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1 Do confinamento ao acolhimento: um estudo antropológico sobre o corpo e sua relação com as novas formas de cuidado em Saúde Mental Cristiane Moura Lopes Universidade Federal de Juiz de Fora Introdução Neste trabalho, objetivamos analisar o processo da Reforma Psiquiátrica visando como os corpos dos ‘loucos’ passam a estar associados à nossa cotidianeidade, de outro modo, como esses indivíduos com ‘pertubações físico-morais’ saem de uma rede complexa fundamentada nos Hospitais Psiquiátricos e vão para as redes de cuidado extra-hostipalar. No primeiro tópico, O desencantamento do corpo, aponto algumas interpretações sobre o corpo e sobre a corporeidade humana como sendo um fenômeno social e cultural. No segundo, A loucura inscrita nos corpos insanos, evidencio os diferentes momentos e aparatos institucionais que conduziram a loucura e os ‘loucos’ do Hospital Psiquiátrico ao Centro de Atenção Psicossocial - CAPs. Por fim, nas considerações finais do trabalho intitulada: Do Hospital Psiquiátrico ao CAPs – os corpos insanos estão entre nós, ressalto a importância de se pensar nos novos modos de cuidado em Saúde Mental levando em consideração o deslocamento dos doentes mentais às novas redes de atenção. Para desenvolver esse trabalho, elegeu-se como método uma revisão bibliográfica acerca dos estudos sobre o corpo, sublinhando a corporalidade dos doentes mentais, antes e depois da Reforma Psiquiátrica no Brasil. A especificidade dessa leitura consiste em pensar o deslocamento dos corpos dos doentes mentais dos Hospitais Psiquiátricos, entendidos como uma

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Do confinamento ao acolhimento: um estudo

antropológico sobre o corpo e sua relação

com as novas formas de cuidado em Saúde

Mental

Cristiane Moura Lopes Universidade Federal de Juiz de Fora

Introdução

Neste trabalho, objetivamos analisar o processo da

Reforma Psiquiátrica visando como os corpos dos ‘loucos’

passam a estar associados à nossa cotidianeidade, de outro

modo, como esses indivíduos com ‘pertubações físico-morais’

saem de uma rede complexa fundamentada nos Hospitais

Psiquiátricos e vão para as redes de cuidado extra-hostipalar.

No primeiro tópico, O desencantamento do corpo,

aponto algumas interpretações sobre o corpo e sobre a

corporeidade humana como sendo um fenômeno social e

cultural. No segundo, A loucura inscrita nos corpos insanos,

evidencio os diferentes momentos e aparatos institucionais que

conduziram a loucura e os ‘loucos’ do Hospital Psiquiátrico ao

Centro de Atenção Psicossocial - CAPs. Por fim, nas

considerações finais do trabalho intitulada: Do Hospital

Psiquiátrico ao CAPs – os corpos insanos estão entre nós,

ressalto a importância de se pensar nos novos modos de cuidado

em Saúde Mental levando em consideração o deslocamento dos

doentes mentais às novas redes de atenção.

Para desenvolver esse trabalho, elegeu-se como método

uma revisão bibliográfica acerca dos estudos sobre o corpo,

sublinhando a corporalidade dos doentes mentais, antes e depois

da Reforma Psiquiátrica no Brasil. A especificidade dessa leitura

consiste em pensar o deslocamento dos corpos dos doentes

mentais dos Hospitais Psiquiátricos, entendidos como uma

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InstituiçãoTotal para os Centros de Atenção Psicossocial -

CAPS; como ponto de análise para a compreensão da Reforma

Psiquiátrica no Brasil.

1– O Desencantamento do Corpo

Será em consonância à perspectiva de Le Breton, que

iremos abordar a questão da “corporeidade humana como

fenômeno social e cultural, matéria simbólica, objeto de

representações e de imaginários.” (LE BRETON, 2002:14). A

corporeidade tomada nesse sentido expressa a singularidade

desse novo olhar nos estudos sobre o corpo, uma vez que

considera antes de tudo, uma incidência social sobre o corpo.

Ultrapassando os limites biológicos, já não se considera o

homem como um produto de seu corpo; ao contrário, ele agora é

visto como o que produz as qualidades de seu corpo em sua

interação com outros homens.

O texto de 1936, “As técnicas do Corpo”, também pode

ser considerado uma referência nos estudos sobre corporeidade

humana como fenômeno social e cultural e por isso, merece

algumas considerações; seu autor, Marcel Mauss, chama a

atenção para o fato de que as técnicas corporais - principal

expressão dos indivíduos - “as maneiras pelas quais os homens,

de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem

servir-se de seu corpo” – podem ser vistas como elo entre o

indivíduo e a sociedade. (MAUSS, 2003:401).

Mais do que um simples arranjo de movimentos físico-

psíquicos, as técnicas corporais são os reflexos sociais; na

medida em que cada sociedade possui seus hábitos próprios terá,

por conseguinte, suas próprias técnicas corporais para os

expressarem. Sob essa ótica, a técnica é antes de tudo uma força

educadora, mesmo porque para cada técnica há uma

aprendizagem, como disse Mauss ao citar o exemplo de se

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reconhecer a diferença da marcha inglesa para a marcha

francesa. Consideramos que o mesmo mecanismo que

acionamos para ver essa distinção – das marchas - é o mesmo

que nos faz reconhecer a diferença de um doente para um doente

mental.

Outros dois processos podem ser compreendidos a partir

desse enfoque: o processo de socialização (através da

transmissão e da adequação às técnicas do corpo) e o processo

de mortificação social (através da imposição ao cumprimento de

normas específicas que destroem a autonomia do indivíduo) –

que acontece a todo indivíduo que passa por algum tempo

dentro de uma Instituição Total.

Nossos movimentos, gestos, ‘atos técnicos’ nos

parecem sem significados e por isso, se tornaram pura e

simplesmente naturais; os naturalizamos e ponto final.

Esquecemos, entretanto, que neles estão embutidos uma gama

de símbolos, sistemas de idéias e significados sociais que estão

imersos nos corpos dos indivíduos, tenham eles consciência

disso ou não.

Que correlações podemos pensar entre os ‘atos técnicos

de Mauss e a questão corporal? Eis, que para o autor citado, o

corpo é o primeiro e o mais natural objeto técnico do homem, e

será através desse corpo que todas as técnicas serão, por um lado

ensinadas e por outro apreendidas.

Robert Hertz, como Mauss, contribuiu para mostrar os

limites do enfoque puramente fisicalista, ao abordar a questão da

proeminência da mão direita nas sociedades humanas,

comprovou que os canhotos eram estatisticamente menos

numerosos que os destros. Para cada 100, 2 eram canhotos. As

razões fisiológicas são secundárias quando se observa o

obstáculo cultural formado pelas representações sempre

negativas associadas à mão esquerda e positivas à mão direita. A

oposição não é somente física, mas também moral: a esquerda

implica deformação, e a direita o certo. Apesar de não ter

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dirigido sua argumentação a teoria darwiniana, ele comprova os

limites do enfoque biológico.

Compartilhando com Mauss, Le Breton e Hertz, nós

concluímos que o fisiológico está subordinado à simbologia

social; esse é o ponto que nos interessa.

Convergindo com a problemática que foi delineada – a

de se pensar o corpo – cabe explicitarmos nossas escolhas

epistemológicas que fluíram rumo à articulação de duas

vertentes importantes na interpretação sobre o corpo: a noção de

embodiment – corpo experenciado e a noção de habitus – corpo

socializado.

1.1 – Corpo Socializado e Corpo Vivido: Habitus e

Embodiment

A compreensão da relação entre o indivíduo e sua

cultura, pautada no corpo, poderá ser pensada através da

abordagem do tema do corpo como meio de construção da

pessoa ou na abordagem da experiência vivida do corpo, na sua

experiência cotidiana, ou para expressá-lo de outro modo, no

corpo experimentado.

O projeto de se pensar a “experiência” a partir de uma

reflexão sobre o corpo teve em Maurice Merleau-Ponty seu

grande expoente; sua obra “Fenomenologia da Percepção”

(publicada em 1945) se tornou um marco nas discussões sobre

embodiment nas Ciências Sociais. Sua abordagem não se dá a

partir de um corpo constituído, mas de um “corpo vivido”,

experenciado – de ser-no-mundo – que habita o mundo, ou seja,

que estabelece relações.

O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles.(MERLEAU-PONTY, 1999:122)

O corpo é o fundamento de nossa experiência no mundo,

dimensão mesma de nosso ser, lócus de onde emanam e onde

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são armazenadas nossas experiências, portanto, não é

simplesmente matéria inerte ante o espetáculo da cultura, é

"corpo vivido". A análise do que poderíamos chamar de

"experiências" do corpo dá-nos a possibilidade de uma

compreensão do relacionamento do indivíduo com o seu corpo,

alavancando-nos para uma reflexão maior: a que se refere ao

processo de encorporação, que transforma em invisível toda

ação simbólica que perpassa o sujeito.

Thomas Csordas, no texto "Palavras dos seres sagrados:

um estudo de caso em fenomenologia cultural" (1994) toma o

mundo no sentido do concreto, do vivido. Este autor considera

que existem determinados fenômenos que não podem ser

explicados pelo paradigma da representação, uma vez que existe

uma dimensão da vida social que é vivida através do corpo e que

não passa pela representação; é o caso quando o indivíduo está

em transe e fala línguas.

Essa questão, também foi discutida por Miriam Cristina

Rabelo e Paulo César Alves:

Imiscuída no corpo, a subjetividade já não pode mais ser entendida como espaço bem demarcado de existência pessoal... No corpo, encontramos uma dimensão de existencial social anônima, pré-pessoal, que nos remete para a esfera do hábito arraigado, da ação irrefletida, de aspirações não articuladas e disposições sedimentadas e dificilmente acessíveis à reflexão.(RABELO e ALVES, 2004: 175). Na mesma direção, Pierre Bourdieu expõe sua teoria

sobre o corpo ao falar de um senso corporificado do jogo social

que opera sem passar pela consciência do indivíduo. Desta

forma, as experiências adquiridas no jogo social se transformam

em esquemas corporais que expressam a modalidade singular do

ser no mundo enquanto membro de uma tradição, de uma

cultura, de uma classe. Está certo que não são as condições

objetivas que causam as práticas, ou vice-versa; entre uma e

outras temos o habitus, o mediador que faz com que práticas e

idéias de dado sujeito pareçam sensatas e razoáveis. Ele -

habitus - é o princípio gerador das práticas e, em sua relação

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com o repertório total de práticas sociais, o princípio unificador

(Bourdieu,1987).

Forma particularmente ejemplar del sentido práctico como ajuste anticipado a las exigencias de un campo, lo que el lenguage deportivo lhama el "sentido do juego" ...da una idea suficientemente exacta del encuentro cuasi-milagroso entre el habitus y un campo, entre la historia incorporada y la historia objetivada, que hace posible la antecipación cuasi-perfecta del porvenir inscrito en todas las conficguraciones concretas del juego." (BOURDIEU, 1991:113)

A proposta sociológica especificamente sobre o corpo

em Bourdieu permite-nos pensar a produção do corpo com base

na história incorporada pelas disposições. O habitus é capital

nesse empreendimento, pois nos possibilita entender a

corporificação da história, ou seja, a internalização desta nos

corpos dos indivíduos. Sem esses conceitos, nosso estudo

certamente perderia o sentido, já que nossa proposta é estudar o

corpo dos doentes mentais antes e depois da Reforma

Psiquiátrica, enfocando como essa corporalidade se associa à

nossa cotidianeidade. Passemos, então, ao estudo da localização

e do deslocamento desses corpos em nosso cenário social.

2 – A Loucura inscrita nos corpos insanos 2.1 – Hospital Psiquiátrico: Instituição Total

Segundo Michel Foucault o século XVII pode ser

caracterizado como o período da “Grande Internação”; será

entre os muros do internamento que pobres, vagabundos,

presidiários e “cabeças alienadas” farão parte da mesma

paisagem que outrora excluíra e segregava os indivíduos,

inicialmente demarcados pela lepra e depois pelas doenças

venéreas. Mais precisamente na segunda metade deste século

ter-se-á a criação de vastas casas de internamento, que apesar de

não se assemelharem a nenhuma idéia médica, prescrevem e

estabelecem o controle, a justiça e a repressão dos indivíduos.

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Na Inglaterra, essas casas se denominavam inicialmente de

‘houses of correction’ depois se tornaram conhecidas como

‘workhouses’ (a primeira em 1575); nos países de língua alemã

têm-se as casas de correição – as chamadas de “Zuchthäusern”

(a maioria do século XVII) , e na França o grande expoente foi o

Hospital Geral , Paris – fundado em 1656.

No século XVII e XVIII, o pensamento e a prática da

medicina não têm a unidade ou pelo menos a coerência que nela

agora conhecemos. Será, pois, através do asilo de Philippe Pinel

na França e dos retiros de Samuel Tuke na Inglaterra que a

psiquiatria positiva do século XIX encontrará os loucos. A

passagem da loucura para o âmbito patológico; ou melhor, a

mudança da concepção clássica da loucura para seu

enquadramento pela emergência do saber psiquiátrico não foi

imediata e nem simples assim; a própria idéia de loucura – a que

os gregos chamam de “mória” e os italianos de “pazzia” - já se

diferenciava da concepção vigente na Idade Média - visto como

uma consciência dos poderes trágicos do mundo.

(ROTERDAM, 1991). Na Idade Clássica, a loucura se

encontrava no campo da razão encarnada em homens concretos,

presentes no mundo social.

A partir do projeto de um “jardim das espécies”,

classifica-se e agrupa-se as doenças, numa tentativa de

apreender uma consciência dessa loucura. A psiquiatria foi

criando o quadro nosológico das perturbações conhecidas como

“doença dos nervos” ao utilizar dos mesmos recursos

investigativos da botânica. (FOUCAULT, 1999)

Através da “idéia de nervoso”- século XVIII - se

reordenou uma totalização individualizante do homem. Os

“nervos”, observados enquanto expressão da fisicalidade do

indivíduo, assumiram de modo crescente uma significação

monista (junção do corpo e espírito), traduziram as

“pertubações físico-morais” resultantes de uma combinação

entre o organismo e os modos e efeitos do comportamento dos

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indivíduos (DUARTE, 1986).

Num movimento contínuo, os que têm problemas dos

‘nervos’ vão sendo progressivamente isolados dos outros

sujeitos que ocupavam o mesmo espaço que ele. A loucura foi

se afirmando como um saber psiquiátrico e um espaço e um

saber próprio foram se constituindo: o Hospital Psiquiátrico e a

Psiquiatria. A psiquiatria encontrou a sua pátria – o espaço do

internamento e nele fará todo o investimento possível para

definir seus discursos e suas práticas durante séculos, que só terá

suas bases abaladas pelo contraponto da Reforma Psiquiátrica

no século XX. Será exatamente o abalo à essa estrutura secular

de exclusão que iremos abordar a seguir.

2.2 - A Reforma Psiquiátrica

No Brasil o início do processo de Reforma Psiquiátrica

data-se do final da década de 70, resultado da crise no modelo

de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um lado, e

na eclosão, por outro, dos diversos movimentos sociais pelos

direitos dos pacientes psiquiátricos, além de sofrer influência

direta de iniciativas estrangeiras, como as comunidades

‘terapêuticas’ e a Antipsiquiatria, na Inglaterra; a Psiquiatria

Comunitária ou Preventiva, nos EUA; e no final da década de

1960, a Psiquiatria democrática, na Itália. Estas iniciativas:

Experiências que se opunham à prevalência da atenção à fisicalidade da doença mental e, principalmente, ao isolamento terapêutico, reinvindicando a necessidade da desinstitucionalização.(VENÂNCIO, 1993:127). Podemos considerar três momentos históricos que

caracterizam as etapas do processo de desinstitucionalização da

assistência psiquiátrica no Brasil: o primeiro de 1978 à 1991, é

evidenciado como o período em que se fizeram presentes às

críticas ao modelo hospitalocêntrico – movimento social em prol

dos direitos dos pacientes; o segundo, de 1992 à 2000, período

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em que se começa efetivamente a implantação da rede extra-

hospitalar e também a ser instituído as primeiras normas federais

para fiscalização e avaliação dos hospitais psiquiátricos, e o

terceiro, após 2001, marcado pelo respaldo jurídico e sobretudo

pela aprovação da Lei Federal Paulo Delgado 10.216/2001-

PT/MG. (BRASIL, 2005).

Apesar de não instituir mecanismos claros para a

extinção dos manicômios, esta lei - “Dispõe sobre a proteção e o

direito das pessoas portadoras de transtornos mentais e

redireciona o modelo assistencial em saúde mental” - é um

marco impulsionador à Reforma no país. A partir deste ano, a

saúde mental experimenta uma importante expansão que se dá

através de financiamentos instituídos pelo Ministério da Saúde

para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico

em todo o país, é o caso das Portarias: Nº 1174/GM de 7 de

Julho de 2005 e Nº 245/GM de 17 de Fevereiro de 2005.

A partir de então, a Reforma Psiquiátrica se consolida

como política oficial do governo federal, e desta forma, o

Hospital Psiquiátrico - o dispositivo institucional mais evidente

do modo asilar – passa a ser cada vez mais atingido e criticado.

Outras formas, e perspectivas vão sendo desenvolvidas em prol

de um atendimento psicossocial em oposição ao modelo

hospitalocêntrico. São eles: os CAPs, as Residências

Terapêuticas, os Ambulatórios de Saúde Mental, os Centros de

Convivência e Cultura, as Equipes Matriciais de Referência e os

Hospitais-Dias. Neste trabalho, iremos abordar o CAPs: Centros

de Atenção Psicossocial.

De acordo com o Relatório 2003-2006 do Ministério da

Saúde intitulado “Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e

mudança do modelo de atenção” (2007), podemos entender o

CAPs como:

Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) Serviços de saúde municipais, abertos, comunitários, que oferecem atendimento diário às pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, realizando o

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acompanhamento clínico e a reinserção social destas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É função dos CAPS prestar atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando assim as internações em hospitais psiquiátricos; promover a inserção social das pessoas com transtornos mentais através de ações intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede básica.(BRASIL, 2007:63)

O interessante para nós, é destacar o fato que se por um

lado, o que se vê é a redução dos leitos psiquiátricos (Tabela 01)

e dos investimentos financeiros (Tabela 02) destinados aos

Hospitais psiquiátricos, por outro, se têm a expansão e

consolidação dessas redes novas de atenção à Saúde Mental

substitutivas ao modelo hospitalocêntrico (Tabela 03):

Tabela 01 – Número de Leitos de Hospitais Psiquiátricos no Brasil (2002-2006)

Ano Nº de Leitos de Hospitais Psiquiátricos 2002 51.393 2003 48.303 2004 45.814 2005 42.076 2006 39.567

Fonte: Em 2002-2003, SIH/SUS, Coordenação Geral de Saúde Mental e

Coordenações Estaduais. Em 2004-2006, PRH/CNES

Tabela 02 - Proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos Serviços Extra-Hospitalares nos anos de 1997, 2001 e 2004

Composição de Gastos 1997 2001 2004 % Gastos Hospitalares em Saúde Mental

93,14 79,54 63,84

% Gastos Extra-hospitalares em Saúde Mental

6,86 20,46 30,16

Total 100,00 100,00 100,00

Fonte : Ministério da Saúde

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Tabela 03 - Expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (2002-2006)

Tipo de Serviço

2002 2003 2004 2005 2006

CAPS I 145 173 218 283 439 CAPS II 186 208 236 271 320 CAPS III 19 24 29 26 37 CAPSi 32 37 44 56 77 CAPSad 42 58 78 102 138 Total 424 500 605 738 1011

Fonte: Coordenação Geral de Saúde Mental

Observação: CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes; CAPS II – população entre 70.000 e 200.000 habitantes; CAPS III população acima de 200.000 habitantes, CAPS i II – Serviço de atenção psicossocial para atendimentos a crianças e adolescentes, CAPS ad II – Serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com

transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias

psicoativas.

Por meio de mecanismos regulatórios o Estado

contribuiu efetivamente para a desconstrução do modelo asilar.

Mecanismos de avaliação e redução de leitos psiquiátricos,

institucionalizados pelo governo federal como “Programa

Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria

(PNASH/Psiquiatria)” e o “Programa Anual de Reestruturação

da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH)”; aliados à

expansão de uma rede de atenção aberta e comunitária, permitiu

a redução e substituição significativa de leitos psiquiátricos e o

fechamento de vários hospitais psiquiátricos em péssimas

condições de funcionamento.

Destaca-se um dado extremamente relevante: em 2006

atingiu-se a marca de mais de 1000 CAPS cadastrados e em

funcionamento no SUS. Dados como esse e os das tabelas

anteriores, nos permitiu concluir que inexoravelmente há um

deslocamento dos indivíduos com transtornos mentais dos

Hospitais Psiquiátricos para os CAPs, que precisa ser

considerado. A problemática não está somente circunscrita nas

Instituições que asseguram o novo modelo de assistência em

Saúde Mental; ela invade um outro campo, que ainda não foi

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bem delimitado, o sócio-cultural. Agora, a “Casa Verde”

(ASSIS, 1998) abriu suas portas. Dentro dela o saber psiquiantre

e fora dela os ‘loucos’.

Considerações finais – Dos Hospitais Psiquiátricos aos CAPs: Os Corpos Insanos estão entre nós Sabe-se que por muito tempo o transtorno psiquiátrico

esteve diretamente associado ao isolamento, ao afastamento e à

exclusão social. Entre os muros do internamento, nenhuma

lógica operou em favor do indivíduo contribuindo para a sua

reinserção na sociedade. O sistema de atendimento baseado na

internação por tempo indeterminado é o triunfo da tutela, pois

representa proteção total e quase uma substituição jurídica

completa do sujeito pelo Estado, que através da medicina

psiquiátrica cuidará dele. A partir do momento em que se propõe

a substituição desse modelo, torna-se necessário rever o estatuto

da tutela. (PEDRO, P.G, 1992).

A partir de mecanismos institucionais assegurados pelo

Estado, novos modos de atenção à Saúde Mental foram se

expandindo e consolidando, os chamados “modos

psicossociais”; em oposição ao “modo hospitalocêntrico/asilar”

que progressivamente está sendo substituídos por aqueles. Como

princípio fundamental preconizou-se a prestação de uma

assistência fornecida pelo Estado que procurasse garantir um

contato do indivíduo doente com a sociedade. Entretanto, o que

está subjacente, é a proposta de se reformular os espaços para a

‘diferença’ da qual a chamada doença mental era a expressão.

Não se trata de discutir apenas a questão da psiquiatria, das

técnicas de atendimento ao paciente psicótico fora do registro de

internação. É necessário supor que o paciente sairá desse

território excludente para ocupar o espaço de liberdade da polis.

Dois aspectos suplementares à alienação, que vão de

encontro ao paradigma da Saúde Mental, mostrando que ao

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contrário do que se pensa, acabam afirmando ainda mais o poder

da psiquiatria: o primeiro relativo à perpetuação no tempo –

cronicidade – incurabilidade de fato; o segundo relativo à

perpetuação no espaço – alguns casos exigem a inclusão, o que

acaba limitando e relativizando a concepção dos modelos

alternativos. Chegou-se a ‘deshospitalizar’ o doente mental, mas

não “desinstitucioná-lo”. A deshospitalização não conduziu o

doente mental à sociedade, essa é a nossa questão, simplesmente

o deslocou de um tipo de Instituição a outras, ainda especiais a

ele, ou melhor, simplesmente colocou a sua presença em

evidência, antes oculta e até esquecida nos asilos.

Seu corpo, expressão evidente de sua existência e de sua

doença - sua forma de estar-no-mundo, não está mais preso entre

os muros do internamento, está diante de todos, está exposto,

está aí, nas ruas, entre e no meio de nós. Não se trata mais de um

doente mental, mas de um doente mental entre nós; não se pode

mais excluí-lo é preciso aceitá-lo, será?

Numa volta de todo o argumento exposto no tópico sobre

o corpo e partindo do pressuposto de que nossa forma de estar-

no-mundo é corporal, propomos pensar o trajeto que esses

corpos estão fazendo levando em consideração o habitus. Ao

deslocarem dos Hospitais Psiquiátricos para os CAPs, esses

corpos não passam despercebidos nesse novo trajeto que estão

realizando, são imbuídos e enrustidos de uma série de símbolos

e significados que exaltam positivamente a loucura. Ela não será

esquecida, será ainda mais lembrada; será vista, percebida,

observada e criticada por todos nós que a encontraremos em

qualquer dia e em qualquer esquina; ela não está entre os muros

seculares da exclusão e confinamento, ela está diante de nós,

está nos corpos insanos. Consideramos, que a loucura têm o seu

habitus específico, e será justamente por meio deste que iremos

não só reconhecer os ‘loucos’ que estão por aí mas também

discriminá-los e estigmatizá-los.

Este estudo: “Um estudo antropológico dos corpos e sua

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relação com o processo de desinstitucionalização psiquiátrica

no Brasil”, nos permitiu abordar a questão levando em

consideração principalmente à questão dos indivíduos que

possuem esses transtornos mentais; não poderia ser de outra

forma, isso é o que fundamente nossa hipótese - já que é nos

corpos que os problemas mentais se inscrevem, por isso, utilizei

a expressão ‘corpos insanos’.

A multiplicidade de estratégias, intervenções, pesquisas e

visões existentes na área da saúde, são indicadores mais que

nítidos sobre a valorização de novos olhares que transpassam ao

simples modelo biomédico. A antropologia se inscreve, assim,

numa relação de complementariedade aos outros modelos que

abordam a saúde, ao evidenciar o universo social e cultural em

que os indivíduos estão presentes.

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Page 15: Moura Lopes, Cristiane - Do Confinamento Ao Acolhimento

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