela antiphysis, na qual no se pode mais

    encontrar no mundo o reflexo do ideal clssico de um cosmos ordenado e harmonioso.

    A esta nova forma de a narrativa de super-heri conceber os super-poderes est

    relacionada outra caracterstica da antiphysis: o divrcio entre o heri e a comunidade.

    Os X-men so repudiados pela comunidade que eles tentam auxiliar. So vistos como

    aberraes e com uma nota secreta de inveja por parte dos seres humanos normais.

    O esforo que h, no modelo clssico de super-heri, de traar fronteiras definidas entre

    a cotidianidade e o carter mtico, abandonado no novo modelo de super-heri.

    Exemplo disso a origem dos poderes dos X-men. Apesar de sobrenaturais, o super-

    poder dos X-men originado por mutaes genticas. O tom mtico que caracterizava o

    super-poder, no super-heri clssico, substitudo por um tom de cientificidade, que faz

    a balana do paradoxo narrativo pender para o lado da cotidianidade. O fato de o poder

    ser uma expresso gentica e de manifestar-se, muitas vezes, de forma espontnea e

    incontrolvel, praticamente inviabiliza a existncia de uma identidade secreta.

    Decorrncia disto que, no novo modelo de super-heri, no h espao para o

    mascaramento do paradoxo narrativo. Contrariamente, so expostas as fissuras internas

    deste paradoxo.

  • O fato de os X-men serem vistos como anomalias, ocasiona uma espcie de apartheid,

    dividindo a sociedade entre os que foram e os que no foram afetados pelas mutaes

    originadoras do super-poder. Disto decorre um grave conflito. De um lado, boa parte

    dos humanos sem super-poderes defendem o controle e at mesmo o extermnio

    daqueles afetados pelas mutaes. De outro, uma parcela dos mutantes, crente de ser

    uma raa superior, deseja extinguir os que no foram afetados pela mutao, em nome

    de uma espcie de eugenia. Mas h ainda uma terceira via, representada pelos

    partidrios de um convvio pacfico entre os mutantes e os no-mutantes, baseado no

    respeito s diferenas.

    Os principais representantes deste conflito so os mutantes Charles Xavier e Erich

    Lasher. Lasher adepto da crena de que os mutantes, como raa superior, devem

    imperar sobre a Terra. Xavier defende a coexistncia pacfica. Outro sinal da presena

    da antiphysis a dificuldade de se delimitar esferas de pertencimento social. Erich

    Lasher, por exemplo, de origem judaica, tendo sido vtima do Nazismo. Mas, na

    narrativa, vincula-se a uma corrente de pensamento de ndole fascista, propondo que os

    mutantes so superiores e, por isso, os no-mutantes devem a eles submeter-se. Alm

    disso, os mutantes, mesmo os que defendem a coexistncia pacfica, so pessoas

    confusas quanto a seu pertencimento. Sentem-se humanos como os demais, sendo iguais

    a eles na maior parte das caractersticas fsicas (o que lhes permite se passarem por

    pessoas comuns boa parte das vezes), mas no conseguem, devido discriminao,

    inserir-se no rol dos ditos seres humanos normais.

    Deste conflito deriva outra caracterstica da antiphysis: a crise da identidade ou a

    impossibilidade de se promover o reconhecimento com base na ideia da existncia de

    um ncleo central e constante de identificao. Costa Lima (2003) dir que a identidade

    dos seres e das coisas o princpio sobre o qual se erige a mmesis da physis. Em

    contrapartida, a antiphysis pressupe no a vontade, fosse at melanclica, de

    perenizar a fortuita ao humana pela durabilidade dos monumentos (escritos, pintados,

    esculpidos), mas, ao invs, a declarao de no identidade dos seres do mundo.

    (COSTA LIMA, p. 246).

    A dupla personalidade de Rogue e de Jean Grey e a impossibilidade de Wolverine de

    creditar veracidade a suas memrias est relacionada antiphysis, que significa

    ausncia de correspondncia, perda de lastro. (COSTA LIMA, 2003, p. 246).

  • Outra caracterstica relacionada antiphysis que importante ser destacada o

    esvaziamento do mito. Como observa Costa Lima (1988; 2003) Borges retoma

    elementos da cabala e do gnosticismo, esvaziando-os de seu direcionamento mtico e

    explorando o jogo simblico que tais elementos inspiram. Nas narrativas de super-heri

    tambm h um esvaziamento do mito, mas no somente para se explorar a fora

    simblica. O mito ganha um novo preenchimento.

    o que acontece com a personagem Rogue, j mencionada anteriormente. Ela

    representa uma retomada do mito do rei Midas, preenchido com um contedo que alude

    ao mito de origem, ao mesmo tempo que o avesso deste mito. Rogue no consegue

    tocar os outros sem manifestar seu poder. Nisso ela se assemelha a Midas. Contudo,

    numa direo oposta a de Midas, Rogue no empresta uma nova propriedade ao que

    toca. Ela suga determinadas propriedades daqueles que toca (energia vital, habilidades e

    memrias).

    Outro exemplo a retomada do mito da Fnix no drama da j mencionada personagem

    Jean Grey. A Fnix uma ave mitolgica com a capacidade de queimar a si mesma e

    renascer das prprias cinzas. Na narrativa dos X-men, a fora Fnix, que entra no corpo

    de Jean Grey, tem a mesma aparncia da figura mitolgica (uma ave de fogo). Mas o

    mito da Fnix passa por um processo de sincretismo, sendo associado ao mito de Cristo,

    referente ao Deus que se faz carne para habitar entre os seres humanos. Porm, o

    prprio mito de Cristo esvaziado da aura sagrada que a tradio crist lhe atribui e

    preenchido por novas caractersticas como a luxria e a loucura, aproximando a

    releitura da Fnix, na narrativa de X-men, do mito grego de Dioniso.

    Pode-se tambm mencionar o esvaziamento de mitos contemporneos. Um dos

    personagens de X-men chamado Henry McCoy sofreu uma mutao gentica que fez

    com que ele se tornasse uma mistura de homem e de fera. Porm, McCoy a despeito da

    aparncia animalesca um grande cavalheiro e possui uma inteligncia fora do comum,

    utilizada no seu trabalho como cientista. Retoma-se, nesse caso, o mito moderno O

    Mdico e o Monstro, de R. L. Stevenson. Mas, este esvaziado da monstruosidade e

    preenchido com um significo avesso ao mito. Este processo de esvaziamento e

    preenchimento do mito com novas motivaes d-se conforme um jogo que pode ser

    descrito com base no que Snia Ramalho (2008, p. 164) denomina mecanismo de

    duplicao especular: Esse mecanismo de duplicao especular retomado por

  • analogia e, sobretudo, por dessemelhana, atravs de vrios artifcios narrativos

    metaficcionais e intertextuais.

    O que acontece com o personagem Henry McCoy aponta para outra caracterstica da

    antiphysis. Trata-se do desnvel irnico entre aparncia e essncia. Sob a gide da

    physis, a beleza fsica do heri refletia sua ndole de perfeio. Isto est ligado ao ideal

    clssico expresso pelo tringulo da excelncia, o qual faz da beleza, da bondade e da

    justeza dimenses inseparveis. Em muitos casos, a narrativa dos X-men trabalha com

    personagens que tm uma aparncia aterradora, mas um carter que reflete o ideal de

    perfeio grego. Ocorre tambm, com frequncia, que personagens de beleza apolnea

    tragam no carter o oposto dos valores que Plato pleiteava para os integrantes da

    Repblica.

    Prope-se finalizar esta anlise trazendo o exemplo de uma personagem integrante de

    outra equipe de super-heris: a personagem Ravena, membro de um grupo chamado

    Novos Tits. Ela uma jovem possuidora de um super-poder chamado empatia, que d

    a ela a capacidade de absorver, doar e captar emoes. Ravena termina por encarnar o

    paradoxo narrativo, desmascarando-o. Ao utilizar seu super-poder, ela se esvazia de si e

    preenchida pelas emoes das pessoas que a rodeiam. O auge do carter mtico desta

    personagem , ironicamente, quando ela se deixa preencher pela cotidianidade

    representada pelas emoes dos seres humanos que entram em contato com ela.

    Expresso da antiphysis, Ravena, ao salvar as pessoas de suas piores emoes no

    recebe a glria, como acontece com o super-heri clssico. Contrariamente, ela recebe

    como prmio, pelo bem que presta sociedade, o fardo de carregar sobre si as dores

    daqueles a quem se prope salvar. A fico pensada como antiphysis porque a vida

    tomada como experincia de pesadelo (COSTA LIMA, 2003, p. 248). Podemos

    acompanhar isto, por meio da figura 6, tambm j analisada por Vidal Eufrausino

    (2006).

  • Figura 6 - Ravena

    Consideraes finais

    Como pde ser observado, o modelo clssico de super-heri no devedor

    exclusivamente da physis, como o fantasma da obviedade pode fazer supor. Ele se

    constri com base no mascaramento do paradoxo narrativo e na subtrao do peso da

    cotidianidade na narrativa, por meio de uma nfase do carter mtico. E esta nfase

    conta com auxlio tanto da physis quanto da antiphysis.

  • Por outro lado, o novo modelo de super-heri trabalha explorando as contradies que

    habitam o paradoxo narrativo, em vez de tent-las mascarar, como acontece no modelo

    clssico de super-heri. A tendncia desse novo modelo trabalhar a tenso entre physis

    e antiphysis, por meio do contraste entre aparncia e essncia. perceptvel um

    movimento em que a narrativa de super-heri caminha de uma predominncia da physis

    para uma predominncia da antiphysis. Esta comea a ser gerada com a criao dos X-

    men, na dcada de 1960 e atinge o pice nas narrativas produzidas na dcada de 1980.

    Mas, tambm possvel notar que a physis no desaparece.

    Outros estudos sero necessrios para abordar as diferentes formas assumida pela

    antiphysis na narrativa de super-heri. Mas, possvel dizer que a coexistncia de

    physis e antiphysis no deixa de ocorrer, sendo prova disso personagens como o

    Batman. E, em alguns momentos, haver uma retomada da physis. o que acontece em

    narrativas como a Crise nas infinitas Terras. Publicada na dcada de 1980, esta histria

    fala sobre a existncia de universos paralelos nos quais haveria diferentes verses do

    Planeta Terra. A narrativa se encaminha para o desaparecimento dos universos

    paralelos, restando somente uma verso do planeta Terra. flagrante, neste exemplo, o

    retorno da physis, tentando vencer a antiphysis em seu impulso de desagregao de

    tudo com tudo, donde ausncia de residncia no tempo, donde a impossibilidade doutra

    identificao seno a falaciosa dos espelhos (COSTA LIMA, 2003, p. 247).

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