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Biodiversidade no Brasil: uma abordagem antropológica sobre a domesticação de um conceito Dissertação de Graduação em Ciências Sociais - Habilitação em Antropologia Eduardo Di Deus Orientador: Henyo Trindade Barretto Filho Brasília/DF fevereiro de 2005

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

Biodiversidade no Brasil: uma abordagem antropolgica sobre a domesticao de um conceito

Eduardo Di Deus Orientador: Henyo Trindade Barretto Filho

Braslia/DF fevereiro de 2005

AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Barbara Anglica Guimares e Carlos Edegard de Deus, pelo exemplo, inspirao e total apoio. Minha curiosidade pelos meios ambientes em parte explicada por suas trajetrias. A Henyo Trindade Barretto Filho, professor e orientador dedicado, sempre pronto a dialogar virtual ou presencialmente sobre as diversidades e adversidades. Aos entrevistados, que dedicaram parte de seu precioso tempo para responder minhas questes. Aos Professores Paul Little, Mariza Veloso, Ana Carolina Pareschi e Gustavo Lins Ribeiro, que em suas aulas e/ou em conversas me ajudaram a ter mais clareza a respeito do objeto desta pesquisa. Aos colegas da Coordenadoria de Agroextrativismo, rgo vinculado Secretaria de Coordenao da Amaznia do Ministrio do Meio Ambiente no qual estagiei, no incio desta pesquisa. Julgo ter sido esta experincia de grande importncia para este projeto de pesquisa e para meu crescimento. Aos colegas e tutores do Programa de Educao Tutorial em Sociologia da UnB PET/SOL, pela companhia ao longo de quase toda a graduao em Cincias Sociais. Aos colegas do Projeto de Revitalizao do Ribeiro Santa Maria, a quem devo momentos de aprendizado na prtica de educao ambiental, ocorridos paralelamente ao encerramento desta pesquisa. A Carol, Luanda e Carlinhos, irmos queridos. Aos amigos do Lesto!, pelo projeto em comum, que proporcionou at mesmo minha ida a um congresso em Curitiba sobre Unidades de Conservao. Por fim, mas no menos importante, aos amigos Illimani, Bruno, Pedro Henrique, Marina e Guigui, Felipe, Alexandre, Erica, Joo Daniel, Gabriel, Marianna, Fernanda e tantos outros, que com os olhares distintos lanados aos meus devaneios sobre o tema pesquisado, ou simplesmente pela amizade, me deram fora no caminho.

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NDICE Introduo .......................................................................................................................... 4Para pensar biodiversidade no Brasil ...................................................................... 5 Percurso do trabalho e consideraes metodolgicas ............................................. 8

Captulo 1: Uma palavra, uma nova idia no ambientalismo ............................ 161.1. A criao da biodiversidade e da Biologia da Conservao ............................... 17 1.2. Convenciona-se .................................................................................................... 251.3. O termo no/do pas ............................................................................................... 33

Captulo 2: Vozes no debate sobre biodiversidade no Brasil ............................. 412.1. (In)definies ........................................................................................................ 42 2.2. Vozes governamentais e no ................................................................................ 51 2.2.1. As trajetrias ............................................................................................ 57 2.3. Vozes Dissonantes ................................................................................................ 60 2.4. A poltica, as cincias .......................................................................................... 63

Captulo 3: Biodiversidade, tesouro do Brasil ..................................................... 683.1. Identidade Nacional e a emergncia de um ambientalismo poltico no Brasil... 69 3.2. Afinal, por que conservar a biodiversidade? ...................................................... 75

Questes Finais ....................................................................................................... 82 Bibliografia ............................................................................................................. 83

Anexos ..................................................................................................................... 86

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Est se vendo, portanto, que para o melhor ou para opior a biodiversidade , antes de tudo, uma questo brasileira. Laymert Garcia dos Santos (1994)

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IntroduoSetembro de 1986, Washington. Realiza-se o ao Frum Nacional sobre BioDiversidade. Na ocasio um grupo de cientistas, mobilizando os mdia-panoramas1 globais, tenta chamar a ateno de um pblico ampliado para o tema da biodiversidade e sua perda. Maio de 1992, Nairbi. O Comit Intergovernamental criado no mbito do PNUMA (Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente) bate o martelo a respeito da verso final do texto da Conveno sobre Diversidade Biolgica. Junho de 1992, Rio de Janeiro. A Conveno aberta assinatura dos pases durante a realizao da CNUMAD (Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), a tambm chamada Rio-92. Dezembro de 1994. Criado, no mbito do Ministrio do Meio Ambiente, o Programa Nacional da Diversidade Biolgica - PRONABIO, como parte dos compromissos assumidos pelo Brasil ao assinar a CDB. Junho de 1996. Criado o Projeto de Conservao e Utilizao Sustentvel da Diversidade Biolgica Brasileira PROBIO, como resultado de um acordo multilateral entre o Governo Brasileiro, o GEF (Global Environmental Facility) e o BIRD (Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento). Agosto de 2002, Braslia. So lanadas as diretrizes da Poltica Nacional de Biodiversidade. Novembro de 2003, Braslia. Durante a 1 Conferncia Nacional do Meio Ambiente, o termo biodiversidade d nome a um dos grupos de trabalho (Biodiversidade e Espaos Territoriais Protegidos). Dezembro de 2003. Este pesquisador tem acesso a um calendrio intitulado Calendrio da Biodiversidade: o Tesouro do Brasil, organizado e distribudo pela OAB, a partir de um trabalho de educao ambiental realizado em escolas de primeiro grau, composto por versos e desenhos de alunos entre 5 e 13 anos.

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Para a noo de panormas, ver Appadurai (1994).

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Para pensar biodiversidade no BrasilOs acontecimentos listados acima so pequena parte de um intenso processo pelo qual o conceito de biodiversidade emerge de um contexto poltico-cientfico e se torna uma questo mundo afora. para este processo que estaremos atentos no presente trabalho. Trs questes, em especial, contriburam para que um projeto de pesquisa se desenvolvesse em torno de um conceito. Em primeiro lugar, a ampliao da fora deste conceito como idia-chave e a popularizao de seu uso em distintas formaes discursivas. Em segundo lugar, a curiosidade em torno de sua emergncia como idia-chave no ambientalismo brasileiro. Por ltimo, a inteno de investigar os entendimentos que distintos agentes tm do mesmo. A primeira questo desempenhou um papel importante na deciso de levar adiante este projeto de estudos, na medida em que o conceito se transforma em uma questo poltica de importncia para distintos grupos sociais. Interessou-me, em especial, a centralidade nas discusses ambientais alcanada por um termo relativamente recente, cunhado no contexto da ao de bilogos conservacionistas norte-americanos na dcada de 1980 (Takacs 1996). Como se apreende pela breve e incompleta srie de acontecimentos listados no incio desta introduo, esta histria marcada pela ampliao, tanto no nmero de agentes que incorporam esta palavra em seu lxico, quanto da fora poltica do termo. Exemplar do que se diz a sua insero na engenharia institucional do Ministrio do Meio Ambiente ao longo dos ltimos anos. Atualmente, uma das cinco secretarias deste ministrio e uma das mais importantes a Secretaria de Biodiversidade e Florestas, que incorpora, entre seus distintos programas, agendas diversas como reas protegidas, poltica florestal e recursos genticos, de maneira muito distinta do que se verificava na estruturao encontrada em meados da dcada de 1990. Nesta poca, a Coordenadoria Geral de Diversidade Biolgica era um setor da ento existente Secretaria de Coordenao dos Assuntos do Meio Ambiente. Ela passa de mera designao de uma agenda especfica neste ministrio, para rea temtica, idia guarda-chuva que incorpora distintas temticas especficas. A mesma tendncia a agrupar temticas diversas se verificou na Conferncia Nacional do Meio Ambiente, quando um dos Grupos de discusso recebeu o nome de Biodiversidade e Espaos Territoriais Protegidos, incluindo em seu bojo discusses 5

muito distintas como: sustentabilidade, unidades de conservao, participao de comunidades locais, patrimnio gentico e organismos geneticamente modificados (OGMs), zoneamento ecolgico-econmico, entre outras. O termo ganha fora, alm disso, para alm das fronteiras da estrutura institucional governamental, como se pode inferir pelo seu uso como tema de um calendrio, construdo como parte de atividades de educao ambiental e destinado principalmente s crianas. A aluna Celina Andrade Botelho, com idade entre 11 e 13 anos, da cidade mineira de Pedro Leopoldo, escreveu os seguintes versos que foram escolhidos para integrar este calendrio:Entre as cores, as formas e a variedade, surge da flora e da fauna a realidade. Na mais bela harmonia, a Biodiversidade!

Propus-me, desta forma, a buscar meios de explorar os intricados processos sociopolticos e tecno-cientficos que perpassam o fenmeno de popularizao e fortalecimento desta idia-chave. Alm disso, como revela a segunda questo, optei por direcionar a ateno realidade brasileira, com nfase na emergncia do conceito no cenrio aqui denominado ambientalismo brasileiro, entendido para alm de apenas o movimento ambientalista2 stricto sensu, incluindo uma trama de relaes que abarca outras esferas da sociedade civil, como o movimento indgena, segmentos empresariais que dialogam com as discusses ambientais e os aparatos governamentais dedicados (direta ou indiretamente) formulao e gesto de polticas pblicas para o meio ambiente. O tratamento da emergncia deste conceito neste contexto se inspira tambm na tentativa de entender a sua domesticao neste pas, empreendimento realizado para o mesmo conceito no caso africano (Guyer &2

Eduardo Viola (1992) enxerga no Brasil entre 1987 e 1991 a fase recente do ambientalismo brasileiro tendo em vista a data de publicao de seu artigo um processo de institucionalizao e profissionalizao de um incipiente e amador movimento ambientalista, que passa a dialogar com o que ele chama de movimentos sociais, dando origem a um socioambientalismo, que abarcaria movimentos que alm de demandas sociais, incorporariam a dimenso ambiental em suas plataformas de luta, como o movimento dos seringueiros da Amaznia, por exemplo. Prefiro aqui utilizar o termo ambientalismo em um sentido mais abrangente, incorporando em seu entendimento tanto o que este autor considera movimentos ambientalistas quanto os socioambientalistas. Alm disso, este termo pode ser utilizado no somente para por em questo os movimentos sociais/ambientalistas, mas tambm outras esferas em que a questo ambiental tematizada, como o pensamento poltico de membros do poder pblico, parlamentares e segmentos empresariais. Trata-se de uma ampliao no entendimento do termo semelhante mas no coincidente ao que foi realizado por Viola & Leis em dois outros textos (1995a; 1995b) ao proporem a passagem de um ambientalismo bissetorial a um ambientalismo multissetorial, em referncia surgimento de outros setores cinco setores no primeiro texto (1995a) e oito no segundo (1995b).

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Richards 1996: 9). Quando falo em domesticao me refiro s interpretaes e resignificaes que o conceito sofre ao ser apropriado em distintos debates neste pas. Tratase de um aspecto que ganhou importncia na investigao, na medida em que a anlise dos processos de emergncia deste conceito no ambientalismo brasileiro nos remeteu a consideraes a respeito de determinadas tendncias de se tematizar o mundo natural ao longo da histria do pas. A terceira questo no menos importante para os objetivos do trabalho. Percorrer e explorar os distintos entendimentos que o conceito poderia apresentar nos discursos de distintos agentes sociais constituiu uma das principais tarefas do presente trabalho. A maneira pela qual foi enfrentada esta tarefa, no entanto, se alterou significativamente ao longo do percurso do mesmo. Na prxima seo explorarei este ponto. Por ora, gostaria de sugerir que o conceito de biodiversidade gerado no mbito da cincia moderna e se configura como exemplo do hibridismo (Latour 1994) entre o cientfico e o poltico, o que enreda/encerra uma arena de negociaes e tenses permanentes no somente em relao definio mesma de biodiversidade mas, principalmente, em relao definio do agir nesta arena de polticas pblicas e de uma sociedade civil que se engendram e se re-significam em torno desta idia. Sero exploradas sobretudo no segundo captulo as tenses entre as distintas vozes que emergem nos debates sobre a biodiversidade no Brasil. Alm disso, o trabalho discutir a possibilidade de se falar em apreenses particulares do conceito no Brasil, a partir da constatao de continuidades/recorrncias entre as primeiras manifestaes de um ambientalismo poltico no Brasil entre os sculos XVIII e XIX (Pdua 2002) e a configurao do campo da biodiversidade atualmente, como manifestaes polticas marginais em projetos de modernizao/desenvolvimento do pas. A maneira pela qual se desenvolve a crtica ambiental naquele perodo indicaria tendncias no campo poltico brasileiro para a aceitao de discursos em relao ao meio natural, tendncias que se verificam no processo de emergncia da idia de biodiversidade no ambientalismo brasileiro.

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Percurso do trabalho e consideraes metodolgicas."A biosfera no menos antropolgica do que a natureza ou o territrio dos ancestrais" Bruno Latour Responder ao seu singelo questionrio seria escrever sua dissertao! Carlos Joly, em resposta solicitao de preenchimento de questionrio eletrnico em 06/08/2004.

A investigao a respeito da emergncia do conceito de biodiversidade no ambientalismo brasileiro foi direcionada, inicialmente, aos setores e atores do governo brasileiro dedicados direta ou indiretamente formulao e/ou gesto de polticas para a biodiversidade. Ao privilegiar-se este grupo na anlise, pretendia-se investigar os processos scio-histricos que levaram este conceito condio de objeto legtimo de polticas pblicas. Inspirava-nos a idia de governamentalidade, proposta por Michel Foucault:Com esta palavra quero dizer trs coisas: 1- o conjunto constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticas que permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por forma principal de saber a economia poltica e por instrumentos tcnicos essenciais os dispositivos de segurana. 2- a tendncia que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, preeminncia deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros soberania, disciplina, etc e levou ao desenvolvimento de uma srie de aparelhos especficos de governo e de um conjunto de saberes. 3- o resultado do processo atravs do qual o Estado de justia da Idade Mdia, que se tornou nos sculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (1979: 291)

A emergncia de um conjunto de instituies dedicadas gesto do meio ambiente ou dos recursos naturais parte dos desenvolvimentos recentes da construo de uma governamentalidade no Brasil. No obstante a criao da SEMA tenha se processado ainda na dcada de 19703, verifica-se um crescimento na institucionalizao da temtica ambiental no Brasil sobretudo a partir da dcada de 1980. No incio desta dcada,Secretaria Especial de Meio Ambiente. Guimares (1991) analisa a criao desta agncia ambiental especializada em 1973, no mbito do ento Ministrio do Interior, em parte como resultado do cenrio poltico internacional. Um ano antes, realizou-se a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, evento que teria estimulado no s a criao da SEMA, mas de agncias similares em diversos pases. O autor tambm mapeia a criao, nesta conferncia, do PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente, pondo fim a uma disputa entre outras agncias do sistema ONU em torno da gesto de temticas ambientais na poltica internacional. Pode-se considerar a sua criao como um marco para o tratamento do meio ambiente como um tema relativamente autnomo.3

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a Poltica Nacional do Meio Ambiente instituda pela Lei n 6.938, de 31 de agosto de 1981, que cria o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), o primeiro um conselho criado como referncia para a regulao ambiental e o segundo, um sistema integrado de rgos de diversos nveis da administrao pblica. Guimares (1991), no entanto, considera que os avanos seriam maiores no papel, indicando a carncia de implementao das legislaes ambientais que se estabeleciam. A mobilizao poltica em torno da construo da constituio de 1988 foi um momento importante na transformao do meio ambiente em uma questo do grande pblico, tendncia consolidada no contexto preparatrio para a CNUMAD (Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ou RIO-92), realizada em 1992 no Rio de Janeiro, outro marco importante deste processo. Este evento potencializa e d visibilidade ao de um crescente movimento (socio)ambientalista, o que consolida a temtica ambiental como uma preocupao legtima na opinio pblica. Em 1989, surge o IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis4. As condies para a transformao do meio ambiente em tema de uma pasta ministerial j se verificam, neste contexto, e em outubro de 1992 criado o Ministrio do Meio Ambiente. A incorporao da biodiversidade como uma idia-chave nesta governamentalidade em construo est diretamente vinculada assinatura da Conveno sobre Diversidade Biolgica, durante Rio-92, que criou uma srie de compromissos a serem cumpridos pelos governos signatrios na criao de um aparato burocrtico dedicado a este tema. Interessou-me, sobretudo, tentar compreender as alteraes na mentalidade governamental brasileira que tal idia e os novos aparatos administrativos que em torno dela se construam trazia. Como se verificou no caso da negociao desta Conveno, um elemento importante para a transformao da biodiversidade em objeto legtimo de polticas pblicas a mediao, nas palavras de Foucault, de um saber de um tipo especfico neste caso. Um saber que emana das cincias naturais, em especial da Ecologia e da emergente

A Lei n 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, cria o IBAMA por meio da integrao de quatro rgos ento existentes: Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), Superintendncia do Desenvolvimento da Borracha (SUDHEVEA), Superintendncia do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF).

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Biologia da Conservao. O papel das cincias na construo desta governamentalidade no poderia ser negligenciado. Outro ponto importante na construo do objeto de pesquisa seria a proposio de um campo da biodiversidade, em uma tentativa de aplicao da noo de campo, assim formulada por Bourdieu:Os campos se apresentam apreenso sincrnica como espaos estruturados de posies (ou de postos) cujas propriedades dependem das caractersticas de seus ocupantes (em parte determinadas por eles). [...] Um campo se define entre outras coisas atravs da definio dos objetos de disputa e dos interesses especficos a ele [campo]. Para que um campo funcione, preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas etc. (1983: 89).

A idia era mobilizar este arcabouo conceitual para pensar a insero dos atores sociais vinculados a este setor da burocracia como detentores de uma posio privilegiada na estrutura do campo da biodiversidade. Os principais objetos de disputa deste campo girariam em torno da definio de biodiversidade e das estratgias para sua conservao. Este campo seria, desta forma, composto por uma srie de atores e instituies: os j citados agentes formuladores e executores de polticas pblicas para a biodiversidade neste pas, inseridos em diversos mbitos dos governos federal, estadual e municipal; organizaes no-governamentais conservacionistas; o movimento indgena e dos chamados povos tradicionais; cientistas naturais (principalmente bilogos, engenheiros florestais, agrnomos); cientistas humanos (economistas, antroplogos, socilogos, cientistas polticos, entre outros) e empresrios atentos s possibilidades que a explorao das biotecnologias lhes abre. Ressalto que esta caracterizao do campo foi construda de maneira a funcionar como instrumento analtico, longe de representar um retrato fiel das disputas que se processam. As primeiras incurses de pesquisa, no entanto, levaram a uma reviso tanto da utilizao do conceito de campo que se fazia, quanto do recorte mesmo da pesquisa. A constatao da existncia de uma porosidade de fronteiras entre as distintas posies no campo da biodiversidade brasileira que propus de incio fez-me repensar, por um lado, a adequao da opo terica do uso da noo de campo, como a prope Bourdieu, para se pensar as relaes sociais em questo e, por outro lado, a opo metodolgica de concentrar os esforos de pesquisa numa das posies do campo, a governamental. 10

O elemento chave que motivou essa reviso a posio do grupo que denominamos de cientistas, divididos em naturais e humanos, devido aos distintos posicionamentos que estas diferentes formaes tendem a conduzir. Refiro-me a profissionais que possuem vnculos com uma determinada instituio de ensino superior. Esta condio, no entanto, no pode ocultar a existncia de agentes vinculados, alm de a universidades, a organizaes no-governamentais, ou mesmo ao aparato governamental. A formao cientfica principalmente nas cincias naturais tida praticamente como pr-requisito para a atuao nas esferas governamental e no-governamental, diria at como constituinte do capital simblico necessrio para ocupar estas posies, nesta construo que se faz do campo da biodiversidade. o prprio Bourdieu (1990) quem fornece os subsdios para se pensar a aplicao que fiz de seu conceito, ao propor que se encare a pesquisa em cincias sociais como composta de dois momentos, o objetivista e o subjetivista, que se encontrariam em relao dialtica. Num primeiro momento, objetivista, realiza-se uma anlise de posies relativas numa dada estrutura, promovendo uma ruptura com as pr-noes existentes, de maneira a construir as relaes objetivas entre as posies existentes na estrutura em questo. No segundo momento, subjetivista, d-se uma ruptura desta vez com o objetivismo traado acima, inserindo as percepes dos agentes, as construes que eles realizam sobre a realidade social. Desta maneira, entendo que a construo da idia de um campo da biodiversidade operou como um momento objetivista da pesquisa, servindo de estenografia conceitual, na medida em que possibilitou a compreenso de distintas relaes de poder por trs das discusses em torno da biodiversidade e de distintos contextos formadores de discursos sobre a mesma. No entanto, a subseqente investigao das trajetrias individuais dos agentes o momento subjetivista, das interaes sociais foi reveladora da fluidez entre as posies do campo. comum na trajetria dos entrevistados a constante transio entre posies no governo, academia e organizaes no-governamentais, quando no duas dessas posies so ocupadas simultaneamente. No reuni, por outro lado, dados suficientes para demonstrar a autonomia relativa deste campo, um dos pressupostos desta idia de Pierre Bourdieu. Parece-me que antes de configurarem um campo autnomo, as relaes

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sociais envolvidas nos debates sobre biodiversidade so constituintes de um imbricamento entre campo poltico e campo cientfico. Outra posio no campo que havia se construdo ganhou importncia na investigao. Trata-se da crescente insero dos povos indgenas e populaes tradicionais nos debates sobre biodiversidade, chancelada pelo reconhecimento no mbito da Conveno sobre Diversidade Biolgica da importncia de seus conhecimentos tradicionais, tanto para a conservao, quanto para o uso sustentvel da mesma. No entanto, o j mencionado papel da cincia como mediadora dos debates sobre biodiversidade lembra uma situao discutida por Michel Foucault. Ao tratar da genealogia dos saberes, este autor chama a ateno para a relao desigual estabelecida entre os saberes oriundos da cincia ocidental e os saberes dominados que so desenterrados, considerando possveis relaes de subordinao estabelecidas. No poderiam ser maiores as analogias entre o seguinte trecho e as relaes entre saberes, estabelecidas no campo da biodiversidade:A genealogia seria portanto, um empreendimento para libertar da sujeio os saberes histricos, isto , torna-los capazes de oposio e de luta contra a coero de um discurso terico, unitrio, formal e cientfico. [...] A partir do momento em que se extraem fragmentos de genealogia e se coloca em circulao estes elementos de saber que se procurou desenterrar, no correm eles o risco de serem recodificados, recolonizados pelo discurso unitrio que, depois de t-los desqualificado e ignorado quando apareceram, esto agora prontos a anexa-los ao seu prprio discurso e a seus efeitos de saber e de poder? (op. cit.: 172-173)

A tentativa de, por um lado, abordar estas relaes entre estes saberes dominados e os cientficos, que se verificam nos debates sobre a biodiversidade, e, por outro lado, ultrapassar a limitao descrita acima, que impunha a construo do campo da biodiversidade e a circunscrio da anlise a uma das posies neste campo, optei por redefinir o objeto de estudo e o grupo de atores sociais a serem investigados. Percebi que seria mais frutfero para a compreenso do processo de emergncia da idia de biodiversidade no ambientalismo brasileiro e da domesticao da mesma neste contexto (Guyer & Richards 1996), em vez de pensar em um campo e analisar detidamente uma das posies no mesmo, passar a uma considerao de distintas formaes discursivas presentes nos debates polticos acerca da biodiversidade. Migra-se para uma considerao, nas palavras de Marcus (1991), de perspectiva enquanto voz, como maneira de dar vazo a uma montagem da polifonia que se verifica nos debates sobre 12

biodiversidade. A construo do objeto de pesquisa se insere, desta forma, no que o mesmo autor nomeia, em outro texto (1998), de um imaginrio de pesquisa multi-localizado, no qual o fenmeno a ser tratado no pode ser encontrado em uma comunidade espacialmente delimitada.

Fontes Isto posto, como ento proceder para seguir este conceito? Como pesquisar, a partir de referncias disponveis nas Cincias Sociais, a emergncia do mesmo nesse contexto poltico amplo? Aps um primeiro momento em que foi realizado o levantamento de bibliografia pertinente ao tema de pesquisa, assim como de documentos oficiais correlatos, as primeiras entrevistas com base em um questionrio semi-estruturado foram realizadas com agentes que estariam na posio governamental da construo feita do campo da biodiversidade, os formuladores/gestores de polticas pblicas para a biodiversidade, com formao em cincias naturais (biolgicas) e, alguns casos, atuao em instituies de ensino superior. No entanto, acompanhando a ampliao do recorte analtico acima exposta, foram includos na lista de entrevistados agentes situados para alm da estrutura governamental dedicada biodiversidade uma liderana indgena e representantes de ONGs e da academia5. Alm da realizao de entrevistas, constru um questionrio a ser enviado por correio eletrnico a agentes envolvidos com a temtica da biodiversidade que, por razo de tempo ou mesmo de distncia geogrfica, no conseguiria entrevistar pessoalmente. Esta etapa da pesquisa no foi exitosa no recebimento de respostas6, mas revelou aspectos significativos. A resposta de Carlos Joly, da Unicamp, que serve de epgrafe para esta seo, revela um aspecto que ser explorado no segundo captulo, quando da discusso da definio de biodiversidade. Ao dizer que, respondendo ao questionrio, o entrevistado estaria, na verdade, escrevendo minha dissertao, revelada a desconsiderao/deslegitimao de projetos de pesquisa que venham justamente a colocar em questo os distintos entendimentos construdos a respeito do tema. Outra fonte de dados importante para a pesquisa foi a participao em distintos eventos nos quais o debate a respeito da biodiversidade deu. A lista disponvel em anexo5 6

Ver quadro de entrevistas em anexo ao trabalho, disposto em ordem cronolgica. Ver quadro de pessoas que receberam o questionrio e o prprio questinrio em anexo. interessante notar que foi obtido apenas um preenchimento do questinrio.

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exemplifica a opo que se fez por circular em eventos muito distintos, de maneira a compreender a dinmica do conceito que, pela abrangncia mesma que caracterstica e resultado de sua construo, tende a ser alado, como veremos, a tema de diversas agendas polticas no ambientalismo brasileiro.

Situo-me Considero importante neste momento tentar, ainda que superficialmente, pensar meu lugar de fala, tentar expor ao leitor as condies nas quais a pesquisa se realizou. Seria possvel elencar como fato significativo um perodo de quase dois anos de residncia no estado do Acre imediatamente anterior ao incio do curso de Cincias Sociais: 1999 e 2000, perodo em que l residi, foram os dois primeiros anos de mandato do Governo da Floresta, governo petista que assumiu o poder estadual e inseriu o desenvolvimento sustentvel como plataforma poltica e objetivo de governo, num estado que indicado como detentor de um alto grau de endemismos de espcies sobretudo na regio do Vale do Rio Juru com uma cobertura florestal que ocupa cerca de 90% de sua rea total . A exposio a que fui submetido neste perodo, sobretudo por relaes familiares com um membro deste governo, foi fundamental, sem dvida, para o despertar para as questes ambientais como possveis objetos de investigaes antropolgicas, e para a posterior curiosidade acerca da biodiversidade, uma questo premente nesta regio, como objeto desta pesquisa. No primeiro captulo ser discutido o papel da regio amaznica e, de maneira mais ampliada, do que se considera o domnio neotropical para a criao mesma do conceito. Alm disso, encontrava-me no incio da pesquisa estagiando no Ministrio do Meio Ambiente, em um setor especfico do mesmo: a Coordenadoria de Agroextrativismo, ento localizada na Secretaria de Coordenao da Amaznia. Tratava-se de uma das poucas instncias nas quais as comunidades agroextrativistas no jargo prprio do rgo e os povos indgenas da Amaznia tinham insero naquele Ministrio7. Esta experincia, assim julgo, influenciou o percurso da pesquisa acima descrito.

H uma tendncia neste Ministrio de incorporao da participao deste povos ao menos no plano retrico seja nos rgos colegiados, seja na criao de programas substantivos a eles direcionados e no somente aes apndices a estratgias polticas mais importantes. Um exemplo do que se diz o processo de negociao de um Programa de Conservao e Uso Sustentvel da Biodiversidade em Terras Indgenas, a ser

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O texto A dissertao est dividida em trs captulos. No primeiro deles resenho argumentos acerca da construo do conceito, aps o que sero considerados alguns aspectos do processo que levou assinatura da Conveno sobre Diversidade Biolgica. Tambm haver espao para uma discusso a respeito do momento da emergncia desta idia no ambientalismo brasileiro e, por fim, uma discusso a respeito das definies do conceito. O segundo captulo focalizar a tenso presente no campo da biodiversidade no Brasil, iniciando pela problemtica da definio do conceito de biodiversidade. Busco caracterizar as vozes presentes no debate, com suas nfases discursivas e respectivas justificativas para a conservao. Ao final, emergem as vozes cientficas como transversais. Neste e no captulo seguinte sero privilegiadas as entrevistas realizadas como fonte para a construo da argumentao. No terceiro captulo, o foco estar na domesticao do conceito no ambientalismo brasileiro, a partir de uma discusso sobre as relaes entre biodiversidade e identidade nacional.

estabelecido com recursos do Global Environmental Facility GEF, que vem sendo realizado no mbito da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do MMA. Pude acompanhar uma reunio (ver lista de eventos em anexo), organizada por organizaes indgenas com o apoio da The Nature Conservancy TNC, em que lideranas indgenas convidaram representantes do Governo Federal, de organismos internacionais (PNUD e Banco Mundial) para reforar o interesse no referido Programa e buscar tanto acelerar seu processo de estabelecimento, quanto ter um controle da definio de seu formato.

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Captulo 1: Uma palavra, uma nova idia no ambientalismo

Pensar o surgimento de uma palavra. No uma palavra qualquer. Aquela que, como um conceito cientfico, inventado por bilogos, construdo como idia-chave em distintos contextos scio-polticos e se torna uma questo. Eis a tarefa aqui proposta, sem a ambio de esgot-la, tendo conscincia de que a enfrentaremos com vistas a anlise que se far adiante, sobre a sua emergncia e configurao no ambientalismo brasileiro1. Se fssemos pensar de maneira ampliada, reconstruir o surgimento de conceitos a respeito da diversidade da vida, mesmo que se leve em conta [apenas] o desenvolvimento das cincias ocidentais, constituiria empreendimento intelectual demasiado rduo que, dependendo do horizonte temporal considerado, arriscar-se-ia a gerar interpretaes anacrnicas. Existe um argumento em histria da biologia que vincula ao perodo do Renascimento europeu perodo da expanso martima, do estabelecimento das primeiras colnias ultramarinas e da ampliao da biota conhecida neste continente um processo de descoberta da diversidade (Mayr 1998), com repercusses para desenvolvimentos posteriores das cincias da vida. Para alm disso, em sua proposta de fazer uma histria da biologia por meio de seus problemas centrais atuais e de seus conceitos, Mayr vai buscar at mesmo em Aristteles consideraes a respeito da diversidade de formas de vida. Paralelamente, existe em histria ambiental uma linha interpretativa que enxerga no processo scio-histrico relacionado expanso martima europia um marco fundamental para o entendimento das modernas sensibilidades conservacionistas, estabelecendo vnculos, inclusive, entre sistemas de saberes nativos em especial indianos e o desenvolvimento das cincias europias e, conseqentemente, das referidas sensibilidades (Grove 1996). O surgimento da idia de biodiversidade, no entanto, pode ser entendido como um processo mais recente. Seria possvel buscar no sculo XIX as razes dos debates que culminariam na emergncia da idia de biodiversidade, seja na histria da Ecologia, seja na configurao de pensamentos polticos a respeito dos recursos naturais em distintos pases. Foge do escopo do presente trabalho um esforo de reconstruo histrica como este,1

Como definido na introduo do trabalho.

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apesar de haver espao, no terceiro captulo, para uma discusso luz de estudos de histria ambiental (Pdua 2002; Grove 1996) sobre a possvel contribuio das manifestaes primeiras de um ambientalismo poltico no Brasil do sculo XIX para a configurao internacional do ambientalismo e para o surgimento da idia de biodiversidade.

1.1. A criao da biodiversidade e da Biologia da Conservao.Scientists who love the natural world forged the term biodiversity as a weapon to be wield in these battles David Takacs Na verdade, foi o desmatamento tropical que forjou o prprio conceito de biodiversidade e engendrou uma nova questo Laymert Garcia dos Santos

Nesta primeira seo pretendo lanar um olhar crtico e ao mesmo tempo conciliatrio para dois argumentos supostamente divergentes: por um lado, a interpretao de Takacs (1996) a respeito do processo de emergncia do termo biodiversidade, que enfatiza uma tendncia desenvolvida no pensamento e na ao poltica de bilogos norte-americanos e europeus como fator explicativo central e, por outro lado, a perspectiva de Santos, que entende a emergncia do conceito de biodiversidade como uma resposta no debate ecolgico global (1994: 168) ao avano do desmatamento nas florestas tropicais, sobretudo na floresta amaznica. Enquanto Takacs se refere ao surgimento desta idia intimamente relacionada consolidao de uma disciplina acadmica a Biologia da Conservao e de como aquela se configura nos discursos atuais dos representantes, sobretudo norte-americanos, desta disciplina emergente, Santos dirige sua anlise para a questo que emerge em torno deste conceito, pensando em dinmicas polticas que afetam principalmente o Brasil e a poltica ambiental neste. Uma ressalva, no entanto precisa ser feita. Como se trata de uma reviso de perspectivas interpretativas a respeito da construo de um conceito e de um campo disciplinar pretendo aqui me aproximar da premissa latouriana de se tratar simetricamente contexto de 17

produo e contedo cientficos (Latour & Woolgar 1997: 20). Procuro fazer isto na tentativa de articular a interessante anlise de Takacs que busca entender a mudana nos conceitos e problemas centrais dos eclogos ao longo do sculo XX (contedo), sem perder de vista o contexto poltico em que se inseriam e que influenciaria no prprio contedo com as proposies de Santos que, mesmo no analisando com a mesma nfase do primeiro autor a dimenso do contedo, nos chama a ateno para a necessidade de se ampliar o contexto a partir do qual se entende a produo do conceito. Takacs busca, num perodo em que o termo ainda no existia, as razes histricas tanto da idia de biodiversidade, quanto da disciplina da Biologia da Conservao. Prope a existncia de uma tendncia entre eclogos, no decorrer do sculo XX, de encampar uma luta poltica para enfrentar a crise de extines de espcies2, percebida como crescente. Esta crise ecolgica que se constatava era interpretada como resultado de uma crise tica, que s poderia ser resolvida a partir de um empenho por parte dos eclogos em disseminar os fatos, assim como os valores de sua cincia para um pblico mais amplo. No caminho desta verdadeira empreitada de convencimento, viria tona o que o autor denomina de dilema da conservao (conservation dilemma), que consistiria num conjunto de tensions between seemingly antithetical ways of valuing, and thus arguing for, nature (ibid: 10), referindo-se variao entre dois plos de valores atribudos ao mundo natural: os estticos, emocionais e espirituais, por um lado, e os seus valores econmicos e utilitrios, por outro3. Com maior ou menor nfase, estes dois plos de valores estaro presentes na contribuio de quatro cientistas Aldo Leopold, Charles Elton, Rachel

Charles Darwin, em A Origem das Espcies, percebia a extino de espcies como um processo natural e at mesmo necessrio. No teria formulado pensamento consistente a respeito de extines causadas pela ao antrpica como uma ameaa evoluo, hoje maior justificativa para a conservao da biodiversidade, sobretudo por meio do estabelecimento de unidades de conservao (UCs), nas quais a evoluo supostamente poderia seguir seu curso natural. Antes dele, no entanto, Lamarck tinha outra viso a respeito do processo de extino de espcies: elas somente ocorreriam por ao humana. Explicava a variedade da vida a partir de um mecanismo de afastamento de uma essncia das espcies causado pelo meio, que daria origem s mltiplas formas de vida. Extines, no entanto, seriam causadas pela ao humana que poderia, inclusive, atravs do hibridismo, criar, novas espcies. Essa nota, em certa medida redutora por sua pressa, posta apenas para chamar ateno para o fato de que a percepo de uma crise de extines de espcies um construto que se firma ao longo da histria da biologia e tambm para a novidade que trazida pela oposio entre extines naturais e aquelas causadas pela ao humana. As ltimas seriam o maior alvo da ao dos eclogos ao empreenderem verdadeiras cruzadas, como veremos, para alm das fronteiras ento postas para suas disciplinas. 3 Sobre este aspecto, conferir a anlise de McCormick (1992), a respeito da oposio entre as tradies do preservacionismo e do conservacionismo no ambientalismo de pases do Norte.

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Carson e David Ehrenfeld que, ao longo do sculo XX, so exemplares do empenho de se colocar a ecologia e a biologia a servio da mudana nos valores da sociedade mais ampla. O primeiro deles, o norte-americano Aldo Leopold (1887-1948), abriu caminho para o esforo de construo de uma nova tica a partir dos conhecimentos da biologia. Antecipou, segundo Takacs (ibid: 12-13), consideraes a respeito dos servios ecossistmicos, base para o argumento da ignorncia, recorrente, segundo Takacs, no conceito de biodiversidade. Esse argumento, na verso de Leopold, consiste na defesa do valor no apenas das espcies isoladas, mas de um land mechanism, do conjunto de espcies, mesmo aquelas que no tm aparentemente nenhuma importncia ou utilidade para a humanidade, pois haveria um potencial de descoberta de valor tanto das espcies individuais, quanto dos benefcios da manuteno de suas inter-relaes. Uma fonte importante para a tica ambiental que se propunha era a biologia evolutiva. A evoluo na leitura da poca, atualmente posta em questo tenderia a elaborar e diversificar a biota (Leopold apud Takacs 1996: 15). Exemplar do dilema da conservao, Leopold, ao mesmo tempo em que propunha a expanso da tica para abarcar seres no-humanos como sujeitos de direito4, tambm se baseava em argumentos pragmticos, numa obra considerada por Takacs como pluralista (op. cit.: 16). O mais importante para o argumento deste autor, assim entendo, o papel desempenhado por Aldo Leopold na ampliao das fronteiras da ecologia e do limite de ao poltica dos bilogos. justamente esta tendncia, para Takacs, que teria no conceito de biodiversidade um de seus resultados5. Assim como Leopold, o britnico Charles Elton (1900-1992) trabalhou no sentido de acionar a ecologia para transformar a atitude das pessoas em relao natureza. No obstante mobilizasse argumentos de fundo religioso relacionados ao valor intrnseco das espcies selvagens para justificar sua tica ambiental, so razes antropocntricas, por um lado estticas e intelectuais, mas tambm prticas relativas s utilidades econmicas das espcies que compem a estratgia maior de convencimento de sua tica ambiental.Sobre este aspecto, conferir Nash (1989), que discute, a partir de uma anlise da histria do movimento ambientalista nos Estados Unidos, a incorporao da natureza como sujeito do direito natural, o que consistiria na extenso mxima da tica liberal. 5 Leopold the ecologist possessed an ecological understanding of ethics, and he evolved an ethic grounded in ecological laws. Ecology led him to realize that we needed a new ethic. [...] From ecological science comes ecological conscience. Leopold extended ecological frontiers, both where ecologists could go and how far the principles and values taught by ecology would spread into the hearts, minds, and ethical codes of his fellow citizens (op. cit.: 18; nfases minhas).4

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Elton promoveu um deslocamento, presente posteriormente na idia de biodiversidade, da preocupao apenas com espcies isoladas para a variedade ecolgica (ecological variety), trabalhada como uma entidade concreta a ser conservada em um estado de estabilidade. Este seria o pressuposto de sua ao em favor da conservao6. Rachel Carson (1907-1964), a terceira autora analisada, obteve maior xito do que os anteriores na tentativa de popularizar as idias da Ecologia. Seu livro Silent Spring, lanado em 1962, tornou-se um best-seller. Nele, Carson empreende uma crtica ao uso de pesticidas, chamando a ateno para as conseqncias ecolgicas desta prtica. Um pressuposto de sua obra a autoridade do eclogo devido ao conhecimento privilegiado que possui a respeito do funcionamento dos sistemas vivos. Assim como os outros dois autores, ela entende que este conhecimento deve ser levado a um pblico mais amplo, deve influenciar a forma pela qual as pessoas vem a natureza. Neste projeto, ganha centralidade a idia de variedade natural (natural variety), uma reificao da natureza como uma entidade concreta, com uma suposta estabilidade, quantificvel e passvel de ser pensada como um commodity. Tambm apresenta o conceito de diversidade gentica (genetic diversity). Ambos os movimentos natureza como commodity e nfase no valor da diversidade gentica sinalizam uma continuidade em relao ao conservacionismo de Elton, ou seja, a proposta de se advogar pela natureza a partir de seus valores prticos, apreensveis para um pblico mais amplo, de maneira a dar suporte tarefa moral de preserv-la, mas tambm compreendem dois aspectos muito importantes para a construo da idia de biodiversidade. Para Takacs, um ponto importante a relao entre a ao poltica da qual os autores at aqui analisados so exemplares e os desenvolvimentos na biologia que levariam ao surgimento do termo biodiversidade.All science is, in part, a social construction, and the science Carson, Leopold, and Elton (and those who came after them) used to cajole their readers reflected the values of the cajolers. [...] We can see that a healthy dose of Carsons conservation values modified the scientific facts that changed the way millions of her readers viewed the world . The uses of the term biodiversity likewise cannily reflect the inextricability of biology facts and biologists values. (op. cit.: 30).Ecology provides the scientific facts and the scientific fears that will prompt others to see the desirability of his prescripitions, along wih an appealing view of nature untrammeled: a realm where beauty and stability would reign if only we would allow it. Elton the ecologist also warns of the perils that face us if we ignore his theories and prescriptions (op. cit.: 25; nfases minhas).6

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Por fim, Takacs analisa a contribuio trazida por David Ehrenfeld para estes desenvolvimentos da biologia. Durante a dcada de 1970, ajudou a promover o papel dos bilogos como advogados do mundo natural em dois livros7 nos quais tambm estimulava as pessoas a experimentarem a natureza, de maneira a se convencerem da necessidade de conserva-la. Enfatiza, desta maneira, as razes emocionais e subjetivas para a conservao da natureza, ao mesmo tempo em que empreende uma crtica das argumentaes antropocntricas para a conservao, marcando posio no chamado dilema da conservao8. J nos anos 1980, Ehrenfeld ajudou a formalizar a Biologia da Conservao. Foi o fundador e primeiro editor do peridico Conservation Biology, principal veculo de divulgao daquela, descrita pelos prprios membros como uma disciplina na falta de melhor traduo guiada por uma misso9. Trata-se de uma disciplina que se prope no somente a detectar e mensurar o fenmeno de deteriorao da Terra, mas tambm gerar solues para estes problemas. Nos trabalhos de inmeros autores neste perodo, entre eles Norman Myers e Paul e Anne Ehrlich, ampliam-se os argumentos para os distintos valores da diversidade biolgica, expresso que se incorpora nesta dcada ao jargo dos bilogos. Desta forma, mobilizam-se tanto argumentos econmicos e pragmticos, quanto aqueles baseados nos valores intrnsecos de todas as formas de vida. Takacs interpreta a emergncia, neste perodo, tanto da idia de diversidade biolgica quanto da biologia da conservao como resultados da tendncia por ele mapeadas na obra dos eclogos. Um evento em especial, ocorrido ainda em meados desta dcada, potencializaria esta idia-chave e atuaria na sua popularizao. Pode-se dizer que ele responsvel por criar a biodiversidade enquanto uma questo poltica10. Refiro-me ao Frum Nacional sobre BioDiversidade, realizado em setembro de 1986 em Washington. Takacs interpreta a realizao deste frum como um grande exemplo da tendncia por ele mapeada de militncia poltica dos bilogos em prol da conservao, que culminaria na fundao daConserving Life on Earth (1972) e The Arrogance of Humanism (1978), citados por Takacs. The Conservation Dilemma o ttulo de um dos captulos de seu livro de 1978. 9 No original, mission-oriented (op. cit.: 35) 10 The forum did go on, from 21 to 24 September 1986.[...] It was here that biologists who loved biological diversity came out of the closet. Development experts, economists, and even ethicists and theologians joined the impressive array of biologists to discuss the biodiversity crisis. They also came to create the biodiversity crisis, at least in the minds of the press, the politicos, and the public. (op. cit.: 38; nfase no original)8 7

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disciplina da Biologia da Conservao, e a utilizao do termo de biodiversidade como idia central desta militncia. Segundo o autor, neste evento que se consolida o neologismo biodiversidade (grafado na ocasio como BioDiversity), contrao do termo diversidade biolgica (biological diversty). Dois aspectos em especial chamam a ateno a respeito deste frum. Em primeiro lugar, o fato de ter sido direcionado a uma finalidade poltica explcita11, no obstante tenha sido patrocinada pela National Academy of Science (Academia Nacional de Cincias), uma august and cloistered institution (op. cit.: 36), comprometida com princpios de objetividade cientfica, e cujos objetivos principais se vinculam promoo das atividades cientficas. Em segundo lugar, o grande sucesso obtido pelos organizadores na tarefa de ampliar as discusses a respeito da crise de extines de espcies e, de maneira mais ampla, da perda de biodiversidade. Paralelamente, como dito anteriormente, h a perspectiva de Santos a respeito da emergncia do conceito e da questo da biodiversidade. Vejamos o trecho inicial de seu texto:Como de conhecimento geral, desde meados da dcada de 80 o desmatamento propulsou a floresta amaznica para o centro do debate ecolgico mundial [...] Na verdade foi o desmatamento tropical que forjou o prprio conceito de biodiversidade e engendrou uma nova questo [...] Mas necessrio lembrar que a emergncia da questo da biodiversidade projetou uma luz nova sobre a selva: de repente, todo o mundo descobria que as florestas tropicais concentram os hbitats mais ricos em espcies do planeta, ao mesmo tempo em que elas correm o maior risco de extino. [...] Ora, dentre os pases que abrigam florestas tropicais, o Brasil ocupa, com larga dianteira, o primeiro lugar, liderando o grupo dos treze pases da megadiversidade. [...] Est se vendo, portanto, que para o melhor ou para o pior a biodiversidade , antes de tudo, uma questo brasileira. (op. cit.: 168-9).

O perodo em que este autor localiza a emergncia desta questo coincide com a anlise de Takacs: ambos a situam em meados dos anos 1980. A novidade, desta vez, a centralidade conferida s florestas tropicais ao tambm chamado domnio neotropical (Barretto Filho 2001) mais precisamente sua converso ou perda o desmatamento. Esta centralidade no conferida toa. Um dos centros irradiadores desta interpretao a comunidade de bilogos, em geral norte-americanos, engajados no processo descrito por Takacs, que ocupariam um papel central no que Santos chama, de maneira um tanto vaga, debate ecolgico mundial. Como exemplo do que se diz basta uma anlise do contedo11

Em trecho de entrevista concedida a Takacs, Dan Janzen, um dos palestrantes do Frum afirma: The Washington Conference? That was an explicit political event, explicitly designed to make the Congress aware of the complexity of species that were losing. [...] A lot of us went to talk in a poltical mission (op. cit.: 37).

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do livro publicado como resultado do Frum Nacional sobre BioDiversidade (Wilson 1997). Mais de vinte por cento dos artigos reunidos nesta publicao (12 artigos em 56) tm como objeto questes relativas ao domnio neotropical, sem contar as referncias a esta regio em outros artigos. H tambm uma seo inteira dedicada ao tema: Diversidade em Risco: Florestas Tropicais. Outra indicao da centralidade das florestas tropicais nesse processo fornecida por Inoue (2003: 59-60). Preocupada em analisar a emergncia da Biologia da Conservao, a autora chama a ateno para o papel fundamental que exerceu, na consolidao deste campo disciplinar, um Programa de Ps-graduao em Conservao dos Trpicos, sediado na Universidade da Flrida, Gainesville. Seria neste centro, segundo a autora, que teria surgido, de fato, a disciplina. O importante para nossos objetivos o vnculo estabelecido entre este surgimento e o referido centro de pesquisas, dedicado a questes relativas s florestas tropicais. No se pode, destarte, dizer que a emergncia do conceito de biodiversidade est vinculado apenas a uma dinmica de desenvolvimento das cincias nos Estados Unidos, nem mesmo reificar a contribuio que as caracterizaes e preocupaes recebidas por uma bioregio oferece para se entender o processo. preciso ter uma viso integrada. possvel, assim entendo, dar conta desta tarefa ao analisar as consideraes de Barreto Filho (2001) a respeito do domnio neotropical enquanto um artefato histrico construdo, majoritariamente, por meio de intervenes tecnocientficas. Este autor assim analisa este processo:As florestas tropicais emergem, ao lado de outras zonas ambientalizadas, como um novo registro territorial o domnio neotropical a transversalizar as fronteiras entre os estados-nacionais. Stio de superviso de sistemas administrativamente delimitados, esse domnio espacial resulta do novo mapeamento das economias regionais promovido por movimentos e organizaes ambientalistas contemporneos, em seu esforo de impelir a governana do(s) meio(s) ambiente(s) para uma escala de monitoramento e controle globais, seno csmicos, posto que observando o planeta de fora e de cima. Na qualidade de bioregio que est acima e alm dos territrios construdos pelos estados nacionais, estamos assim como no caso das UCs [Unidades de Conservao] diante de um artefato histrico construdo, majoritariamente, por meio de intervenes tecnocientficas. (ibid: 28; nfases minhas).

Ao fazer essa anlise, o autor tem por objetivo entender o processo de criao de Unidades de Conservao (UCs) na Amaznia brasileira. Este se encontra intimamente vinculado emergncia da idia de biodiversidade, haja visto o protagonismo que a 23

conservao in situ exerce nas estratgias conservacionistas12, e a preemncia que ganham justificativas baseadas na conservao da biodiversidade para se criarem estas reas em detrimento de outras justificativas, como as recreativas, cnicas e educativas, que continuam, no entanto, a serem mobilizadas. No cabe aqui uma anlise detida deste aspecto. Menciono-o, no entanto, a ttulo de sinalizar o importante contexto poltico no qual a idia de biodiversidade vai ser mobilizada nessa nova bioregio, principalmente por agentes com formao em Cincias Biolgicas em geral Biologia da Conservao engajados nos movimentos e organizaes ambientalistas contemporneos. Isto nos d uma pista para uma discusso a ser aprofundada no captulo 2, a respeito da porosidade de fronteiras entre as distintas posies (academia, governo, sociedade civil organizada) dos agentes envolvidos com a biodiversidade. O importante a ser dito aqui que o domnio neotropical exerce um papel fundamental na emergncia desta idia e esta influncia no para por a, se levarmos em conta a proposio de Barretto Filho (op. cit.: 29-30), segundo a qual uma modificao na caracterizao da regio teria contribudo decisivamente para tornar ainda mais complexa a definio mesma de biodiversidade. Isto, no entanto, tambm j parte da discusso do captulo 2. Olhemos, por ora, para um desenvolvimento posterior do conceito de biodiversidade: a sua transformao em idia-chave de uma conveno internacional, locus privilegiado da geopoltica da biodiversidade (Albagli 1998), claramente marcada pela diviso entre os pases do Sul (em geral, do domnio neotropical, os detentores da maior parcela da biodiversidade do planeta) e os pases do Norte (pases ricos, detentores de (bio)tecnologias e com interesses industriais sobre a biodiversidade).1312

A conservao da biodiversidade pode ocorrer pela estratgia preferencial, in situ a preservao por meio do estabelecimento de UCs nas quais se manteriam os organismos em seus ambientes naturais ou por meio da estratgia ex situ na qual organismos ou partes deles so protegidas em bancos de germoplasmas, jardins botnicos e outros (Barretto Filho 2001: 13) 13 Entre 17 e 21 de janeiro de 2005, perodo de redao deste trabalho, o Grupo de Pases Megadiversos mencionado por Santos acima se reuniu em Nova Deli, India. Este grupo constitui uma articulao dos pases do Sul, que detm em seus territrios, segundo o MMA (www.mma.gov.br), cerca de 80% da biodiversidade do planeta. Atualmente, o grupo conta com a participao no mais de 13, mas dos seguintes 17 pases: Brasil, frica do Sul, Bolvia, China, Costa Rica, Colmbia, Congo, Equador, Filipinas, ndia, Indonsia, Madagascar, Malsia, Mxico, Peru, Qunia e Venezuela. Compreende uma articulao destes pases na qual o Brasil exerce liderana para influenciar de maneira mais efetiva as decises que so tomadas nas Conferncias das Partes (COPs) da Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB). O principal ponto em que se pretende chegar a um consenso em torno de uma posio sobre o Regime Internacional de Repartio de Benefcios do Acesso aos Recursos Genticos. Como preparao para esta discusso, ocorreu em novembro de 2004, em Braslia, o seminrio Construindo a Posio Brasileira sobre o Regime

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1.2. Convenciona-se.Conventions are, as Austin says, conditions in which performatives can take place. Paul E. Little (1995)

Algumas anlises j foram construdas a respeito do processo de negociao que levou assinatura da Conveno sobre Diversidade Biolgica ou simplesmente CDB (Albagli 1998; Alencar 1995). Foge do escopo do presente trabalho realizar uma resenha sistemtica dessas anlises. Pretendo, neste momento, dar especial ateno para um aspecto do processo que levou CDB, tendo sempre em vista a contribuio do mesmo para a consolidao/popularizao do conceito de biodiversidade: a aproximao entre as discusses sobre conservao e desenvolvimento. Pretendo, mais especificamente, indicar como o fortalecimento dos debates sobre a viabilizao de um desenvolvimento sustentvel, entendido como um meio termo entre os pressupostos ambientalistas conservacionistas e os desenvolvimentistas (Ribeiro 1991: 75), ofereceu as condies, neste campo de negociao poltica (idem) ampliado, para que a biodiversidade viesse a ser objeto de uma conveno internacional. Barretto Filho, a partir de outros autores, prope-se a pensar o modo pelo qual se deu essa aproximao desde o perodo posterior segunda guerra mundial, momento a partir do qual a agenda da conservao dos recursos naturais foi paulatinamente anexada pelas instituies responsveis pela promoo do desenvolvimento (op. cit.: 142). Enfrenta esta tarefa, por um lado, analisando algumas caractersticas da ao de organizaes conservacionistas, no processo de crescente internacionalizao do movimento de reas protegidas (denominado national park movement), percebido nas articulaes da sociedade civil verificadas por ocasio da Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, no ano de 1972, ou mesmo no surgimento e ao da IUCN International Union for the Conservation of Nature14. Por outro lado, procura entender comoInternacional de Acesso e Repartio de Benefcios (http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1895). Neste endereo possvel acessar a ntegra das discusses que se deram neste evento com o objetivo de consultar organizaes indgenas, de quilombolas e demais populaes tradicionais, alm de outras organizaes envolvidas nesta temtica, com o objetivo de uma ampliao do respaldo posio a ser defendida pelo Brasil na negociao deste Regime. 14 Para anlises mais detalhadas a respeito da natureza hbrida (semi-estatal/no-governamental) desta organizao, consultar o prprio Barretto Filho (op. cit.: 143-145) ou Alencar (op. cit.: 117).

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a internacionalizao desse movimento se relaciona passagem da ao nacional e privada para a ao por meio de agncias multilaterais de cooperao internacional, em geral do sistema ONU (Organizao das Naes Unidas), processo que se percebe nas prprias mudanas verificadas na estrutura da IUCN. Nessa passagem, segundo o autor, as redes e organizaes internacionais focadas na conservao da natureza agitariam o caldo cultural do paradigma de modernizao caracterstico das polticas de ajuda externa do sistema ONU. Sobre isso, nos diz o autor:O paradigma da modernizao, estando diretamente relacionado teoria da mudana tecnolgica em antropologia, contribuiu para reforar o esteretipo da sociedade tradicional e atvica e a concepo do desenvolvimento como um processo evolutivo. O carter de performance internacional, de alvo universalmente desejado, embutido na idia mesma de desenvolvimento qua modernizao, fez dela uma categoria central no esperanto da modernidade, ao prover um sentido e uma explicao para as posies desiguais internamente ao sistema capitalista mundial, sem referir-se a e, portanto, dissimulando os conflitos inerentes situao de dominao/subordinao entre distintas sociedades polticas. (op. cit.: 146).

Por ora, importante lembrar que a aproximao verificada entre as organizaes conservacionistas e as agncias de desenvolvimento no se d para alm dos vnculos existentes entre as polticas de ajuda externa dessas agncias e, por exemplo, os interesses geopolticos das naes doadoras, tambm chamadas desenvolvidas, e das construes destas como se apreende pela citao acima em torno de um caminho de modernizao a ser exportado para outras sociedades. Desta forma, haveria uma reproduo/herana, nesse embrio das polticas conservacionistas globais, das relaes implcitas de

dominao/subordinao entre distintas sociedades. No perodo considerado por Barretto Filho, como j mencionado, o termo biodiversidade no havia sido construdo no cenrio poltico internacional, e nem mesmo a idia de desenvolvimento sustentvel havia se consolidado. Daremos nfase doravante para acontecimentos da dcada de 1980 e incio da dcada de 1990, poca em que se verifica uma transio de uma ordem bipolar nas relaes internacionais para uma nova ordem, multipolar, contexto de preparao para a assinatura da CDB. Segundo Alencar 15, o incio dos anos 1980 marcado por uma evoluo e ampliao do conceito de biodiversidade. Um elemento disso seria uma mudana paradigmtica da proteo ambiental, caracterizada por um novo

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Alencar (1995) empreende uma reconstruo da histria da incorporao da temtica ambiental na poltica e direito internacional, encontrando tratados intergovernamentais sobre o tema desde o ano de 1902, ano da assinatura de uma Conveno Europia a Respeito da Conservao de Pssaros teis para a Agricultura.

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ambientalismo16 que veio propor a superao do debate entre preservacionismo e conservacionismo [...] com a conciliao entre sociedade e natureza e com a conjugao dos objetivos de proteger o ambiente, ao mesmo tempo em que possvel servir-se dele (op. cit.: 111-112). Sentia-se, j neste momento, os efeitos da aproximao da agenda conservacionista com a desenvolvimentista verificando-se, a meu ver, ao contrrio de uma conciliao, uma continuidade do dilema da conservao em que se encontram os atores sociais. importante ter em mente que a indicada mudana paradigmtica teria efeitos mesmo na abrangncia da agenda conservacionista, ampliando seu foco para alm dos planos de estabelecimento de sistemas de unidades de conservao, mas no que se tenha substitudo o papel destes como estratgia central da conservao. Os desenvolvimentos da negociao da Conveno, com a incorporao que se verificaria, como veremos, das discusses a respeito do acesso aos recursos genticos em seu bojo, tornariam ainda mais candente o referido dilema. Alm desta mudana paradigmtica, a autora nos fala de uma:transformao nas cincias naturais, quando se passa da percepo das espcies como foco de anlise, para a percepo dos ecossistemas, ou do mundo em que as espcies interagem [...] Os ecossistemas comearam a ter tanta importncia para as estratgias de conservao como as espcies em si, o que garantia a preservao de um conjunto de seres vivos e no somente espcies estrelas. (op. cit.: 112, nfases minhas).

Ela se refere aqui a uma transformao j indicada por Takacs (op. cit.), quando este prope que h uma ampliao dos focos de preocupao conservacionista, o que requeria um concomitante aumento na abrangncia do conceito utilizado pelos conservacionistas, culminando na idia de biodiversidade. De espcies ameaadas de extino noo com abrangncia limitada a determinadas espcies e em geral restrita a espcies que despertem um maior interesse do pblico em geral ou simplesmente da natureza noo que, em geral, remete aos valores intrnsecos dos seres aciona-se uma noo mais abrangente, a de biodiversidade, que inclui no somente espcies em risco, mas todas as espcies. O conceito, no entanto, no se restringiria ao mbito das espcies. Incluiria tambm a variedade de ecossistemas como indica Alencar que se apresenta na superfcie terrestre, contemplando a percepo da crise ambiental como global. A variedade intraespecfica, ou seja, a variabilidade gentica entre os indivduos de uma mesma espcie tambm contemplada. Abre-se, desta forma, a possibilidade para que a conservao daA respeito da mudana paradigmtica que desemboca na emergncia desse novo ambientalismo ver tambm Inoue (2003: 55-61).16

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biodiversidade inclua uma noo de recursos genticos (Alencar 1994: 106), passvel de ser entendida como reserva de valor econmico. Estes seriam os trs nveis de diversidade que passam a ser includos na definio de biodiversidade: diversidade gentica, de espcies, e de ecossistemas. Como resultado desta evoluo conceitual17 surgiria, ento, uma movimentao no sentido da criao de uma conveno de alcance global para dar conta da proteo da natureza, percebida por membros de organizaes ambientalistas de atuao internacional como por exemplo a j referida IUCN18 como dependente de um esforo multilateral para a ampliao de sua eficcia. O lanamento, em 1980, da Estratgia Mundial de Conservao por esta organizao, em parceria com a UNESCO, o Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o WWF corrobora essa tendncia ao configurar uma tentativa de organizar/coordenar o esforo de conservao em nvel internacional. Seria necessrio esperar at 1984, quando da realizao da 16 Assemblia Geral da IUCN, para uma sinalizao mais efetiva na direo de um acordo global. A resoluo 16/24 desta assemblia indicava a preparao de uma verso preliminar de um acordo global sobre o tema, com a utilizao da noo de diversidade gentica19, em seguida alterada pela de diversidade biolgica, termo ainda restrito ao mbito acadmico, mas que j se considerava mais abrangente do que o anterior. A realizao do j referido Frum Nacional de BioDiversidade, em 1986, atuaria na consolidao do termo, em sua verso contrada. significativa, no entanto, a importncia atribuda por Alencar ao conceito e sua evoluo como unificadores de iniciativas dispersas no sentido da consecuo do almejado acordo global:A gnese da Conveno da Biodiversidade nos informa que a conveno surgiu da necessidade de se articularem regras pr-existentes e de se programarem outras regras, que preencheriam as lacunas que a falta de um tratado global denunciava. Diferente da questo do oznio ou do clima, em que se criou consenso a partir de informaes cientficas, de alguma forma verificveis, na questo da biodiversidade o que evoluiu foi um conceito, a partir da preocupao de juristas conservacionistas, em que foi fundamental o trabalho de persuasoPara a reconstruo feita, nos prximos quatro pargrafos, das primeiras negociaes de um tratado conservacionista global a fonte Alencar (op.cit.: 111-132). 18 Alencar se refere a Cirylle de Klemm, membro da Comisso de Direito Ambiental desta organizao como o idealizador, ainda nos anos 1970, de uma conveno conservacionista de alcance global (op. cit.: 113 e 148). 19 Segundo Alencar, eram os seguintes os temas a serem includos, de acordo com a referida resoluo, no documento preliminar: a) o papel dos recursos genticos na manuteno da diversidade biolgica; b) o acesso aos recursos genticos; c) a responsabilidade dos Estados-nacionais; d) o fortalecimento das legislaes nacionais para conservao in situ; e) o uso comercial dos recursos genticos; f) os recursos financeiros para a conservao dos recursos genticos (op. cit.: 115).17

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levado adiante por Cyrille de Klemm. De genes a espcies, e da a ecossistemas, ficava claro que tudo estava vinculado entre si, interdependente, e que era necessrio adotar um s conceito que englobasse estes trs nveis de se perceber o mesmo fenmeno as diferentes formas de vida na Terra para que fosse facilitada sua proteo efetiva. (op. cit.: 116-117).

Isso nos faz pensar, ao revelar uma novidade em relao discusso j empreendida acerca da emergncia do conceito, na medida em que o papel de juristas conservacionistas, inseridos na poltica internacional, teria sido fundamental na evoluo deste conceito, tema desta conveno internacional. Diferentemente de outras duas convenes internacionais (oznio e clima) supostamente justificadas a partir de evidncias cientficas diretas, de alguma forma verificveis, a Conveno da Biodiversidade seria proveniente de um esforo de persuaso e militncia poltica de um grupo do ambientalismo transnacional, os juristas conservacionistas. Nesta linha de interpretao, prope-se que mesmo sendo a Conveno devedora de um processo de evoluo conceitual vinculado mais a dinmicas da poltica internacional do que a evidncias cientficas verificveis, ficava claro que os trs nveis de se perceber o mesmo fenmeno deveriam ser objeto de um acordo global. A prpria autora, no entanto, nos d elementos para pensar que, alm da abrangncia do conceito e de sua capacidade de consolidar a integrao entre distintas agendas, foram tambm as condies scio-histricas nas quais se configura a aproximao do ambientalismo com a ideologia do desenvolvimento no intervalo entre a publicao do Relatrio Nosso Futuro Comum (ou Relatrio Brundtland) em 1987 e a realizao da Rio-92 que estabeleceram um campo poltico internacional para que efetivamente a Conveno se realizasse. Esse intervalo de tempo muito importante para a consolidao desse acordo global, devendo destacar-se alguns acontecimentos. Primeiramente, a consolidao do sistema ONU, por meio do PNUMA, como locus principal das negociaes, responsvel por estabelecer um Grupo de Trabalho, em 1987, composto por especialistas em diversidade biolgica com o objetivo de aperfeioar as discusses sobre o estabelecimento da conveno. H que lembrar, no entanto, que a iniciativa de elaborao de subsdios para esse processo continuava sob os auspcios da IUCN. Em segundo lugar, a publicao, neste mesmo ano, do referido Relatrio Nosso Futuro Comum, que consolidaria internacionalmente o conceito de desenvolvimento sustentvel como eixo norteador das polticas ambientais e que elevava condio de prioridade para tal a construo de uma Conveno sobre as Espcies.Em terceiro lugar, importante ressaltar a mudana na estrutura da conveno que se pretendia 29

estabelecer, de uma conveno sistematizadora (umbrella convention) para uma convenoquadro (framework convention)20. A meu ver, o quarto e mais importante acontecimento seria a incorporao do processo negociador da conveno na agenda de acordos a serem firmados na Rio-92, fato que agiu no sentido de estabelecer prazos determinados para o final do processo e, alm disso, influenciou, por meio das disputas geopolticas j estabelecidas nesse contexto preparatrio, a aproximao com as discusses sobre o desenvolvimento sustentvel21. Little (1995), que procura interpretar a Conferncia do Rio como um mega-evento transnacional e a assinatura de documentos internacionais que ento ocorreram como parte do ritual que se estabelecia, entende que o termo desenvolvimento sustentvel prov a foundation for the construction of a new political cosmology that would resolve the contradictions and anomalies that have emerged within the old one [desenvolvimento econmico como crescimento econmico constante] (ibid: 278). Segundo este autor, um aspecto importante da ritualstica do evento o debate acerca de sua cosmologia poltica, que girou em torno do termo desenvolvimento sustentvel como palavra-chave. As palavras de Vicente Snchez Embaixador do Chile e Presidente do Comit Intergovernamental estabelecido em 1991 pelo PNUMA para levar adiante as negociaes finais em torno dos documentos j elaborados para a CDB so reveladoras da aproximao que se verifica nesse momento entre a negociao da CDB e o desenvolvimento sustentvel, em parte explicada pelo confronto de posies entre pases do Norte e do Sul:As negociaes eram conduzidas como parte de um processo de definio do que vinha a ser exatamente o desenvolvimento sustentvel e tambm de esclarecimento sobre quais eram as responsabilidades diferenciadas para se atingir esta meta global. A Conveno foi o resultado de um processo que se iniciou com a convico particularmente entre os pasesUma conveno sistematizadora atuaria, como seu nome indica, integrando num nico acordo multilateral alguns acordos internacionais j existentes numa dada rea, no caso, a Conveno de Rmsar (sobre reas midas), a do Patrimnio Mundial, a CITES (um acordo sobre comrcio internacional de espcies) e a Conveno de Bonn (limitada a um grupo especfico de espcies). A nova proposta para a Conveno sobre Diversidade Biolgica era a de uma conveno-quadro, que estabeleceria um regime internacional em novas bases, sem se sobrepor s anteriores, mas no carecendo de um esforo de integrao e adaptao dos mesmos num nico acordo. 21 A Conveno de Biodiversidade, que nascera uma conveno conservacionista global, voltada para a proteo dos recursos biolgicos, tanto que se chamava Convention on the Conservation of Biological Diversity era, a partir de 1991, transformada em um acordo global sobre desenvolvimento sustentvel. Sua dinmica anterior vinha se estabelecendo no interior do mundo jurdico conservacionista, abrigada pela IUCN; contudo, a partir de sua incluso na agenda da Conferncia do Rio, no s como um dos documentos a serem ali abertos para assinatura, mas tambm porque o tema era abordado pela Agenda 21, converteu-se em um frum de debates sobre questes sensveis da clivagem Norte/Sul (Alencar op.cit.: 121-122; nfase minha).20

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desenvolvidos de que seria produzido um acordo conservacionista dos mais abrangentes: uma conveno sobre parques e reservas. Entretanto, desde o incio das negociaes esta abordagem se mostrou incompleta e comearam a ser includos aspectos da complexa interao entre pases desenvolvidos/em desenvolvimento. (Snchez & Juma apud Alencar 1995: 122-123).

Cumpre ressaltar, pois, que se operou no processo mesmo de negociao da Conveno a geopoltica da biodiversidade (Albagli 1998), cujo principal trao seria o que o Embaixador do Chile chama de complexa interao entre pases desenvolvidos e em desenvolvimento no tocante questo da biodiversidade. Importante aqui o uso que os representantes diplomticos dos chamados pases em desenvolvimento ou do Sul fazem da ideologia do desenvolvimento, que pode ser reconstrudo desde a Conferncia de Estocolmo, em 1972. Nesta ocasio, a posio do Brasil e de outros pases do Sul era de enfrentamento intransigente s propostas de proteo ambiental construdas com base na realidade dos pases do Norte, encaradas pelos primeiros como entraves a seus projetos nacionais de desenvolvimento. Sobre o assunto, nos fala Barretto Filho:A posio, o papel e a performance da delegao brasileira presente Conferncia [...] so exemplares das posies endossadas pelos demais pases em desenvolvimento. Pelo menos dois componentes da posio defendida ento pelo pas foram publicamente endossados pelo Secretrio-Geral da Conferncia, Maurice Strong: o desenvolvimento no deveria ser sacrificado em nome do meio ambiente e os pases desenvolvidos deveriam pagar pelos esforos de proteo ambiental nos pases em desenvolvimento. Um terceiro elemento da posio brasileira produziu bastante controvrsia. Em virtude das freqentes denncias de destruio generalizada da natureza na Amaznia e do pinculo alcanado pelo contencioso de Itaipu com a Argentina, a delegao brasileira adotou uma posio entrincheirada em defesa da soberania nacional: esta no deveria capitular diante de interesses ambientais mal definidos e imprecisos - a cooperao internacional no deveria servir de instrumento de intruso de interesses externos em assuntos nacionais. (op. cit.: 149-150; nfases minhas).

Aqui temos indicaes do entendimento de que os recursos biolgicos posteriormente a biodiversidade so encarados como patrimnios nacionais, sobre os quais os Estados detm soberania. Isso persistiria at o perodo de negociaes da CDB, quando estes pases obteriam maior xito. Em defesa da soberania sobre a biodiversidade de seus territrios, os pases do Sul liderados pelo Brasil, segundo Alencar empreendem uma alterao em uma idia importante que norteava a assinatura da CDB. A biodiversidade sofre um deslocamento de entendimento, por ao desses pases, de patrimnio comum da humanidade (common heritage of humankind) a preocupao comum da humanidade (common concern of humankind) sendo includo no texto da Conveno a soberania dos 31

pases sobre a biodiversidade presente em seus territrios e obrigaes desiguais por parte dos distintos pases em relao a sua conservao22. Cabe aos pases do Norte um papel maior no financiamento da mesma e uma ao no sentido de repartir os benefcios advindos do acesso aos recursos genticos e transferir tecnologias aos pases do Sul23. Em entrevista pessoal, Brulio Ferreira de Souza Dias atual Gerente de Conservao da Biodiversidade, da Diretoria de Conservao da Biodiversidade, do Ministrio do Meio Ambiente, um dos representantes do Brasil no processo negociador da CDB discorre sobre a influncia dos pases em desenvolvimento na negociao da Conveno como algo a ser destacado no processo.ED: O senhor teve participao nas negociaes que levaram Conveno sobre Diversidade Biolgica. Que pontos o senhor destacaria neste processo? BD: A Conveno comeou a partir de uma proposta dos cientistas americanos isto no final dos anos 80 e ela tinha um vis apenas conservacionista. Um ponto importante foi a articulao que houve na negociao a partir principalmente da iniciativa de pases em desenvolvimento como o Brasil, a Malsia, entre outros, com os organismos internacionais no sentido de se acrescentar preocupao tambm a questo de uso sustentvel e da repartio de benefcios. S trabalhar com conservao, o tema biodiversidade continuaria sendo um tema restrito apenas rea ambiental. Ento a Conveno contempla questes scio-econmicas e no s questes ambientais. O direito da repartio dos benefcios um direito novo, que foi institudo pela Conveno.

Brulio endossa o argumento acima discutido, com relao mudana no escopo da conveno de um acordo conservacionista para um documento que incorpora questes scioeconmicas. Mas o faz atribuindo um papel central iniciativa de pases em desenvolvimento como o Brasil. O apelo nacionalista (Alencar op. cit.: 123) com o qual os pases do Sul abordavam e abordam a questo da biodiversidade e a relacionam ao desenvolvimento sustentvel, entendido talvez como algo estranho quela, compreende, ao meu ver, um aspecto central da ao desses pases em relao temtica. Sem querer me alongar demais neste aspecto,No prembulo do texto da Conveno sobre Diversidade Biolgica h a seguinte passagem: a conservao da diversidade biolgica uma preocupao comum humanidade [...] os Estados tm direitos soberanos sobre os seus prprios recursos biolgicos (Conveno sobre Diversidade Biolgica 2000: 8). 23 A ao poltica dos pases do Sul conseguiu incluir como um dos trs objetivos da Conveno, juntamente com a conservao e uso sustentvel da biodiversidade, a repartio dos benefcios advindos do acesso aos recursos genticos. O artigo 1 da CDB trata deste ponto: Os objetivos desta Conveno, a serem cumpridos de acordo com as disposies pertinentes, so a conservao da diversidade biolgica, a utilizao sustentvel de seus componentes e a repartio justa e equitativa dos benefcios derivados da utilizao dos recursos genticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genticos e a transferncia adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado (ibid: 10).22

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gostaria apenas de sugerir, por ora, que justamente o princpio de defesa da soberania sobre a biodiversidade presente em outros termos na posio desses pases, como se viu, j em Estocolmo/72 uma condio sine qua non para a consecuo de estratgias nacionais de desenvolvimento24. Esta breve anlise do processo de negociao da CDB nos revela, portanto, que a emergncia do conceito de biodiversidade e a sua consolidao como uma idia-chave se vinculam ao chamado domnio neotropical, no somente como cenrio principal que a preocupao com a conservao da biodiversidade focaliza, mas como regio integradora de Estados-nacionais que, por sua condio de detentores de megadiversidade, se colocam numa postura ativa nas discusses diplomticas que consolidam o termo. O Brasil, como pas lder em megadiversidade, encontra-se em posio privilegiada na questo da biodiversidade e, como visto, exerceu e exerce papel importante nesta arena poltica internacional. Passemos, ento, a uma breve discusso a respeito do momento no qual o termo se torna uma idia-chave neste pas.

1.3. O termo no/do pas

Aps a discusso inicial sobre a emergncia do termo, cumpre aproximarmo-nos de outra tarefa: dar o primeiro passo no caminho de uma interpretao a respeito da domesticao (Guyer & Richards 1996: 9) do conceito de biodiversidade no contexto da poltica ambiental brasileira e, de maneira mais ampliada, no ambientalismo brasileiro. Pretende-se, por ora, entender o momento no qual o conceito se torna uma idia operante neste contexto. Uma das maneiras pelas quais tentei dar cabo desta tarefa foi apresentando a seguinte questo aos meus entrevistados: quando voc se recorda de ter ouvido e/ou lido este termo pela primeira vez?. Recebi o seguinte grupo heterogneo de respostas25.

Refiro-me especialmente ao contexto brasileiro. Configuraria outro estudo inventariar as mltiplas vises de desenvolvimento presentes no discurso da Biodiversidade. Longe de cumprir este objetivo, tentar-se-, ao longo deste trabalho, pontuar algumas vozes presentes no debate da biodiversidade e, ao menos, indicar alguns posicionamentos possveis quanto ao desenvolvimento, que a se expressam. 25 Ao longo de todo o trabalho, sempre que for citado mais de um entrevistado continuamente, suas respostas estaro dispostas na ordem alfabtica de seus nomes.

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Cludio Pdua: No sei, mas j nos anos 80, talvez. Comeo dos anos 80, 84, 85. No, talvez antes at. Comeo dos anos 80. ED: E em que contexto? CP: O termo, na verdade, como o termo biodiversidade, ele surge nos anos 70 mesmo. Talvez antes. Mas o [Edward O.] Wilson fala nele pela primeira vez nos anos 70. Na universidade, na ps-graduao. No, antes disso, quando eu trabalhava no Centro de Primatologia do Rio de Janeiro. Quando eu fui trabalhar em biologia no Centro de Primatologia. Eu imagino que a primeira pessoa que me falou disso foi o Professor Coimbra Filho, mas eu no tenho bem lembrana, no. O Professor Coimbra Filho um primatlogo do Rio de Janeiro. Eduardo Vlez: Eu fiz a faculdade de 86 a 1990. E essa foi exatamente a poca em que o termo biodiversidade comeou a ganhar, digamos assim, a ser popularizado. J existia mas no era popularizado. Ento era fauna e a flora, a biota, enfim, outros, e biodiversidade encaixou como uma luva, enfim, porque eu no preciso falar a palavra ecossistema que uma palavra que quase ningum sabe o que um ecossistema. Biodiversidade d idia de diversidade biolgica, seja falando de um organismo, de uma floresta, um termo muito prtico, muito til, sob o ponto de vista de comunicao nessa rea. E ele um termo integrador de certa forma, porque ele permite, ou seja, quando eu falo de conservao da natureza, ao falar de conservao da biodiversidade eu t falando de conservao da natureza, uma espcie de refinamento da idia da natureza. um termo que eu acho que veio pra ficar. Fernanda Kaingang: No me recordo de quando ouvi a palavra biodiversidade pela primeira vez, mas faz bastante tempo, porque, em 1992 foi feita a RIO 92, que deu origem, no futuro, a este tratado multilateral que a Conveno da Diversidade Biolgica, onde, n? se falou muito em biodiversidade, se falava em meio ambiente. Alguns povos indgenas falavam, Ns no entendemos esta noo de meio ambiente. Pra gente o ambiente inteiro, ele no pela metade. Ento moda no mundo se falar em biodiversidade. O que tambm parece uma coisa estranha pra gente. Gustavo Fonseca: Eu no lembro exatamente, mas, em meados de, no final da dcada de 80, em torno de 88 eu lembro que j estava sendo utilizada numa reunio que participei em Bogot, em 88, que foi uma das reunies que levaram publicao de uma coisa chamada a Estratgia Mundial para a Conservao que foi publicada pela IUCN e pelo World Resources Institute e divulgado durante a ECO-92. Ento foi mais ou menos por a. Maria Tereza Jorge-Pdua: Na dcada de 80. Quer dizer, o termo biodiversidade, que antes a gente usava muito diversidade biolgica, riqueza biolgica, tal, tal, tal, mas o termo mesmo ganhou fora na dcada de 80, em especial no final da dcada de 80, antecedendo a Rio-92, em que se preparou estratgias nacionais, a Estratgia Internacional da Biodiversidade, foi lanado no Brasil tambm a Estratgia Mundial da Biodiversidade, depois os pases foram preparando as suas estratgias nacionais e culminou com a Conveno da Biodiversidade na Rio-92. Quer dizer, o termo ganhou corpo nos final da dcada de 80, e o grande momento foi a Conveno da Biodiversidade na Rio-92. Muriel Saragoussi: No antigo, porque o meu doutorado em gentica e melhoramento de plantas e eu terminei meu doutorado em 85. Eu fiz minha iniciao cientfica com gentica de populaes e ento acho que eu ouvi em 78, 79, dentro desse contexto de especialista. Na verdade no era uma discusso pblica, era uma discusso de especialista.

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Paulo Kageyama: Na verdade, quando tomei contato com a Conveno da Biodiversidade. Ela foi proposta, esta conveno, foi criada esta conveno para a RIO-92, a famosa reunio do Rio em 92. Foram propostas duas convenes, a Conveno da Biodiversidade e a Conveno de Mudanas Climticas. Quando foi proposta esta conveno na verdade surgiram os documentos de que se propunha oficialmente, digamos, esse conceito. Rubens Nodari: Isso foi l por volta de 88, quando essa expresso foi usada pelo Edward Wilson. A gente comprou o livro dele e l consta essa expresso.

Alguns relacionam seu primeiro contato com o termo a documentos publicados na dcada 1980, inseridos no contexto de discusses conservacionistas no mbito da diplomacia internacional, que tentamos reconstruir na seo anterior (Fonseca e JorgePdua). Outros mencionam a influncia de Edward O. Wilson como fundamental na divulgao do termo (Nodari e Pdua). Nodari no menciona o Frum Nacional sobre BioDiversidade, de 1986, mas cita o livro (Wilson 1997) resultante das discusses ocorridas neste evento. Vlez no cita eventos, mas localiza na segunda metade da dcada de 1980 o contato inicial com o termo. A lder indgena Fernanda Kaingang e Paulo Kageyama o localizam no contexto da assinatura da CDB, quando da realizao da Rio-92, momento em que se propunha oficialmente o termo, nas palavras do ltimo. Uma pista para entender esse intervalo relativamente grande de tempo entre as estimativas mais ou menos antigas fornecido por Saragoussi. Segundo ela, seu contato com o termo em sua trajetria acadmica at a concluso do doutorado em 1985 se dava numa discusso de especialistas, e no se configurava uma discusso pblica. Poderse-ia pensar, portanto, que a partir deste momento que se d a popularizao do conceito. David Takacs argumenta, com base numa comparao das ocorrncias do termo entre os anos de 1988 e 1993 no Biological Abstracts uma ferramenta de busca em peridicos de cincias da vida de vrias partes do mundo que a popularizao do termo se verifica neste perodo, como um resultado da militncia de bilogos verificada no Frum de 1986.In the few short years since the National Forum on BioDiversity, the term has been promoted vigorously; it has been transformed from a bit of scientific esoterica into a buzzword of popular culture. In 1988, biodiversity did not appeared as a keyword in Biological Abstracts, and biological diversity appeared once. In 1993, biodiversity appeared seventy-two times, and biological diversity nineteen times (op. cit.: 39).

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Seu potencial como buzzword ou seja, um termo de um jargo de um determinado assunto que transmite a impresso de um conhecimento especializado26 favoreceria essa popularizao. Quis fazer exerccio semelhante em bases de dados nacionais, de maneira a comparar os resultados com os dados de Takacs27. A primeira em que procurei foi a Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia (IBICT)28. Trata-se de um instrumento que procura congregar as teses e dissertaes produzidas em universidades brasileiras em um nico banco de dados. Estaremos olhando, pois, para a produo original das principais universida