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MINISTÉRIO DA SAÚDE Módulo 3 Organização da Atenção Psicossocial à Crise em Rede de Cuidado EM SAÚDE MENTAL EM SAÚDE MENTAL CRISE E URGÊNCIA FLORIANÓPOLIS/SC EDIÇÃO 3 - 2015/1

Modulo3 Crise

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Material de apoio curso atenção à crise

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  • MINISTRIO DA SADE

    Mdulo 3Organizao da Ateno Psicossocial

    Crise em Rede de Cuidado

    EM SADE MENTALEM SADE MENTAL

    CRISE E URGNCIA

    FLORIANPOLIS/SCEDIO 3 - 2015/1

  • GOVERNO FEDERALPresidncia da RepblicaMinistrio da SadeSecretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade (SGTES)Departamento de Gesto da Educao na Sade (DEGES)Coordenao Geral de Sade Mental, lcool e outras Drogas Universidade Aberta do Sistema nico de sade (UNA-SUS)

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAReitora Roselane NeckelPr-Reitor de Extenso Edison da RosaDiretor do Centro de Cincias da Sade Srgio Fernando Torres de FreitasChefe do Departamento de Enfermagem Maria Itayra Padilha

    EQUIPE DO CURSO NA UFSCCoordenao Geral do Projeto e do Curso Maria Terezinha ZeferinoAssessoria Pedaggica Maria do Horto Fontoura CartanaSupervisor de Tutoria e conteudista de referncia Marcelo Brandt FialhoApoio ao AVEA Jader Darney EspndolaSecretaria Viviane dos SantosApoio Manoela Ziegler Huber

    EQUIPE TCNICA DO MINISTRIO DA SADEAlexandre Medeiros de FigueiredoCristoph Boteri SurjusDaniel Mrcio Pinheiro de LimaFelipe Farias da SilvaJaqueline Tavares de AssisKarine Dutra Ferreira da CruzKeyla KikushiLuciana Togni de Lima e Silva SurjusMauro Pioli RehbeinMnica Diniz DuresRoberto Tykanori KinoshitaThais Soboslai

    ORGANIZADORES DO MDULOMaria Terezinha Zeferino - UFSCJeferson Rodrigues - UFSCJaqueline Tavares de Assis - MS

    REVISORESKarine Dutra Ferreira da Cruz - MSKtia Cilene Godinho Bertoncello - UFSCMaria Gabriela Curubeto Godoy - MS

    AUTORUnidade 1 e 2: Polbio Jos de Campos

    EQUIPE DE PRODUO DE MATERIALCoordenao Geral Eleonora Milano Falco VieiraCoordenao de Produo Giovana SchuelterDesign Instrucional Jimena de Mello HerediaReviso Textual e ABNT Ktia Cristina dos Santos, Marisa Monticelli, Wemylinn AndradeDesign Grfico Fabrcio SawczenDesign de Capa Rafaella Volkmann PaschoalProjeto Editorial Fabrcio SawczenAjustes edio 3 Francielli Schuelter

  • Mdulo 3Organizao da Ateno

    Psicossocial Crise em Rede de cuidado

    FLORIANPOLIS - SCLORIANPOLLORIANPOLORIANPOLORIANPOLOOOO IIIIAAAA OOOOPOO OPO OFFLLLLLLLFFFFFFFFFFFFUFSC

    EDIO 3 - 2015/1

    MINISTRIO DA SADE

    EM SADE MENTALEM SADE MENTAL

    CRISE E URGNCIA

  • Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Z44c Zeferino, Maria Terezinha. Crise e Urgncia em Sade Mental: organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado / Maria Terezinha Zeferino, Jeferson Rodrigues, Jaqueline Tavares de Assis (orgs.). 3 Edio Florianpolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina, 2015. 97 p.

    ISBN: 978-85-8328-022-4

    1. Sade Mental Pontos Estratgicos. 2. Crise e Urgncia. I. Rodrigues, Jeferson. II. Assis, Jaqueline Tavares de. III. Ttulo.

    CDD 362.204

  • Carta ao EstudanteSeja bem-vindo ao terceiro mdulo do Curso Crise e Urgncia em Sade Mental.

    Continue com a garra e determinao que voc tem demonstrado at aqui. Sabemos que as exigncias da vida cotidiana so complexas e implicam em organizao para os estudos, por isso, conciliar sua agenda com o trabalho, priorizar as leituras e atividades so processos que ajudaro no alcance dos objetivos indicados.

    Os contedos a serem desenvolvidos nesse mdulo esto distribudos em duas unidades. Na primeira unidade, apresentamos a Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia em sade mental. Na segunda unidade, apresentamos as diretrizes e estratgias de cuidado crise e urgncia em sade mental na RAPS.

    Recomendamos que todas as leituras com destaques de contedos sejam compartilhadas entre os parceiros de trabalho, de modo que esse conhecimento tambm fortalea os laos do saber-fazer em equipe. Acreditamos que os conhecimentos a serem desenvolvidos nesse mdulo ampliaro a concepo do trabalho em rede e que eles contribuiro para qualificar ainda mais o Sistema nico de Sade, principalmente por meio da relao entre a RAPS e a Rede de Urgncia e Emergncia (RUE) na prtica de cuidado.

    Assim, continue conosco para mais esse momento do Curso, que visa ampliar o conhecimento, transformar as vivncias e qualificar ainda mais as prticas de cuidado s pessoas em situao de crise e urgncia em sade mental.

    Boas vindas!

  • Objetivo GeralCompreender os componentes da RAPS para garantir a integralidade do cuidado nas diversas apresentaes clnicas da crise e urgncia em sade mental.

    Carga Horria30 horas.

  • Sumrio

    Unidade 1 - A rede de ateno psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia ........................................................11

    1.1 A Rede de Ateno Psicossocial - RAPS ............................................. 111.1.1 Pontos de ateno da RAPS para atender s crises mais graves e

    situaes de urgncia e emergncia ..............................................................151.1.2 A crise no Territrio: nova rede, outra cena, qual abordagem? ...........201.1.3 Articulao entre RAPS e RUE para ateno s crises .......................... 25

    1.2 Diretrizes e estratgias de cuidado da crise e urgncia na RAPS ........271.2.1 Abordagem da crise: o A.C.E.N.A. na avaliao da Cena, Risco e

    Vulnerabilidade ....................................................................................................301.2.2 Recomendaes sobre a Continncia das Crises ..................................... 361.2.3 Ambiente da crise: territrio, rede social e singularidade dos

    projetos teraputicos na reforma psiquitrica .......................................... 471.2.4 Novos sentidos e predicados no campo da crise ..................................... 54

    Resumo da unidade..........................................................................................61Leitura complementar ....................................................................................62Referncias ........................................................................................................63

  • Unidade 2 - Os espectros clnicos da crise ...712.1 As apresentaes clnicas da crise no campo da sade mental ...71

    2.1.1 Os espectros clnicos das crises relevantes para a abordagem na RAPS ........................................................................................................................ 73

    2.1.3 O recorte das crises com qualidades de urgncia e emergncia ........802.1.4 A importncia das condies mdicas nas apresentaes de crise ..83

    Resumo da unidade.........................................................................................88Leitura complementar ....................................................................................89Referncias ........................................................................................................90

    Encerramento do mdulo .................................... 93Autor ................................................................................94Organizadores ............................................................95

  • 01

    A Rede de AtenoPsicossocial (RAPS) e

    os pontos estratgicosna ateno crise

    e urgncia

    Autor:Polbio Jos de Campos

  • A Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia

    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 11

    Unidade 1 - A Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgnciaObjetivo: Reconhecer a necessidade da articulao e integrao entre os pontos de ateno da RAPS e RUE para garantir a integralidade do cuidado na ateno pessoa em situao de crise e urgncia.

    Carga horria: 20 horas.

    1.1 A Rede de Ateno Psicossocial - RAPS A ateno s crises tem sido apontada como um elemento decisivo e estratgico em todo processo de Reforma Psiquitrica. A amplitude, a qualidade, a efetividade e humanizao da assistncia lograda nesse campo definem o poder de interveno e o alcance dos processos de Reforma Psiquitrica a partir da constituio de redes de cuidado e reabilitao psicossocial que contemplem as necessidades de ateno dos problemas de sade mental e lcool e outras drogas na populao. No caso da Reforma Psiquitrica brasileira, tm surgido um leque amplo de servios e dispositivos que apresentam novos cenrios para a abordagem da crise, dentre eles, aqueles prprios da sade mental e outros, como o Servio de Atendimento Mvel de Urgncia (SAMU), as Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) e, principalmente, o envolvimento crescente da ateno primria no cuidado em sade mental.

    O trabalho em rede uma condio essencial dessa nova abordagem, pois a base real e o suporte da ateno integral crise a rede ampla de assistncia e reabilitao que sustentam os projetos teraputicos de cada usurio em sua comunidade e territrio, incluindo, principalmente, a ateno bsica e os prprios recursos da comunidade.

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    A Rede de AtenoPsicossocial (RAPS) e

    os pontos estratgicosna ateno crise

    e urgncia

    Autor:Polbio Jos de Campos

  • Unidade 1

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    Saiba Mais

    A definio, o lugar e a funo do projeto teraputico, como um dispositivo de organizao do cuidado, objeto de uma srie de estudos e anlises no mbito da literatura de sade nacional, incluindo os documentos governamentais. O artigo abaixo faz uma reviso atualizada dessa literatura e seria indicado consult-lo. BOCCARDO, A. C. S. et al. O projeto teraputico singular como estratgia de organizao do cuidado nos servios de sade mental. Rev. Ter. Ocup. Univ. So Paulo, So Paulo, v. 22, n. 1, p. 85-92, 2011.

    Um projeto teraputico singular deve pactuar com o usurio e sua rede de suporte social a abordagem e os recursos de enfrentamento das crises que surjam no percurso de tratamento. A Rede de Ateno Psicossocial como um todo acolhe as crises, mas o acesso ampliado e a interveno precoce tambm evita que as crises evoluam para formas de apresentao mais graves, em que ocorrem rupturas de laos familiares ou sociais. Essas crises mais graves e complexas so caracterizadas no modelo mdico como urgncia ou emergncia

    e o sujeito rotulado habitualmente como perigoso para si e os outros1. Elas devem ser objeto de uma interveno mais complexa que envolver o segmento especfico e estratgico

    da RAPS (CAPS) e a rede de urgncia e emergncia. Alm disso, a ateno crise no contexto de toda a Rede de Ateno Psicossocial exige que se articulem outras redes intersetoriais localizadas no territrio.

    A Reforma Psiquitrica brasileira, compreendida como um conjunto de transformaes de prticas, saberes, valores culturais e sociais, um processo histrico em curso, mas com bases slidas, apresentando diretrizes polticas e um modelo organizativo consistente, enraizados no SUS e como poltica pblica de Estado.

    1 Mais adiante faremos uma problematizao a respeito dessas definies.

  • A Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia

    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 13

    A Lei no 10.216 garante os direitos das pessoas com transtorno mental, e prope, no mbito do SUS, uma nova forma de ateno, assegurando o direito ao cuidado em servios comunitrios de sade mental. A Lei estabelece, ainda, a necessidade de poltica especfica de alta planejada e reabilitao psicossocial para as pessoas com histria de longa permanncia em hospitais psiquitricos (BRASIL, 2001). Aps a promulgao dessa Lei, houve um avano considervel em relao implantao da rede de servios comunitrios e territoriais de sade mental, e cabe destacar o lugar estratgico dos Centros de Ateno Psicossocial (CAPSs).

    O processo de Reforma exigiu a formalizao e a implantao de uma nova rede e um novo um modelo de organizao dos servios e estratgias de cuidado e reabilitao. O caminho dessa implantao complexo e sofre influncia de aspectos polticos, sociais e econmicos imersos em correlao de foras e embates candentes. Hoje, esse modelo est delineado e determina a organizao em rede dos servios e estratgias na forma de uma Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) articulada s redes de ateno do SUS como um todo.

    Em 2011, foi instituda pela Portaria GM/MS n. 3088 a RAPS, dando o acabamento, o desenho e as diretrizes para a organizao e a articulao dessa rede com as demais redes do SUS. A articulao em rede dos servios substitutivos central para o efetivo acolhimento e cuidado das pessoas com a experincia de sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de lcool e outras drogas.

  • Unidade 1

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    Abaixo, resumimos a composio da RAPS, segundo Portaria GM/MS no

    3.088 (BRASIL, 2011a), com seus setores de ateno e estaes de cuidado.

    1. Ateno Bsica em Sade

    Unidade Bsica de Sade

    Ncleo de Apoio Sade da Famlia

    Consultrio na Rua

    Centros de Convivncia e Cultura

    2. Ateno Psicossocial Estratgica

    Centros de Ateno Psicossocial, nas suas diferentes modalidades

    3. Ateno de Urgncia e Emergncia

    SAMU 192, Sala de Estabilizao, UPA 24 horas e portas hospitalares de ateno urgncia/pronto socorro, Unidades Bsicas de Sade

    4. Ateno Hospitalar

    Leitos ou Enfermaria de Ateno Integral em Hospital Geral

    5. Ateno Residencial de Carter Transitrio

    Unidades de Acolhimento

    Servio de Ateno em Regime Residencial

    6. Estratgias de desinstitucionalizao

    Servios Residenciais Teraputicos

    Programa de Volta para Casa

    7. Estratgias de Reabilitao Psicossocial

    Iniciativas de Gerao de Trabalho e Renda

    Empreendimentos Solidrios e Cooperativas Sociais

  • A Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia

    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 15

    Link

    As leis e portarias que instituram a Reforma Psiquitrica brasileira e a RAPS so facilmente acessveis no site do Ministrio da sade: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=33771&janela=1

    A seguir, abordaremos alguns pontos de ateno da RAPS, muito importantes na ateno s crises mais graves.

    1.1.1 Pontos de ateno da RAPS para atender s crises mais graves e situaes de urgncia e emergnciaPonto de ateno um servio estratgico da RAPS que tem a importante tarefa de promover a articulao entre os servios de sade com a rede intersetorial. Nessa lgica apresentaremos alguns componentes da RAPS e RUE destacando os seus principais pontos de ateno para as crises mais graves e situaes de urgncia e emergncia em sade mental.

    a) Componente Estratgico da Ateno Psicossocial (CAPS)

    Os CAPSs foram os primeiros servios induzidos pela Poltica Nacional de Sade Mental, desde os anos 1990, para a construo de uma rede diversificada de cuidados. O CAPS um servio comunitrio de base territorial, com acolhimento sem barreiras de acesso ou agendamento, que oferece cuidado s pessoas em intenso sofrimento ou com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de lcool e outras drogas e/ou da ambincia. Deve ofertar apoio matricial s Equipes de Sade da Famlia. Cabe tambm aos CAPSs oferecer apoio matricial em sade mental aos pontos de ateno s urgncias, em seu territrio de abrangncia, seja por meio de orientaes sobre a histria e as necessidades dos usurios j conhecidos, seja pelo acompanhamento do atendimento, se corresponsabilizando pelo cuidado em seu territrio de abrangncia.

  • Unidade 1

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    A equipe dos CAPS multiprofissional e desenvolve suas aes pautadas no vnculo com usurios e famlias e articuladas a Projetos Teraputicos Singulares (PTSs). Alm disso, a possibilidade de ateno em tempo integral ou parcial pode ser necessria em muitas situaes, considerando a complexidade das necessidades das pessoas com transtornos mentais, e tambm a intensidade da ateno requisitada pelos familiares.

    A Portaria SAS no 854/2012 regulamenta um amplo conjunto de aes realizadas no CAPS2, que incluem a ateno s situaes de crise, voltadas sempre construo de autonomia e insero social de pessoas em intenso sofrimento ou transtornos mentais, incluindo aqueles decorrentes do uso de lcool e outras drogas ou da ambincia. As diferentes abordagens, bem como a intensidade do cuidado ofertado pelo CAPS, devero ser plsticas s singularidades das pessoas em

    seus contextos reais de vida, e devero incluir outros pontos de ateno da sade, de outros setores e da prpria comunidade, que disponham de recursos necessrios qualidade do cuidado (BRASIL, 2012a).

    Os CAPSs operam na lgica da incluso social e humanizao do cuidado em contraposio aos processos de restrio de liberdade da prtica manicomial. Os CAPSs so dispositivos de cuidado que devem contar com uma diversidade de abordagens para a complexidade e diversidade das necessidades das pessoas em seus contextos de vida.

    2 Os CAPSs se diferenciam pelo porte, capacidade de atendimento e clientela atendida, organizando-se de acordo com o perfil populacional dos municpios brasileiros. Assim, conforme Portaria no 3088/2011, esses servios se diferenciam como: CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi, CAPSad e CAPS ad III (BRASIL, 2012b) .

  • A Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia

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    b) Componente de ateno s urgncias e emergncias

    O atendimento s pessoas com transtornos mentais e suas famlias nos pontos de ateno do componente de urgncia e emergncia reafirma a universalidade do cuidado no SUS. Assim, necessrio que os profissionais reconheam essa demanda de ateno como legtima, disponibilizando-se para uma avaliao qualificada.

    Cabe ressaltar que, considerando a singularidade com que as pessoas com transtornos mentais podem expressar o que sentem, a parceria com a famlia e o envolvimento de profissionais que tenham vnculo fundamental para a identificao de agravamentos clnicos que poderiam passar despercebidos.

    Nesse componente, dois pontos de ateno so de fundamental importncia para o cuidado nas situaes de urgncia envolvendo as pessoas com transtornos mentais:

    Servio de Atendimento Mvel de Urgncia SAMU

    O SAMU o ponto de ateno destinado ao atendimento mvel de urgncias e emergncias nos territrios, incluindo aquelas de sade mental, conforme as Portarias GM no 1600/2011 e no 3088/2011.

    A partir de acionamento telefnico (192) e regulao da demanda, a equipe do SAMU atende ou agencia o atendimento mediato ou imediato, articulando e favorecendo o acesso a outros pontos de ateno que se faam necessrios no componente hospitalar ou de seguimento longitudinal, como CAPS, UBS ou outros.

    2 Vale esclarecer que os CAPSs III funcionam 24 horas, os CAPSs I no fazem restrio de atendimento por idade e os CAPSis (infantojuvenis) atendem especificamente crianas e adolescentes. Nos municpios onde no houver CAPSi, dever ser garantida a ateno a essa populao em outra modalidade existente de CAPS, respeitando os princpios e as diretrizes do ECA (Estatuto da Criana e Adolescente).

    Fonte: http://samu.saude.sc.gov.br/

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    Esse ponto de ateno opera intervenes imediatas em situaes de maior complexidade e circunstanciais: no domiclio, na rua ou em locais em que o usurio demande esse cuidado, tendo como mandato principal a avaliao clnica, o manejo da situao e a conduo do usurio para o CAPS de referncia, Unidade Bsica de Sade, servio de urgncia/emergncia ou UPA mais prximos.

    Para a qualificao do encaminhamento, algumas recomendaes se fazem necessrias:

    a) Durante o perodo diurno, de segunda a sexta-feira, o SAMU deve incluir no atendimento, sempre que possvel, o apoio do CAPS de referncia do territrio onde ocorre a situao relativa aos problemas de sade mental, para interveno conjunta ou orientao quanto definio do melhor encaminhamento para a situao que se apresenta.

    b) Durante o perodo noturno, feriado ou final de semana, a equipe dos CAPSs organizada por plantes e, portanto, reduzida. A equipe do SAMU deve realizar a interveno no territrio junto ao usurio e, se a situao demandar cuidados complexos imediatos, dever encaminhar para o servio de urgncia/emergncia ou UPA mais prximos. Nos casos em que no houver essa necessidade, os usurios podem permanecer em casa, se assim avaliar o profissional, ou serem encaminhados ao CAPS, no caso de usurios em acompanhamento nesse servio.

    Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e Pronto-Socorro

    As UPAs e os Pronto-Socorros (portas hospitalares de urgncia) realizam o atendimento das demandas de urgncia e emergncia, incluindo aquelas consideradas de sade mental. Devem realizar acolhimento, classificao de risco e interveno imediata nas situaes e agravamentos que assim o requeiram, minimizando riscos e favorecendo seu manejo. Articula-se a outros pontos de ateno, garantindo a continuidade do cuidado, de acordo com a necessidade.

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    Deve prover retaguarda para a observao das situaes limite, para a definio de encaminhamento mais adequado. importante identificar se o usurio em questo realiza acompanhamento em CAPS, de forma que esse servio seja acionado para o compartilhamento da responsabilidade e a continuidade do cuidado. Especificamente quando a ocorrncia for durante o perodo noturno ou fim de semana e ainda no houver vinculao do usurio a nenhum CAPS, orienta-se que no perodo seguinte o servio de referncia no territrio seja acionado para receb-lo.

    Essa articulao entre os servios propicia o adequado atendimento aos usurios e famlias sem recorrer ao recurso da internao de forma desnecessria.

    c) Componente de ateno hospitalar: leitos ou enfermaria de sade mental no hospital geral

    Trata-se de leitos de Sade Mental em enfermarias de clnica mdica, pediatria ou obstetrcia, ou enfermarias de Sade Mental em Hospital Geral habilitado para oferecer suporte hospitalar, quando necessrio. O acesso a esses pontos de ateno deve ser regulado a partir de critrios clnicos, respeitados os arranjos locais de gesto: central regulatria ou por intermdio do CAPS de referncia (Brasil, 2012c).

    Esse ponto de ateno deve se configurar como retaguarda aos demais pontos de ateno da RAPS, especialmente aos CAPS e aos pontos de ateno do componente de urgncia, para situaes cujo agravamento clnico requeira acesso tecnologia hospitalar. Prov intervenes de curta ou curtssima durao para o restabelecimento de condies clnicas, elucidao diagnstica, ou investigao de comorbidades responsveis por situaes de agravamento. Deve articular-se de forma imediata a outros pontos de ateno, garantindo a preservao de vnculos e a continuidade do cuidado.

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    importante ressaltar que a corresponsabilizao pressupe que, onde quer que o usurio seja acolhido, deve-se institucionalmente articular os demais pontos de ateno da rede necessrios para responder s necessidades identificadas, evitando respostas imediatistas, descontextualizadas, e, por consequncia, equivocadas.

    Cabe, portanto, tambm ao Hospital Geral, como ponto de ateno da RAPS, favorecer a continuidade do cuidado, articulando os servios de referncia dos usurios internados ou promovendo o referenciamento junto s UBS, ao CAPS ou demais pontos de ateno desde a chegada do usurio, e no somente no momento de sua alta.

    1.1.2 A crise no Territrio: nova rede, outra cena, qual abordagem?A ateno crise na RAPS e seus diversos pontos de ateno levantam um primeiro questionamento sobre o que nos autoriza a intervir e quais as possibilidades e condies para estabelecermos uma prtica diferente de superao do modelo manicomial. A RAPS possibilita

    Analise o estgio atual de implantao da RAPS em seu municpio: 1) A rede de servios e estratgias atualmente existentes esto capacitadas para enfrentar as crises? 2) Quais servios se adequam melhor a essa funo? 3) O SAMU e as UPAs atendem as urgncias ou crises em sade mental, como est previsto na legislao do Sistema Nacional de Urgncia e Emergncia? 4) A rede de sade mental da sua regio dispe de retaguarda em hospital geral para o atendimento as crises de pessoas em sofrimento mental ou com comorbidades clnicas decorrentes do uso de lcool e drogas?

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 21

    outras cenas de atuao, realizadas no territrio, nos servios abertos, por meio de um cuidado em liberdade. Isso muito importante, mas no garante que esses espaos sejam ocupados por velhas prticas.

    A lgica manicomial costuma insinuar-se, no cessa de insistir, assombrando o cotidiano dos novos servios, o que exige vigilncia e discusso permanentes de nossas prticas. s vezes, encontramos nas experincias da Reforma Psiquitrica, servios e dispositivos nomeados como substitutivos ao manicmio. Contudo, geralmente so desprovidos de inovao, sem calor humano, investidos da palidez burocrtica ou da secura racionalista da eficincia, eficcia e resolutividade.

    A entrada em cena, a forma e os elementos que agregaremos crise sero um componente determinante na sua superao e destino. Uma leitura ampliada da crise e o reconhecimento de sua complexidade so elementos importantes, porm o mais decisivo ser a nossa posio, assim como nossa orientao tica, tcnica e poltica.

    A imagem a seguir resume aspectos importantes dos elementos envolvidos na ateno crise. Uma discusso mais detalhada desses elementos ser feita na unidade 2.

    Em primeiro lugar, importante afirmar uma diretriz essencial para as nossas aes: se a crise emerge e gerada em um complexo sistema de relaes sociais e humanas, quando nossos servios entram em ao, passamos a fazer parte dessa crise.

  • Unidade 1

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    Figura 1 A entrada em cena dos dispositivos da Reforma

    Fonte: elaborada pelo autor.

    Do ponto de vista poltico e assistencial, ressaltamos algumas diretrizes e princpios ordenadores que orientam a nossa entrada em cena e a nova abordagem proposta. Em primeiro lugar, a tomada de posio quanto priorizao das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. H uma razo histrica e poltica relativa excluso, segregao e negao das demandas e necessidades desse grupo de pessoas. Outro aspecto dessa priorizao diz respeito ao fato de que uma rede capaz de dar respostas adequadas s crises das pessoas com sofrimento mental grave mais efetiva como um todo. As redes que no enfrentaram esse desafio se apresentam completamente impotentes diante dos casos graves (DELLACQUA; MEZZINA, 2005).

    Em segundo lugar, preciso frisar que o trabalho em rede uma condio essencial dessa nova abordagem. A base real de um sistema de ateno crise no so as estaes, os pontos de ateno baseados nos servios especializados e dirigidos crise em si, mas a rede ampla de assistncia e reabilitao que sustentam os Projetos Teraputicos de cada usurio em sua comunidade e territrio, incluindo, principalmente, a ateno bsica e os prprios recursos da comunidade. Essa rede tem como funo principal cuidar e abordar os casos em um instante do seu

  • A Rede de Ateno Psicossocial (RAPS) e os pontos estratgicos na ateno crise e urgncia

    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 23

    desenvolvimento que evite o seu desdobramento para apresentaes muito graves e com ruptura do lao social.

    Nesse desenho, a integrao orgnica da rede de servios, o atendimento crise desde a ateno bsica, guardada a capacidade de interveno em cada nvel, a condio de uma resposta qualificada. A existncia de uma rede ampla e atuante retira os dispositivos de ateno crise do incmodo lugar de suplncia de uma rede inexistente ou que no funciona, permitindo que esses servios exeram um novo papel, o de observatrio dos problemas e disfunes sistmicas dessa rede, e tambm o de parceria para a sua superao. evidente que os servios e estratgias de ateno crise tm que apresentar capacidade resolutiva, flexibilidade e mobilidade, oferecer ateno contnua e integral, hospitalidade, atendimento domiciliar e de rua e integrao aos demais servios de urgncia e emergncia do territrio, sejam eles hospitalares ou pr-hospitalares, como o SAMU e as UPASs.

    isso o que tm sugerido revises consistentes sobre a implantao de redes integradas e balanceadas de ateno (THORNICROFT; TANSELLA, 2004), o que nos aponta as melhores experincias internacionais de Reforma Psiquitrica (JOHNSON et al., 2008; ROSEN et al., 2008; DELLACQUA, MEZZINA, 2005; MEZZINA, JOHNSON, 2008), inclusive, a brasileira, em vrias cidades do pas (SOUZA, 2010). Abaixo, enumeramos algumas diretrizes e princpios ordenadores de uma rede de ateno crise.

    1. Os servios e estratgias devem ser de base territorial e comunitria e organizar-se em rede.

    2. A Rede de Ateno Psicossocial se compe de uma diversidade articulada de servios e estratgias, oferecendo assistncia, reabilitao e insero social.

    3. Deve garantir acessibilidade, integralidade, equidade e continuidade do cuidado e reabilitao.

  • Unidade 1

    Campos24

    4. A sade mental deve ser incorporada nas aes de todos os servios e estratgias do sistema de sade, desde a ateno bsica rede hospitalar e de urgncia geral.

    5. Toda estao ou servio da rede de sade deve estar preparada para acolher as crises em sade mental.

    6. Os servios so dinmicos, mveis e flexveis, articulados organicamente, para evitar a fragmentao.

    7. A ateno s crises inicia-se e deve ser oferecida no territrio, no domiclio, na rua. A ateno integral s crises, 24 horas, 7 dias na semana, e os leitos de acolhimento que podem lhes dar respaldo devem estar situados nos servios territoriais, da a importncia do CAPS III e da hospitalidade noturna. A hospitalidade noturna no pode ser associada, apenas, ao tamanho do servio ou da rea de abrangncia. Trata-se de uma funo essencial para a ateno crise e deveria ser pensada como um componente estratgico de toda rede que pretende dar essa resposta.

    8. Se vamos alocar a funo de atendimento da crise, da hospitalidade e ateno contnua num servio de urgncia ou no Hospital Geral, ela deve, preferencialmente, ser complementada (por exemplo, no perodo noturno e nos finais de semana), ressaltando que sua utilizao necessita estar em sintonia com os servios comunitrios desde a indicao, o acompanhamento e a programao da alta.

    9. A poltica, o modelo assistencial e a clnica devem ser usurio- centrados, ou seja, organizados a partir das necessidades e prioridades dos usurios, familiares e cuidadores. O usurio , antes de tudo um sujeito poltico, intervindo na formulao da poltica e no controle social dos servios e projetos.

    10. O modelo de ateno e os servios orientam-se para os valores e a cultura do pas, regio, cidade, territrio. Devem ser sensveis e oferecer respostas s questes de etnia, raa, gnero e sexo.

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 25

    11. So servios que valorizam a cincia e a evidncia cientfica, bem como a experincia e a cultura.

    1.1.3 Articulao entre RAPS e RUE para ateno s crisesA resposta crise exige gesto e gerenciamento complexos. Por isso, agora, vamos ressaltar alguns pontos sobre esse assunto. Enumeramos abaixo algumas iniciativas que podem ajudar nessa trajetria. Elas podem ser consideradas como boas prticas, sendo um apanhado de experincias e indicaes da prpria legislao atual.

    1. A sade mental precisa se articular e produzir iniciativas colaborativas com a rede de urgncia, tanto no mbito poltico como na organizao do cuidado em todas as esferas de governo federal, estadual e municipal.

    2. A sade mental deve compor os comits gestores de urgncia em todos os nveis. Trata-se de adequao de normativas e de estabelecer pactuaes, diretrizes e protocolos tcnicos, relativos aos fluxos, s responsabilidades e qualidade do cuidado. A presena da sade mental nos comits gestores de urgncia uma oportunidade de desconstruir estigmas, esteretipos, preconceitos e promover a melhoria da qualidade do cuidado que se oferta as pessoas com sofrimento mental.

    No subestime a importncia de definir as competncias tcnicas e a responsabilidade de todos os pontos de ateno, a partir de uma discusso tcnico-cientfica rigorosa e baseada nas melhores evidncias disponveis. necessrio atribuir responsabilidades, definindo como e qual estao de cuidado pode oferecer respostas qualificadas para quem est intoxicado com qualquer substncia psicoativa.

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    No aceitvel, por exemplo, que jovens intoxicados gravemente com crack, com repercusses cardacas graves como infarto e outras, sejam levados para o CAPS ou negligenciados em relao s suas necessidades de sade.

    3. Os dependentes graves de lcool costumam ser frequentemente negligenciados em muitos pontos de ateno e tambm na urgncia, recebendo apenas a orientao para buscar a ESF no dia seguinte ou ser encaminhado a um CAPS. Esse usurio pode estar apresentando, por exemplo, sndrome de Wernicke, que tem um alto ndice de mortalidade e morbidade e precisa de cuidados intensivos e complexos.

    4. importante, ento, que se discuta e estabelea uma pactuao tcnica e poltica quantos aos seguintes pontos sensveis da abordagem das crises:

    protocolos tcnicos com diretrizes de fluxo, estabelecimento de competncias e responsabilidades dos servios de urgncia, hospitalares e no hospitalares destaque para as pessoas com sofrimento mental com problemas clnicos, intoxicao e abstinncias por lcool e outras drogas;

    definio do sistema de retaguarda e apoio matricial de cada servio de urgncia em sade mental, na cidade e por distrito;

    protocolo de avaliao e classificao de risco em todas as portas de entrada de sade mental discutida e includa no protocolo exigncia de estabilizao inicial em quadros graves, contato prvio antes da transferncia; e

    protocolos clnicos especficos: abordagem das crises, tranquilizao medicamentosa e continncia/conteno, protocolos de transferncia de cuidado/handover.

    5. A RAPS, em articulao com a RUE, deve ativar iniciativas e estratgias que possibilitem a construo do cuidado colaborativo entre elas, tais como:

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    a capacitao cruzada entre RAPS e RUE urgncias clnicas e de sade mental; e

    a pactuao de ciclos de melhoria contnua do cuidado, com o gerenciamento continuado de incidentes crticos, quase eventos, e eventos sentinelas (WORLD HEATLH ORGANIZATION, 2011) a partir de casos concretos e iniciativas semelhantes.

    1.2 Diretrizes e estratgias de cuidado da crise e urgncia na RAPSA abordagem das crises implica vrios nveis de ao que esto inter-relacionados e que dizem respeito articulao e especificidade de todos os pontos de ateno da RAPS e da RUE. Algumas diretrizes e condutas deveriam ser inerentes a determinados pontos de ateno em razo da sua funo e particularidades de insero na REDE. Entretanto, esses aspectos so de interesse de todos.

    O primeiro ncleo de intervenes, na entrada em cena da equipe, a realizao de uma leitura da crise em termos de risco e vulnerabilidade. Em seguida, vm as intervenes clssicas de qualquer abordagem de urgncia3: as avaliaes clnicas do estado geral fsico e mental, a sequncia bsica de verificao das funes vitais necessrias ao suporte da vida (o ABCD), os dados vitais, incluindo saturao de O2 e glicemia capilar em alguns casos. No final dessas duas operaes, poderemos situar o nvel de gravidade, urgncia e prioridade clnica do caso e, se possvel, efetuar um diagnstico, mesmo que ele seja apenas voltado para o conjunto de sinais e sintomas predominantes, a sndrome clnica presente e no o transtorno em si.

    3 A articulao adequada desses aspectos da abordagem objeto dos sistemas e escalas de avaliao e classificao de risco, os quais no sero discutidos aqui.

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    Saiba Mais

    Os Sistemas de Classificao de Risco mais conhecidos e validados so o de Manchester, o Canadense e Australiano. Todos eles, com relao sade mental, tm virtudes e deficincias. Os dois ltimos trabalham a classificao de risco em sade mental de forma temtica e usando categorias e linguagem prprias da sade mental. O Sistema de Manchester tem outro modelo de construo e no trabalha a urgncia de sade mental como um campo especfico ou temtico. As suas entradas relativas sade mental tem pontos de corte discriminadores gerais muito bons, para no deixar escapar problemas mdicos que podem se manifestar com sintomas e quadros psiquitricos. Em nosso pas, A Poltica Nacional de Humanizao desenvolveu um documento para orientar os profissionais do SUS com relao ao Acolhimento com Classificao de Risco, que vale a pena ser lido.BRASIL. Ministrio da Sade. Poltica Nacional de Humanizao da Ateno e Gesto do SUS: Acolhimento e classificao de risco nos servios de urgncia. Braslia, DF: Ministrio da Sade, 2009.MACKWAY-JONES, K.; MARSDEN, J.; WINDLE, J. Emergency triage: Manchester Triage Group. 2. ed. London: Blackwell Publishing, BMJ Books. 2006.AUSTRALIAN GOVERNMENT. Departament of Health and Ageing. Emergency triage education Kit. Triage Workbook. Common wealth of Australia, 2009.BULLARD, M. J. et al. Revisions to the Canadian Emergency Department Triage and Acuity Scale (CTAS) implementation guidelines. CJEM, Ontrio, v. 10, p. 136-142, 2008.

    Em segundo lugar, h um conjunto de aes que so agrupadas no conceito de Continncia. So intervenes que, desde a entrada em cena visam modular, atenuar e reduzir o risco, a tenso, o conflito e o sofrimento ali presentes. O manejo dos aspectos verbais e no verbais da comunicao, a ateno e o manejo da delicada dimenso espao-temporal da crise e a utilizao de tticas de resoluo e gerenciamento de conflitos e problemas so os elementos bsicos da Continncia. As

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 29

    suas aes operam na contracorrente das aes de fora e conteno, prevenindo intervenes de risco para o usurio e para a equipe. necessrio ressaltar que as medidas de conteno, na medida em que restringem espao, movimento e liberdade, no importa se utilizados os meios fsicos, mecnicos ou medicamentosos, so procedimentos de ltimo recurso.

    Figura 2 Avaliao e manejo geral da cena de urgncia

    Fonte: elaborada pelo autor.

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    1.2.1 Abordagem da crise: o A.C.E.N.A. na avaliao da Cena, Risco e VulnerabilidadeNa ateno crise, sugerimos algumas recomendaes teis para a abordagem e interveno a partir de uma boa leitura da cena de urgncia, o que um imperativo na urgncia traumtica e tambm tem sua validade em outros campos, como a sade mental.

    A avaliao de cena a anlise imediata que se deve fazer em uma cena de urgncia para detectar, pela leitura da composio e articulao de seus elementos, indcios do ocorrido e riscos ali presentes, inclusive para a equipe de abordagem. Portanto, trata-se de um procedimento muito adequado abordagem da crise, com a diferena de que em nosso campo necessrio articular risco e vulnerabilidade.

    H que se frisar que, ainda hoje, existe uma nfase muito grande no conceito de risco, seja nos principais sistemas de avaliao e triagem de urgncia, seja nos protocolos e diretrizes de abordagem da crise do campo psiquitrico. Basta citar que dois dos sistemas de classificao de risco mais utilizados e reconhecidos no mundo, o de Manchester (MACKWAY-JONES; MARSDEN; WINDLE, 2006) e o Australiano (AUSTRALIAN GOVERNMENT, 2009), utilizam o risco para si e para outrem, em termos de agresso e violncia, como o eixo principal de determinao do grau de urgncia.

    Conforme apontamos anteriormente, o risco, num sentido mais amplo e adequado realidade, no pode ser dissociado da vulnerabilidade da pessoa em sofrimento mental. O conceito de vulnerabilidade nos remete ao campo de fatores relacionados probabilidade de uma pessoa ser vitimizada (sofrer violncia), abusada sexualmente, intimidada, assediada ou explorada pelos outros, segundo uma definio corrente (UNITED KINGDOM, 2007; NATIONAL INSTITUTE FOR CLINICAL EXCELLENCE, 2005). Mas, na nossa avaliao, a vulnerabilidade da pessoa em sofrimento se estende tambm aos problemas relacionados

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    ao suicdio, autoagresso em geral, negligncia e autonegligncia, bem como aos fenmenos relacionados ao preconceito, discriminao e processos de excluso a que esto sujeitas essas pessoas. A vulnerabilidade, muito mais do que o conceito de risco, expressa com maior rigor o contexto bsico da experincia histrica e social da pessoa que apresenta sofrimento mental em nossa sociedade. Felizmente, essa compreenso ampliada comea a aparecer em nosso pas, por exemplo, no mbito das discusses sobre o acolhimento e classificao de risco da Poltica Nacional de Humanizao do SUS (BRASIL, 2009).

    Avaliao da Cena

    A avaliao da cena da crise, que consiste na leitura das diversas dimenses que atuam no seu contexto concreto de origem e sustentao, o elemento bsico e inaugural da avaliao de Risco e Vulnerabilidade. Ela envolve a deteco dos elementos de risco ambientais e materiais, comuns a toda avaliao da cena no campo das urgncias, os quais so muito relevantes nas abordagens domiciliares e de rua, sejam aquelas realizadas pelo SAMU, Equipes de Sade da Famlia ou da Sade Mental. A avaliao da cena deve ser resgatada no ambiente de transferncia de cuidado entre equipes de abordagem in loco e aquelas que faro a continuidade da assistncia, por exemplo, na interface entre SAMU e CAPS.

    No campo da sade mental, a avaliao da cena clssica deve ser complementada pela avaliao dos itens atinentes particularidade da crise. Para facilitar essa leitura, produzimos um mnemnico, o ACENA. O ACENA tem-se revelado um bom instrumento quando se aborda a crise, principalmente no domiclio ou em via pblica, mostrando assim um potencial de utilidade para a prtica de outros profissionais e servios. Nesse sentido, faremos em seguida uma explanao de cada um dos seus itens.

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    Figura 3 Crise: avaliao da cena

    Fonte: elaborada pelo autor.

    O primeiro A do ACENA um componente comum da avaliao em todas as urgncias clnicas e traumticas. Seu objetivo lembrar a equipe de avaliar os aspectos do Ambiente material, social e humano na crise, envolvendo o macro e micro ambiente, as variveis demogrficas e contextuais, que so elementos especficos de risco. Temos assim o Territrio, suas caractersticas materiais, sociais e polticas, suas vias de entrada e sada, seus fluxos materiais e humanos. Principalmente para as equipes e profissionais que realizam o atendimento domiciliar ou em via pblica, o conhecimento do territrio vital para a abordagem da crise.

    Depois, teremos a moradia e os seus arredores imediatos, uma dimenso que por si mesma vai nos dizer muito sobre a prpria crise e a rede social e familiar envolvida, nos apontando possveis causas e, tambm, solues.

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    Nos detalhes da cena, observaremos aspectos especficos de risco, como a presena e acesso aos meios de suicdio, violncia (altura, vias movimentadas, frascos e embalagens de venenos, cartelas de medicamentos vazias, armas ou objetos que podem virar armas, entre outros), a presena de lcool e drogas ou artefatos e indcios do seu uso (cachimbos para o uso de crack, seringas, garrafas vazias, entre outros), bem como aspectos da casa ou de relaes humanas que denotem autonegligncia ou negligncia no cuidado de quem apresenta sofrimento mental, ou de crianas ou idosos.

    Consideram-se tambm nesse cenrio os aspectos sociais e demogrficos da cena, tais como: composio da famlia e da rede social, renda, trabalho, condies de vida, nvel educacional... a cultura em sua materialidade. E no se deve esquecer de variveis como sexo, gnero, faixa etria e ciclo de vida, que possuem influncia e relao com fenmenos como agressividade, violncia, suicdio e prevalncia de determinados transtornos.

    Todos esses aspectos, um conjunto de elementos quase fotogrficos, ajudam a determinar os riscos e a vulnerabilidade da situao para o profissional, sua equipe, os familiares e a pessoa com sofrimento mental.

    O C do ACENA, nos lembrar Crise e Conflito no lao social e o fato de que os elementos da rede social e familiar so muito importantes para determinar os aspectos de urgncia de uma crise, modulando o grau de gravidade, risco e vulnerabilidade e os resultados da crise. Aqui se inserem os graves e complexos problemas relativos ao circuito violncia, agressividade, vitimizao como destacamos anteriormente, mas no podemos nos esquecer de aspectos bsicos ligados ao lao familiar. As relaes familiares da pessoa em sofrimento mental, o nvel de conflito, hostilidade e o padro de envolvimento emocional so fatores determinantes, por exemplo, para taxa de crises, recadas e hospitalizao (VAUGHN, LEFF, 1976; MAROM, 2005).

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    O E do ACENA nos remete Entrada em Cena da Equipe. Como discutimos anteriormente, ao entrar em cena, a equipe passa a fazer parte dela. muito importante, desde a solicitao, analisar a estrutura da demanda, quem a formulou, as expectativas geradas. Esses aspectos vo determinar a forma e detalhes importantes para a entrada em cena da equipe, a qual passa a ser um elemento decisivo para o curso da crise e sua superao.

    Na fase N do ACENA vamos observar, em primeiro lugar, o nvel de conscincia no sentido neuropsiquitrico, ou seja, o estado de alerta e resposta ao meio, tais como avaliadas na Escala de Coma de Glasgow. Esse procedimento algo j incorporado, por exemplo, na prtica dos profissionais do SAMU e servios de urgncia que trabalham com Sistemas de Triagem e Classificao de Risco. Nesses ambientes, a alterao do nvel de conscincia uma varivel de primeira ordem para determinar o grau de urgncia e a prioridade clnica (MACKWAY-JONES; MARSDEN; WINDLE, 2006).

    Esse nvel neurolgico deve ser ampliado no sentido psicopatolgico e da subjetividade, abrangendo a conscincia do momento e do contexto, seja quanto s coordenadas de orientao no tempo, espao, ou quanto situao do sujeito, o que requer um bom funcionamento global da conscincia em si e das diversas funes psquicas.

    Aqui se insere o aspecto mais decisivo da conscincia, quando se fala de crise e urgncia. Trata-se da posio do sujeito diante de sua situao: como uma pessoa que vivencia uma crise, decerto, mas tambm como um sujeito de direitos e deveres, protagonista de sua prpria existncia em relao com o mundo. Essa dimenso, no custa enfatizar, determinar o nvel de conscincia em relao ao seu contexto de crise, seu sofrimento, o seu teste de realidade, interferindo, assim, na capacidade de escolha e no consentimento e adeso s propostas e ofertas de cuidado e assistncia da equipe.

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 35

    A ltima letra A indica a necessidade de se observarem trs aspectos que, reconhecidamente, acentuam o nvel de risco e vulnerabilidade nas crises:

    1. A presena de Agressividade e violncia sofridas ou cometidas, seja atual, ocorrendo no momento da abordagem, ou na histria anterior imediata ou no passado so aspectos determinantes para caracterizar risco e vulnerabilidade na cena da crise. Trata-se de um componente clssico da avaliao de risco, o qual tem que ser ampliado para as questes relativas vitimizao e vulnerabilidade por pessoas com sofrimento mental (UNITED KINGDOM, 2007; NATIONAL INSTITUTE FOR CLINICAL EXCELLENCE, 2005). muito importante, na avaliao da cena, saber que a agressividade que se observa tem uma histria e, pode ser reativa a diversas formas de violncia sofrida em momentos anteriores. Outros sintomas, como agitao, atividade alucinatria ou delirante, angstia, ansiedade, alteraes do nvel de conscincia, podem estar presente, dependendo do quadro global e do transtorno.

    2. A presena de Autoagresso na cena atual ou na histria anterior, manifesta na forma de suicidalidade (ideao, plano, atos preparatrios, tentativa e suicdio) ou leses autoinfligidas sem aparente ideao ou comportamento suicida, um elemento fundamental para a deteco de risco e vulnerabilidade. preciso lembrar que pessoas com sofrimento mental grave tm no suicdio a principal causa de morte e a sua prevalncia muito maior do que a da populao geral (HARRIS, BARRACLOUGH, 1997; 1998). As leses autoinfligidas, mesmo sem explcita ideao suicida, particularmente, as de repetio, as quais so objeto de negligncia e at descaso nas urgncias, devem ser tomadas a srio, na avaliao da cena e no seguimento, pois a consumao posterior de suicdio nesses sujeitos bastante alta (ZAHL; HAWTON, 2004).

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    3. A presena explcita ou indcios de lcool e outras drogas (intoxicao, havendo dependncia ou no, uso abusivo, dependncia e abstinncia) se correlacionam com aumento importante no risco e vulnerabilidade, seja para a urgncia em sade mental, seja para o mbito da urgncia em geral. A sua importncia para a sade pblica e seu impacto nas crises no campo da sade mental so hoje evidentes, em termos de prevalncia e como um fator de incremento de fenmenos como violncia, agressividade e suicdio na populao em geral e por pessoas com sofrimento mental (ELBOGEN, JOHNSON, 2009; FAZEL et al., 2009; STEADMAN et al., 1998; BERTOLOTE, FLEISCHMANN, 2002).

    1.2.2 Recomendaes sobre a Continncia das CrisesVejamos agora algumas recomendaes importantes para a continncia das crises.

    a) Relativas entrada em cena e postura da equipe

    necessrio reconhecer, em primeiro lugar, que chegamos de fora, somos estrangeiros em relao cena, no apenas quando a abordamos na rua ou domiclio. Assim, o encontro imprevisvel, inclusive porque a demanda em sade mental, particularmente na crise, costuma ser feita por outrem, um familiar, s vezes sem comunicao prvia pessoa com sofrimento mental.

    Os sujeitos em crise podem estar vivenciando experincias psicopatolgicas extremas de invaso do seu espao, da sua mente e do seu corpo, o que exige cuidado, sensibilidade e delicadeza para no sermos mais um invasor.

    preciso recolher todas as informaes possveis para caracterizar a demanda e aquelas necessrias para entrar em ao (territrio, vias de acesso, endereo entre outros), principalmente se for um atendimento domiciliar ou de rua (HOULT; COTTON, 2008).

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    Certificar-se do pedido de ajuda, caracteriz-lo, saber quem o acionou, quais so os informantes-chave e quem nomeado como o portador da crise.

    Ao iniciar a abordagem, seja na planta de um servio de sade ou em qualquer local de atendimento, fazer a identificao do servio e da equipe (nome dos profissionais, funo).

    Identificar a pessoa com sofrimento mental e as pessoas de referncia dentro da rede familiar e social.

    O membro mais experiente da equipe dever coordenar as aes e estabelecer o dilogo. Ateno para o fluxo das emoes, dos afetos e dos processos de vinculao do usurio. Eles podem oscilar ou modificar ao longo da abordagem, a ponto de requisitar a mudana de interlocutor.

    Atuar como equipe, sendo que a coordenao das aes e o treinamento prvio sero vitais. Aes isoladas devem ser bem calculadas, nunca se deixando um membro da equipe sozinho, por exemplo, com algum escalando para a violncia.

    Lembrar que, em razo da complexidade das crises, independente da quantidade de informaes e experincia que uma equipe tenha, a cena local ser, muitas vezes, surpreendente, exigindo de ns flexibilidade e inovao.

    Sumarizamos, a seguir, essas orientaes.

  • Unidade 1

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    Quadro 1 O desfiladeiro da entrada em Cena

    Fonte: elaborado pelo autor.

    b) Relativas interao, comunicao e resoluo de conflitos e problemas

    As relaes humanas so, em grande medida, especulares: estamos sempre reagindo, de forma automtica e impensada, s posturas e aes de outras pessoas, dadas tambm em resposta s nossas prprias. Aqui se revela a posio do sujeito em relao a si mesmo e aos outros, ou seja, a subjetividade e as posies subjetivas so, na sua raiz, intersubjetivas, construdas na relao social. Essa a base em que se assenta o nosso imaginrio, as nossas fantasias, as representaes sobre si e os outros, os nossos juzos, bem como os aspectos interativos como a fala, o discurso, as posturas, os gestos, o olhar, a expresso facial e vrios outros elementos que sinalizaro para o interlocutor uma posio subjetiva.

    Ao entrar em uma cena e fazer a sua leitura, inevitavelmente, encontraremos o usurio e sua posio subjetiva. Formaremos opinies e juzos de valor. s vezes, j tomamos posio antes de entrar em cena, a partir de dados gerais do pedido, como por exemplo, quanto

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 39

    ao local, a regio de onde partiu o chamado. Isso tudo nos produz uma determinada postura e aes verbalizadas ou no, as quais levaro a reaes, respostas em nosso interlocutor. Para complicar, essas posturas e aes so condicionadas, no somente pela nossa experincia, formao profissional e no profissional, mas tambm por nossos preconceitos, medos, fantasias e outras dimenses da nossa subjetividade, em grande parte inconscientes. E, evidentemente, o usurio, sujeito de nossas intervenes, vivenciar um processo semelhante diante do encontro conosco e o far, com certeza, com mais intensidade em razo da sua condio peculiar de sofrimento, que pode ser intensificada pelo fato da interveno ser demandada por outrem e ele estar na posio de um objeto. Engendra-se um processo de aes e reaes espelhadas que, se no manejadas com sensibilidade e inteligncia, desencadeia uma profuso de emoes, sentimentos e atos cujo desfecho imprevisvel.

    Figura 4 Interaes especulares: ao e reao

    Fonte: elaborado pelo autor.

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    Campos40

    Nas crises, dado o turbilho emocional que lhes comum, relativamente mais fcil, a outros contextos de atendimento, as equipes se enredarem em relaes especulares, de ao e reao com os usurios, sem reflexo e ponderao. Nesse sentido, alguns autores e estudos (DIX, PAGE, 2008; WAY, BANKS, 1990; FISHER, 1994) nos advertem que:

    grande parte da agressividade e violncia no ambiente psiquitrico, principalmente no regime de internao, ocorre na interao usurio-equipe;

    a taxa no uso de medidas como a conteno no est relacionada gravidade dos casos, mas cultura da instituio e ao perfil de relaes equipeusurio;

    a violncia e a agressividade ocorrem geralmente na implantao de medidas que no contam com o consentimento do usurio;

    medidas coercitivas so frequentemente implantadas com objetivos de retaliao ou comodidade da equipe.

    Portanto, devemos observar alguns princpios que orientam as nossas intervenes:

    estar atento postura e misso, mantendo-se sempre focado no objetivo. Procurar ser claro, usar frases curtas e objetivas. Escutar, permitir tempo e espao para a fala do usurio e dos familiares, procurando delimitar o problema e conflito central a partir dos enunciados;

    no ser reativo. Se houver algum tipo de provocao a si ou equipe, manter-se concentrado, rememorando a sua funo ao interlocutor;

    nunca enveredar por situaes nas quais o usurio, j ameaado, sinta-se mais acuado. No colocar alternativas do tipo tudo ou nada, ganhar ou perder. Tentar alinhar os seus objetivos com o do usurio (DIX; PAGE, 2008).

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 41

    no se esquecer de que estaremos abordando pessoas atordoadas por delrios e alucinaes, cujos contedos, aparentemente absurdos, jamais devem ser depreciados ou sequer confrontados. Deveremos aprender a lidar com essas situaes de forma sensvel e inteligente, sendo que para cada caso haver uma resposta singular;

    saber intervir na rede familiar e social, no restringir as intervenes ao usurio em crise. Atentar para pessoas e familiares que so referncia e tm a confiana do usurio e solicitar, com tato e gentileza, a sada de cena de um familiar que seja fonte de conflito e tenso.

    Aspectos da comunicao

    A comunicao verbal e no verbal na crise pode ser fonte de equvocos, desencontros e conflitos e, ao mesmo tempo, possibilitar sadas, produzir sentido e significados. Destacamos a seguir algumas ponderaes e recomendaes.

    Ponderao I

    Figura 5 A iluso de uma comunicao teraputica e transparente

    Fonte: elaborado pelo autor.

  • Unidade 1

    Campos42

    Ponderao II

    Figura 6 O muro da comunicao humana

    Fonte: elaborado pelo autor.

    Recomendaes:

    necessrio singularizar ao mximo o dilogo considerar cada interveno, cada contato, como se fosse o nico. Identificar os protagonistas, contextualizando os aspectos sociais, econmicos e culturais da linguagem e comunicao;

    manter-se calmo, ser objetivo, evitar declaraes longas, manter o foco, identificar as necessidades, demandas, prioridades e contextos, mais do que diagnsticos;

    entender que o sentido de uma mensagem no se encerra nela mesma e depende do outro, vem do outro, do receptor da mensagem. Reforar a escuta, economizar falatrio, conselho, orientaes e solues prontas;

    procurar as solues para os problemas e conflitos nos discursos, nas falas dos atores envolvidos e, caso alguma soluo possa ser

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    Organizao da ateno psicossocial crise em rede de cuidado 43

    colhida na fala de um familiar ou da pessoa com sofrimento mental, apresent-la a ele e confirmar ou no a sua leitura. Sempre buscar o consentimento do usurio (DIX, PAGE, 2008; HOULT, COTTON, 2008; NATIONAL INSTITUTE FOR CLINICAL EXCELLENCE, 2005) e de sua rede social, valorizando a palavra; e

    controlar os elementos no verbais da sua fala: o tom, a cadncia, o ritmo e a adequao da fala e das mensagens.

    Os elementos no verbais da comunicao humana, as posturas, gestos, olhar, expresso facial so to importantes quanto os verbais (DIX; PAGE, 2008; TARDIFF, 2006; NATIONAL INSTITUTE FOR CLINICAL EXCELLENCE, 2005). Portanto:

    evitar posturas que possam ser defensivas ou confrontadoras. No se posicionar de frente, encarando;

    no colocar as mos na cintura ou cruzar os braos no trax, por exemplo. Posicionar-se no mesmo nvel. Se o paciente estiver sentado, sentar-se, mas estar atento;

    tentar assegurar-se de que sua expresso facial, seu olhar no seja de intimidao ou reprovao;

    o tom de voz, a altura e o ritmo da fala devem estar articulados ao contedo e ao problema em foco;

    manter uma distncia segura (para o contato humano em geral, sem a intimidade do dia a dia, recomenda-se cerca de 1 metro). Se houver agressividade, ou a situao estiver se encaminhando nesse sentido, dobrar a distncia;

    no tocar na pessoa em crise: toques e manifestaes de compreenso fsica somente so possveis em situaes muito particulares, quando o profissional conhece bem o usurio ou depois de a situao tensa se desfazer;

    estar atento adequao entre os aspectos verbais e os afetivos e no verbais da comunicao.

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    Quadro 2 O muro da comunicao humana e o manejo possvel

    Fonte: produzido pelo autor.

    c) Relativas ao manejo das dimenses espao-temporais

    No modelo manicomial, o manejo do espao e tempo est diretamente relacionado ao controle, disciplina, vigilncia e padronizao. O que est em jogo a moldagem e o assujeitamento do corpo e da mente das pessoas com sofrimento mental ao espao e tempo impostos dos servios, a sua organizao do processo de trabalho.

    O campo da Reforma, portanto, tem de considerar tais questes. Espao e tempo so aspectos muito sensveis para se analisar um dispositivo, um servio, para dimensionar o quanto conseguiu, de

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    fato, ser usurio-centrado ou se continua um servio centrado e organizado pelas suas prprias necessidades, sua burocracia, e no pelas demandas dos usurios.

    Em nosso modelo de cuidados e na prtica da continncia, no deixamos de considerar o espao e tempo na sua dimenso quantitativa, e muito menos, na sua formatao coletiva, os espaos e tempos comuns, os momentos de troca e encontro, os lugares e a arquitetura adequados. Mas devemos saber que espao e tempo so apropriados, so subjetivados por cada indivduo, exigindo, assim, singularizao dentro da diversidade e a observncia das particularidades, seja de gnero, sexo, etnia ou cultura. Se consegussemos que a singularidade e a diversidade recortassem e organizassem o espao e o tempo dos nossos servios e intervenes, com certeza isso seria um grande passo para superao da lgica e modelo manicomial.

    Para ilustrar as dimenses envolvidas e o processo de abordagem de uma situao de crise, apresentaremos, a seguir, o caso de No.

    Caso clnico: No

    Situao

    No um morador de rua que est em crise e delirante, fazendo arranjos fantsticos, verdadeiras instalaes artsticas, com galhos de rvore e quinquilharias, na frente de uma concessionria de veculos. O dono exigiu uma interveno de urgncia do poder pblico.

    Contexto

    No habita em uma avenida de uma grande metrpole brasileira e faz arranjos que incomodaram o dono da concessionria. Em outro segmento dessa avenida, mais adiante, perto de um Shopping Center, ele cata pedras, quebra passeios para extrair concreto e constri trilhas, traados, num terreno vazio. De uma passarela percebe-se que h lgica, um desenho no seu traado. Seu labor sem fim. De

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    manh numa ponta, tarde e noite, noutra. Est ali h alguns meses e muitos o conhecem. Estes disseram que No havia intensificado o seu trabalho, parecia ter urgncia, cuidava-se pouco, dormia no seu canteiro de obras, nem mais estava procurando a marquise e um cantinho num bar, onde o dono, alm de fornecer-lhe caf e comida, deixava-o dormir.

    O dono da concessionria exigiu uma posio. A equipe de abordagem da populao de rua fez os primeiros contatos com ele, levando o caso discusso no Centro de Ateno Psicossocial 24 horas (CAPS III) da regio. As duas equipes passaram a acompanhar No em seu territrio.

    Histria

    A histria de No assemelha-se a de muitos moradores de rua. No tinha, a princpio, uma histria. Estava ali e pronto, sem passado ou futuro. No se sabia de onde vinha ou se tinha parentes. Quando indagado sobre a famlia, atalhava: passado passado... deixa os inocentes quietos. Na maioria das vezes dizia que era No, mas tambm, se nomeava Ado e, algumas vezes, Jesus, o Benedito.

    Avaliao do estado mental

    No tinha a conscincia clara, estava orientado auto e alo psiquicamente no seu espao, territrio e tempo prprio, regido por sua obra. Muito delirante, s vezes dava tapas no ar, no espao contguo da orelha e cabea, como se quisesse afastar alguma coisa, como se ouvisse algo o admoestando. Nesse momento, tinha algumas exploses verbais: me deixa demnio, sua besta... sai de perto da minha obra... sua obra o inferno. No denotava comportamento agressivo. Muito desconfiado nas primeiras abordagens, depois passou a ser afvel. Recentemente, no estava mais se importando em se alimentar. Ficava com frequncia ao relento demonstrando sinais de autonegligncia. s vezes se expunha, quando eventualmente trocava de roupa em pblico, sendo admoestado e agredido verbalmente pelos transeuntes.

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    Avaliao clnica

    Parecia ter uns 40 anos. Estava emagrecido, a higiene era precria, mas um detalhe importante: cuidava muito bem dos seus dentes, grandes, bem ordenados, branquinhos, limpos, e no se apartava da sua escova. Estava com a presso arterial moderadamente elevada, em medidas subsequentes. Aceitou tomar medicao e cuidar dela, depois de algumas abordagens. O restante do exame fsico estava dentro dos padres de normalidade. Segundo ele e os conhecidos, no usava lcool ou outras drogas.

    1.2.3 Ambiente da crise: territrio, rede social e singularidade dos projetos teraputicos na Reforma PsiquitricaA histria de No nos ensina que a crise precisa ser analisada, no mnimo, em trs dimenses, que esto ilustradas no diagrama abaixo:

    Figura 7 Reforma Psiquitrica: as dimenses de uma crise

    Fonte: elaborado pelo autor.

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    A clnica

    No estava, de fato, delirante, em um delrio de reconstruo do mundo, muito consistente e sistematizado, o qual nos foi segredando aos poucos, nos diversos contatos. Certo aspecto desse delrio o deixa vulnervel ele no se protege, vive ao relento, sob a chuva, ventos e trovoadas. Tal como ele disse: foi dito, o homem precisa apenas da terra, do ar e da gua da chuva. A dimenso clnica de uma crise muito importante e decisiva, envolvendo sintomas e sinais, possveis diagnsticos, sua gravidade e agudeza e a existncia de comorbidades (outro transtorno mental, uso de lcool ou outras drogas ou doenas clnicas). Essa perspectiva compe a maioria dos textos, livros e sistemas tradicionais de classificao de risco e urgncia em geral (GLICK et al., 2006; QUEVEDO, SCHMITT, KAPCZINSKI, 2008; CORDEIRO, BALDASSARA, 2007; MACKWAY-JONES et al., 2006).

    Entretanto, embora necessria, a dimenso clnica estrita na sade mental, no suficiente para caracterizar os aspectos importantes de uma crise, tais como o seu grau de urgncia, o risco e a vulnerabilidade presentes, e, muito menos, para delimitar e decidir sobre aspectos mais complexos de natureza tica e jurdica, relativos capacidade e responsabilidade legal, escolha, consentimento e voluntariedade do tratamento. Alguns autores reforam essa questo e nos orientam a colocar a dimenso clnica, principalmente quando restrita doena e diagnsticos, entre parnteses, para que se possa revelar o sofrimento do usurio em toda a sua amplitude existencial e relacional (DELLACQUA, MEZZINA, 2005; ROTELLI, 1990).

    Territrio, lao social: rede social e familiar

    O caso de No expressa uma reao social frequente ante os moradores de rua. A convocao de uma equipe da populao de rua para fazer uma abordagem enuncia uma ordem vertical, do tipo: retirem este louco da rua que ele est atrapalhando os negcios da cidade. A equipe de abordagem de rua, a qual, na sequncia, solicitou a colaborao do

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    CAPS III de referncia para o territrio. Essa segunda equipe buscou se inteirar do contexto logo nas primeiras abordagens de No, verificando a existncia de outros atores, como os vendedores ambulantes e pequenos comerciantes da orla de uma favela, a um quilmetro de distncia da concessionria, local de circulao de nosso personagem. Essas pessoas tinham uma boa relao social com No, gostavam dele, forneciam alimentao e roupas, e no faziam demanda ou presso para retir-lo da rua.

    Relataram que ele era dcil, um santo, e nunca tinha incomodado ningum, caractersticas comprovadas ao longo das semanas seguintes pelas equipes que o atendiam. No no via necessidade da interveno de ningum e nem de tratamento. Apenas queria continuar a sua misso, pois seus arranjos tinham relao com uma reconstruo do mundo.

    Esses aspectos do caso nos apontam um componente muito relevante de uma crise. Trata-se do fato de que o Territrio e a Rede Social do sujeito nos aportam o contexto, o seu enquadramento, a cartografia possvel de uma crise e as possibilidades de se traar um percurso singular para a sua abordagem. Aspectos mais objetivos da rede social e familiar de suporte so tambm importantes, tais como sua extenso e composio, recursos disponveis, renda, trabalho, moradia, servios sociais, equipamentos de lazer e cultura.

    Os aspectos relativos forma e qualidade das relaes humanas e sociais dentro da rede social e familiar compe o que designamos como lao social.

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    Essa dimenso do contexto e do lao social4 vai ser to ou mais decisiva do que o quadro clnico na modulao e qualificao do risco, da vulnerabilidade e do grau de urgncia de uma crise. Para que se perceba sua importncia, basta nos reportarmos a um contexto muito comum e frequente na abordagem das crises em nossos servios. Trata-se da situao em que os sujeitos apresentam quadros delirantes e alucinatrios muito bem definidos e at muito parecidos. Sua apresentao e seu desfecho sero muito diferentes em um contexto de uma rede social e familiar intacta, solidria, preocupada e acolhedora, em contraposio a outra rede social e familiar em conflito, com pessoas impacientes, que se agridem mutuamente.

    A crise de No, enunciada no contexto de suas relaes sociais, se produz no territrio. No recorta e navega um territrio que no se compe apenas da extenso de rua em que perambula, dos pontos e espaos que ocupa, onde dorme e reconstri o mundo. O territrio , antes de tudo, uma dimenso atravessada por relaes sociais, de poder e de produo de

    sujeitos e atores sociais e polticos. Em uma primeira avaliao, havia uma correlao de foras, desfavorvel a No, mas depois foi possvel verificar que ele tinha a sua rede, foras sociais que o amparavam e que podiam ser fortalecidas. Ele no estava simplesmente merc de algum poderoso ou do poder pblico, que poderia ter adotado uma posio de fora, retirando-o da rua sem o seu consentimento.

    4 O termo Lao Social se refere, aqui, ao fato de que o sujeito da crise coletivo, e no individual. O que est em crise um conjunto de relaes sociais. Nesse sentido, a pessoa portadora da crise no pode ser tomada como um mero exemplar biolgico da espcie ou um indivduo isolado (DELLACQUA; MEZZINA, 2005). O indivduo, como um membro da coletividade humana, a sntese de suas mltiplas relaes e somente poder se individualizar no contexto de relaes sociais determinadas, numa dada sociedade e tempo histrico (MARX, 1983). Assim, a essncia e o tecido da crise envolvem o Lao Social, as posies subjetivas e de poder em relao, em conflito como condio de emergncia de um sujeito singular e da possibilidade de tomada de posio por esse mesmo sujeito, como veremos a seguir.

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    Vale acrescentar que, muitas vezes, os servios e equipes da Rede de Ateno Psicossocial e da Rede de Urgncia e Emergncia cedem demanda e presso social por uma interveno da crise em que a oferta se caracteriza pela internao como resposta. Desse modo, incorre-se no risco de realizar intervenes apressadas, foradas e involuntrias. O exemplo de No mostra como um louco de rua ativa a demanda e o incmodo do dono de uma empresa que desencadeia uma srie de intervenes: chamada polcia e o SAMU, e o louco detido e levado internao involuntariamente. Ignora-se a rede social tecida por esse cidado, bem como a posio do prprio sujeito em questo e a de outros atores com menos poder.

    O conceito de territrio fundamental para a sade mental no somente por se tratar da definio de uma rea geogrfica de responsabilidade dos servios, mas tambm pela proximidade dos contextos reais das pessoas, favorecendo o acesso e a interao com o usurio e as dimenses da sua vida cotidiana e da sua rede social. Dessa forma, trabalhar no territrio requer conhecer e operar com os recursos e saberes das pessoas e das instituies pblicas e comunitrias (BRASIL, 2005).

    O caso de No ilustra que necessrio trabalhar em rede, inclusive com os recursos de outras polticas pblicas como as da educao, da cultura e da assistncia social. Contudo, h que se ressaltar que mesmo no caso de um morador de rua fragilizado, h uma rede e recursos no seu territrio que precisamos descobrir, ativar e reforar.

    Ao ativar a rede territorial de No, o seu projeto teraputico tomou um novo caminho, validando e qualificando aes de proteo. Isso foi importante em todos os sentidos, at na possibilidade de uso de medicamentos. Um dos seus pares no territrio, o dono do bar que lhe fornecia caf e alimentao se responsabilizou pela guarda da medicao e de lembr-lo quanto ao uso. Pode-se assim, usar um antipsictico para modular o seu delrio e um anti-hipertensivo para

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    controlar a hipertenso arterial. E, no conjunto, diminuiu a presso para uma interveno apressada ou forada sem o seu consentimento.

    A posio do sujeito diante de sua crise

    Esta segunda dimenso tem um papel determinante na expresso e abordagem das crises, particularmente pelos aspectos ticos e polticos aqui subjacentes. Por exemplo, ao No ser indagado sobre a razo de suas trilhas no terreno baldio usando blocos de concreto e pedra que encontrava nos arredores, ele disse: veja doutor, as pessoas descem do nibus ali, muitas vezes est chovendo e alaga esta rea, ento, elas tero um caminho para passar. Sorriu matreiramente ante a observao de que o motivo no parecia ser somente aquele. Ento, ele ficou mais srio e pensativo e disse: estou iniciando os caminhos do futuro... doutor. Dentro de alguns dias havia ali um traado de trilhas de pedra e concreto que s ele saberia deslindar. No era, antes de tudo, uma pessoa muito generosa e simptica; esse era um trao pessoal que lhe ajudava.

    Como j assinalado, no se trata aqui somente do indivduo, da pessoa, do eu, de uma personalidade abstrata ou de uma conscincia, mas de um sujeito em relao, em rede, inserido na teia do seu lao social. Assim, o sofrimento mental de uma pessoa deve ser tomado desde seu quadro bsico, situando-o na dimenso da cidadania e do contrato social, como sujeito de direitos e deveres. Ele , tambm, um protagonista no sentido histrico e poltico, na medida em que resiste e se posiciona diante dos saberes, prticas sociais e polticas (FOUCAULT, 2010), inclusive quanto s polticas de assistncia em sade mental. Deve-se ressaltar, ainda, o que h de mais singular em cada um, a histria pessoal sempre nica, o nome prprio, o romance, o drama, a tragdia da pessoa e sua famlia, as dimenses mais ntimas da subjetividade, seus aspectos inconscientes.

    A trajetria e a posio da pessoa com sofrimento mental em relao sua crise, a qual passa pelo ato de considerar-se ou no em sofrimento,

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    condio para formulao de uma demanda de ajuda; processo complexo e em estreita relao com os laos sociais. Esse um ponto crtico, uma vez que a voluntariedade e o consentimento perante o tratamento se relacionam com a posio do portador de sofrimento mental perante a sua crise, bem como com a ruptura ou preservao dos laos sociais e familiares.

    O caso de No transcorreu a partir de uma interveno respeitosa, considerando a sua posio subjetiva e temporalidade. Foram necessrios mltiplos contatos por cerca de dois meses, com uma a duas visitas semanais, sem contar as conversas com a sua rede de apoio. Somente assim a equipe do CAPS III teve a sua autorizao de maneira a colocar em ato algumas medidas consentidas. Posteriormente, com o apoio da sua rede, No aceitou, enfim, a acolhida no CAPS III. Durante trs meses ele foi melhorando e reconstruindo a sua histria. Ele deu pistas que possibilitaram um trabalho meticuloso, apoiado pelos profissionais da equipe de abordagem de rua, localizando a sua famlia em outro Estado. Vale dizer que os profissionais da equipe de abordagem da populao de rua continuaram acompanhando No enquanto ele estava no CAPS, ajudando nesse exerccio de reconstruo da sua identidade e cidadania. No vive, hoje, com sua famlia, e se trata na Rede de Ateno Psicossocial do seu municpio.

    Assim, a dimenso clnica, o lao social e a posio do prprio sujeito ante a crise so aspectos determinantes, trs dimenses que necessitam ser avaliadas para definirmos uma crise e a sua abordagem. Elas so dinmicas, interagem e se confrontam, sendo um processo muito mais complexo do que a soma de suas partes. Dimenses que se tornam eixo, indicam direo e tendncia, constituem espaos, campos, movimento e so atravessadas pelo tempo. Nas outras reas da sade, quando se fala na cena da urgncia, recorre-se analogia com uma fotografia, seus elementos essenciais e seus detalhes decisivos. Todavia, no campo da sade mental, a crise tem mais proximidade com um filme cujo enredo complexo. O que est em jogo so estrias

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    e histria, o drama humano mltiplo, multideterminado e a cena da crise compondo-se de um condensado de passado, presente e futuro.

    De maneira evidente, No, que, aparentemente, estaria s no mundo e se apresentava como um deserdado da cidadania, nos mostra que a crise se d no territrio e o territrio algo vivo, composto de relaes sociais, encontros e desencontros, afeto, ternura, solidariedade, intolerncia, preconceito, excluso. Mostra-nos tambm que possvel ativar pactos, reconstruir potncias e engendrar aes de incluso, tudo isso respeitando e valorizando o percurso, os tempos e o protagonismo do portador de sofrimento mental.

    Saiba Mais

    A crise em sade mental, antes de nos apontar uma doena, um transtorno, nos revela um sujeito, o sujeito em lao social. No se nega a existncia do transtorno, da doena, mas esta colocada entre parnteses, conforme nos orienta Franco Rotelli, para que surja a riqueza e a complexidade da existncia-sofrimento de um sujeito e seu lao social, evitando o reducionismo da abordagem manicomial. Recomendamos, neste sentido, que se leia o texto a seguir: ROTELLI, F. A instituio inventada. In: NICACIO, F. (Org.). Desinstitucionalizao. So Paulo: Hucitec, 1990. p. 89-99. Este artigo orientou toda a primeira gerao de militantes antimanicomiais. Precisamos manter viva a chama dos textos seminais e clssicos que marcaram a nossa trajetria. Este, em particular, atualssimo.

    1.2.4 Novos sentidos e predicados no campo da criseA compreenso da crise como um fenmeno complexo e multidimensional exige uma reordenao terica e prtica no campo tradicional da urgncia e emergncia. necessrio, inclusive, adotar novos sentidos e predicados aos conceitos e definies habituais de crise, conforme apontaremos na discusso a seguir.

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    A crise individual e social, objetiva e subjetiva

    A crise um fenmeno complexo, composto por dimenses interconectadas que interagem, com influncias mtuas, produzindo vetores, foras, oposies e antagonismos que convivem entre si e formam um todo que maior e revela uma complexidade que no pode ser vislumbrada pelo simples somatrio das partes (MORIN, 1999; MORIN, 2007).

    H na crise uma alterao aguda do funcionamento psquico em um indivduo, porm, ocorrida no contexto de sua rede social. Ela produzida em rede e perturba ou modifica o relacionamento do indivduo com essa rede (DELLACQUA, MEZZINA, 2005; BRIDGETT, POLAK, 2003). Desse modo, h ruptura social e demandas sociais, assim como aspectos bastante objetivos. H, tambm, subjetividade e sujeito na crise (DREYZIN, LICHTENSTEIN, 1990; LEGUIL, 1990). Esse sujeito toma posio, a despeito de ser concebido, como pessoa que vivencia a crise, como aquele que rompeu os contratos e as regras sociais.

    Assim, diante da crise, no vamos ignorar que haja urgncia, pressa, elementos objetivos que nos apontam a necessidade de que h coisas a fazer. Porm, a nossa estratgia principal criar as condies de possibilidade para que a fala, a palavra, as histrias, os sentidos possam destacar o sujeito da crise (LEGUIL, 1990). Nossa ttica deve deixar espao para que as diversas perspectivas da crise possam emergir, tornando-se ingredientes de remodelagem, ressignificao e superao da crise. Conseguir identificar qual a emoo ou afeto est latente na situao de crise uma importante ferramenta para um manejo adequado.

    A configurao da demanda e a urgncia

    A discusso sobre a gravidade e o grau de urgncia, na teoria geral da urgncia, avanou bastante nos ltimos anos, e se tornou mais complexa e ampla (BRASIL, 2006; JIMNEZ, 2006). Mas, regra geral, a vertente objetiva da demanda continua se embasando apenas nesses critrios.

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    No campo da sade mental, os aspectos objetivos esto presentes, mas os fatores mais importantes para determinar a gravidade e o grau de urgncia de uma crise relacionam-se insero do sujeito na sua rede social, ao grau de conflito, ameaa de ruptura e posio do sujeito diante da crise. Em regra geral, ainda predomina uma perspectiva que ressalta os aspectos objetivos da demanda e insiste em quantificar quantificar a urgncia.

    A demanda aparece, com frequncia, como demanda do outro e no da pessoa em sofrimento mental. Ela enunciada por um membro da famlia, da rede de suporte ou da relao do indivduo. Aparece tambm, s vezes, vinculada a representantes do poder, do sistema de segurana ou do jurdico, que demandam uma interveno.

    Na nossa perspectiva, fundamental abrir espao para a urgncia do sujeito, para que ele possa colocar a sua posio, e esse o diferencial da Reforma Psiquitrica: passar da urgncia segundo o social, das demandas sociais e da ordem pblica para a urgncia do singular da pessoa em crise (DREYZIN; LICHTENSTEIN, 1990; LEGUIL, 1990).

    A emergncia

    A emergncia uma propriedade das crises; no entanto, o sentido do seu emprego bastante diferente do modelo mdico. Na Teoria da Complexidade, ela nomeia o surgimento de qualidades e possibilidades novas, inusitadas, que no podem ser deduzidas e vislumbradas nos componentes isolados de objeto, sistema ou organizao (MORIN, 2007). Emergem sintomas, conflitos, eventos, sofrimentos que desestabilizam o lao social, um objeto, sistema ou organizao. Algo

    O agente que demanda, quase sempre tem pressa, urge, exige interveno imediata, da a urgncia (BRASIL, 2006).

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    de novo se agrega ao sistema de relaes existentes com potencial desestruturador, instalando uma crise, sendo que os recursos para o manejo e resoluo se afiguraram, nesse momento, como ineficazes, insuficientes ou inexistentes.

    A crise significa de fato a emergncia de um componente negativo, o qual implica, de fato, sofrimento, conflito, desorganizao ou ruptura de modos de reproduo social, de certas formas do lao social, muitas vezes insatisfatrias e frgeis.

    A crise pode representar, assim, a possibilidade de reorganizao em novas bases, novas formas e articulaes do lao social e do sujeito, tomada como travessia, como navegao, cujo desfecho impondervel. A crise pode ser, s vezes, a nica forma de superar um estado de coisas que se mostrou incapaz de responder s exigncias da vida de um sujeito e de sua rede social.

    A crise como perigo para si e para os outros

    A imputao de periculosidade e risco loucura nasceu com as primeiras formulaes da psiquiatria no sculo XIX (FOUCAULT, 2006) e acabou ganhando espao na cultura e no imaginrio social. Foi um elemento determinante do preconceito e estigma, justificando historicamente processos de excluso e segregao sofridos por pessoas em sofrimento mental. Essa concepo, relacionada periculosidade da loucura, tem sido criticada e colocada em xeque por questes ticas, polticas e cientficas nos ltimos 20 anos.

    So justamente as situaes de crise que geram ameaa ou ruptura do sujeito com sua rede, que a psiquiatria e os agentes da ordem pblica no hesitam em ressaltar que a pessoa em sofrimento mental perigosa para si e para outrem. Esse enunciado, tipicamente manicomial, autorizaria as intervenes de fora e a internao involuntria ou compulsria (DELLACQUA; MEZZINA, 2005).

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    Entretanto, a violncia que pode advir de pessoas em sofrimento mental no pode ser dissociada daquela existente nos locais e sociedades em que elas esto inseridas (LARGE, SMITH, NIELSSEN, 2009; STEADMAN et al., 1998). Uma srie de fatores externos ao campo da psiquiatria e dos transtornos mentais tambm contribui, seguramente, com um peso maior para o fenmeno da violncia e agressividade (NORKO; BARANOSKI, 2008).

    Alm disso, a literatura sobre o tema conflitante ou no sugere haver correlao direta entre transtornos mentais e a expresso de agressividade (STEADMAN et al., 1998; APPELBAUM, ROBBINS, MONAHAN, 2000; ELBOGEN, JOHNSON, 2009). Inclusive, essa correlao entre agressividade e atos violentos com a presena de delrios persecutrios, de controle e influncia (vivncia de que outrem tenta ou assume o comando da sua mente e/ou corpo), tem sido objeto de questionamento (APPELBAUM, ROBBINS, MONAHAN, 2000; TEASDALE et al., 2006).

    Paradoxalmente, observa-se, nos ltimos anos, no mbito dos estudos sobre violncia, a revelao de um alto ndice de violncia cometida contra pessoas em sofrimento mental. Alm da violncia simblica e subjetiva, elas tambm so vtimas de violncia grave e direta em uma escala maior das que possam cometer contra os outros. Uma reviso de estudos sobre essa questo mostrou que 35% dessas pessoas sofreram agresses muito graves, seja roubo, assalto, rapto, estupro e outras violncias (sexuais e fsicas). Em uma proporo menor (12 a 24%) foram elas que cometeram violncia em relao a outrem (CHOE; TEPLIN; ABRAM, 2008). Outra reviso, centrada em estudos europeus nos aponta que as pessoas com sofrimento mental grave so vtimas de violncia numa proporo, no mnimo, duas vezes maior que a populao em geral (MANIGLIO, 2009).

    A vitimizao , seguramente, um forte componente do contexto de violncia que envolve pessoas com transtornos mentais. No

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    cotidiano da nossa prtica clnica, podemos ver o surgimento, com muita frequncia, de um circuito de vitimizao ou heteroagresso: um sujeito, ao ser agredido, reage com agresso, num processo, s vezes, contnuo que se retroalimenta. Esse circuito reforado por uma variedade de fatores cuja relao com a violncia tem sido demonstrada, dentre os quais esto:

    o uso de substncias psicoativas; histria anterior de violncia sofrida ou cometida; abuso e violncia sofrida na infncia e adolescncia; fatores sciodemogrficos (sexo masculino, jovem, desvantagem

    socioeconmica e educacional); e

    fatores contextuais (como pertencer a ambientes e culturas que valorizam a violncia).

    No caso da pessoa com sofrimento mental, ainda temos ingredientes adicionais como: o estigma, o preconceito, a excluso social e econmica. O processo como um todo bastante complexo e multifatorial, obrigando-nos a superar as discusses simplistas em que uns acentuam a violncia cometida por pessoas com sofrimento mental e outros argumentam que essa imputao no passa de estigma e preconceito. A violncia associada aos transtornos mentais no pode ser dissociada da sua vulnerabilidade geral e, muito menos, da violncia social e cultural, simblica ou direta, da qual so vtimas. Vejamos, a seguir, uma representao aproximada desse processo:

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    Figura 8 Agresso e violncia: risco e vulnerabilidade no transtorno mental

    Fonte: elaborada pelo autor.

    A despeito desses novos estudos e dos questionamentos que eles nos trazem na prtica cotidiana dos servios, a pessoa com sofrimento mental aparece, de um lado, como portadora de uma sintomatologia especfica, e de outro, pode ser percebida como aquela que produziu a ruptura, que rompeu os contratos, c