8
REFLEXÕES 17 Domingo 18 de Outubro de 2020 Luís Kandjimbo |* Ao elegerem como objecto de es- tudo os modos de existência da obra literária, as correntes domi- nantes da filosofia da literatura oci- dental não reconhecem qualquer singularidade aos problemas sus- citados pelas literaturas orais. Par- tindo sempre de um pressuposto assente no predomínio do texto escrito, as referidas correntes fi- losóficas dão primazia à abordagem geral do estatuto da obra literária ignorando a oralidade como prática discursiva, seus regimes e formas de manifestação da sua textualidade. No entanto, defender abordagens que caracterizam a filosofia da li- teratura, tendo em conta a neces- sidade de compreender os modos de existência da literatura oral, presssupõe um conhecimento das agendas de pesquisa, seus resul- tados, obras e autores. A este propósito considero in- teressante a leitura da obra do fi- lósofo senegalês Mamoussé Diagne de que destaco dois livros: “Critique de la Raison Orale” (Crítica da Razão Oral) e “De la Philosophie et des Philosophes en Afrique Noire” (Da Filosofia e dos Filósofos na África Negra). Trata-se de duas propostas para uma crítica do lo- gocentrismo e da escritofilia, na medida em que com elas Mamoussé Diagne assume a tarefa de inter- rogar-se acerca da existência da filosofia num meio cultural carac- terizado pela oralidade. E desta forma, inscreve-se na linha que considero igualmente defensável, fazendo apelo a um diálogo com especialistas de outras regiões lin- guísticas do continente. Autor na literatura oral Para o professor senegalês do De- partamento de Filosofia da Uni- versidade Cheikh Anta Diop, a existência da filosofia num meio cultural caracterizado pela oralidade deve ter em atenção questões as- sociadas ao contexto performancial no âmbito do qual ocorre o discurso filosófico, aos procedimentos que a sua produção implica e à avaliação dos seus efeitos. Entre os mais re- levantes problemas filosóficos da textualidade oral, podemos iden- tificar duas instâncias que cons- tituem o seu modo de existência: o autor e o público. Relativamente ao primeiro, Ma- moussé Diagne refuta com razão a tese do anonimato ou do unani- mismo dos textos orais, na medida em que na sua concepção inicial encontra-se sempre um indivíduo singular. Situo na mesma linha a posição do nigeriano Isidore Ok- pewho, quando considera ser difícil identificar autores das obras criativas na literatura oral devido ao deli- berado processo de supressão da sua identidade. Já o antropólogo ganense Kwesi Yankah é mais es- pecífico quando estuda a proble- mática da identificação dos autores de provérbios na tradição cultural Akan do Ghana. Yankah entende que no processo de atribuição de autoria, enfatiza- se o pronome possessivo e o pro- vérbio ou ditado é referido como propriedade do indivíduo nomeado. Deste modo, a subsequente e sis- temática reprodução de tais obras criativas por outros membros da comunidade interpretativa não im- pede o reconhecimento de autoria do texto oral. Por essa razão, Isidore Okpewho defende a necessidade de estudar os mecanismos através dos quais a personalidade dos au- tores determina a interpretação do conteúdo do texto oral. Esta con- clusão pode ser comprovada com a comparação das suas variantes e versões, na medida em que, como dizia o democrata-congolês Georges Ngal, o artista opera com “um vasto texto virtual e objectivo da tradição” que se impõe como uma realidade extrapessoal, preexistente e con- centração de determinismos. Mas entre os elementos cruciais que permitem compreender a com- plexidade do sistema literário da oralidade encontramos as circuns- tâncias performanciais em que o artista se revela perante o público. Trata-se da problemática dos con- textos de enunciação, um domínio que tem merecido particular in- teresse de especialistas dos estudos literários e da filosofia. Verbofilia versus escritofilia Percorrendo a agenda de pesquisa dos investigadores africanos, ve- rifica-se que ela inscreve trabalhos e resultados que tematizam as con- dições e o modo de existência da obra literária. O beninense François Dossou emprega dois neologismos, verbofilia e escritofilia, quando aborda os problemas que subjazem à coexistência da oralidade e da escrita nos processos de transmissão do saber em África. A mistificação da escrita transforma-a em símbolo hegemónico do saber, lançando- se a oralidade para um lugar mar- ginal da esfera do irracional. Perante a escritofilia dominante no universo dos estudos literários e da filosofia, tais reflexões são ma- nifestações expressivas de uma ruptura epistemológica, na medida em que partem de um pressuposto fundado na verbofilia. Quando pro- cedia ao levantamento da inves- tigação no domínio dos estudos das literaturas orais africanas em 1985, o ganense Kofi Anyidoho considerava que a deslocação me- todológica do texto para o contexto constituía um dos avanços assi- naláveis, passando a literatura oral a ser estudada como “performance” e acontecimento. Para Kofi Anyi- doho tal mudança deve-se ao cres- cente aumento de encontros internacionais, edições de revistas especializadas e estudos consa- grados às tradições individuais das literaturas orais africanas a partir da década de 70 do século XX. As principais tendências da investi- gação desenvolveram-se no plano da teoria e da metodologia, com- preendendo os estudos comparados, a infuência da tradição oral na obra de escritores africanos e a explo- ração das continuidades ou trans- formações nas tradições orais africanas das diásporas. A orientação etnográfica e an- tropológica das pesquisas foi subs- tituída por abordagens que exigiam a exploração da dimensão estética e literária, bem como dos recursos paralinguísticos. Pode dizer-se que a mudança de focagem na inves- tigação das literaturas orais africanas tem lugar por força do crescimento progressivo de publicações espe- cializadas de autores africanos cujo traço distintivo consistia no facto de serem detentores de uma com- petência linguística que permitia a realização de estudos aprofun- dados sobre as suas comunidades étnicas de origem. No espaço africano em que se fala inglês, a título de ilustração, o inventário comporta autores e obras de referência de que se des- tacam os seguintes: S.Abedoye Ba- balola (nigeriano), The Content and Form of Yoruba Ijala, a primeira obra revolucionária (1966); Daniel P. Kunene (sul-africano), Heroic Poetry of the Basotho (1971); Kofi Awoonor (ghanense), Guardians of the Sacred Word (1971); John Pepper Clark Bekederemo (nige- riano), The Ozidi Saga (1977); Isidore Okpewho (nigeriano), The Epic in Africa (1979). Literatura e Filosofia Portanto, o debate sobre a con- cepção institucional das literaturas orais africanas introduz um novo círculo de problemas no campo da filosofia da literatura. Apesar de serem escassas as reflexões fi- losóficas sistemáticas consagradas exclusivamente às Literaturas Africanas, importa estabelecer conexões entre a filosofia e a li- teratura de modo a identificar a questão central respeitante às condições de possibilidade de um diálogo interdisciplinar. Para ilus- trar esse trabalho de tematização filosófica da literatura, justifica- se prestar alguma atenção ao que se vem fazendo. É o caso da ni- geriana Marystella Chika Okolo- Nwakaeme. No seu premiado livro “African Literature as Political Philosophy” (Literatura Africana como Filosofia Política), lamenta o facto de os benefícios da interface entre a filosofia e a literatura afri- canas não serem explorados com frequência. Reconhece a negli- gência que assombra a filosofia africana, relativamente à impor- tância das obras literárias. Por sua vez, o ganense An- thony Kwame Appiah e o cama- ronês Jean-Godefroy Bidima, em dois capítulos de uma obra de referência, A Companion to Afri- can Philosophy (Compêndio de Filosofia Africana), propõem uma outra análise do modo como a filosofia cruza com a literatura. Appiah examina a problemati- zação da identidade africana na obra dramatúrgica e ensaística de Wole Soyinka. Já Bidima passa em revista as manifestações dessa fertilização cruzada nas literaturas de língua francesa, referindo entre outros o problema estético da literatura oral. Lógica da oralidade Se operarmos com a noção de textualidade literária oral cons- tituindo-a como centro gravi- tacional, admite-se que a construção de uma “ordem do texto” supõe um universo de interrogações onde as perguntas e as respostas obedeçam aos re- gimes da oralidade, alargando assim o universo de objectos a que se aplica o conceito de li- teratura. Neste sentido, as “con- venções constitutivas da prática literária” e as “convenções re- guladoras do texto literário” passam a abranger os referentes que englobam o texto literário oral e as comunidades interpre- tativas da “razão oral”. A perspectiva apresentada permite que Mamoussé Diagne aprofunde as suas teses. Por exemplo, aquela segundo a qual o pensamento oral enunciado de viva voz, o “logos oral”, em si- tuação de exibição teatral, desafia a sua retenção duradoura perante as exigências da economia de tempo e da memória. Por isso, com o “logos oral”, Mamoussé Diagne replica a fórmula “lógica da escrita” do antropólogo inglês Jack Goody, definida a partir da relação com o suporte material com o qual se fixa e transmite o pensamento. Mas, ao mesmo tempo, pensa nas restrições im- postas pelo contexto oral das pro- duções discursivas na “civilização da oralidade”, cuidando dos pro- cedimentos específicos que de- finem a “lógica da oralidade”. *Ensaísta e professor universitário, M.Phil. (Filosofia), Ph.D. (Estudos de Literatura) A PROPÓSITO DAS TESES DE MAMOUSSÉ DIAGNE Modos de existência da literatura oral DR

Modos de existência da literatura oralimgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/1133097582_fim-de-semana_18.10.… · versidade Cheikh Anta Diop, a existência da filosofia num meio cultural

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • REFLEXÕES 17Domingo18 de Outubro de 2020

    Luís Kandjimbo |*

    Ao elegerem como objecto de es-tudo os modos de existência daobra literária, as correntes domi-nantes da filosofia da literatura oci-dental não reconhecem qualquersingularidade aos problemas sus-citados pelas literaturas orais. Par-tindo sempre de um pressupostoassente no predomínio do textoescrito, as referidas correntes fi-losóficas dão primazia à abordagemgeral do estatuto da obra literáriaignorando a oralidade como práticadiscursiva, seus regimes e formasde manifestação da sua textualidade.No entanto, defender abordagensque caracterizam a filosofia da li-teratura, tendo em conta a neces-sidade de compreender os modosde existência da literatura oral,presssupõe um conhecimento dasagendas de pesquisa, seus resul-tados, obras e autores. A este propósito considero in-

    teressante a leitura da obra do fi-lósofo senegalês Mamoussé Diagnede que destaco dois livros: “Critiquede la Raison Orale” (Crítica daRazão Oral) e “De la Philosophieet des Philosophes en Afrique Noire”(Da Filosofia e dos Filósofos naÁfrica Negra). Trata-se de duaspropostas para uma crítica do lo-gocentrismo e da escritofilia, namedida em que com elas MamousséDiagne assume a tarefa de inter-rogar-se acerca da existência dafilosofia num meio cultural carac-terizado pela oralidade. E destaforma, inscreve-se na linha queconsidero igualmente defensável,fazendo apelo a um diálogo comespecialistas de outras regiões lin-guísticas do continente.

    Autor na literatura oral Para o professor senegalês do De-

    partamento de Filosofia da Uni-versidade Cheikh Anta Diop, aexistência da filosofia num meiocultural caracterizado pela oralidadedeve ter em atenção questões as-sociadas ao contexto performancialno âmbito do qual ocorre o discursofilosófico, aos procedimentos quea sua produção implica e à avaliaçãodos seus efeitos. Entre os mais re-levantes problemas filosóficos datextualidade oral, podemos iden-tificar duas instâncias que cons-tituem o seu modo de existência:o autor e o público. Relativamente ao primeiro, Ma-

    moussé Diagne refuta com razãoa tese do anonimato ou do unani-mismo dos textos orais, na medidaem que na sua concepção inicialencontra-se sempre um indivíduosingular. Situo na mesma linha aposição do nigeriano Isidore Ok-pewho, quando considera ser difícilidentificar autores das obras criativasna literatura oral devido ao deli-berado processo de supressão dasua identidade. Já o antropólogoganense Kwesi Yankah é mais es-pecífico quando estuda a proble-mática da identificação dos autoresde provérbios na tradição culturalAkan do Ghana. Yankah entende que no processo

    de atribuição de autoria, enfatiza-se o pronome possessivo e o pro-vérbio ou ditado é referido comopropriedade do indivíduo nomeado.Deste modo, a subsequente e sis-temática reprodução de tais obrascriativas por outros membros dacomunidade interpretativa não im-pede o reconhecimento de autoriado texto oral. Por essa razão, IsidoreOkpewho defende a necessidadede estudar os mecanismos atravésdos quais a personalidade dos au-tores determina a interpretação doconteúdo do texto oral. Esta con-clusão pode ser comprovada com

    a comparação das suas variantese versões, na medida em que, comodizia o democrata-congolês GeorgesNgal, o artista opera com “um vastotexto virtual e objectivo da tradição”que se impõe como uma realidadeextrapessoal, preexistente e con-centração de determinismos. Masentre os elementos cruciais quepermitem compreender a com-plexidade do sistema literário daoralidade encontramos as circuns-tâncias performanciais em que oartista se revela perante o público.Trata-se da problemática dos con-textos de enunciação, um domínioque tem merecido particular in-teresse de especialistas dos estudosliterários e da filosofia.

    Verbofilia versus escritofiliaPercorrendo a agenda de pesquisados investigadores africanos, ve-rifica-se que ela inscreve trabalhose resultados que tematizam as con-dições e o modo de existência daobra literária. O beninense FrançoisDossou emprega dois neologismos,verbofilia e escritofilia, quandoaborda os problemas que subjazemà coexistência da oralidade e daescrita nos processos de transmissãodo saber em África. A mistificaçãoda escrita transforma-a em símbolohegemónico do saber, lançando-se a oralidade para um lugar mar-ginal da esfera do irracional.

    Perante a escritofilia dominanteno universo dos estudos literáriose da filosofia, tais reflexões são ma-nifestações expressivas de umaruptura epistemológica, na medidaem que partem de um pressupostofundado na verbofilia. Quando pro-cedia ao levantamento da inves-tigação no domínio dos estudosdas literaturas orais africanas em1985, o ganense Kofi Anyidohoconsiderava que a deslocação me-todológica do texto para o contexto

    constituía um dos avanços assi-naláveis, passando a literatura orala ser estudada como “performance”e acontecimento. Para Kofi Anyi-doho tal mudança deve-se ao cres-cente aumento de encontrosinternacionais, edições de revistasespecializadas e estudos consa-grados às tradições individuais dasliteraturas orais africanas a partirda década de 70 do século XX. Asprincipais tendências da investi-gação desenvolveram-se no planoda teoria e da metodologia, com-preendendo os estudos comparados,a infuência da tradição oral na obrade escritores africanos e a explo-ração das continuidades ou trans-formações nas tradições oraisafricanas das diásporas.

    A orientação etnográfica e an-tropológica das pesquisas foi subs-tituída por abordagens que exigiama exploração da dimensão estéticae literária, bem como dos recursosparalinguísticos. Pode dizer-se quea mudança de focagem na inves-tigação das literaturas orais africanastem lugar por força do crescimentoprogressivo de publicações espe-cializadas de autores africanos cujotraço distintivo consistia no factode serem detentores de uma com-petência linguística que permitiaa realização de estudos aprofun-dados sobre as suas comunidadesétnicas de origem. No espaço africano em que se

    fala inglês, a título de ilustração,o inventário comporta autores eobras de referência de que se des-tacam os seguintes: S.Abedoye Ba-balola (nigeriano), The Contentand Form of Yoruba Ijala, a primeiraobra revolucionária (1966); DanielP. Kunene (sul-africano), HeroicPoetry of the Basotho (1971); KofiAwoonor (ghanense), Guardiansof the Sacred Word (1971); JohnPepper Clark Bekederemo (nige-

    riano), The Ozidi Saga (1977);Isidore Okpewho (nigeriano),The Epic in Africa (1979).

    Literatura e Filosofia Portanto, o debate sobre a con-cepção institucional das literaturasorais africanas introduz um novocírculo de problemas no campoda filosofia da literatura. Apesarde serem escassas as reflexões fi-losóficas sistemáticas consagradasexclusivamente às LiteraturasAfricanas, importa estabelecerconexões entre a filosofia e a li-teratura de modo a identificar aquestão central respeitante àscondições de possibilidade de umdiálogo interdisciplinar. Para ilus-trar esse trabalho de tematizaçãofilosófica da literatura, justifica-se prestar alguma atenção ao quese vem fazendo. É o caso da ni-geriana Marystella Chika Okolo-Nwakaeme. No seu premiado livro“African Literature as PoliticalPhilosophy” (Literatura Africanacomo Filosofia Política), lamentao facto de os benefícios da interfaceentre a filosofia e a literatura afri-canas não serem explorados comfrequência. Reconhece a negli-gência que assombra a filosofiaafricana, relativamente à impor-tância das obras literárias. Por sua vez, o ganense An-

    thony Kwame Appiah e o cama-ronês Jean-Godefroy Bidima, emdois capítulos de uma obra dereferência, A Companion to Afri-can Philosophy (Compêndio deFilosofia Africana), propõem umaoutra análise do modo como afilosofia cruza com a literatura.Appiah examina a problemati-zação da identidade africana naobra dramatúrgica e ensaísticade Wole Soyinka. Já Bidima passaem revista as manifestações dessafertilização cruzada nas literaturasde língua francesa, referindoentre outros o problema estéticoda literatura oral.

    Lógica da oralidadeSe operarmos com a noção detextualidade literária oral cons-tituindo-a como centro gravi-tac ional , admite-se que aconstrução de uma “ordem dotexto” supõe um universo deinterrogações onde as perguntase as respostas obedeçam aos re-gimes da oralidade, alargandoassim o universo de objectos aque se aplica o conceito de li-teratura. Neste sentido, as “con-venções constitutivas da práticaliterária” e as “convenções re-guladoras do texto literário”passam a abranger os referentesque englobam o texto literáriooral e as comunidades interpre-tativas da “razão oral”. A perspectiva apresentada

    permite que Mamoussé Diagneaprofunde as suas teses. Porexemplo, aquela segundo a qualo pensamento oral enunciado deviva voz, o “logos oral”, em si-tuação de exibição teatral, desafiaa sua retenção duradoura peranteas exigências da economia detempo e da memória. Por isso,com o “logos oral”, MamousséDiagne replica a fórmula “lógicada escrita” do antropólogo inglêsJack Goody, definida a partir darelação com o suporte materialcom o qual se fixa e transmite opensamento. Mas, ao mesmotempo, pensa nas restrições im-postas pelo contexto oral das pro-duções discursivas na “civilizaçãoda oralidade”, cuidando dos pro-cedimentos específicos que de-finem a “lógica da oralidade”.

    *Ensaísta e professor universitário,M.Phil. (Filosofia), Ph.D. (Estudos

    de Literatura)

    A PROPÓSITO DAS TESES DE MAMOUSSÉ DIAGNE

    Modos de existência da literatura oral

    DR

  • MÚSICA18 Domingo18 de Outubro de 2020

    DON KIKAS NO CAPITÓLIO DE LISBOA

    E como foi tão bom…Don Kikas prometeu e a festa foi mesmo de arromba, com convidados VIP’s e “patos finos”. Bonga, Tito Paris, Eddy Tussa,Betinho Feijó, Galiano Neto e Carlitos Chiema foram os convidados num espectáculo em que se fez uma singela homenagema Waldemar Bastos e a Carlos Burity. Em palco, esteve em evidência, de modo sintético, um quarto de século de muita

    Kizomba, Semba, Kilapanga e outros estilos cantados por Don Kikas

    Analtino Santos

    A presença de Don KikasnoCapitólio, em Lisboa, trouxeà baila a jovialidade do artistaque continua com o mesmorosto do menino do Sumbeque, a partir da capital por-tuguesa, conquistava o paísmusicalmente. No concer-to-festa, montado e produ-zido por Ricardo Santos e oseu time da Frequentaplauso,Don Kikas teve o suporte ins-trumental de Tino MC (soloe ritmo), Peterson Gau (bai-xo), Anderson Ivo (teclados),Alex Zuk (bateria), JéssicaPina (trompete), ElmanoCosta (saxofone e flauta), So-fia Grácio (coros e piano),Yura Silva (coros) e o seu par-ceiro de composição, GalianoNeto, na percussão.Como numa partida de

    xadrez e por acaso tambémtítulo de um álbum seu, DonKikas deu um xeque-matecom a escolha do repertório.O concerto foi transmitidono dominical “Espaço daFamília Angolana”, ou Livedo Kubico, da TPA, na RTPÁfrica, Média Mais de Mo-çambique e nas plataformasdigitais da Platinaline. Sen-sualidade, erotismo, roman-ce, intervenção social, festa,patriotismo e outras históriase estórias da maneira de sermwangolé estiveram emdestaque e voltaram a emo-cionar o país onde a espe-

    rança continua moribunda.Foi exactamente com o

    tema “Esperança Moribunda”que o roteiro musical come-çou. Uma mensagem que,pelos vistos, continua actual:“Deus nos deu uma terra rica,ambição e muito mais”... A imagem do Volkswagen

    colorido e o suspiro do bembom veio com “Pura Sensa-ção”; o menino que se fezhomem no Prenda, contoua história de “João Dya Nzam-bi”, professor engatatão epedófilo, uma música feitaem parceria com Galiano Ne-to. Como já foi escrito nesteespaço, “Amor de Ninguém”,um dueto original com Pérola,é uma das mais belas cola-borações entre artistas an-golanos, que, no palco doCapitólio lisboeta, Don Kikaspartilhou com Yura Silva.Nesta fase inicial em estiloKilapanga e cantando em Ki-kongo, o músico falou da fo-me que assola muitas famíliasem “Nzala”, um tema emque contou com ajuda deGuy Destino.Se os mais jovens afirmam

    que transformam a quintaem sexta, Don Kikas trans-formou o domingo em “Sex-ta-feira”, dia de festa à boamaneira angolana com“aquela” fugida básica decasa, para ir tomar uns coposcom os amigos. O lado pi-cante voltou em “Como foibom”, a mexer com as ma-dame-moças: “Tirei-te a

    roupa toda, beijei-te o corpotodo, ficaste muito à toa... noquarto, na cama, no carro ecomo foi tão bom”. Don Kikasteve ainda tempo para contara história da Saquirima e daMamã Zungueira, um com-provativo de que os exemplosde superação das mulheresguerreiras aqui da banda ins-piram o compositor que vivena terra do Ngana Puto. Bem ao meio do concerto,

    o músico saiu-se com “Es-perança Moribunda, parte2”, em que trata Angola comouma mulher que chora por-que os seus filhos vivem alutar e não sabe se a riquezaque brota do solo é boa oumá. Mais um momento parareflectir sobre a força do com-positor e a exaltação da pátriasem floreados panfletários.Antes de todo o lago musicalsecar, ainda houve tempopara recordar os velhos clipesmusicais e a fase inicial dacarreira do músico ao somde “Angolanamente Sen-sual”, com Kikas a dar umade Don, e a tirada romântica“Lama do Amor”: “Pensa emmim e em ti, deixa a mágoatoda pra lá...”Para fechar de modo me-

    morável, Don Kikas fez umgrande “assalto” ao palcocom “Semba Matinal” e“Ngaieta”, com os dançarinosa recordarem os toques e aginga da dupla Bruxo e Bruxa,numa coreografia de MestrePitchu. No boda de prata da

    tarde de domingo o roteiroainda passou por “Numaboa”, uma das novas criaçõesdo cantor, que até recuperou,com direito à canjinha, “Eficou bwé coxito”, tema ori-ginal das Femme Move. A presença de Bonga foi

    um dos momentos altos daactividade, com o jovem de78 anos, que nasceu no PortoKipiri e cresceu no Marçal,a partilhar em palco o sucesso“1900 Kabuza”, e, da sua la-vra, fez dançar os telespec-tadores e internautas com“Kisselenguenha”. Durantea presença de Bonga em pal-co, Betinho Feijó e CarlitosChiema juntaram-se à banda.Don Kikas aproveitou pararealçar a importância destesinstrumentistas na produçãode muitos sucessos da mú-sica angolana, na vertenteSemba, incluindo sucessosseus. Galiano Neto, o com-positor e percussionista,também mereceu elogios eo reconhecimento.Tito Paris foi outro con-

    vidado. O cabo-verdiano di-vidiu os vocais em “Muxima”e representou a irmandadeentre os artistas africanosem Portugal. Vestido à ma-neira dos axiluanda, EddyTussa foi a surpresa ao apa-recer para cantar “Pato Fora”.Outros convidados inespe-rados foram Flávio, Enzo eKuzi, filhos de Don Kikasque também ajudaram a daro xeque-mate.

    KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO

    DR

  • MÚSICA 19Domingo18 de Outubro de 2020

    Emílio Costanasceu aos 4 deJaneiro de 1974 na cidade doSumbe. Ainda criança, acom-panha os pais para o Brasil,onde começa a ganhar o gostopela música. Aos 8 anos, re-gressa a Angola. Aos 18, emigrapara Portugal, para dar con-tinuidade aos estudos. Começaa cantar em discotecas e baresde Lisboa, até que surge oconvite para gravar o seu pri-meiro disco, em 1994, que foieditado em 1995 com o titulo“Sexy Baby“. Dois anos depoislança “Pura Sedução”, emque, diferente do primeiro,além da Kizomba, aposta tam-bém no Semba. Com esta obraconquista o seu primeiro Discode Prata e o prémio Músicado Ano com o tema “EsperançaMoribunda“. Em 2000, commais de 20.000 cópias ven-didas do album “Xeque-Mate”arrebata o Disco de Ouro emPortugal. Em Angola, no Top

    da Rádio Luanda, arrasa con-quistando os prémios “Discodo Ano”, “Voz do Ano” e “Me-lhor Kizomba do Ano“ com osucesso “Na Lama do Amor”.Volta aos discos de originaisem 2003 com “Raio X”, quecontou com a participação deartistas de várias nacionali-dades e estilos diferentes. E,mais uma vez, conquista o“Disco de Prata” em Portugal.“Viagens”, editado em 2006,é um duplo disco que viajaentre as sonoridades maismodernas como a Kizomba eo Zouk, não deixando de passarpelas tradições do Semba, Ka-zukuta e Kilapanga.“Regresso à Base”, de 2011,

    foi gravado entre Lisboa, Luan-da e Paris e marca uma novaetapa de Don Kikas, que passamais tempo em Angola. EsteCD foi um sucesso com vendassuperiores a 10.000 cópias nodia do lançamento.

    Percurso artístico

    DR DR

    KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO

    Discurso directoRecuperamos para os leitores o que DonKikas escreveu na sua página oficial no Fa-cebbok. “O show foi sobretudo intenso. Vivieste concerto com o coração cheio de emoções,gratidão, responsabilidade, entusiasmo, ami-zade, amor, paz, realização e mais uma vezgratidão. Não apenas porque estamos a co-memorar 25 anos de carreira (porque demúsica são muitos mais), mas também porquesenti ali mesmo que o universo é extremamentehonesto e generoso na sua lei do retorno. Sen-tir-me rodeado de amizade verdadeira e amor,consideração, entrega e profissionalismo.Porque nem tudo foi fácil nestes últimos 25anos, pelo contrário, tenho superado até al-gumas adversidades e pessoas que empenhamo seu tempo e energia para me tentar travarde várias formas. Muito mais forte e importantedo que isto é saber que Deus nunca me aban-donou, tem-me dado forças mental, espirituale física para seguir em frente. E depois tenhoo meu público, os verdadeiros fãs que sempreacreditaram no meu talento, mesmo quandonão estivesse nos meus melhores momentos.Foram 25 anos de muitas vivências, e muitaslições, muitos palcos por todo o mundo ondecada aplauso para mim é uma vitória. Muitasamizades que ficarão para toda a vida. Algumasdesiluções que viraram lições e até canções.Mas a vida é isto, de nada valeria o doce senão houvesse o amargo. (...)”

    DRDR

    DR

  • ENTREVISTA20 Domingo18 de Outubro de 2020

    A temática da propriedade intelectual, onde seinserem os direitos de autor e conexos, temganhado corpo na sociedade angolana. O livro“A utilização da Propriedade Industrial e asPolíticas Públicas de Inovação em Angola - Opapel do Instituto Angolano da Propriedade In-dustrial (IAPI)”, da autoria de Barros Licença,lançado recentemente, em Luanda, procura per-ceber as razões subjacentes à não utilizaçãomassiva do Sistema da Propriedade Industrial ea fraca inovação tecnológica no país, a partir docomportamento dos cidadãos nacionais perantea matéria. Em entrevista ao Jornal de Angola,Barros Licença fala do carácter científico da obrae do impacto das actividades criativas no país,tendo como referência o período de 2004 a 2014

    Manuel Albano

    Com a sua visãocosmopolita sobre amatéria, que contributosprocura apresentar no livro?Basicamente, partilhar ex-periências e conhecimentos,com os leitores no geral. Sen-do que, para os leitores na-cionais, em especial, trata-sede uma modesta contribuiçãono que à massificação do co-nhecimento sobre a temáticadiz respeito, sua importânciae utilidade. Embora não apro-funde os conceitos nem dis-cuta as posições doutrinais,a obra apresenta alguns con-ceitos e definições básicassobre as distintas matériasda propriedade industrial,e não só. Busca também,para efeitos comparativos,realidades de certos paísesmais desenvolvidos nas ma-térias, para além de espelhara realidade angolana. E osleitores no exterior e os es-trangeiros terão a oportuni-dade de conhecer este últimoaspecto (realidade angolanasobre a propriedade indus-trial e a inovação). Para osdecisores políticos, pode seruma referência a ter em con-ta, na elaboração de políticaspúblicas sobre a temática.

    É um livro direccionado para um público específicoou para todos que seinteressem pela matéria em causa?Em princípio, a obra é paratodos que se interessem pelasmatérias. Porém, para omundo académico, pode serprecursor e referência parafuturos trabalhos sobre a te-mática. Para os órgãos pú-blicos, responsáveis pelaelaboração e implementaçãode políticas públicas, é uma

    modesta contribuição quepode servir de referência,como atrás frisei.

    Sendo um tema bastantecomplexo, acredita que jáalcançou o conhecimentodesejado na sociedadeangolana?Embora a pesquisa se refiraao período de 2004 a 2014,ainda é limitado o actual co-nhecimento sobre a temática.Mas é notório o crescendodo interesse da sociedade arespeito. Pelo que há que in-crementar acções e as formasde massificação desse co-nhecimento.

    Qual foi a sua maiorpreocupação, quandopensou em trazer a temáticados direitos de autor para adiscussão pública?É interessante que antes dadecisão de fazer o mestrado,de que resultou a obra empresença, já fazia escritosque partilhava com a so-ciedade por via do JornalEconomia & Finanças, atra-vés de uma parceria quehavíamos estabelecido parao efeito. Este exercício, pos-teriormente, continuou como Novo Jornal. A preocupa-ção era contribuir para amassificação do conheci-mento sobre a temática, apar dos seminários que, mul-tissectorialmente, sob a mi-nha liderança, realizámosem todas as capitais provin-ciais. O interesse e o desejode servir mais e melhor, bus-cando meios e formas maisestruturadas e consistentes,estiveram na base da minhafrequência do mestrado.Logo que tomei conheci-mento da existência e doobjecto do Centro de Exce-lência sobre Pesquisa de

    Políticas Públicas e Gover-nação Local, achei que eraa grande oportunidade paralevar o tema à academia.

    Já temos uma sociedadecapaz de perceber aimportância de se terconhecimentos básicossobre direitos de autor, nosentido de se evitarem oserros na interpretação eimplementação das leissobre a PropriedadeIntelectual no país?As leis existem para moldare orientar a conduta dosmembros da sociedade. Seos membros da sociedadeparticipam na elaboraçãodas leis, ou pelo menos, se-rem informados da sua exis-tência e esclarecidos quantoao conteúdo das mesmas,mais facilmente acatarão oscomandos normativos. Meucaro jornalista, lamentavel-mente, na área dos direitosautorais, o problema não secoloca ao nível da sociedademas dos órgãos com respon-sabilidades acrescidas na te-mática, que não estão aaplicar as leis existentes.Pondo-se assim em causatodo um exercício multis-sectorial, e dos órgãos com-petentes intervenientes, queconduziu a produção dasmesmas leis. Não permitirque as instituições e os ór-gãos administrativos criadospara o efeito funcionem é,na nossa opinião, estar nacontramão dos esforços emcurso para melhoria do am-biente de negócios, que, noque aos direitos de autor dizrespeito, anima e movimen-ta a entrada em funciona-mento da sala do Comércio,Propriedade Intelectual eIndustrial do Tribunal Pro-vincial de Luanda.

    Usufruto dos direitos autorais,sua protecção e litígios: o quemais o preocupa?Preocupa a não implemen-tação das leis. Veja que, porexemplo, na área dos direitosautorais, em termos legis-lativos, o quadro jurídico foibastante melhorado. Se sepermitir a implementaçãoda legislação existente, o sis-tema nacional dos direitosde autor pode, efectivamente,funcionar. Isto é, os meca-nismos de protecção e defesainstituídos podem ser ac-cionados e os criadores eagentes usufruirem dos seusdireitos económicos. E assimo sistema de propriedade in-telectual, no geral, poderiacumprir os fins para os quaisfoi instituído.

    Fale-nos sobre aimportância da elevação daconsciência da sociedadesobre a protecção dapropriedade intelectual,

    fundamentalmente osartistas e criadores?Repare que a protecção dapropriedade intelectual fun-ciona como incentivo à cria-tividade e à inovação. Asactividades dos artistas ecriadores são as que fazemsurgir novos produtos, nãosó para o deleite como paraa indústria e os serviços, re-sultando em bens e serviçosque proporcionam o bem-estar, não só deles como detodos os membros da so-ciedade. Logo, com um co-nhecimento maior sobre autilidade e importância datemática, sobretudo dos ga-nhos económicos que se po-de ter, pelo exclusivo daexploração das respectivascriações intelectuais, maiorserá a consciência para asua protecção.

    Os direitos de autor sóincidem sobre obrasintelectuais de naturezaartística, literária ecientífica?Não só. Conforme a nossalei nacional, também inci-dem sobre o conhecimentotradicional e o folclore, bemcomo o conhecimento pro-duzido a partir das tecnolo-gias de informação.

    Quando estamos diante deuma infracção ou violaçãodos direitos de outrem?Toda obra copiada comoresultado de uma consultafísica, oral e pela internet éconsiderada infracção à lei?A lei tipifica três crimes: deusurpação, de plágio e decontrafação. Incorre no crimede usurpação quem, porexemplo, fizer a divulgaçãoou publicação abusiva deuma obra ainda não divul-gada pelo seu autor ou não

    destinada à divulgação; assimcomo a utilização excessivade uma obra, prestação deartistas, fonogramas, video-gramas ou emissão radio-difundida, excedendo oslimites da autorização. In-corre no crime de contra-fação quem, por exemplo,traduzir, editar, reproduzire distribuir uma obra inte-lectual de natureza artística,literária ou científica, sema autorização do criador oudetentor do direito.

    Incorre no crime de plágio,por exemplo, quem fizeralteração parcial ou total deuma obra sem referir-se aorespectivo autor ou criador?Repare que, para se consi-derar violação de um direitoautoral, basta que se verifiquea exibição e publicação deuma obra, ou a transforma-ção da mesma, sem auto-rização do autor, ou aindao seu uso sem mencionar oautor. Se este acto de copiarse destinar a um fim, nãomencionando o autor, oufonte, significa que o co-piador pretende se passarpelo autor da informaçãocopiada. Logo, isso configurao crime de plágio.

    Relativamente àpropriedade intelectual,onde se incluem os direitosde autor e conexos, existemmais casos polémicos nouniverso da música. Porquê?Isso é o que caracteriza anossa realidade. Em termosde direitos autorais, a músicaé a disciplina mais mediática.Há outras realidades que asociedade menos atenta nãose apercebe. E os que tiramvantagens com esses actosilícitos são os mesmos quefazem jogos de bastidores

    BARROS LICENÇA, DIRECTOR DO IAPI

    “A nãoimplementação

    das leis de direitos de autor é

    preocupante”

    ...lamentavelmente,na área dos direitosautorais o problema

    não se coloca aonível da sociedade

    mas dos órgãoscom

    responsabilidadesacrescidas na

    temática, que nãoestão a aplicar as

    leis existentes

    VIGAS DA PURIFICAÇÃO | EDIÇÕES NOVEMBRO

  • ENTREVISTA 21Domingo18 de Outubro de 2020

    junto dos sectores, para in-fluenciar de modo a que estesnão promovam a aprovaçãode leis com medidas de com-bate a tais práticas, ou sendoaprovadas essas leis, não se-jam aplicadas. Os mesmos,aparentemente, defendemos interesses do Estado, comargumentos não consistentes,quando na verdade são in-teresses pessoais ou de grupo,contrários aos da colectivi-dade. Lamentável e triste-mente, são-lhes dadosouvidos em detrimento da-queles imbuídos do espíritode missão. A estratégia delesé: inviabilizar, ou no míni-mo, retardar o funciona-mento do sistema. Se nãose der ouvidos aos verda-deiramente entendidos namatéria, aí sim, comete-seum tremendo erro.

    Nas suas dissertações,sempre defendeu que “maisdo que registar e proteger asobras o importante é fazer ouso e aproveitamento dosistema de propriedadeintelectual”. Há algumarazão?Assim como defendo, tam-bém: mais do que pretenderelevar qualquer bem cultural,seja em que categoria for(património nacional oumundial), o mais impor-tante é a sua exploração nasmais diversas dimensões.Pois, é dessa exploraçãoque resulta a geração dematérias da propriedadeintelectual, dinamizadoradas indústrias culturais ecriativas, potenciando aEconomia da Cultura. Nãosignifica isto dizer que soucontra a elevação, classi-ficação ou registo de bensculturais. Até porque o re-gisto ou elevação dessesbens a qualquer uma dessascategorias ajuda a publici-tá-los, facilitando a explo-ração dos mesmos. O quepretendo transmitir, istosim, é que a par dos pro-cessos inerentes à eleva-ção/classificação dessesbens criem-se estratégiaspara o uso e aproveitamentodos mesmos, em prol dodesenvolvimento econó-mico e social, para além docultural. Portanto, o registopor si só não proporcionaqualquer vantagem.

    Em termos de direitos autorais,

    a música é a disciplina

    mais mediática. Há outrasrealidades

    que a sociedade menos

    atenta não seapercebe. E os quetiram vantagenscom esses actos

    ilícitos são os mesmos

    que fazem jogos de bastidores junto

    dos sectores

    VIGAS DA PURIFICAÇÃO | EDIÇÕES NOVEMBROCom a chancela da Im-prensa Nacional, o livro“A Utilização da Proprie-dade Industrial e as Polí-ticas Públicas de Inovaçãoem Angola - O papel doInstituto Angolano da Pro-priedade Industrial (IAPI)”,segundo o juiz-conselheirodo Tribunal Constitucional,Carlos Teixeira, tem comopretexto “gerar conheci-mento destinado a suportarintervenções políticas bemfundamentadas, que in-centivem o uso e aprovei-tamento dos sistemas deinovação e protecção daPropriedade Industrial,para maior produtividadee permitir a inserção com-petitiva do país nos mer-cados regionais e mundial.”

    A obra corresponde àdissertação do autor paraa obtenção do grau de Mestreem Ciências Jurídico-Eco-nómicas e Desenvolvi-mento, na Especialidadedo Direito Empresarial Pú-blico na Faculdade de Di-reito da UniversidadeAgostinho Neto.

    De acordo com o juristaCarlos Teixeira, no livro,Barros Licença apresentae discute o problema re-lacionado ao papel do IAPIna conjuntura actual, ex-plica e faz um enquadra-mento teó r i co ondeanalisa, numa abordagemconceptual, a PropriedadeIndustrial. “Verifica-se,na presenta obra, o posi-cionamento doutrináriorelativamente à protecçãoda Propriedade Industriale sua importância”, des-tacou Carlos Teixeira.

    Barros Licença, enfa-

    tizou o juiz-conselheiro,procura partilhar com osinvestigadores, institui-ções e outras individua-lidades a trajectória dosoutros países relativa-mente à experiência queacumularam e à caracte-rização, ainda que sinté-tica, dos sistemas decontrolo e inovação sobrea Propriedade Industrial.

    O autor, ainda na ópticado apresentador, faz umenquadramento contextualdas estratégias de desen-volvimento a longo prazoem Angola e evidencia aestrutura do Instituto An-golano da PropriedadeIndustrial, nomeada-mente o seu estatuto or-gânico, as atribuiçõesque lhe são acometidase o seu funcionamento.

    O professor de Econo-mia, Manuel Mira Godi-nho , p re s i d en te d oConselho Científico doInstituto Superior de Eco-nomia e Gestão (ISEG) daUniversidade de Lisboa,considera no prefácio quea obra é uma sistemati-zação de conhecimentosque o autor foi adquirindopela prática profissionale pelo conhecimento ad-quirido nos estudos pós-graduados, contribuindoassim “para a conscien-cialização dos angolanos”.

    Com 195 páginas e trêscapítulos, o livro de Bar-ros Licença é, para Ma-nuel Mira Godinho, “umcontributo para que, doponto de vista da reali-dade angolana, se possamequacionar matérias degrande complexidade”.

    Por dentro do livro

    Perfil Barros BebianoJosé Licenca, filho de BebianoLicença e de Maria José Kilai, nasceu a 5 deSetembro de 1970, no Calele, município dePorto Amboim, província do Cuanza-Sul. Élicenciado em Direito pela Universidade Agos-tinho Neto; pós-graduado em Pesquisa Sociale Análises Económicas e Mestre em CiênciasJurídico-Económicas e Desenvolvimentopela mesma Universidade .Está no funcionalismo público desde 1987,quando começou como professor do Ensinode Base, no município do Sambizanga, naEscola 24. Em 1997, transferiu-se para o Ministério daIndústria, tendo sido colocado no GabineteJurídico. Em 2000 foi nomeado chefe do De-partamento Técnico-Jurídico, cargo que exer-ceu até Junho de 2009, altura em que foinomeado para o cargo de director-geral doInstituto Angolano da Propriedade Industrial(IAPI) do Ministério da Indústria. Antes, e emacumulação, exerceu o cargo de SecretárioExecutivo da Comissão Nacional para a Or-ganização das Nações Unidas para o Desen-volvimento Industrial.Enquanto director-geral do IAPI, participouem várias acções formativas sobre propriedadeintelectual e em eventos sob a égide da OMPI.Actualmente, é director-geral do Serviço Na-cional dos Direitos de Autor e Conexos (SE-NADIAC), sucessor da Direcção Nacional dosDireitos de Autor e Conexos (DNDAC), quedirigiu de Janeiro de 2016 a Abril de 2019,altura em que foi extinto.É casado e pai de cinco filhos.

    VIGAS DA PURIFICAÇÃO | EDIÇÕES NOVEMBRO

  • A morte aos 60 anos, na noite de quarta-feira, do escritor, poeta, conferencista eantigo secretário-geral da União dos Escritores Angolanos, António Gonçalves,fechou o ciclo da vida de uma personalidade das letras que, além de nos deixaruma obra meritória no domínio da poesia, do conto e do ensaio, exerceu umainfluência notável no cenário literário e certamente será lembrada numa futura

    História da Literatura Angolana

    Isaquiel Cori

    António Gonçalves é admitidocomo membro da UEA em1995 e um ano depois ascendea secretário-geral. A instituiçãoLiteratura Angolana vivia entãoum intenso conflito geracionalque se manifestava na formade preconceitos linguísticos,com os novos autores a serem,generalizadamente, conside-rados como tendo fraco do-mínio da língua portuguesa.

    É nesse contexto que An-tónio Gonçalves abre a UEA,integrando no seu seio umgrande leque de escritoresjovens, oriundos, uns, da fasemais tardia das brigadas jo-vens de literatura - Luís Kand-jimbo, Lopito Feijó, AntónioPanguila, Carlos Ferreira,José Luís Mendonça e outros,do brigadismo inicial e co-mummente designados comomembros da Geração de 80,já lá estavam - e outros semhistorial de pertença a umabrigada ou oficina de litera-tura, todos, claro está, como denominador comum deterem publicado um ou maislivros. Essa abertura não agra-dou a todos os membros maisantigos da organização.

    É preciso dizer que a UEA,aos 10 de Dezembro de 1975,nasceu fortemente elitista.Os seus membros fundadoreseram ex-guerrilheiros, com-batentes da clandestinidadeno interior, provenientes doexílio e ex-presos políticos,todos do MPLA, movimentode libertação que, um mêsantes, com a proclamaçãoda Independência por Agos-tinho Neto, acabou por seconstituir na força dirigente

    do país. O poeta-presidenteao assumir a liderança damesa da assembleia-geralda recém-fundada UEA con-feriu a esta organização todoo seu prestígio pessoal, li-terário e político; e expo-nenciou o prestígio da novainstituição ao atribuir à mes-ma a responsabilidade deorientação dos outros agentesde cultura e até dos órgãosde difusão de notícias.

    O escol intelectual de An-gola - entendendo como tal,na linguagem ideológica do-minante na época, os inte-lectuais “progressistas”,“revolucionários” - estavaconcentrado na UEA. A UEAera vista como uma organi-zação cultural de vanguarda.Desse facto resultava que aUEA, até há poucos anos,era a “menina dos olhos” doMPLA, que a colocava sob aalçada da sua área que cui-dava das questões ideológi-cas . A organização dosescritores durante décadasserviu de campo de recru-tamento de quadros para o

    alto escalão do aparelho par-tidário e do Estado. Já era pra-ticamente “tradicional”,aquando das eleições gerais,que um naipe de escritoresmembros da UEA fosse incluídona lista para deputado do MPLA.E era considerado “normal”que aquando das eleições noseio da UEA os candidatos fi-zessem uma “romaria” à sededo MPLA para consultas.

    Hoje podemos considerarque o processo de aberturapromovido por António Gon-çalves, num quadro maisgeral de abertura democráticado país, levou à deselitizaçãoe, mesmo, à “dessacralização”

    da UEA. Se antes só o factode ser membro da UEA já ga-rantia um enorme prestígiosocial, agora é cada vez maisnotório que o escritor deveconquistar o seu próprio pres-tígio, pelo mérito das suasobras e pela forma como seposiciona enquanto perso-nalidade pública. É o velhochavão: “O escritor é ele mes-mo um poder”. Poder esseque resulta em prestígio paraa instituição de que é mem-bro, no caso vertente, a UEA.

    (Abro este parêntesespara sublinhar que a UEAsempre contou com grandesescritores).

    Hoje podemosconsiderar

    que o processo de aberturapromovido por AntónioGonçalves, num quadromais geral de aberturademocrática do país, levou à deselitização e, mesmo, à

    “dessacralização” da UEA

    ANTÓNIO GONÇALVES (1960-2020)

    Poeta e homem de acção

    António Gonçalves era so-brinho dos ilustres patriotasHoji-ya-Henda e UanhengaXitu, de que se consideravaherdeiro espiritual. Na dedi-catória do poemário “Os Li-vros dos Ancestrais”, a suaúltima obra publicada, o poetaescreveu, aludindo aos refe-ridos parentes: “A sementesegue germinando, eis-meaqui!”. Este poemário temtoda uma parte com poemasdedicados à centralidade doSequele, onde morava. Sãoimortalizadas figuras da vidareal, publicamente conheci-das, umas, e anónimos quedespertaram a sensibilidadedo poeta. Se Walt Whitmancantou a América que emergiada Revolução Industrial, comos caminhos-de-ferro queestendiam o capitalismo parao vasto território, AntónioGonçalves em parte signifi-cativa de “Os Livros dos An-cest ra is” saúda a novacentralidade do Sequele, cap-ta a peculiaridade das suasgentes e os seus recantos pi-torescos e a coloca no “mapa”da poesia angolana.

    No poema “Icónico postaldo Sequele” Gonçalves sus-pira: “Oh, Sequele! / um céualtruísta / na crista de umamontanha sacra. / Sua gentediversa / adicta às conversasocasionais / transformam re-veses em avanços.”

    Walter, o DJ “acorrentadopelo peso da fama” e que foi“paiado” numa garrafa debebida, a Tia Maria kajindaka,vendedora que “descarregano mercado as makas do cu-bico”, Arismendes, “aprumadointelectual” e “oficioso co-lunista do Sequele”, o Poetado Sequele, “vivido, oradorsocrático que transforma asfolhas brancas em fogo bravo”,Lisboa Santos, o “anfitriãode kizombas tropicais” que“segue escrevendo cançõesà lua e ao sol abrasador doSequele”, compõem uma ga-leria de personagens funda-doras, graças à poesia deGonçalves, da mitologia ur-bana do novo lugar.

    No “Livro dos Ancestrais”António Gonçalves dedicaainda toda uma série de poe-mas à mulher, exaltando opoder que esta exerce sobreos homens e a sua relaçãocom “os poderes da terra”.

    Numa entrevista conce-dida ao caderno Fim-de-Se-mana do Jornal de Angolaem 2018, conduzida por quemassina este texto, AntónioGonçalves falou da experiên-cia poético-criativa resultanteda vivência numa nova cen-tralidade urbana. “É uma ex-periência diferente. Emboratenha crescido no Bairro Ne-ves Bendinha, que antes sechamava Bairro CemitérioNovo e depois Bairro Popular,frequentei muito o Rangel eo Cazenga, onde tinha fami-

    liares, bem como o Sambi-zanga. É uma vivência muitoprópria que se diferencia daszonas urbanas como a In-gombota ou o Kinaxixi. O quevamos encontrar nas centra-lidades, sobretudo na ondevivo, são pessoas oriundasdaqueles bairros que trou-xeram os seus hábitos e cos-tumes. Mas elas tiveramtambém que se adaptar aonovo meio, já que somos to-dos pioneiros nisso de co-nhece r como v i ve r emcentralidades, em que, nocaso do Sequele, apesar deser aberta, há normas, regras.No meio de tudo isso, há per-sonagens que se destacam”.

    Gonçalves revelou entãoque, assumindo-se comouma espécie de historiador,tentou fixar os primeiros anosde vivência do Sequele. “Fi-lo não só em função do quevi, mas também trabalhan-do-os. Por exemplo, a Tia Ma-ria é uma pessoa muitoconhecida no mercado, queé o ponto-chave do Sequele,frequentado por todos. OMan Jasse, que fala um por-tuguês de categoria - “o am-baquista do Sequele” - é outropersonagem conhecido, que,em função do estilo de vidae das contradições existen-ciais, está com um desequi-líbrio mental, mas continuaa ser conhecido como DJ.”

    A ida de Gonçalves a Cuba,onde durante dez anos exer-ceu a função de conselheirocultural na embaixada de An-gola, permitiu-lhe alargar oscontactos e até mesmo inse-rir-se no meio cultural locale de outros países da AméricaLatina. O poeta referiu-se as-sim à sua experiência latino-amer i cana : “Em Cuba ,publiquei seis livros bilingues,em português e espanhol, edois totalmente em espanhol.Na Costa Rica, publiquei umlivro em espanhol, que depoisos cubanos reeditaram (‘Emo-sentidos’) e na Venezuela, ‘AQuinta Estação do Tempo’,em espanhol”.

    António Gonçalves nasceuem Luanda. Foi gestor hote-leiro. Frequentou o curso deLinguística no ISCED de Luan-da, opção Língua Portuguesa.No período de 1996 a 2001

    exerceu o cargo de secre-tário-geral da UEA.

    Foi membro da União dosEscritores e Artistas de Cuba,da Organização Poetas doMundo e do Movimento Poé-tico Mundial com sede emMedellin (Colômbia).

    Além de Angola e Cubatem textos publicados na Ni-carágua, Venezuela, CostaRica, Colômbia, Suécia, Es-panha e Alemanha.

    Foi director-adjunto do Ins-tituto das Indústrias Culturaisdo Ministério da Cultura.

    A sua obra estende-se pelapoesia, conto e ensaio.

    Biografia

    DR

    DRDR

    HOMENAGEM22 Domingo18 de Outubro de 2020

  • Os cães nesta mesa dormem1. Os cães nesta mesa dormemesta noite dançaremosnuma mesa de bar.Os cães nesta noite dormemde repente cantaremosnesta mesa de bar

    2. Os cães nesta mesa cantamesta noite dormiremosnuma mesa de bar.Os cães nesta noite cantamde repente dançaremosnesta mesa de bar

    3. Os cães nesta mesa falamesta noite cantaremosnuma mesa de bar.Os cães nesta noite falamde repente morreremosnesta mesa de bar – o mundo!

    4. Muitos cães nesta Mesa dormemmuitos cães nesta Noite (ainda)dormem!

    António Gonçalves, Agosto de 2014

    A África que observocom os dedosA África que observo com os dedos Não é igual àquela que os meus pésouviram.Mas continua a produzir ancassecularmente piramidaisPara pasto e repasto de abutresintemporaisA África que observo com os dedos E transporto no olhar, já não usasandálias De pele de jiboia para encantar ascalumbas Do meu tempo.

    Ela boia diariamente entre panosgarridos de garras ocidentalizadasA Africa que observo com os dedosDeixa-me o cheiro do Nilo naepiderme E na derme o gosto a pirão azedoMas ainda provo suas cores púrpurasComo o dendém frescoA África que observo com os dedosÁfrica de N´krumah, Lumumba,Neto e CabralFoi nascente e será foz, a réstiacontinental Que restará do holocausto da nossapodridão mental.E renascerá ó África! Então, observar-te-ei não com osdedos Mas com as mãos e o cérebro

    António Gonçalves

    Hasta Siempre, Compay António! Tu que inventavas céus por ondevolitavas à tua maneira e dospoemas paraísos de mil denúnciascontra as injustiças humanas, afome e miséria tão globalmentemantidas como irremediável... Tutão aplaudido e venerado peloMovimento Poetas Del Mondo! PorCuba adentro assisti, com orgulho,as ovações à tua sensível e nobrepena, entre tertúlias e debates.António Ó, Poeta Angolano, diziamos declamadores e eu orgulhosa daterra e de ti! Lírico, espiritualista ehumildemente tímido, como osgrandes sabem ser, deixas teu corpoem terra e por que céus irás?Encontrarás a Passárgada de ManoelBandeira ou a cabeça calva de Deusde Corsino Fortes, o grandeadmirador da tua poesia. Ó CompayAntónio! Abraço tua mulher e filhosem solidária vontade de os ver florir

    desde el Caribe pela Muxima nossa,de todos os vendavais e esperanças.Obrigada Compay António! A poesiavive.

    Amélia Dalomba (15/10/2020)

    Tony Gonçalves, meu xaráContigo, é escusado falar de morte.Os poetas não morrem.Os poetas transcendem.Fazem ponte.Viajando na rima dum poema, sob overso do canto de catete, seguiste.Teu lema.Traçaste-nos inspiração no ISCED.Inspiraste-nos. Inacabaste.Adido (a)tirou. Nem a arte. Nem ahotelaria.A viagem (a)tirou a hotelaria. Nem apoesia.Naquela noite de viagem, as estrelashibernaram sua luz para poderesbrilhar no seu céu.Que versos estarás a cozinhar nessahoteleira transição? Para kitutes eestrofes, terás alguma panela depressão?Levaste pelo menos a tuacasmurrice e a inigualável vontadede debater para adoçar a filosofia dapoesia?E nos teus leitores que não terãoacesso a esses versos, pensaste?Oh, poeta, não te sabia assimegoísta!Nem me permites um cabocado derecessão ao refrão do teu acariciarda viola!Dedos cultura com gengibre e cola.Teu leito.Naquele poema sem versos, que nãonos escreveste ainda, te teremosnuma poética eternidade.Porque os poetas não morrem.Transcendem

    António Quino

    O ÚLTIMO ADEUS A UM HOMEM DAS LETRAS

    HOMENAGEM Domingo18 de Outubro de 2020

    Hasta Siempre, Compay António!

    23

  • CRÓNICA24 Domingo18 de Outubro de 2020

    DICAS DE BAIRRO

    “Encontros nos bares dão nisso”Guinama não hesitou. Assim que estava a estacionar junto à casa a miúda, volta a receber uma chamada e

    responde: “Já cheguei. O taxista já estacionou. Já te vi”

    Pereira Dinis

    Com Covid-19, o Ma-mungua, no banze (ca-sa) dele continua a exigira biossegurança paraquem quer que seja. -Ninguém entra a vuvelai(como quer). Impôs re-gras. E porquê? Porqueo negócio da mboa (ma-mã grande) por causadessa maldita doençanão está a perdoar quemquer que seja. A formaque o Mamungua con-seguiu para dar o pão,o chá e um arroz compeixe frito à família évender água do chefe(caporroto), que notempo do MPLA sozi-nho era proibido, masa aguardente das tugas(Portugal e Brasil) podiaser paiada (vendida)sem nenhuma kijila(problema).

    Mas os nossos can-vives – mais velhos –conseguiam dar a voltaaos agentes do Corpo dePolícia de Angola (CPA)e vendiam, porque nal-tura não era qualquercidadão que tinha esta-tuto para nganzar (be-ber) cerveja, vinho,uísque ou outro tipo de

    bebida que vinha dasbandas (estrangeiro).

    É assim que o Ma-mungua no seu baren-gue (barzito) impôsregras com os seguintesdizeres à entrada: “Ven-de-se água do chefe desegunda a segunda-fei-ra, das sete às 21 horas”.

    O pessoal do Mbila(Sambizanga) e dos ou-tros bairros quando seapercebeu começou air. Uns até começarama chegar por volta dasseis horas da manhã.

    Mamungua advertia,dizendo que: “Estou afazer o meu pequenoempreendimento paraajudar a família, porqueCovid-19 veio estragara vida dos pequenos,meios e grandes empre-sários, por isso quemquiser vir no balande(casa) para nganzar (be-ber) vai ter que banzelar(pensar) bem”.

    O Guinama, o Panha-nha, o Sete Pecador eoutros kandengues(miúdos) seus menoresestavam a pensar que oMamungua estava abrincar. É assim que nopassado sábado, até por-que tinha merepe (di-nheiro), foram, quando

    eram seis da matina, nosítio do Mamungua exi-gindo que tinham queser atendidos.

    Aí Mamungua, juntoda sua mamã grande,dos seus filhos e dos ne-tuchos, disse: “Eu souamigo dos vossos pais,estes é que cresceramcomigo, estudaram co-migo, fizeram tropacomigo e sofremosjuntos no 27 de Maio.Por isso saem fora. Fi-cam distanciados ummetro e meio. Só en-tram duas pessoas,aplacam (ficam) 15 mi-nutos, nganzam doisou três copitos e bazam(vão) para darem prio-ridade aos outros”.

    Como é o mais velhodo conjunto, os canden-gues aceitaram mas res-mungando, dizendo quese abrirem outras fonteso Mamungua vai “nosperder”. Felizmenteabriram outras tascas.Não se sabe se é verdadeou mentira, mas o certoque o sítio do Mamunguacontinua a ser o maisfrequentado e todos quelá vão cumprem com asregras anti-Covid-19.

    E é nesse sítio deencontro que o Gui-

    nama, que diz ser umgrande perigoso (en-gatatão) pisca olhonuma ka n d engu e(miúda), aparente-mente com 22 anos.

    A conversa correu àsmil maravilhas. A miúdaabriu o jogo. Disse quetem dois filhos. Que nãovive com o marido, por-que é um vigarista, etc.,etc., etc. Guinama, de-pois de beber uma águado chefe, depois da bel-dade lhe ter dito aquiloe dizer mais que pre-tendia dinheiro para pa-gar o arrendamento dacasa, nada mais fez se-não uma transferênciavia Multicaixa Express.

    Minutos depois datransferência a miúdarecebe um telefonemae diz: “Leva-me até aoCazenga”. Guinama nãohesitou. Assim que es-tava a estacionar juntoà casa, a miúda volta areceber uma chamadae responde: “Já cheguei.O taxista já estacionou.Já te vi”.

    O Guinama é quecontou o filme aos com-panheiros, na presençado Mamungua e este dis-se: “Encontros nos baresdão nisso”.

    Tortura de reclusão obrigatória

    Pedro Kamorroto

    Os dias que seguem o curso dorio-tempo ou do tempo-rio reve-lam-nos quão aborrecida, volátil,vazia e frágil é a vida. Confinadodentro das quatro paredes a queo génio criativo – ser humano – de-cidiu chamar casa, questiono-me:será que é desta que hei-de conhecera mulher que, durante todos essesanos, partilha comigo o mesmo es-paço exíguo?

    Na qualidade de maioral (falsomaioral), pensei que teria o controlode tudo, até da minha própria som-bra, mas o que deveria evitar nãoevitei, sou responsável pelo dese-quilíbrio do sistema que faz eco;as grandezas maníacas de ser otopo da cadeia alimentar levaram-me para descaminhos ou caminhosínvios. Mais uma vez reitero, nãopude evitar, mas não gostaria deconhecer, desta forma grotesca e

    implacável, os meus filhos, seusnomes, idade, peso, escolaridade,comportamento; seus medos eseus anseios.

    De que vale o status quo quegranjeio se não me conheço a mimmesmo nem a sociedade que forjoatravés dos laços de família? Tudoo que vislumbro à minha volta abor-rece-me, não encontro prazer nosnovos condicionalismos sociais,na nova configuração de estar, deagir e, quiçá, de ser. Excepcionaismedidas ou medidas excepcionais,soberanas emergências, soberanascalamidades, esses jargões políti-co-jurídicos que se me impõemtêm mostrado que tenho liberdadee controlo absoluto sobre o nada.Ao fim e ao cabo, a liberdade é umálcool em gel ou etílico, que morrena palma da mão em cada fricção.

    Não auguro bons ventos! Emcasa disputo o controlo remoto daTV com a prole, os desenhos noécran parecem-me desanimados,

    e toda essa linguagem televisionadaé um universo paralelo e estranhopara mim. Para certas mundivivên-cias, mundievidências e contextos,somos analfabetos.

    Não somos adultos a todo omomento. As crianças, esses seresangelicais, gerem melhor as emo-ções e estão se marimbando parao imundo mundo dos possíveisadultos. Uma catadupa de senti-mentos mistos e confusos esven-tram-me a alma.

    Dou um trago numa cerveja,dou umas boas baforadas num ci-garro até vê-lo a se transformar embeata, mas nem com isso consigoadiar ou dar um tiro certeiro na ca-beça do tédio.

    Quem Ludo pensa que é? Essasofista de primeiro grau quer ven-der-me, a todo o custo, o seu manualde instruções de isolamento, a quedecidiu chamar Teoria Geral do Es-quecimento, a mando dum(a) talÁgua que sabe à lusa, que instrui

    para me emparedar, para não sairde casa, porque os tempos de hojesão apocalípticos e de reclusãoobrigatória. Não me quero isolar,quero, antes, porém, evadir-me decasa ou, no mínimo, abrir um enor-me buraco negro para entrever selá fora o mundo continua a sermundo. É nessa hora que se alcançaa inutilidade plena da vida, essebalão insuflável que se perde noar à mínima precipitação.

    E qual é a solução? Matar o pa-lhaço que há em mim e fazer (re)sur-gir o rei. Mas o rei, ao fim e ao cabo,transfigura-se, também, em palhaço.Atire a primeira pedra quem nuncaexecrou a vida. Amaldiçoar ou vi-lipendiar a vida é o que faz qualquermero mortal longe dos dogmas efingimentos. E numa situação depressão e incertezas pior ainda. Sea imunidade do meu status quofosse sanitária, a essas horas omundo estaria confinado na minhamala de viagem.

    TEMPOS DIFÍCEIS

    Na qualidade demaioral (falsomaioral), pensei

    que teria ocontrolo de tudo,até da minha

    própria sombra,mas o que

    deveria evitarnão evitei, sou

    responsável pelodesequilíbrio dosistema que faz

    eco

    “Se a imunidade do meu status quo fosse sanitária, a essas horas o mundo estaria confinadona minha mala de viagem”

    DR

    JACAD1-18.10.20-P17JACAD1-18.10.20-P18JACAD1-18.10.20-P19JACAD1-18.10.20-P20JACAD1-18.10.20-P21JACAD1-18.10.20-P22JACAD1-18.10.20-P23JACAD1-18.10.20-P24