Modos de Vida e Modos de Beber Da Juventude Indígena

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    ARTIGO

    ARTICLE

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    1Insti tuto Lenidas e MariaDeane, Fundao OswaldoCruz. Rua Teresina 476,Adrianpolis. 69057-070Manaus AM. [email protected] FernandesFigueira, Fundao OswaldoCruz.

    Modos de vida e modos de beber de jovens indgenasem um contexto de transformaes

    Ways of life and ways to drink of young indigenous

    in a transformation context

    Resumo Atravs de uma pesquisa etnogrfica,analisaram-se as interaes ent re os atuai s modosde vida e de beber de jovens indgenas de uma po-pulosa locali dade do Alto Rio Negro. Para tanto, seut ili zou um modelo teri co que permiti u decom-por e art icular a reali dade social em diferentes n-

    veis. Observou-se que houve a multiplicao dassituaes em que se bebe, que so associadas a me-canismos tanto de demarcao de pertencimentocomo de explicitao de di ferenas int ergrupai s.Atualmente, os jovens inserem-se em mlt iplasredes de interao. Atravs delas, podem criarambientes juvenis de consumo de lcool, beber longedos pais e comprar bebidas industr iali zadas. Coma int roduo da escola e o abandono dos rituai s deini ciao, o status do jovem tornou-se incerto esobre ele incidem de forma ambgua as normassociai s de consumo de lcool, num contexto noqual no hconsenso na prtica cotidiana a res-

    peito das possveis estratgias para regular o beberjuveni l. Atr avs desta pesquisa, puderam-se aven-tar alternativas teri co-metodolgicas para inves-tigar as relaes que se estabelecem entre os modosde vida e a produo da sade e da doena, incor-porando a esta anlise a cultura (e sua transfor-mao), a vi da cotidi ana (e suas cont radies), aspessoas (e suas subjetividades).Palavras-chave ndi os sul-americanos, Juventu-de, Condies de vi da, Consumo de lcool

    Abstract The interactions among the ways of li feand dr ink of youths indigenous of a populous placeof Upper Rio Negro were analyzed through an eth-nographi c research. I t was used a theoreti cal modelthat allowed to decompose and to articulate thesocial reali ty i n di fferent levels. It was observed

    that there was a mult ipl ication of the situationsin which is possible to dri nk, that are associated tomechani sms as much of belonging demarcati on asof expositi on of differences inter- group. Nowadays,youths insert themselves in multi ple interacti onnetworks. Through these networks they can cre-ate juveni le atmospheres of alcohol consumpti on,drink far away from the parents and buy indus-tr iali zed dri nks. With the introducti on of t heschool and the abandonment of the ini tiation ri t-uals, the youth status became uncert ain, and i toccurs in an ambi guous way the social norms ofalcohol consumpti on, in a context in which there

    is no consensus in dai ly practice respect of the pos-sible str ategies to regulate juveni le dri nki ng.Through this research, theoretical-methodologi-cal alternati ves could be suggested to investi gatethe relati onships that are establi shed between theways of li fe and the producti on of the health anddisease, incorporat ing in this analysis the culture(and i ts transformation), the daily li fe (and i tscontradi ctions), the people (and its subjecti viti es).Key words South American Indians, Youth, Lifescondi ti ons, Alcohol consumpti on

    Maximiliano Loiola Ponte de Souza 1

    Suely Ferreira Deslandes2

    Luiza Garnelo 1

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    Introduo

    A regio do Alto Rio Negro, localizada no noro-este amaznico, habitada por cerca de 30.000indgenas1, distr ibudos em aproximadamente 22

    etnias. Estes compartilham o uso do caxiri(bebi-da alcolica fermentada, base de mandioca efrutas)2, que era consumido particularmente nasfestas de troca ou dabucuris3; e nos rituais de ini-ciao masculina, situaes de grande significadosimblico neste contexto sociocultural4,5.Nos maisde trs sculos de contato intertnico, a cachaatambm passou a ser consumida, as situaes fes-tivas foram incrementadas6e, em diversos gru-pos, houve a supresso do rito pubertrio7,8. Estaltima transformao est associada, em parte, introduo dos colgios internatos, pelos missio-nrios salesianos. Enclausurados nestas institui-

    es, criadas para catequiz-los e transform-losem agentes da civilizao, os jovens no estavamem companhia dos mais velhos no momento emque deveriam ser iniciados7.

    Iauaret, distrito rural do municpio de SoGabriel da Cachoeira, uma cidade indgena7,localizada s margens do rio Uaups, maiorafluente do Rio Negro. Ali foi implantado uminternato que funcionou, neste regime, de 1929 a1986, quando foi transformado em externato.Desde ento, famlias de diferentes locais e etniaspassaram a migrar para Iauaret, para dar con-tinuidade escolarizao dos filhos7, visto que

    nas pequenas comunidades no h oferta de en-sino mdio. Concomitantemente ao incrementodemogrfico, a localidade vem sendo urbaniza-da. Atualmente, dispe de eletrificao, telefonia,comrcios, quartel do exrcito e agncia dos cor-reios que presta servios bancrios.

    As mudanas nos padres de moradia e hbi-tos dos grupos indgenas residentes em Iauaret atornam um local prototpico para o estudo dasrelaes entre modos de vida e o processo sade/doena, objeto de interesse crescente no campoda sade coletiva. Porm, os autores que abor-dam este campo atravs das ferramentas da epide-

    miologia clssica no raramente reduzem os mo-dos de vida a variveis socioeconmicas e demo-grficas, agrupando-as em indicadores compos-tos. Estes se mostram pouco eficazes em apreen-der a multivariedade do real e incorporar dimen-ses subjetivo-valorativas e culturais9,10, que soessenciais para a compreenso dos fatores queinfluenciam a produo da sade e da doena11.

    Apresenta-se aqui um estudo exploratrio queinvestiga as dimenses qualitativas da vida socialde Iauaret, associadas ao consumo de bebidasalcolicas pelos jovens indgenas, visto ali como

    socialmente problemtico. Em Iauaret, a afir-mao corrente que os jovens bebem cada vezmais cedo, de modo mais frequente e violento, eque h dificuldades coletivas em se lidar com estecomportamento.

    O objetivo deste trabalho analisar as poss-veis interaes entre as atuais condies de vidada populao indgena de Iauaret e o modo debeber dos jovens indgenas, reconhecendo a in-trnseca relao que se estabelece entre o contex-to sociocultural, a organizao social e as estra-tgias de enfrentamento, localmente disponveis,para este problema.

    Pressupostos tericos

    Almeida-Filhoentende os modos de vida como o

    conjunto articulado de prticas cotidianas9

    , quepode ser decomposto em condies de vida e es-tilo de vida. As primeiras se referem s condiesde produo e circulao de bens e servios, deforma direta, ou via polticas pblicas compen-satrias. J o segundo deve ser compreendidocomo o conjunto de comportamentos, hbitos eatitudes de indivduos e grupos sociais.

    No caso deste trabalho, os jovens compemo grupo social de interesse. A juventude aquientendida como uma representao ou criaosimblica, fabricada pelos grupos sociais ou pe-los prprios indivduos tidos como jovens, para

    significar uma srie de comportamentos e atitu-des a eles atribudos12. J a conduta juvenil pr io-rizada para anlise o consumo de bebidas alco-licas. Anali ticamente, o consumo de lcool podeser decomposto em diferentes categorias. Enten-de-se por processo de alcoolizao os modos esignificados que o beber adquire em um grupo6,13,em determinado contexto. J problemas relacio-nados ao uso do lcool relacionam-se a um modode beber, t ido socialmente como associado a efei-tos adversos, sendo fortemente influenciado porcondicionantes socioculturais e histricos6,14.

    Outro conceito-chave o de espao, entendi-

    do como a expresso geogrfico-territorial derelaes histricas, sociais, econmicas, culturaise ecolgicas, travadas entre sociedades humanase outros fatores biticos e abiticos15-17. Este con-ceito tem representado uma via terico-meto-dolgica integrativa para se entender as correla-es entre vida social e desigualdades sociais esanitrias. Nas sociedades indgenas, a socializa-o e a organizao da vida so moldadas pelasrelaes de parentesco, que conf iguram as estra-tgias tradicionais de ocupao do espao (terr i-torializao), atualmente modificadas pela fora

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    das relaes intertnicas, influenciando o modojuvenil de beber, como se demonstrar.

    Metodologia

    Realizou-se uma etnografia, entendida como umapesquisa de campo com observao prolonga-da [...] , seguida pela produo de dados em con-dies discursivas e dialgicas, expressos atravsde formas textualizadas 18. O trabalho de cam-po, que durou seis meses, teve prvia autoriza-o do Comit Nacional de tica em Pesquisa.

    Em campo, privilegiou-se observar o cotidi-ano dos jovens que vivem em Iauaret ; quando,como, onde, com quem e o que eles bebem; osdiscursos sobre o modo deles beberem e as es-tratgias empregadas, ou propostas, para regu-

    lar este consumo.O modelo analtico desenvolvido por Con-tandriopoulos11, no qual decompe o contextosocial n veis distintos e inter-relacionados, paraapreender as interfaces entre condies de vida esade, foi adaptado para atender aos propsitosdesta pesquisa (Figura 1). O nvel mais abran-gente considerado foi a cultura indgena rione-

    Figura 1.Modelo analtico para compreenso das relaes entre o contexto social e os problemas juvenisrelacionados ao uso de lcool (adaptado a part ir de Cotandriopoulus11).

    Problemas juvenisrelacionados aouso de lcool

    Respostas sociaisde enfrentamento

    Processo dealcoolizao

    Estilo de vida

    Modo de vida

    Condies de vida

    Acesso a bens e servios- EscolaSeguridade social- Emprego assalariado- Transporte

    Organizao sociopoltica de Iauaret- Crescimento demogrfico- Convivncia multi-tnica

    Cultura rionegrina- Modos e significados de beber- Rituais de iniciao

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    grina, entendendo que as produes culturaistraam os contornos dos valores e comporta-mentos em uma sociedade. Buscou-se uma apro-ximao com os modos e significados, implci-tos ou explcitos, do consumo de bebidas alco-

    licas, nos mitos e ritos rionegrinos, entendidoscomo marcadores culturais que orientam nor-mas de comportamento. Igualmente foram va-lorizados os rituais de iniciao como demarca-dores de mudana de statussocial na populaomais jovem.

    No nvel organizao sociopoltica deIauare-t, se explorou o impacto do crescimento demo-grfico e da convivncia multitnica nas formasde interao social, e suas possveis relaes como incremento de situaes em que se consomembebidas alcolicas.

    Ascondies de vida foram associadas, no

    contexto de Iauaret , ao acesso a diferentes bense servios, como escola formal, seguridade social,empregados assalariados e transportes, ou seja,s inovaes contemporneas do viver indgena.J no estilo de vida, alocou-se o consumo de bebi-das alcolicas, tanto nos aspectos que se referemao processo de alcoolizao, quanto aos proble-mas juvenis relacionais ao uso desta substncia.

    Respostas sociais de enfrentamento foramentendidas como mediadas pela conscincia in-dividual e coletiva acerca das possibilidades demodificao dos problemas 10; foram remetidas movimentao social estruturada em torno dobeber-problema.

    Resultados e discusso

    Culturas rionegrinas

    Nestas culturas, definem-se como consangu-neos os descendentes de um grupo de irmosancestrais, que partilham uma lngua comum.Os parentes esto agrupados em unidades soci-ais menores, sibs, que dispunham, tradicional-

    mente, de locais especficos de moradia, nos quaiserguiam suas casas comunais (malocas). Os con-sanguneos devem buscar esposas junto a falan-tes de outra lngua que residiriam em outras lo-calidades2,3.

    Na mitologia, os cunhados potenciais, oureais, so representados como inimigos, cuja pe-riculosidade pode ser domesticada, mas jamaisanulada, pelo estabelecimento das trocas matri-moniais2.

    Conforme a tradio, o consumo ritual decaxiri teria a potencialidade de promover a re-

    conciliao dos inimigos, mesmo temporaria-mente. Entretanto, nestas mesmas ocasies, con-fl itos eclipsados no cotidiano podem emergir naforma de agresso. Assim, o consumo coletivode bebidas alcolicas um importante elemento

    da vida social, que tanto pode atenuar quantoexacerbar as diferenas19.Os dabucuris so festas-rituais, fortemente

    associadas s trocas matrimoniais, nas quais seconsome caxiri e trocam produtos3. A capacida-de de oferta de grande quantidade de caxiri pelosmembros de uma aldeia evidencia o prestgio daliderana. Habitualmente, se estabelece uma ri-validade amigvel, em que os visitantes so desa-fiados a consumir toda bebida, ao passo que es-tes bravateiam, afirmando que o caxiri ofertado pouco, em comparao aos regalos trazidospara os anfitries7,20.

    Outrora, a plena participao nestas festas sedava aps o ritual de iniciao, que ocorria entredoze e treze anos4. Durante o processo prepara-trio, o iniciando era enclausurado e emergia nouniverso cultural do grupo. Nas festas, o joveminiciado passava a usar pinturas faciais e os ador-nos especficos de seu sib, diferenciando-se dosno-iniciados (crianas)4. A capacidade de inge-rir grandes quantidades de caxiri e danar porhoras era indicativa da virilidade juvenil, sendoobjeto de orgulho para os seus parentes21.

    Somente aps o ritual de iniciao, que pro-piciava a plena identificao como membro dogrupo, o jovem estaria apto busca de parceirassexuais legtimas, em condio de se tornaremesposas. E apenas aps o nascimento de seus fi-lhos, o iniciado seria considerado adulto2.

    Organizao sociopoltica de Iauaret

    Em 2007, a populao dessa localidade eraestimada em 2.779 habitantes, o quntuplo da-quela existente em 19757. L esto representadospraticamente todos os grupos tnicos da regio.Em Iauaret, os pequenos e dispersos assenta-

    mentos tradicionais, formados por homens deum mesmo sib, foram substitudos por populo-sos bairros indgenas multitnicos.

    Iauaret est divida em dez bairros, ou vilas.Cada um possui capela, com seu santo padroei-ro, um salo comuni trio, onde se reali zam festase outras reunies; figuras de relevncia social comoo capito (chefe poltico da comunidade), anima-dor, catequista, agente comunitrio de sade e ti-mes esportivos de jovens, que competem entre si.

    Nos bairros de Iauaret, observa-se uma re-leitura dos ideais de autonomia e independncia

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    dos pequenos e dispersos grupos de parentesco,que operam no sentido de evitar a fuso e a per-da de limites entre as unidades sociais18. Ali, osgrupos de vizinhana, formados por parentes eno-parentes, buscam manter relaes de apoio

    e solidariedade, em contraposio aos morado-res de outros bairros. A proximidade territorialsubstitui, em certa medida, as formas de sociali -zao tpicas da consanguinidade.

    Cada vila um territrio especfico, que inte-rage com outros territrios-vilas que formam otecido urbano. Em Iauaret7, como em outroscontextos urbanos do Alto Rio Negro8, o modode vida alde a referncia contra a qual a vidacitadina contrastada. Assim, as vilas de Iauaretso estruturadas, simultaneamente, segundo asrelaes de parentesco e pelos novos padres deassentamento advindos do contato intertnico.

    A realizao de festas com consumo de bebi-das alcolicas um meio recorrentemente utili-zado na construo e manuteno da identidadegrupal. Convidar moradores de outras vilas parasuas festas, ou visit-los em suas comemoraes,preserva a distino entre ns e os outros,ainda que para dilu-las, parcial e temporaria-mente, no consumo de bebidas alcolicas.

    A partir de sexta-feira ocorrem, concomi-tantemente, festas nos sales das diferentes vilas.A idia de uma festa organizada com todos osmoradores no parece fazer sentido. Quando oproco da misso salesiana resolveu que a festade So Miguel Arcanjo seria coletiva, os mora-dores da vila de mesmo nome realizaram no fimde semana anterior celebrao oficial, uma fes-ta prpria, demarcando sua especificidade frentes outras vilas.

    Alm das festas comunais, proliferam outrasformas de socializao, mais ligadas ao modo devida urbano, como as comemoraes cvico-reli -giosas (dia da independncia, do ndio, carnaval)6,e as festas particulares, como os casamentos eaniversrios. Nestas ltimas, as interaes entreos convivas podem congregar redes de vizinhan-

    a, independentemente do pertencimento a bair-ros determinados. H, portanto, uma pulveriza-o dos espaos de convivncia que proliferam asfestas e a ampliam a oferta de bebidas alcolicas.

    Condies de vida

    Fomos educadosno internato dos missionriosNo contexto rionegrino, com a introduo

    da escola formal, dificultou-se a participao dosalunos nos rituais de iniciao e os apartou dos

    mais velhos. Estes fatos tanto minaram as prin-cipais formas de aprendizado dos conhecimen-tos e valores culturais indgenas, quanto os me-canismos tradicionais de definio do statusdeadulto naquelas sociedades.

    Com o fim dos rituais de iniciao, com oprolongamento dos anos escolares e a posterga-o do casamento, vem-se construindo uma novacategoria social, temporalmente dilatada e de li-mites imprecisos, a de juventude. O consumode caxiriera algo esperado de um jovem iniciadode doze ou treze anos21. Entretanto, ancios deIauaret, que foram alunos do internato, dizemter iniciado o uso de bebida com idade mais avan-ada, pois os padres no lhes permitiam beber.

    Com o fim do internato, os jovens passam abeber mais cedo, como antigamente, para es-panto de seus pais e avs. Isso ocorre num con-

    texto no qual aquele que chamado de jovem tambm associado categoria de aluno e, con-forme uma liderana indgena, quem est nestacategoria ainda criana.

    Eles tm os amigos da escolaNa escola, convivem jovens de diferentes vi-

    las. Facilmente um jovem ter informaes sobresituaes de consumo de bebidas alcolicas queocorrem nas diferentes vilas de Iauaret . Ocor-rendo uma festa na vila de um amigo da escola,um jovem pode ser convidado a beber caxiri. Umavila distinta da sua um lugar de outras pesso-as. A relao com os amigos da escola lhe permiteuma aproximao menos tensa, porm, o salocomunitrio, com suas formalidades, sobretudono comeo da festa, um espao pouco convida-tivo. De forma mais comum, antes de se dirigi-rem ao local da festa, os jovens ficam bebendocaxiri, na casa de um amigo, residente local.

    Aos sbados, as festas iniciam por volta de13 horas, como capito da vila explicando os mo-ti vos da festa e pedindo que todos bebam juntose tranquilos. Nesta hora, praticamente no hjovens no salo. Eles esto nas casas, seja nas

    suas, recebendo visitas, ou nas de outros, sendovisitante.Pais, mes e lideranas no aprovam esta pr-

    tica. Entretanto, dizem que no podem expulsaros jovens visitantes e que no lhes oferecer caxiridaria a entender que tm inimizade com eles oucom seus pais. Alm disso, caso o fi lho disponhade pouco caxiri para oferecer aos amigos, issoseria algo vexatrio, subentendendo sovinice (re-cusa a partilha) ou preguia (sobretudo da medo jovem, que no teria preparado uma boaquantidade da bebida).

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    A depender do ponto de vista, o jovem anfi-trio representado como algum que desenca-minha o outro jovem ao cham-lo para sua casa,obrigando-o a beber grandes quantidades de ca-xiri. Alternativamente, o visitante pode ser des-

    crito como algum que se aproveita das regrasde etiqueta local para beber o pouquinho decaxiri que a me de seu amigo preparou paralevar para o centro comunitrio.

    A ida casa do amigo permite tanto uma en-trada menos abrupta num espao da alteridade(o salo comunitrio), como multiplica as opor-tunidades de beber, criando-se um espao juvenilpara esta prtica, diferenciado do ambiente deconsumo coletivo. Possuidores de uma rede hete-rognea de contatos nos diversos bairros, os jo-vens passam, sem maiores dificuldades, a transi-tar de vila em vila, consumindo caxir i.

    Aqui proibido,mas muitos ndios esto trazendoApesar da venda de cachaa ser proibida em

    terra indgena22, fcil encontrar este produtoem Iauaret. A relativa facilidade de deslocamen-to entre Iauaret e a sede municipal, propiciadapela grande circulao de barcos, facili ta a entra-da de cachaa, seja para consumo pessoal ou paravenda.

    Diferentemente do observado em outras lo-calidades da regio6, o acesso dos jovens a estabebida parece ser maior, ainda que os preos se-jam elevados. Isso ocorre num contexto no qual maior a circulao de dinheiro. Para comprarcachaa, os jovens podem valer-se das amizadescom militares indgenas; vender produtos extra-tivistas; ludibriar aposentados ou coagir paren-tes idosos que no vm seu dinheiro, porque osnetos pegam tudo, conforme um septuagen-rio. Em algumas situaes, observou-se que ospais ou avs simplesmente davam dinheiro paraos jovens, a fim de faz-los felizes. Uma vezobtido o dinheiro, os jovens costumam se coti-zar e comprar cachaa.

    Assim, a crescente monetarizao das rela-es, associada ao incremento da circulao depessoas e produtos entre Iauaret e So Gabrielda Cachoeira, um fator que vem confluindopara facilitar o acesso dos jovens as bebidas al-colicas industrializadas.

    Respostas sociais de enfrentamento

    Dados etnogrficos apontam que no Alto RioNegro, como em outras sociedades indgenas, ocontrole sobre o beber intrinsecamente relacio-

    nado disponibilidade da bebida6,23. Analoga-mente, em Iauaret, as estratgias aventadas paralidar com o beber-problema juvenil buscavamrestringir o acesso a bebidas.

    Porm, durante a pesquisa de campo, obser-

    vou-se que estas propostas no eram efetivadasna prtica. Os dados mostram que as festas cum-prem uma funo muito mais ampla que o con-graamento entre os presentes. Assim, a reduodas festas demandaria a alterao de estruturasculturais que demarcam a identidade dos grupose as relaes de prestgio das lideranas. A redu-o, ou supresso, desses eventos obrigaria aslideranas a buscar novos caminhos para apazi-guar diferenas e circunscrever hostilidades. Tra-ta-se de uma difcil tarefa, sobretudo se conside-ramos a fragilidade dos laos que unem os mo-radores das vilas, que se valem principalmente

    da condio de coresidentes para manter a coe-so social necessria vida comunal.

    Outro aspecto relevante est ligado partici-pao feminina nesse contexto. Tradicionalmen-te, a mulher responsvel pela produo de ali-mentos e bebidas, o caxiri inclusive. Prov-losem grande quantidade algo esperado e deman-dado do plo feminino dos ncleos familiares8.Suprimir a produo de caxir i implicaria em so-lapar o ideal do zelo feminino com a roa e ma-nufatura de produtos derivados da mandioca.

    Ademais, nas ltimas dcadas, as mulheresde Iauaret passaram a auferir lucro com a ven-da do caxiri. Iniciativas para reduzir sua vendageraram descontentamento entre as mulheres,porque essa fonte de renda representa um aportefinanceiro importante para a manuteno dasunidades domsti cas, num contexto de progres-siva ampl iao da dependncia de bens industria-lizados de consumo.

    No plano poltico, algumas lideranas asso-ciam a proibio legal de entrada da cachaa emrea indgena a uma manifestao do sistemajurdico tutelar, que considera o ndio legalmenteincapaz. Alguns indgenas que se manifestam a

    favor da proibio comercializam cachaa emIauaret. Outros so a favor da proibio da en-trada desta bebida, mas caso tenham acesso aela, costumam consumi-la. Em sntese, esta umaquesto em torno da qual difcil se construirum nico consenso.

    Por f im, um grupo minoritrio de lideranasaponta a necessidade de se repensar no apenaso modo de beber dos jovens, mas o prpriomodo de se viver em Iauaret. Posta em prticapor alguns ancios, observou-se uma aborda-gem baseada na idia de que o controle dos ex-

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    cessos alcolicos dos jovens passa pela revalori-zao do respeito hierarquia ritual caractersti-ca do modo tradicional de vida2,3, pelo aprendi-zado dos mitos, das msicas, danas e outrasprticas ancestrais que vem caindo progressiva-

    mente em desuso na regio. Fiis sua proposta,esses ancios vm investindo no ensino de dan-as e mitos para os jovens, uti lizando, para tal, oespao interior de malocas reconstrudas por li-deranas das associaes indgenas. Seu traba-lho apoiado por uns, criticados por outros. Paraalguns, o mundo mudou e este tipo de conheci-mento no teria mais serventia. Para estes anci-os, o mundo mudou e por isso que concebema possibili dade de mudana da situao atual deIauaret, e vem no retorno s tradies uma al-ternativa para promoo de mudanas sociais.

    Consideraes finais

    Em Iauaret , cada vila-bairro vista como umalocalidade autnoma, operando em moldes se-melhantes ao de uma aldeia indgena, alternan-do alianas e disputas com consanguneos e afins,num processo intensificado pela proximidade epela alta densidade demogrfica. Neste contexto,multiplicam-se as situaes em que se bebe, queremetem criao e manuteno de sentimentosde pertencimento e de demarcao de diferenas,fazendo parte dos mecanismos sociais de geren-ciamento de confli tos.

    A insero da juventude no tecido social precria, situando-se a meio caminho entre aposio chancelada pela tradio (recm-inicia-do, na ausncia de ini ciao) e aquela gerada pelacolonizao (estudante-infanti li zado). Ademais,com os novos padres de territorializao, reor-denam-se as formas de interao entre os subgru-pos de jovens e suas famlias. Sai do primeiroplano o pertencimento descendncia de ances-trais comuns e se tornam preponderantes os gru-pos de vizinhana (vilas, formadas por parentes

    e no parentes que se tornam coresidentes), deamigos da escola (moradores dos diferentes bair-ros) e outros.

    Neste cenrio, os jovens esto inseridos emmltiplas redes de interao social, que igualmen-te tm no consumo grupal de bebidas alcolicasum mecanismo de expresso de alianas. Atravsdestas redes, os jovens podem se cotizar para

    comprar bebida (caxiri ou cachaa), beber longedo olhar dos pais quando vo para casas deamigos em outras vilas e criar um ambiente ju-venil de consumo.

    Ao incidirem nestes jovens destatusambguo

    e de redes de interao amplas, as regras de eti-queta social tornam-se inevitavelmente contra-ditrias. Por um lado, sendo estudantes, so equi-parados a crianas, que no deveriam beber; talpensamento influenciado pela experincia dosmais velhos como alunos do internato missio-nrio. Por outro lado, demanda-se dos jovensque ingiram grandes quantidades de caxiri, de-monstrando tanto sua virilidade, como sua con-fiana e respeito pelos anfitries. Valendo-se des-tas mesmas regras, os jovens reivindicam que lhesseja servido caxiri, seja nos contextos de consu-mo coletivo, nos sales comunitrios, ou micro-

    grupais, na casa de amigos. Ademais, o dinheiroobtido pelos jovens torna-os compradores debebida, inserindo-os nas relaes de comrcio quegeram renda para outras famlias, num contextode crescente monetarizao.

    Assim, observa-se que em Iauaret vm ocor-rendo importantes transformaes na organi-zao social e nas condies de vida, que se refle-tem nos modos de beber, particularmente da-queles que so chamados de jovens. Porm, dife-rentemente do senso comum local, o modo debeber juvenil no se configura como resultantede um sistema cultural combalido e perdido. Al-ternativamente, esse prpr io sistema que confi-gura e cria condies de possibilidade para estaprtica juvenil, mesmo que para isso pague-seum preo, na medida em que os mecanismostradicionais/comunais de coibio de excessos soincapazes de operar plenamente no estilo urba-nizado de vida praticado em Iauaret.

    Atravs da etnografia realizada, evidenciaram-se as relaes que se estabelecem entre o modo devida indgena contemporneo e a representaoe configurao de agravos sade, localmenteidentificados como prioritrios, como no caso

    do beber-problema juvenil . Entende-se que, atra-vs desta pesquisa, puderam-se aventar alterna-tivas terico-metodolgicas para investigar asrelaes que se estabelecem entre os modos devida e a produo da sade e da doena, incor-porando a esta anlise a cultura (e sua transfor-mao), a vida cotidiana (e suas contradies),as pessoas (e suas subjetividades).

  • 7/26/2019 Modos de Vida e Modos de Beber Da Juventude Indgena

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    SouzaMLPe

    ta

    l.

    Colaboradores

    MLP Souza participou da pesquisa de campo, daconcepo e da redao final do artigo. L Garne-lo e SF Deslandes participaram de todas as eta-

    pas acima, com exceo da pesquisa de campo.

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    Artigo apresentado em 09/03/2009Aprovado em 16/06/2009Verso final apresentada em 22/06/2009

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