341
GUILHERME JOSÉ AMILCAR LEMOS MARQUES MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS: - Uma questão de classe? - Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Prof. Dr. Carlos B. Vainer Rio de Janeiro 2014

MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

  • Upload
    vothuan

  • View
    218

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

GUILHERME JOSÉ AMILCAR LEMOS MARQUES

MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS:

- Uma questão de classe? -

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Carlos B. Vainer

Rio de Janeiro 2014

Page 2: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Page 3: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Page 4: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

Dedico essa tese ao meu pai, Amilcar, de quem tenho muito orgulho e saudade, e à minha menininha linda e querida, Alice, a maior felicidade que um pai pode ter.

Page 5: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

AGRADECIMENTOS Agradeço a todos os militantes dos movimentos sociais cariocas e

particularmente dos movimentos urbanos: Marcelo, Aldair, Lurdinha, Gelson,

Cláudio, Marcelão, Durão, Nívia, Jane, Maurício, Gizele, Fiell e tantos e tantos outros

que dedicam suas vidas às lutas urbanas e à construção de movimentos e outros

instrumentos de organização e expressão dos trabalhadores pobres. Esse trabalho

nada significaria sem cada um desses militantes!

Agradeço ao meu orientador, Professor Carlos Vainer, por toda a sua ajuda

na confecção dessa tese e pelo incentivo quando mais necessitei. E agradeço

também à Sonia, que não deixou que desistíssemos.

Agradeço a todos os professores, trabalhadores e alunos do IPPUR/UFRJ e a

todos os pesquisadores do ETTERN pela amizade e por tudo que me ensinaram e

proporcionaram.

Agradeço ao meu grande amigo Renato Cinco. Sua determinação e

dedicação à luta são inspiradoras e todo o apoio que me deu para finalizar esse

trabalho nunca será esquecido. E agradeço à Cristina Braga e Dudu, amigos que me

acolheram com tanto carinho para que eu pudesse escrever essa tese.

Agradeço a todos os meus amigos por tudo que vivemos juntos ao longo dos

anos: Trog, Vivi, Rodrigão, Morel, Flávia, Thi, Dani Abreu, Gil, Alê, Zeca, Vito,

Claudinha, Luiza, Renatinha, Rogério, Verinha, Daniel, Lili, Ana Pacheco, Cris, Mari,

Cinthia, Tomás, Allan, Verônica, Léo, Bel, Jorge, Carmen, Renatão, Javier, Sandra,

Gustavo, Morales, Marco André, Sandrinha, Camilla, Heitor, Dudu, Vargues, Álvaro,

Leon, Lollo e tantos outros, obrigado por tudo!

Agradeço à minha mãe Eloisa e ao meu irmão Arthur, por todo o carinho e

apoio que sempre me deram. Agradeço a Lulu, a Filó, Clara e Maria Clara e a toda a

minha família sempre tão presente nos momentos de dor e de alegrias.

Agradeço ao meu grande amor Ana Magni. Difícil dizer o que seria minha vida

sem ela. Certo é que essa tese não existiria sem todo o companheirismo que Ana

me proporcionou, criando as condições para que eu pudesse realizar esse trabalho,

que de fato é nosso, mesmo levando apenas o meu nome.

Page 6: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

RESUMO O presente trabalho se insere no debate acerca do que ficou conhecido nas ciências

sociais brasileiras como “movimentos sociais urbanos”. As décadas de 1970 e 1980

conheceram um profundo redespertar de lutas da(s) classe(s) trabalhadora(s) no

Brasil. Nesse período eclodiram lutas e formas distintas de organização popular que

tinham por objetivo intervir nos processos de transformação urbana em curso. Esses

movimentos foram também objeto de análises acadêmicas que conduziram à

conformação do que se poderia chamar de “campo de estudos sobre os movimentos

sociais urbanos no Brasil”. Os anos 1990 e 2000 foram de grandes mudanças nesse

cenário. A queda do muro de Berlim e o fim da URSS, a onda neoliberal que varreu

o mundo e as transformações no mundo do trabalho abriram caminhos para um

novo momento da mundialização do capital e para as profecias de fim da história e

das lutas de classes. No Brasil, antigos opositores do regime militar chegaram ao

governo, através dos presidentes FHC (PSDB) e Lula (PT). Em que pesem as

diferenças, o receituário neoliberal foi a tônica política nessas duas décadas.

Surgiram novos partidos políticos, novas lutas e novas formas de organização dos

subalternos em meio à nova conjuntura de refluxo das grandes mobilizações de

massa e fragmentação das lutas populares. No campo acadêmico, os estudos sobre

os movimentos sociais também perderam espaço e o uso dos conceitos de classes

sociais e lutas de classes foi duramente atacado pelas ideologias pós-modernas.

Esse trabalho, a partir da pesquisa empírica e da pesquisa participante, reflete sobre

os movimentos sociais urbanos, com destaque para os que lutaram por moradia no

Brasil nos anos 2000. A questão principal é a relação entre esses movimentos

organizados (e as experiências e identidades por eles propiciadas) e o fazer-se da

classe trabalhadora brasileira. Para tal, são analisadas as práticas, discursos,

relações sociais, formas organizativas e de luta e a cultura política desses

movimentos, promovendo um diálogo com algumas teorias que relacionam

movimentos sociais urbanos e classes sociais e um diálogo com as principais

análises históricas sobre esses movimentos no Brasil.

Palavras-chave: Movimentos sociais urbanos. Classes sociais. Classe trabalhadora.

Experiências comuns.

Page 7: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

ABSTRACT This paper is part of the debate about what is known in Brazilian social sciences as

“urban social movements”. The decades of 1970 and 1980 have known a deep

reawaken of the struggle of the working classes in Brazil. During this period emerged

many struggles and distinct ways of popular organization that had the objective to

intervene in the process of the urban transformation in course. These movements

were also objects of academic analyses that led to the conformation of what could be

called the "field of studies on urban social movements in Brazil". The period of 1990

and 2000 had huge changes in the cenario. The fall of Berlim’s wall and the URSS

end, the neoliberal wave that swept the world and the transformations in the work

world paved the way for a new moment of the globalization of capital and for the end-

of-history prophecies and class struggles. In Brazil, old opponents of the military

regime came to power through presidents FHC (PSDB) and Lula (PT). In spite of

differences, the neoliberal recipe was the political tone in those two decades. New

political parties, new struggles and new forms of organization of the subalterns arose

in the midst of the new conjuncture of reflux of the great mass mobilizations and

fragmentation of popular struggles. In the academic field, studies on social

movements also lost ground, and the use of the concepts of social classes and class

struggles was harshly attacked by postmodern ideologies. This work, based on

empirical research and participant research, reflects on urban social movements,

especially those who fought for housing, in Brazil in the 2000s. The main question is

the relationship between these organized movements (and the experiences and

identities they provide) and the “make yourself” of the Brazilian working class. To that

end, the practices, discourses, social relations, organizational and struggle forms and

the political culture of these movements are analyzed, promoting a dialogue with the

theories that relate urban social movements and social classes and a dialogue with

the main historical analyzes on these movements in Brazil.

Key words: Urban Social Movements. Social Classes. Working Class. Common experiences.

Page 8: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABI – Associação Brasileira de Imprensa

ABONG - Associação Brasileira de Organizações não Governamentais

ACO - Ação Católica Operária

ADUFF – Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense

ADUNIRIO – Associação dos Docentes da Universidade Federal do Estado do RJ

AGB - Associação de Geógrafos do Brasil

ALCA – Área de Livre Comércio das Américas

AMAJB – Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico

AMES – Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas

ANAMPOS - Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais

ANCOP - Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa

ANDES-SN - Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior

ANEL – Assembleia Nacional de Estudantes - Livre

ANF - Agência de Notícia das Favelas

ANPOCS - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

ANPUR – Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Planejamento

Urbano e Regional

ANSUR - Articulação Nacional do Solo Urbano

ANT - Associação Nacional dos Torcedores

AP - Assembleia Popular

APAFUNK - Associação dos Profissionais e Amigos do Funk

ASDUERJ - Associação dos Docentes da UERJ

ASSIBGE-SN – Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas

Federais de Geografia e Estatística

BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

BNH – Banco Nacional de Habitação

C21J - Coletivo 21 de Julho

CAB - Coordenação Anarquista Brasileira

CA – Centro Acadêmico

CBLB - Círculos Bolivarianos Leonel Brizola

CEB - Comunidades Eclesiais de Base

CEDAPS – Centro de Promoção da Saúde

Page 9: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

CMI - Centro de Mídia Independente

CMP - Central dos Movimentos Populares

CNPJ - Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica

CNT – Confederação Nacional do Transporte

COI – Comitê Olímpico Internacional

CONAM - Confederação Nacional das Associações de Moradores

CONCA - Conselho de Cidadania do Alto da Boa Vista

CONLUTAS - Coordenação Nacional de Lutas

CP - Conselho Popular

CPP - Comissão Política Pedagógica

CSP-CONLUTAS - Central Sindical e Popular - Coordenação Nacional de Lutas

CTB - Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil

CUT – Central Única dos Trabalhadores

DBUAA - Deutsche Bank Urban Age Award

DCE – Diretório Central de Estudantes

DDH - Instituto de Defensores de Direitos Humanos

DPQ – Direito para Quem?

ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente

EMPOP - Encontro Popular por Outra Segurança Pública

ETTERN – Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza

FAFERJ - Federação das Associações das Favelas do Estado do Rio de Janeiro

FAF-Rio - Federação das Associações de Moradores de Favelas do Município do

Rio de Janeiro

FAMERJ - Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro

FAM-Rio - Federação das Associações de Moradores do Município do Rio de

Janeiro

FARJ - Federação Anarquista do Rio de Janeiro

FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional

FEDEP - Fórum em Defesa da Educação Pública

FELRU - Fórum Estadual de Luta pela Reforma Urbana

FETRANSPOR - Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do

Estado do Rio de Janeiro

FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

Page 10: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

FIFA - Federação Internacional de Futebol (do francês: Fédération Internationale de

Football Association)

FIP - Frente Independente Popular

FIST - Frente Internacionalista dos Sem-Teto

FLM - Frente de Luta pela Moradia

FLP - Frente de Luta Popular

FNRU - Fórum Nacional de Reforma Urbana

FNT - Frente Nacional dos Torcedores

FOE-UNE - Frente de Oposição de Esquerda – União Nacional dos Estudantes

FSU – Fórum Social Urbano

FT (Força de Trabalho)

FUM – Fórum Urbano Mundial

GLP - Grupo de Luta dos Petroleiros

GT – Grupo de Trabalho

GTNM - Grupo Tortura Nunca Mais

IAP - Instituto de Aposentadoria e Pensão

IASERJ - Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro

IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IETS - Instituto dos Estudos do Trabalho e Sociedade

INSS - Instituto Nacional do Seguro Social

INTERSINDICAL - Instrumento de luta, unidade da classe e de construção de uma

central

IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPP - Instituto Pereira Passos

IPPUR - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade

Federal do Rio de Janeiro

IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano

ITERJ - Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro

JOC - Juventude Operária Católica

LS – Liberdade Socialista

MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens

MCMV – Minha Casa Minha Vida

Page 11: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

MCMVE - Minha Casa Minha Vida Entidades

MCP - Movimento dos Conselhos Populares

ME – Movimento Estudantil

MEPR - Movimento Estudantil Popular Revolucionário

MFP - Movimento Feminino Popular

MFST - Movimento das Famílias Sem Teto

MIR - Movimento Indígena Revolucionário

MLD – Movimento pela Legalização das Drogas

MLM - Movimento pela Legalização da Maconha

MLP - Movimento de Luta Popular

MNLM - Movimento Nacional de Luta por Moradia

MORENA-CB - Movimento Revolucionário Nacionalista Círculos Bolivarianos

MPL - Movimento Passe Livre

MPM - Movimento Popular por Moradia

MRP - Movimento de Resistência Popular

MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MSTB - Movimento dos Sem Teto da Bahia

MSTC - Movimento dos Sem Teto do Centro de São Paulo

MSU – Movimento Social Urbano

MTD - Movimento dos Trabalhadores Desempregados

MTL – Movimento Terra Trabalho e Liberdade

MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto

MTSTRC - Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Região Central

MUCA - Movimento Unificado dos Camelôs

MUDI - Movimento de Moradores e Usuários em Defesa do IASERJ

MUP - Movimento de União Popular

MUST - Movimento Urbano dos Sem Teto

NAJUP-RJ - Núcleo de Assessoria Jurídico Popular

NEARA - Núcleo Estudantil de Apoio à Reforma Agrária

NPC - Núcleo Piratininga de Comunicação

OATL - Organização Anarquista Terra e Liberdade

OCR - Oposição de Resistência Classista - Educação RJ

OGX - Óleo e Gás Participações S.A.

ONG – Organização não Governamental

Page 12: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

ONU - Organização das Nações Unidas

OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PAC - Programa de Aceleração do Crescimento

PACS - Políticas Alternativas para o Cone Sul

PAN 2007 - Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro

PCB - Partido Comunista Brasileiro

PCdoB - Partido Comunista do Brasil

PCR - Partido Comunista Revolucionário

PDT - Partido Democrático Trabalhista

PM – Polícia Militar

PMS - Plenária dos Movimentos Sociais

POF - Pesquisa de Orçamentos Familiares (IBGE)

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

PSOL - Partido Socialismo e Liberdade

PSTU - Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado

PT – Partido dos Trabalhadores

PTB - Partido Trabalhista Brasileiro

PUC – Pontifícia Universidade Católica

RECC - Rede Estudantil Classista e Combativa

RENAJORP - Rede Nacional de Jornalistas Populares

RENAP - Rede Nacional de Advogados Populares

RR - Reunindo Retalhos

SAB - Sociedades de Amigos do Bairro

SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SENGE-RJ - Sindicato de Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro

SEPE-RJ - Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro

SFH - Sistema Financeiro da Habitação

SIMERJ – Sindicato dos Metroviários do Estado do Rio de Janeiro

SINDJUSTIÇA - Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Rio

de Janeiro

SINDIPETRO-RJ - Sindicato dos Petroleiros do Estado do Rio de Janeiro

SINDISPREV-RJ - Sindicato dos Trabalhadores da Saúde, Trabalho e Previdência

Social do Estado do Rio de Janeiro

Page 13: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

SINTTEL-RJ – Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações no

Estado do Rio de Janeiro

SINTRASEF-RJ - Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Federal no Estado

doRio de Janeiro

SINTUFF - Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal

Fluminense

SINTUFRJ - Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do

Rio de Janeiro

SINTUPERJ - Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais

SUS – Sistema Único de Saúde

TKCSA - ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico

TV – Emissora de Televisão

UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas

UEE – União Estadual de Estudantes

UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UJR - União da Juventude Rebelião

ULC - Unificação das Lutas do Cortiço

UMM - União dos Movimentos de Moradia

UNE – União Nacional dos Estudantes

UNIPA - União Popular Anarquista

UNMP - União Nacional por Moradia Popular

UPP – Unidade de Polícia Pacificadora

URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

UV - Unidade Vermel

Page 14: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 16

2 CAPÍTULO I - O PRIMEIRO OLHAR ..................................................................... 19

2.1 Olhando depois ................................................................................................. 19

2.1.1 As manifestações de 2013 e o “mal estar” nas cidades ................................... 19

2.1.2 As manifestações de 2013, os movimentos sociais urbanos e a “velha toupeira”

.................................................................................................................................. 29

2.2 Olhando de fora ................................................................................................. 36

2.2.1 O Fórum Social Urbano no Rio de Janeiro ....................................................... 36

2.2.2 A organização do FSU ..................................................................................... 40

2.3 Olhando de dentro ............................................................................................ 44

2.3.1 Lutas e experiências comuns dos movimentos sociais urbanos cariocas ........ 44

2.3.2 Os movimentos sociais urbanos no Rio de Janeiro e seus aliados .................. 57

2.4 Olhando de frente .............................................................................................. 65

2.4.1 O contexto e as lutas dos movimentos com foco na habitação no Rio de

Janeiro ...................................................................................................................... 65

2.4.2 Os movimentos sociais organizados com foco na habitação no Rio de Janeiro

.................................................................................................................................. 72

2.4.3 Práticas e discursos dos movimentos por moradia .......................................... 93

2.5 Olhando de um lugar......................................................................................... 99

3 CAPÍTULO II- OS DIÁLOGOS ............................................................................. 107

3.1 O 1º diálogo: local de trabalhar e local de viver e movimentos sociais

urbanos .................................................................................................................. 109

3.1.1 Local de trabalhar e local de viver e a divisão dos trabalhadores em duas lutas

independentes ......................................................................................................... 110

3.1.2 Movimentos sociais urbanos e a divisão em duas lutas independentes ........ 118

3.2 O 2º diálogo: movimentos sociais urbanos e classes sociais .................... 132

3.2.1 O fazer-se da classe trabalhadora ................................................................. 136

Page 15: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

3.2.3 Mais algumas questões sobre o fazer-se da classe ....................................... 159

3.3 O 3º diálogo: os movimentos sociais urbanos no Brasil .................................... 171

3.3.1 Novos e velhos movimentos sociais urbanos ................................................. 174

3.3.2 Novos movimentos sociais urbanos e novas e velhas questões .................... 187

3.3.3 Movimentos sociais urbanos e classes populares .......................................... 198

3.3.4 Década de 1990: anos de transição para os MSUs ....................................... 209

4 CAPÍTULO III - MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E O FAZER-SE DA

CLASSE TRABALHADORA NO BRASIL DOS ANOS 2000 ................................. 226

4.1 A ocupação Manoel Congo e a “refundação” do MNLM-RJ ........................ 230

4.1.1 O contexto e a resposta política do movimento .............................................. 231

4.1.2 Gestão, experiências e movimento ................................................................ 239

4.1.3 Dinâmicas contraditórias em disputa na vida do grupo e do movimento ........ 266

4.2 PMS-RJ: experiências comuns, frações e classe ......................................... 285

4.2.1 Formação e funcionamento da PMS-RJ......................................................... 286

4.2.2 Atores, sujeitos, frações e classes sociais na PMS-RJ .................................. 296

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 315

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 326

Page 16: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

16

1 APRESENTAÇÃO

Por longos anos tenho acompanhado e estudado os movimentos sociais

urbanos (MSUs) cariocas, especialmente aqueles de luta por moradia. Segui de

perto o dia a dia de vários movimentos, participando de suas manifestações e atos

públicos, presenciando ações de ocupação, festas, reuniões ou cursos de formação

política. Em função da relação de proximidade, confiança e amizade desenvolvida

durante esses anos, pude estar presente também em atividades de caráter mais

restrito, nas quais eram discutidos problemas internos ou decididas estratégias de

ação. Ao mesmo tempo, participei também de inúmeras conversas informais em

atividades dentro de algumas ocupações, tanto com aqueles que são representantes

ou dirigentes dos movimentos quanto com aqueles que compõem o que os militantes

chamam de “base”. Participei também, na condição de pesquisador e de militante,

das principais tentativas de organização de fóruns de articulação entre os

movimentos sociais urbanos e entre esses e outros movimentos e aliados. Dessa

forma, pude ver de perto como os movimentos urbanos se articulam com outros

movimentos e entidades que fizeram de fato as lutas sociais no Rio de Janeiro no

século XXI.

A questão sobre a qual me propus a refletir busca responder a uma pergunta

que poderia ser assim formulada: os movimentos sociais urbanos participam do

fazer-se da classe trabalhadora no Brasil e, em caso positivo, em que medida e de

que forma? Esta pergunta interpela os movimentos organizados e, de certa maneira,

minha própria atividade militante; além disso, em consequência, pode ser tomada

como uma questão que transcende o embate político propriamente dito para

inscrever-se no terreno da pesquisa acadêmica. Por outro lado, a investigação de se

e como se dá esse processo foi realizada a partir de um olhar por dentro desses

movimentos, de suas práticas, discursos, formas de organização, de formação

política, as experiências que produzem e partilham, de como nomeiam a si mesmos,

aos seus aliados e inimigos (construção identitária), e como se relacionam com

outros movimentos e lutas dos trabalhadores.

No Capítulo I, que chamei de “Primeiro Olhar”, discorro sobre a ampla

diversidade de movimentos e experiências de luta e organização vistas no Rio de

Janeiro no período estudado. Entre essas, descrevo com mais detalhes o

funcionamento e as ações dos movimentos organizados de luta por moradia e os

Page 17: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

17

fóruns de articulação em que esses movimentos e seus aliados atuaram

prioritariamente ou nos quais tiveram maior importância política.

No Capítulo II, tendo como base a observação imediata apresentada no

“primeiro olhar”, realizo um diálogo com algumas teorias que relacionam movimentos

sociais urbanos com as classes sociais. Busco identificar insuficiências conceituais,

problemas teóricos mal resolvidos e as contradições entre essas análises teóricas e

a observação empírica. Procuro também perceber questões que exijam um

aprofundamento maior da pesquisa ou uma reflexão específica no sentido de

responder sobre a relação entre os MSUs no Brasil dos anos 2000 e o fazer-se de

classe.

Ainda no Capítulo II, apresento um diálogo com a rica historiografia sobre os

movimentos sociais urbanos no Brasil, produzida nos anos 1980, e que ajudou a

conformar um campo de estudos sobre o tema. Várias questões consideradas

paradigmáticas sobre os MSUs naquele período permanecem sendo objeto de

reflexão teórica e política, sendo reconfiguradas nas práticas e reflexões de

militantes e pesquisadores, assumindo novos significados e influenciando

experiências comuns. Dialogo também com algumas produções dos anos 1990 e

2000, período em que, tanto as ações desses movimentos quanto os estudos sobre

eles, passaram por mudanças significativas em meio ao chamado refluxo das

grandes mobilizações de massa e com a fragmentação e institucionalização de lutas

e movimentos. Nesse período (sobretudo já nos anos 2000), surgiram os

“novíssimos” movimentos sociais urbanos, ao mesmo tempo em que aqueles mais

antigos e consolidados – os “novos” - apresentaram suas respostas mais ou menos

inovadoras a essa (nova) conjuntura.

No Capítulo III, a partir da narrativa mais factual e empírica do “primeiro olhar”

e dos “diálogos teóricos e históricos”, retorno aos movimentos sociais urbanos e ao

contexto político dos anos 2000, refletindo a partir de dois casos – o da Ocupação

Manoel Congo e o da Plenária de Movimentos Sociais do Rio de Janeiro - sobre

questões específicas da relação desses movimentos com o fazer-se de classe.

Tendo esses casos como base, examino os processos de formação política desses

movimentos e o uso de noções como “classes sociais”, “luta de classes”, “excluídos”

e “trabalhadores”. Analiso também os processos de construção de identidade e

alteridade estimulados ou favorecidos nesses grupos e a composição social dos

Page 18: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

18

MSUs e ocupações para moradia. Examino como esses movimentos se relacionam

com outros grupos representativos das lutas urbanas e das lutas dos trabalhadores.

Apresento de forma mais sistemática seus posicionamentos discursivos e práticos

acerca de temas como o Estado, a propriedade privada, o trabalho e o sistema

capitalista e examino de forma mais detalhada a participação das pessoas nos

movimentos urbanos de luta por moradia e em experiências fundamentais para

esses grupos, como as ocupações.

Busco, dessa forma, perceber quem são e se e como essas pessoas e grupos

transformam suas visões de mundo, adquirem novos hábitos e práticas, vivem novas

experiências e os significados que atribuem a essas experiências e mudanças. E,

também, se passam a participar de lutas e discussões que antes desconheciam,

observo o grau de organização real dessas pessoas e, como decorrência, que

mudanças na consciência a participação nessas lutas e movimentos organizados

propicia ou favorece. Conforme as reflexões sobre os participantes e as relações dos

MSUs com outros movimentos e atores sociais, procuro avançar no entendimento

sobre os movimentos sociais urbanos, perseguindo uma definição que ajude a

descrever a multiplicidade de experiências vistas nesses movimentos e uma análise

sobre o que esses expressam e representam em termos de classe social e para o

fazer-se da classe trabalhadora no Brasil dos anos 2000, questões as quais retorno

nas Considerações Finais.

Pretendo, com esse trabalho de pesquisa e tese, além de resgatar parte da

história recente dos movimentos sociais urbanos cariocas, suas lutas e seus

espaços de articulação política com outros movimentos, contribuir com reflexões e

conhecimentos sobre um tema que reconhecidamente é mal ou insuficientemente

resolvido e estudado na literatura acadêmica e muito polêmico também entre os que

atuam nesses movimentos sociais ou são seus apoiadores e aliados. Um tema que

precisa ser enfrentado, tanto para iluminar o processo de fazer-se da classe

trabalhadora brasileira quanto para se entender os movimentos sociais urbanos,

seus objetivos, práticas e experiências.

Page 19: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

19

2 CAPÍTULO I - O PRIMEIRO OLHAR

2.1 Olhando depois

2.1.1 As manifestações de 2013 e o “mal estar” nas cidades

O ano de 2013 foi marcante para as lutas populares brasileiras. Depois de

muitos anos, grandes manifestações de rua voltaram a ser vistas em todo o país.

Milhões de pessoas, em centenas de cidades brasileiras, foram às ruas exigir

mudanças, reivindicar seus direitos e melhores condições de vida. As passeatas

contra o aumento das passagens nos transportes coletivos em São Paulo e no Rio

de Janeiro, brutalmente reprimidas pelas forças policiais, foram o estopim que

catalisou as mais diversas insatisfações populares, produzindo um processo de

crescente participação nas manifestações de rua e de multiplicação dessas por

todos os cantos do país.

Desnecessário dizer da importância das lutas e manifestações dos últimos dias. Elas expressam uma extraordinária vontade não apenas de mudar as políticas de transporte, educação, saúde, etc, como pretendem alguns analistas que buscam reduzir o significado dos acontecimentos dos últimos dias, mas de transformar de modo radical a sociedade brasileira e as formas de exercício do poder político. (VAINER, 2013a) Em 20 de junho, quase 400 cidades, incluindo 22 capitais, saíram em manifestações e passeatas (...) O país da “cordialidade” mostrava, uma vez mais, que sabe também se rebelar. A explosão chegou a praticamente todos os rincões do país. (ANTUNES e BRAGA, 2013)

O dia 20 de junho de 2013 foi um marco na história do Brasil e

particularmente na do Rio de Janeiro. Após a redução dos preços das passagens,

na véspera, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em diversas outras cidades, em uma

tentativa fracassada dos governos de frear as manifestações, o povo voltou às ruas,

em manifestações em todo o país, como que reafirmando que sua luta “não era por

centavos, mas por direitos”1.

No Rio de Janeiro, em pleno dia de jogo da Copa das Confederações no

Maracanã, a passeata reuniu mais de um milhão de pessoas, ocupando

1 “Não é por centavos, mas por direitos”, simbólica frase diversas vezes estampada em faixas e cartazes em manifestações em todo o país.

Page 20: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

20

simultaneamente toda a Avenida Presidente Vargas, da Candelária até a Prefeitura,

além de outras ruas laterais e da Av. Rio Branco, no que talvez tenha sido a maior

manifestação vista na história da cidade. Ao chegar à prefeitura, as forças de

segurança tentaram dispersar os manifestantes, tendo início então uma intensa

batalha campal que prosseguiu noite adentro, terminando com uma fortíssima

repressão policial2.

Desorientados, sem saber o que fazer, prefeitos que na véspera denunciavam arruaceiros e juravam ser impossível rever os aumentos, começam a suspender os reajustes de passagens e, mesmo, a reduzir os preços vigentes. Como explicar que tarifas que deveriam ser aumentadas possam ser diminuídas? Eles não explicavam nada, apenas explicitavam sua inconsistência, sua desorientação, sua total falta de política para o tratamento deste problema crucial de suas cidades que é o transporte público. A tentativa de amortecer o movimento com essas primeiras concessões só poderia ter o efeito contrário. As pessoas entenderam a mensagem: a luta e a pressão permitem conquistas que pareciam impossíveis na véspera. “Se você tem alguma reivindicação ou protesto, o caminho é ir para as ruas e manifestar”. “Queremos isso e queremos mais”, respondem as ruas. Mais manifestações, mais gente nas manifestações. E a pradaria pega fogo. (VAINER, 2013a) A partir dessa inegável vitória, o movimento de rua espalhou-se pelas principais cidades do país, ao ponto de uma pesquisa nacional realizada pelo instituto CNT/Ibope, publicada no dia 21 de junho, indicar que 75% da população estava apoiando as manifestações e que 6% dos entrevistados (equivalente a 12 milhões de pessoas) haviam participado de algum dos protestos. Além disso, a pauta de reivindicações transcendeu o tema do direito ao transporte coletivo de qualidade, expandindo-se para demandas a respeito de outros serviços públicos, notoriamente, a saúde e a educação. (ANTUNES e BRAGA, 2013)

Visto que as jornadas de junho de 2013 mobilizaram milhões em centenas de

cidades e angariaram grande simpatia popular3, cabe destacar que uma das

2 Mattos, em texto escrito no dia 21 de junho de 2013, fala sobre a repressão que se seguiu à manifestação do dia anterior: “No Rio de Janeiro, na noite passada, o asfalto tremeu quando a PM empregou todo a força que exercita em uso diário nas áreas periféricas e favelizadas. No momento em que centenas de milhares de manifestantes se aproximaram da prefeitura da cidade, uma ação “preventiva” disparou bombas e balas de borracha na multidão, numa situação em que todos estavam privados de transportes públicos (os ônibus não circulavam dada a própria manifestação e o metrô fechou suas estações). Empurrando a multidão de volta ao Centro, os famosos “Caveirões” da PM carioca começaram a circular “para limpar” a área (palavras da própria polícia), fazendo uso de todo o arsenal militar a sua disposição contra quem quer que estivesse nas ruas. Dezenas de feridos foram parar nos hospitais da cidade em decorrência dessa ação que varou a madrugada”. (MATTOS, 2013) 3 Segundo pesquisa do Instituto Datafolha realizada em junho de 2013, 81% da população apoiava as manifestações. Em nova pesquisa do mesmo instituto, em agosto de 2013, esse número era de 77% (Matéria do Portal Terra, de 24 de fevereiro de 2014). Encontrado em: www.terra.com.br

Page 21: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

21

principais características dessas manifestações (tanto das do dia 20 de junho, como

das que ocorreram anterior e posteriormente) foi a expressiva presença dos jovens,

com destaque para o grande número de jovens trabalhadores4.

Não devemos esquecer que nos últimos dez anos, 94% dos empregos criados no mercado formal de trabalho brasileiro remuneravam até 1,5 salários mínimos (sendo que o salário mínimo é, pela cotação de junho de 2013, de aproximadamente US$ 320,00 por mês). (...) Se levarmos em consideração cque do total desses empregos, pouco mais de 60% foi preenchido por jovens entre 18 e 28 anos de idade, perceberemos que a inquietação social promovida pela percepção dos limites do atual modelo tendeu a se concentrar entre os setores formados por jovens trabalhadores precarizados recebendo pouco mais do que 1,5 salários mínimos. E esse contingente cumpriu um papel-chave na deflagração do levante popular de junho de 2013 no Brasil. (ANTUNES e BRAGA, 2013)

Conforme a pesquisa realizada pela consultoria “Plus Marketing” na passeata do dia 20 de junho de 2013, na cidade do Rio de Janeiro, a maioria dos manifestantes encontra-se no mercado de trabalho (70,4%), ganhando até um salário mínimo (34,3%). Se somarmos estes aos que ganham entre dois e três salários mínimos (30,3%), temos que mais de 64% do total de um milhão de pessoas que foram às ruas no Rio de Janeiro são parte desse proletariado precarizado urbano. Se, no início, havia um predomínio da juventude estudantil, ela desde logo se mesclou aos assalariados médios urbanos e já há vários dias atingiu profundamente as periferias, com um cenário de manifestações e reivindicações que tocam diretamente as classes populares. (ANTUNES e BRAGA, 2013)

O aumento do preço dos transportes fora o estopim, os jovens (estudantes e

trabalhadores urbanos precarizados) o grupo social mais atuante. A velocidade na

qual as manifestações - que até então vinham reunindo alguns milhares de pessoas

em São Paulo e no Rio de Janeiro - passaram a reunir milhões nas ruas de todo o

país foi realmente surpreendente. Mas essa surpresa foi ainda maior, ou mesmo

qualitativamente diferente, para aqueles que não viam, ou não queriam ver, o “mal-

estar” que crescia nas grandes cidades e metrópoles brasileiras e que se

4 Outras características marcantes dessas manifestações, além da grande participação dos jovens e da repressão policial foram: o uso das redes sociais da internet para marcar e convocar as manifestações; as táticas desenvolvidas pelos manifestantes para o enfrentamento com as forças policiais, como o uso de máscaras e de vinagre; a utilização de pequenos cartazes feitos à mão para expressar os diversos descontentamentos; o ataque (com ocupações e depredações) a símbolos do Estado e da democracia representativa, como o Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e sedes de prefeituras, e também a símbolos da sociedade capitalista e do consumo, como lojas de telefone celular, de “fast food” e de automóveis, além de veículos e sedes de grupos empresariais da mídia. Em algumas manifestações, sobretudo nos dias 17 e principalmente 20 de junho, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o uso por parte dos manifestantes de uma indumentária verde e amarela e um forte sentimento anti-partidos também foram características marcantes.

Page 22: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

22

expressava através dos mais variados e fragmentados conflitos urbanos que, há

anos, ocorriam diariamente no país.

Governantes, jornalistas e representantes da mídia empresarial, e mesmo

muitos analistas políticos e de economia, acreditavam que o crescimento econômico

e as pequenas melhorias na distribuição de renda, com o amplo acesso ao crédito e

aos novos empregos de baixos salários vistos nos anos anteriores tinham, de fato,

mudado profundamente o país. Acreditavam que nesse “paraíso” a acomodação da

população e dos movimentos sociais iria se eternizar, com estes se satisfazendo e

se apegando a essas pequenas mudanças “dentro da ordem”.

Então, o inesperado aconteceu: explodiram os protestos da praça Taksim, no centro de Istambul. E hoje todo mundo já sabe que a transformação do tal parque que faz fronteira com a praça em um centro comercial não foi exatamente o motivo dos protestos; um mal estar mais profundo foi ganhando força sob a superfície. É o mesmo com os protestos que eclodiram no Brasil em meados de junho: foram sim desencadeados por um pequeno aumento no preço do transporte público, mas então por que continuaram mesmo após essa medida ser revogada? Mais uma vez, os protestos eclodiram em um país em que, ao menos de acordo com a mídia, encontrava-se em seu ápice econômico, desfrutando da alta confiança depositada em seu próprio futuro. (ZIZEK, 2013, p. 102)

Só hoje de manhã li pelo menos três artigos confessando “perplexidade” diante dessas realmente espantosas “jornadas de junho”. (...) O cronista, que admite não estar entendendo nada e exige a mesma franqueza dos demais, da imprensa, dos políticos e dos próprios manifestantes; o correspondente internacional, que talvez tenha vivido anestesiado pela rotina da profissão, cobrindo anos de prosperidade festejada pelos investidores estrangeiros; o veterano do mundo petista agoniado pelos sinais alarmantes de fadiga da estratégia de mudanças sem ruptura, com dez anos de conquistas dentro da ordem e níveis coreanos de aprovação eleitoral arriscando ir para o vinagre à menor gota d’água. (...) A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais. Essa é a dissonância básica, ainda mais estridente quando o contexto é de baixo desemprego, como você bem lembrou. Não seja por isso. Sei que a comparação frisa o disparate, mas não custa recordar que o maior movimento contestatário da segunda metade do século 20, disparado pelo maio francês de 1968, ocorreu justamente no auge de um ciclo inédito de crescimento econômico, pleno emprego e Estado social a todo vapor, sendo que três meses antes da explosão o mais acatado colunista da época publicara um artigo descrevendo a França como um país entorpecido pela autossatisfação. (ARANTES, 2013)

Page 23: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

23

A natureza dos protestos suscitou não apenas a perplexidade por parte de

jornalistas, analistas da mídia e governantes. Suscitou também um processo de

disputa, uma “batalha” de representações sobre o significado do que estava

ocorrendo e, dessa forma, de disputa sobre os acontecimentos e sobre os rumos e

desdobramentos das manifestações.

O caráter “difuso” ou “sem foco” dos protestos e a “falta de líderes” e de

“propostas políticas concretas e claras” foram argumentos repetidos à exaustão nos

meios de comunicação em tentativas de qualificar o movimento como de “rebeldes

sem causa” e de desqualificar as manifestações. Essas, cada vez mais, pareciam

expressar um sentimento mais geral, de profundo mal-estar social e de indignação

com as reais condições de vida nas cidades, em contraste com o que se via nas

propagandas oficiais. Demonstravam também uma grande insatisfação com os

sistemas político e econômico e uma potente crítica ao status quo.

Devemos evitar o essencialismo aqui: não existe um único objetivo perseguido pelos manifestantes, algo capaz de, uma vez concretizado, reduzir a sensação geral de mal estar. O que a maioria dos manifestantes compartilha é um sentimento fluido de desconforto e descontentamento que sustenta e une demandas particulares. (...) A luta pela interpretação dos protestos não é apenas “epistemológica”; a luta de jornalistas e teóricos sobre o verdadeiro teor dos protestos é também uma luta “ontológica”, que diz respeito a coisa em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalha ocorrendo dentro dos protestos sobre o que eles representam (ZIZEK, 2013, p. 103) Quanto ao “caráter difuso” das demandas, trata-se de um bordão pejorativo porque, em sua infinita variedade, além de serem de uma espantosa precisão – nada menos do que tudo, como o Terceiro Estado em 1789 queria tudo por não ser nada -, elas sugerem um limiar que no fundo ainda não se ousou transpor. (ARANTES, 2013) Tiveram que reconhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e abrangente manifestação política de protesto contra o status quo. Fora dos partidos, incapazes de canalizar e expressar a vitalidade e a diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso trata-se de um processo “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem olha para a árvore e não vê a floresta: transporte, saúde, educação, corrupção, democracia, desperdício dos recursos públicos, participação política, direitos humanos. Algum partido, nos últimos anos, produziu alguma pauta ou agenda mais precisa e concreta? Sob alguns aspectos, chega a ser surpreendente o altíssimo nível de consciência política expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estão indo às ruas. (VAINER, 2013a)

Page 24: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

24

Essa batalha pelas representações não se restringia aos analistas e à mídia,

mas se dava também dentro das próprias passeatas. De um lado, influenciados pela

mídia empresarial, grupos conservadores, que inicialmente se opunham ao

movimento, passaram a participar e tentar caracterizar as manifestações como

fundamentalmente contra a corrupção, centrando suas críticas no Governo Federal

petista e no “mensalão”. Buscavam assim absolver ou, ao menos, desviar o foco das

desigualdades sociais e do sistema econômico capitalista e suas contradições. De

outro, os movimentos sociais organizados, os militantes estudantis e partidos de

esquerda apresentavam suas bandeiras de luta, aquelas que já havia algum tempo

vinham sendo difundidas e estavam no centro de diversos conflitos, e que motivaram

os primeiros protestos que deram início àquela jornada5.

No Rio de Janeiro, a Plenária de Movimentos Sociais RJ lançou um panfleto

contendo cinco pontos de pauta para a luta, que abordavam: Redução nos preços

das passagens dos transportes coletivos; Fim da repressão policial, direito à livre

manifestação e contra a criminalização dos pobres e movimentos sociais; Fim das

remoções e despejos; Dinheiro da Copa e Olimpíadas para a saúde e a educação e;

Não à privatização do Maracanã, dos espaços e serviços públicos e da cidade6. Das

cinco reivindicações, nenhuma era nova e todas elas já haviam sido motivo de

diversas outras manifestações.

O Fórum de Luta Contra o Aumento das Passagens, com forte presença

estudantil, também elaborou uma pauta com praticamente as mesmas propostas,

incluindo a democratização dos meios de comunicação e excluindo o ponto sobre os

5 A partir de julho de 2013, as manifestações foram diminuindo de tamanho, mas se multiplicaram. No Rio de Janeiro, diariamente, ocorriam protestos realizados por diferentes grupos sociais em distintos lugares e com temas mais específicos. Os grupos mais conservadores (assim como a indumentária verde-amarela e as palavras de ordem contra os partidos) foram, aos poucos, novamente, deixando de ser vistos nas ruas. 6 Esse panfleto da PMS-RJ foi distribuído no dia 20 de junho. Foi impresso outras vezes e divulgado pelas redes sociais, sofrendo pequenas alterações e chegando a incluir, em suas diferentes versões, outras bandeiras de luta, como as reformas agrária e urbana, a desmilitarização das polícias ou o fim do uso, pela polícia, das armas menos letais. Foram também feitas e divulgadas versões próprias desses cinco pontos pelos movimentos, como o MNLM-RJ, que no ponto sobre os recursos dos megaeventos incluía a moradia como um destino almejado, além da saúde e educação. O “Fora Cabral”, palavra de ordem que vinha sendo usada por grupos autonomistas e partidos como o PSTU, foi também muito divulgada pelos movimentos sociais cariocas e, às vezes, exigia-se também a saída do Prefeito Eduardo Paes (era muito comum ver-se cartazes dizendo: “Fora Cabral, Vá com Paes”) e da Presidenta Dilma, além dos ataques à Fetranspor e aos empresários Jacob Barata e Eike Batista (como exemplo, uma das músicas mais cantadas na ocupação em frente à casa do Governador

Page 25: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

25

recursos da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Partidos como o PSOL e o PSTU

também intervieram nessa disputa, se posicionando em defesa de bandeiras como a

Tarifa Zero e a estatização dos transportes, o fim das remoções, por melhorias nos

serviços públicos de educação e saúde e contra a repressão policial.

Diante da persistência e crescimento das multidões nas ruas, o “partido da ordem” se realinhou. Governantes, mídia corporativa e políticos de direita começaram a elogiar as mobilizações como exemplo de cidadania, mas introduziram dois novos elementos no discurso que difundiram. O primeiro foi uma distinção: entre os cidadãos pacíficos e ordeiros nas ruas defendendo “um Brasil melhor” e a horda de “vândalos” e “radicais”, estes últimos os que estariam envolvidos em depredações e choques com a polícia. O segundo foi uma pauta: os manifestantes se mobilizavam (ou deveriam se mobilizar) contra a corrupção, contra os políticos em geral e, particularmente, rechaçavam (ou deveriam rechaçar) os partidos de esquerda, cujo objetivo seria se aproveitar das mobilizações para dirigir as massas para bandeiras que não seriam as suas. (MATTOS, 2013) Tivemos, em certo sentido, um movimento em disputa: de um lado, amplos setores do movimento estudantil, forte presença dos movimentos sociais organizados, como o MPL, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), movimento Periferia Ativa, dentre incontáveis exemplos, além de partidos e grupamentos de esquerda vinculados aos movimentos estudantis como PSOL, PSTU, PCB, anarquistas – com suas aproximações e também, diferenças - e, de outro, vários pequenos grupamentos de direita, explícita e violentamente anti-partidos e anti-esquerdas, tentando “ganhar” a condução dos amplos setores da massa que são a grande maioria dos movimentos, o que confere um contorno de disputa ideológica de uma maioria de jovens. Se logo após a enorme repressão da PM nas majestosas passeatas de São Paulo e Rio de Janeiro em tantas outras capitais e cidades, em 17 de junho, núcleos de direita procuraram, com o apoio em massa da mídia, influir na condução do movimento para bandeiras conservadoras e de direita – como a redução de todo o movimento quase que exclusivamente contra a corrupção, pela redução da idade de 18 para 16 anos para a punição penal etc, a (re)organização das esquerdas e dos movimentos sociais e populares foi decisiva para o avanço (e não retrocesso) das manifestações. (ANTUNES e BRAGA, 2013)

As análises sobre as gigantescas manifestações ocorridas no Brasil em 2013

ficam, no entanto, muito limitadas à mera disputa política se vistas isoladamente,

como um fenômeno fora da história. Se para grande parte da mídia tudo havia

começado com o aumento das passagens de ônibus, para analistas mais sérios e

Sérgio Cabral dizia: “No balancê, balancê, quero falar pra você, Eike Batista vai se f..., e leva o Cabral com você”).

Page 26: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

26

atentos era necessário um exame sobre o amplo processo de acúmulo de lutas visto

anteriormente, sem o qual aquelas manifestações não poderiam ser devidamente

entendidas7.

Greves nas grandes obras do PAC e nos estádios da Copa do Mundo, nas

universidades, manifestações contra as remoções nas doze cidades-sede do

megaevento esportivo e a organização dos Comitês Populares da Copa, lutas por

direitos humanos e contra a violência policial em favelas e periferias, ações diretas

de ocupações para fins de moradia, mobilizações em defesa da saúde e da

educação públicas e contra a privatização das cidades. Todas essas e outras lutas,

é verdade, muito fragmentadas, localizadas e com baixa visibilidade na mídia, mas

que somadas mobilizaram milhares de pessoas e foram, de alguma forma, vistas e

percebidas por tantas outras. A existência dessas lutas e movimentos não apenas

negava a imagem das manifestações de junho como um raio em meio ao céu azul,

mas ajudam a compreender como se formou aquela magnífica tempestade.

Apenas os “desavisados” não haviam percebido que uma tempestade aproximava-se rapidamente das grandes metrópoles. Bastaria lembrarmos a onda de paralisações, greves e rebeliões operárias que se espalhou em março de 2011 pela indústria da construção civil, atingindo algumas das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal8 (...) Tudo

7 As manifestações no Brasil poderiam também ser relacionadas com as manifestações (também gigantescas) que vinham ocorrendo em diversas partes do mundo. Antunes e Braga abordam essa perspectiva de análise: “Talvez seja possível sugerir que sua explosão deveu-se a uma processualidade interna, de superação de um longo período de letargia, articulado com uma processualidade externa, caracterizada por uma época de sublevações em escala global, que se ampliaram enormemente a partir da crise estrutural de 2008. Estas manifestações, com todas suas particularidades e singularidades, têm algo em comum: as massas populares se apropriam do espaço público, das ruas, das praças, exercitando práticas mais plebiscitárias, mais horizontalizadas, além de estampar um descontentamento em relação tanto às formas de representação e de institucionalidade que caracterizam as “democracias” vigentes nos países capitalistas, como aquelas com clara feição ditatorial, como ocorre em vários países do Oriente Médio” (ANTUNES e BRAGA, 2013). A onda internacional de manifestações também era lembrada nas primeiras manifestações contra o aumento das passagens no Rio, sendo palavra de ordem muito ouvida a que dizia: “agora acabou o amor, isso aqui vai virar a Turquia”. 8 Segundo os autores, em março de 2011, foram: “22 mil trabalhadores parados na Hidrelétrica de Jirau em Rondônia; 16 mil na Hidrelétrica de Santo Antônio; alguns milhares na Hidrelétrica de São Domingos no Mato Grosso do Sul; 80 mil trabalhadores grevistas em diferentes frentes de trabalho na Bahia e Ceará; dezenas de milhares no Complexo Petroquímico de Suape em Pernambuco, e por aí vai…” Sobre as greves de 2012, eles citam: “Em Belo Monte, cerca de 7 mil trabalhadores espalhados por todas as frentes de trabalho da usina hidrelétrica cruzaram os braços por 12 dias. No Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), localizado em Itaboraí (RJ), pelo menos 15 mil trabalhadores entraram em greve no dia 9 de abril, permanecendo 31 dias parados. Ainda no início do ano, foram registrados 10 dias de greve em Jirau e na plataforma da Petrobras em São Roque do Paraguaçu (BA), além de novas paralisações em Suape, greves em várias obras dos estádios da Copa do Mundo de futebol etc.” (ANTUNES e BRAGA, 2013)

Page 27: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

27

somado, o Dieese calculou em 170 mil o número de trabalhadores que, somente em março de 2011, cruzaram os braços. Sem mencionar outras importantes greves nacionais ocorridas em 2011, como a dos bancários e a dos trabalhadores dos correios, por exemplo, o impulso grevista permaneceu ativo em 2012 (...) Segundo dados atualizados do DIEESE, o número de horas paradas em 2012 foi 75% superior ao de 2011, alcançando um pico histórico inferior apenas aos anos de 1989 e de 1990. A combinação de desaceleração do crescimento econômico com um mercado de trabalho ainda aquecido pode nos ajudar a explicar esse importante fenômeno. Estava se rompendo, portanto, o quadro de letargia inaugurado em 2002, quando Lula ganhou as eleições presidenciais. (ANTUNES e BRAGA, 2013) Desde 2005 estruturou-se no Rio de Janeiro o Fórum Social do PAN. Durante o Fórum Social Urbano, evento paralelo ao Fórum Urbano Mundial, promovido pela agência UN-Habitat, em 2010, começaram as articulações que iriam originar os Comitês Populares da Copa e a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop). Em 2011, a Ancop produziu o extenso e substancial dossiê Megaeventos e violações dos direitos humanos no Brasil, entregue a autoridades municipais, estaduais e federais. Por toda parte comunidades e bairros resistem às remoções e denunciam as violências. (VAINER, 2013, p. 39-40)

Mas, se variados argumentos podem ser acionados como fatores explicativos

dos protestos de 2013 (e certamente foram muitos os fatores que impulsionaram as

manifestações), parece não haver dúvidas de que a indignação com as condições

de vida nas cidades foi determinante. A sensação de debilidade dos serviços

públicos urbanos de saúde, segurança, educação, saneamento, o problema da

moradia agravado pelo encarecimento do preço dos imóveis e pela onda de

remoções e “revitalizações”, a piora da já ruim qualidade dos transportes coletivos e

dos gigantescos e diários engarrafamentos, além do aumento no preço das

passagens foram essenciais para criarem o mal-estar sentido e expresso pela

população que se manifestava.

A prioridade conferida pelos governantes à organização dos megaeventos

esportivos, com vultosos gastos públicos; as repetidas denúncias de corrupção em

obras de necessidade e qualidade duvidosas, em detrimento das sempre prometidas

e almejadas políticas sociais e urbanas; e a incapacidade do sistema político de

ouvir, representar e realizar esses anseios populares foram elementos centrais que,

na grande maioria das análises, propiciaram a revolta vista em 2013.

Uma pesquisa nacional realizada pelo Ibope durante as passeatas do mês de junho de 2013 mostrou que os problemas mais citados pelos

Page 28: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

28

manifestantes eram a saúde (78%), a segurança pública (55%) e a educação (52%). Ademais, 77% dos entrevistados mencionaram a melhoria do transporte público como principal razão dos protestos. Estamos diante de um autêntico processo de mobilização do proletariado precarizado em defesa tanto dos seus direitos à saúde e à educação públicas e de qualidade quanto pela ampliação de seu direito à cidade. (BRAGA, 2013, p. 82) Uma fagulha pode incendiar uma pradaria, dizia Mao Tse-Tung. Ora, qualquer esforço de análise que pretenda analisar os processos em curso desde uma perspectiva histórica deve dirigir seu olhar não para a fagulha que deflagra o incêndio, mas para as condições da pradaria, que, essas sim explicam por que o fogo pode se propagar. A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta para incendiar-se. Essa pradaria são nossas cidades. (VAINER, 2013, p. 36-37) Quem acompanhou de perto a realidade das cidades brasileiras não estranhou as manifestações que impactaram o país em meados de junho de 2013. (...) No Brasil é impossível dissociar as principais razões, objetivas e subjetivas desses protestos, da condição das cidades. Essa mesma cidade que é ignorada por uma esquerda que não consegue ver ali a luta de classes e por uma direita que aposta tudo na especulação imobiliária e no assalto ao orçamento público. (MARICATO, 2013, p. 19)

A proximidade e o início da Copa das Confederações - evento que servia

como o grande teste para a Copa do Mundo da FIFA em 2014 - e a realização das

grandes manifestações de junho não foram uma mera coincidência. A realização do

torneio sem que os prometidos legados sociais fossem apresentados, a divulgação

dos altíssimos custos de obras em estádios (em alguns casos privatizados e

elitizados) e a massiva propaganda governamental e de empresas sobre o

megaevento, tudo isso acirrou a percepção popular de que o repetido argumento de

que a escassez de recursos impedia novos e melhores serviços e equipamentos

urbanos não passavam de falácias dos poderosos. Recursos, afinal, havia e

estavam sendo gastos. Mas a prioridade, como ficava cada vez mais claro a cada

novo estádio inaugurado, não era o atendimento das necessidades sociais, mas os

negócios que beneficiavam apenas alguns poucos entre os mais ricos. A realização

da Copa das Confederações potencializava aquele “mal estar”, pois ajudava a

desnudar um modelo de cidade elitista e repressor, no qual as pequenas melhorias

na distribuição de renda e no mercado de trabalho vistas nos últimos 10 anos eram

corroídas pelo aumento das desigualdades urbanas.

Durante a “Copa das Confederações”, que entrará para a história recente do Brasil como a “Copa das Rebeliões”, houve

Page 29: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

29

manifestações e confrontos em todos os estádios onde houve jogos, todas com significativa presença popular e quase sempre terminando em confrontos com a PM. O Brasil ganhou a Copa, mas a população não comemorou nas ruas, como sempre fez anteriormente. Ela percebeu que a Copa foi imposta pelos interesses das grandes empresas, tendo a FIFA como mandante e o povo assalariado como sendo excluído. Essa mesma população que percebeu que os recursos que faltam para transporte, saúde, educação, foram drenados para os estádios e os benefícios dos grandes conglomerados que se beneficiam da Copa. (ANTUNES e BRAGA, 2013)

2.1.2 As manifestações de 2013, os movimentos sociais urbanos e a “velha toupeira” Para tentar entender este movimento é necessário considerar, de um lado, a multiplicidade de insatisfações e lutas fragmentárias que o antecederam e que constituem, por assim dizer, seu próprio fundamento. De outro lado, há que entender as características de uma conjuntura marcada pela abertura do ciclo de mega-eventos esportivos. Se os mega-eventos, por si, também não explicam a explosão social e política, por outro lado seria difícil imaginar tal explosão fora de um contexto marcado pela farra do dinheiro público e a entrega de nossas cidades às corporações, empreiteiras e cartéis organizados em torno da FIFA, em primeiro lugar, e do COI. (VAINER, 2013a)

A citação acima, de Carlos Vainer, além de identificar a importância da

conjuntura marcada pela realização dos megaeventos como fator explicativo

essencial para o entendimento sobre as manifestações de 2013, apresenta outro

elemento também fundamental: as diversas lutas e as ações dos movimentos sociais

e seus aliados na construção, ao longo de anos, dessa percepção crítica sobre os

megaeventos e sobre o modelo de cidade a eles associado.

A ação dos movimentos sociais urbanos, já havia um bom tempo, vinha

buscando enfrentar o modelo neoliberal de cidade-empresa e as práticas de cidade

de exceção vistas durante a organização dos megaeventos. Essas manifestações

(contra as remoções, contra a limpeza étnica e social, contra a privatização da

cidade e de seus espaços e serviços públicos, contra os impactos sociais e

ambientais das grandes obras, contra a farra com dinheiro público em benefício das

grandes empresas amigas dos governos etc) eram ainda pequenas em número de

participantes, muito fragmentadas e localizadas. Isso, não obstante a ocorrência

dessas lutas, fortalecia os movimentos sociais, estimulava a constituição de espaços

Page 30: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

30

de articulação entre esses e outros movimentos e ajudava a aumentar suas redes de

apoios.

Aqueles que acompanham ou estão diretamente envolvidos nas lutas quotidianas e no esforço de organizar essas lutas sabem que, há muito tempo, multiplicam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. Por quantas vezes nos vimos, nas reuniões e conversas, a analisar ou lamentar a fragmentação, assim como a tentar encontrar os caminhos – políticos, organizacionais – que poderiam propiciar convergências, unidades, frentes e articulações que abrangessem o conjunto de conflitos setoriais e localizados? Há quanto tempo nos vemos às voltas com as dificuldades de fazer convergir lutas micro-localizadas, experiências de luta com diferentes focos e bases sociais? (VAINER, 2013a) Mega-eventos, mega-negócios, mega-protestos. E aqui merece menção um outro importante elemento: como muitos devem ter percebido em várias cidades, mesmo naquelas em que não haverá jogos, há uma clara consciência acerca do significado, sentido, objetivos e resultados a esperar desses mega-eventos. É possível considerar que, de maneira não desprezível, o trabalho realizado nos dois últimos anos pelos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas e pela sua Articulação Nacional (ANCOP) contribuiu de maneira marcante para construir uma consciência coletiva, mais generalizada do que se poderia imaginar, de que os mega-eventos constituem um ônus insuportável para nosso povo, desviam recursos de setores prioritários e beneficiam os mesmos poderosos de sempre. (VAINER, 2013a)

Marques e Benedicto (2009), em artigo que analisou as manifestações

ocorridas no Rio de Janeiro relacionadas à organização dos Jogos Pan-Americanos

de 2007, já identificavam que uma das características da realização de megaeventos

associados à implantação do modelo de cidade de negócios era possibilitar ou

favorecer a ocorrência de lutas mais unitárias e a construção de espaços políticos de

articulação de lutas entre diversos movimentos sociais9. No Rio de Janeiro essas

9 No artigo “PAN Rio 2007: Manifestações e manifestantes”, apresentado no Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Planejamento Urbano de 2009 (uma primeira versão desse trabalho foi apresentada em setembro de 2007, na Semana IPPUR) e que pode ser encontrado em www.ettern.ippur.ufrj.br, Marques e Benedicto afirmavam: “a resistência a esse modelo e suas consequências para aqueles que resistem ainda parece ser uma questão pouco explorada. Esse estudo, a partir do registro e análise de quarenta e cinco manifestações, sugere que uma articulação entre movimentos sociais pode ser uma característica típica da resistência aos grandes eventos e ao correspondente modelo de planejamento e intervenção urbana. Essa articulação de movimentos sociais no Rio de Janeiro se deu através da organização da Plenária de Movimentos Sociais e foi constituída a partir de movimentos que representavam grupos sociais diretamente ou indiretamente atingidos pelo evento. As obras relativas aos Jogos; as prioridades orçamentárias das três esferas do Estado; e a política de segurança implementada durante o PAN foram, entre outros, fatores que atingiram diferentes segmentos da população. Mas, além desses grupos e movimentos, existiram

Page 31: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

31

lutas e articulação resultaram na formação da Plenária de Movimentos Sociais

(PMS-RJ)10.

Em 2007, no entanto, as manifestações vistas no Rio de Janeiro, mesmo

aquelas de caráter mais unitário entre distintos movimentos sociais e que abordavam

reivindicações específicas e gerais, não mobilizaram um número de participantes

comparáveis aos de 2013 e, consequentemente, tiveram uma repercussão política

bem menor. Esse fato talvez se deva às menores proporções (e impactos) daquele

evento e, principalmente, por ter sido a primeira experiência no Brasil de

organização de megaeventos como parte do modelo de cidade de negócios. Mesmo

assim, como demonstrou a pesquisa citada, aquele processo de resistência teve

impacto entre os movimentos sociais urbanos do Rio de Janeiro e teve como uma de

suas consequências a constituição da Plenária de Movimentos Sociais RJ. E a

experiência da PMS-RJ foi fundamental para a organização do Fórum Social

Urbano, em 2010, no Rio de Janeiro, a partir do qual foram constituídos os Comitês

Populares da Copa nas doze cidades-sede desse evento.

As pesquisas de opinião sobre a realização da Copa do Mundo da FIFA em

2014 no Brasil reforçam essa linha de análise. Segundo o DataFolha, o apoio

popular a Copa no Brasil era de 79% em novembro de 2008, tendo caído para 65%

em junho de 2013 e para 52% em fevereiro de 2014. Aqueles que eram contra a

Copa passaram de 10% em novembro de 2008, para 26% em junho de 2013,

chegando a 38% em fevereiro de 2014. A queda no apoio popular à Copa iniciou-se,

portanto, anteriormente às manifestações e à Copa das Confederações e continuou

caindo depois delas. Segundo outra pesquisa realizada em fevereiro de 2014, da

também aqueles que aproveitaram a ocorrência do PAN para realizarem manifestações: que usaram o PAN como arena. Foi a articulação desses dois grupos de movimentos e entidades que resultou na construção dessa rede.” (MARQUES e BENEDICTO, 2009) 10 Interessante notar que estudos críticos a respeito desse modelo neoliberal de cidade (cidade de negócios, de cidade empresa, cidade mercadoria), das formas de planejamento a ele associado (planejamento estratégico, competitivo) e suas formas de intervenção (como a busca incessante por captação de investimentos, o papel dos megaeventos e das “revitalizações” etc) e sobre o processo de sua aplicação no Rio de Janeiro vinham se acumulando, desde o final dos anos 1990, por pesquisadores do IPPUR/UFRJ e, sobretudo, pelos do ETTERN. E, aos poucos, esses estudos começaram a ser difundidos entre os militantes dos movimentos sociais urbanos e seus aliados, principalmente através de experiências como o Comitê Social do PAN, da PMS-RJ, do FSU, e do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, nas quais parte desses pesquisadores atuou. A produção e difusão desses estudos críticos parecem ter sido fatores relevantes para as lutas urbanas cariocas (e mesmo nacionalmente), especialmente no que diz respeito aos megaeventos, assim como para a construção daquela consciência coletiva crítica aos megaeventos citada por Vainer.

Page 32: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

32

CNT/MDA, 75,8% da população considerou “desnecessários os investimentos no

Mundial” e 80,2% discordavam “dos gastos com estádios”11.

Levando-se em conta a “paixão nacional” pelo futebol e, especialmente, pela

seleção brasileira em Copas do Mundo, além da massiva propaganda em torno da

Copa no Brasil e seus “benefícios” para o país, os resultados dessas pesquisas

parecem absolutamente relevantes.12 Indicam que o trabalho de contra-hegemonia

realizado pelos movimentos sociais e críticos desse modelo de cidade e de

organização de megaeventos, as denúncias e conflitos vistos nos últimos anos

influenciaram, de fato, uma grande parcela da população que, se inicialmente

apoiava, depois passou a questionar e mesmo discordar da forma de realização da

Copa no Brasil.

Segundo essa linha de interpretação, o que se viu em 2013 foi (mesmo que

não exclusivamente) o resultado de uma série de lutas e de um intenso trabalho

político e organizativo acumulado por vários anos que, sob uma determinada

conjuntura e após a brutal violência policial contra as manifestações pela redução

dos preços das passagens nos transportes coletivos, explodiu, se propagou e fez

tremer todo o país. Vainer, ao examinar as condições que levaram às manifestações

de 2013 e ressaltar a importância do trabalho político acumulado anteriormente,

resgata a figura da toupeira, como usada por Karl Marx, para falar do trabalho

político subterrâneo que precede os processos revolucionários:

O que provocou essa unidade que tantos desejavam e outros tantos procuravam evitar? Em termos conjunturais, a resposta provavelmente está na arrogância e na brutalidade dos detentores do poder. Seu autismo social e político, sua incapacidade de perceber a velha toupeira que trabalhava no subsolo do tecido social, promoveu, em poucos dias, aquilo que militantes, organizações populares e setores do movimento social urbano vinham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. (VAINER, 2013, p. 36)

O trabalho de toupeira, realizado “no subsolo do tecido social” pelos mais

diversos movimentos, a despeito de suas próprias limitações e fragilidades e de

11 Pesquisa DataFolha e CNT/MDA, publicada em matéria do Portal Terra (www.terra.com.br), em 24 de fevereiro de 2014. 12 Após a realização da Copa, é possível que alguns desses dados tenham mudado. Essas mudanças, no entanto, poderiam ser influenciadas por diversos fatores (como o resultado da seleção brasileira) e, por isso, retratariam menos a disputa de representações sobre o megaevento, travada nos anos anteriores à sua realização.

Page 33: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

33

sofrer com a permanente tentativa por parte da mídia empresarial de invisibilizá-lo e

das ações do Estado para criminalizá-lo, parece ter produzido profundos resultados.

Afinal, segundo esse mesmo autor, as manifestações de 2013 tinham a cara dessa

toupeira, a cara dos movimentos que por anos batalharam em suas atividades e

lutas localizadas e fragmentadas e, assim, foram fundamentais para construir as

condições para essa revolta social13:

Movimentos emergentes, movimentos mais ou menos organizados nos últimos anos, partidos políticos, grupos culturais de todo tipo, é essa a cara das multidões que estão nas ruas exigindo mudanças. (VAINER, 2013a)

No Rio de Janeiro, nos meses imediatamente anteriores às jornadas de junho,

um enorme número de (normalmente pequenas e localizadas) manifestações e

conflitos vinha ocorrendo. Eram lutas contra a remoção de comunidades ameaçadas

por obras relacionadas à Copa do Mundo e às Olimpíadas, lutas em defesa de

ocupações ameaçadas pelos projetos de revitalização em áreas centrais, lutas

contra a violência policial em favelas e regiões periféricas, lutas contra a privatização

do Maracanã e de outros espaços públicos da cidade, manifestações por saúde,

educação, cultura, moradia, contra os impactos sociais e ambientais de grandes

projetos empresariais etc.

Entre todas essas, merece destaque a luta contra o despejo da Aldeia

Maracanã que, além dos indígenas, aglutinou também diversos grupos sociais,

especialmente aqueles movimentos e grupos mais autonomistas, repletos de jovens,

e resistiu bravamente às diversas tentativas de despejo, o qual acabou se

consumando através do uso de uma brutal violência policial. Mesmo depois de

despejados, os ocupantes da Aldeia Maracanã continuaram mobilizados, realizaram

13 Dizer que as manifestações de 2013 tinham “a cara” desses diversos movimentos, a cara dessa velha toupeira, não é afirmar que essas manifestações podem ser vistas e explicadas apenas como grandes manifestações desses movimentos. Isto seria reduzir suas características e sentidos a uma mera questão de escala. Não, essa diferença de escala e essa unidade criam algo potencialmente distinto, diferente de uma mera soma de pequenas lutas. Como visto, as manifestações de 2013 não estavam presas às propostas específicas (nem mesmo àqueles temas sempre presentes como transportes, educação, saúde, corrupção, megaeventos etc), mas expressavam um amplo sentimento de mal-estar e de crítica ao status quo. Não obstante, a marca desse trabalho de toupeira era percebida nos temas mais recorrentes, nas propostas políticas e palavras de ordem mais ouvidas, e, principalmente, nas formas como se apresentavam as relações entre esses diferentes temas de mobilização, que eram expressas em palavras de ordem como: “da Copa eu abro mão, eu quero saúde, moradia e educação” e nas reivindicações por saúde, educação ou moradia “queremos padrão FIFA”.

Page 34: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

34

diversas manifestações, participaram de tantas outras e atraíram o apoio e a

solidariedade de amplos segmentos sociais. Como resultado dessa luta (e

obviamente também da nova conjuntura aberta com as manifestações de junho),

conseguiram impedir que o governo estadual demolisse o prédio do antigo Museu do

Índio, que foi então tombado como patrimônio histórico pela prefeitura. Ao invés de

construir no local o Museu Olímpico, o Governo Estadual recuou e prometeu

reformar o prédio e preservar a sua histórica relação com a cultura indígena. Os

indígenas da Aldeia e seus apoiadores voltaram ainda a ocupar o prédio outras

vezes14.

O trabalho da velha toupeira, porém, começara vários anos antes. Afinal,

desde os Jogos Pan-Americanos de 2007 o Rio de Janeiro já presenciara diversos

conflitos ligados aos megaeventos e ao modelo de cidade de negócios, tendo sido

produzidas consistentes críticas a esse modelo. As experiências dessas lutas

influenciaram na organização de novas lutas no país. E as lutas em 2007 também só

foram possíveis por conta da existência, já naquela época, dos movimentos sociais

urbanos organizados no Rio de Janeiro e de uma rede de aliados – sindicatos,

ONGs, partidos de esquerda, movimentos rurais, por direitos humanos etc – que os

apoiavam. A velha toupeira não nasceu e começou a trabalhar às vésperas das

mobilizações de 2013.

São longas e consistentes as histórias e trajetórias do Movimento Passe Livre, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, da Central de Movimentos Populares, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia e tantos outros movimentos, em tantas cidades. Tão ou mais importante, a multiplicidade de grupos culturais, em que todas as tribos, através de mil e uma formas de expressão, mais ou menos

14 A “nova conjuntura” aberta com as manifestações de junho influenciou também outras lutas que ocorreram em 2013. No Rio de Janeiro, depois da Câmara de Vereadores ser ocupada por manifestantes que exigiam uma CPI dos ônibus “de verdade”, a greve dos professores estaduais e principalmente dos municipais desencadeou uma nova onda de grandes manifestações. Em meio a uma grande adesão da categoria à greve (como não se via havia mais de 20 anos), foram feitas passeatas com mais de cinquenta mil participantes, aconteceu uma nova ocupação da Câmara, ocorreram novas e grandes batalhas campais com a polícia e a cidade ficou “parada” por dias. Em diversas partes do país foram realizadas manifestações de apoio aos professores do Rio de Janeiro, no que se constituiu uma nova onda (embora bem menor do que a de junho) de manifestações em 2013. A greve do SEPE-RJ recolocou (uma parte) do movimento sindical no centro da conjuntura de lutas e, como a luta da Aldeia Maracanã, também atraiu uma grande rede de solidariedade. Cabe ressaltar que ao falar da “nova conjuntura” aberta pelas manifestações de junho de 2013, refere-se aqui apenas aos traços de mudanças percebidas ainda em 2013 e no início de 2014 (multiplicação de manifestações, o recuo de alguns governos em certos temas etc). Uma transformação mais profunda na conjuntura, de mais longa duração, porém, não pode aqui ser descartada nem confirmada, e certamente depende de novos estudos e do desenrolar da história nos próximos anos.

Page 35: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

35

transgressoras, se insurgem contra o tecido social e uma cidade que lhes nega lugar e passagem. São esses movimentos e dinâmicas que vêm agora à tona. Trazem para nossas cidades o frescor do que ainda não foi contaminado pela ideologia do empreendedorismo e do individualismo competitivo que pretendem a totalidade da vida social. Desafiados pela cidade de exceção, pela cidade-empresa e pela democracia direta do capital, eles agora as desafiam. Querem outra cidade, outro espaço público. (VAINER, 2013, p. 40)

Pode-se mesmo afirmar que, durante toda a primeira década do século XXI,

em meio a uma conjuntura de refluxo das grandes mobilizações de massa e de

fragmentação das lutas e dos movimentos sociais, muita coisa aconteceu e impactou

a trajetória dos movimentos urbanos no Brasil e no Rio de Janeiro. Foram mudanças

no mundo do trabalho, na conjuntura política, com a ascensão do PT ao Governo, e

nas formas de administração das cidades sob o neoliberalismo. Nesses anos,

novíssimos movimentos sociais urbanos surgiram. Entre os mais tradicionais, alguns

se acomodaram enquanto outros buscaram se reinventar. Novas redes de aliados

foram criadas, outras foram desmanteladas. Novos temas passaram a atrair

atenção, diferentes formas de organização e luta foram experimentadas e antigas

questões e polêmicas foram resignificadas.

A tese aqui apresentada examina os movimentos sociais urbanos no Rio de

Janeiro durante esses anos de trabalho de toupeira, período marcado por rupturas e

tentativas de reorganização na esquerda e entre os movimentos sociais no Brasil.

Período no qual a classe trabalhadora, que havia se feito durante as lutas contra a

ditadura e exercido toda sua potência nos anos imediatamente seguintes, se

fragmentara, se acomodara, e assim se desintegrara: nas palavras de Francisco

Oliveira “não são mais classe”, pois “não têm mais poder de veto sobre nada”,

perderam o “poder de pautar as ações do adversário” e, assim, “não são mais

universais” (OLIVEIRA, 2012).

Trabalho de toupeira que, não obstante sua importância para as grandes

manifestações de 2013, guarda objetivos e sentidos que vão além dessas. Afinal, se

as manifestações de 2013 foram (também) resultado desse trabalho, esse resultado

não explica todo o processo de lutas e o trabalho realizado durante os anos

anteriores. Trabalho político, prático, organizativo, discursivo que objetivava

influenciar uma parcela dos trabalhadores, organizá-los para a luta e promover,

conforme as distintas concepções dos diferentes movimentos, uma mudança social.

Page 36: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

36

Trabalho de toupeira que, se ajudou a mudar a percepção sobre a Copa do Mundo

no Brasil, também pode/deve ter influenciado na construção de identidades coletivas

nascidas das experiências comuns daqueles que participam ou participaram desses

movimentos e suas lutas. Trabalho político, enfim, que ajuda a compreender as lutas

sociais no Rio de Janeiro e no Brasil do século XXI.

Agora, passa-se então ao exame sobre esse trabalho de toupeira dos

movimentos sociais urbanos cariocas, buscando perceber se e como esses, com

suas lutas e experiências, participam do processo de fazer-se (ou de refazer-se) da

classe trabalhadora no Brasil. Classe trabalhadora que, para muitos dos que

participaram das manifestações de 2013, estava ali novamente, fazendo-se a si

própria em pleno movimento.

2.2 Olhando de fora

2.2.1 O Fórum Social Urbano no Rio de Janeiro

No dia 22 de março de 2010, no galpão da Ação da Cidadania, em plena

Zona Portuária do Rio de Janeiro, estava começando o 1º Fórum Social Urbano

(FSU). Pessoas de diversas partes da cidade, do país e do mundo chegavam para

ver a mesa de abertura, após uma bela passeata que, apesar da repressão policial,

conseguiu chegar às portas do Fórum Urbano Mundial (FUM) da ONU, evento que

acontecia quase ao lado, em luxuosas instalações no Porto do Rio.

Uma mensagem ecoara em carros de som, megafones e faixas: o direito à

cidade deve ser de todos e uma outra cidade, mais justa, democrática e igualitária é

possível! À frente da manifestação estavam participantes de movimentos sociais

urbanos cariocas, moradores de ocupações urbanas do Centro da cidade, de

comunidades ameaçadas de remoção e/ou pela violência, além de representantes

do movimento negro, estudantes, defensores dos direitos humanos, professores,

sindicalistas, militantes culturais etc. Pessoas de diversas partes do país e do mundo

presentes para participarem do evento mundial da ONU também aderiram ao

protesto.

Conforme a programação estabelecida pela organização do Fórum Social

Urbano, após a manifestação de rua haveria uma grande atividade para simbolizar o

início do evento. Essa simbologia inicial do FSU tinha por objetivo, além de atrair a

Page 37: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

37

atenção de muitos que vieram para participar do evento da ONU, deixar evidentes as

diferenças entre os dois fóruns: um de caráter oficial, repleto de governantes,

empresários e homens de negócios em meio à segurança reforçada; outro de

caráter crítico, mais popular, aberto à participação de todos e expressão das lutas e

conflitos urbanos. Uma manifestação de rua, a fala dos movimentos sociais, um

debate com intelectuais críticos e atuantes na questão urbana e um show de funk

compunham esse simbolismo.

A mesa de abertura do FSU era composta por representações dos quatro

maiores e mais antigos movimentos sociais urbanos brasileiros: Marcelo Edmundo,

da Central de Movimentos Populares (CMP); Maria de Lurdes, do Movimento

Nacional de Luta por Moradia (MNLM); Jurema, da União Nacional por Moradia

Popular (UNMP); e a Confederação Nacional das Associações de Moradores

(CONAM) – essa representada pela Dona Márcia, da Federação das Associações de

Moradores do Rio de Janeiro (FAM-Rio). Além deles, também estava presente Lúcia,

representante do Quilombo da Pedra do Sal, reafirmando a importância política e

histórica do local onde se realizava o FSU e, ao mesmo tempo, dando visibilidade

aos conflitos e críticas ao projeto de “revitalização” da região15.

Após a abertura, um grande e concorrido debate com intelectuais

internacionalmente renomados: David Harvey, Peter Marcuse, Ermínia Maricato e

Raquel Rolnik. Para finalizar a abertura do Fórum Social Urbano, um show da cultura

da favela, protagonizado pela Associação de Profissionais e Amigos do Funk

(APAFUNK).

Mais de duas mil pessoas, muitas sentadas no chão, estiveram presentes. Foi

o primeiro dia de toda uma semana de debates, palestras, protestos, atividades

culturais, políticas e visitas aos mais diferentes locais da cidade. Eram muitos

estudantes e professores universitários e de pré-vestibulares comunitários,

representantes de dezenas de ONGs, de movimentos de hip-hop e de funk, entre

militantes de partidos, sindicatos e de um grande número de movimentos sociais

urbanos. Havia também dezenas de “barraquinhas”, muitas delas de moradores de

15 Não foi mera coincidência se ter quatro mulheres entre cinco representantes de MSUs cariocas. Afinal, a participação feminina nesses movimentos (tanto entre dirigentes como na base) é proporcionalmente grande e muito importante, sendo muitas as famílias que moram em ocupações chefiadas exclusivamente por mulheres.

Page 38: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

38

ocupações urbanas, vendendo artesanato, livros, comida, bebida, produtos

orgânicos ou distribuindo panfletos e jornais.

O Fórum Social Urbano, evento paralelo ao Fórum Urbano oficial da ONU,

atraía atenção. Dezenas de veículos da mídia alternativa, popular e comunitária

disputavam com os jornais e TVs comerciais a cobertura do evento. Através da

internet, quase tudo era transmitido ao vivo. Funcionários do Ministério das Cidades,

de empresas estatais, das secretarias de habitação e urbanismo de diversas

prefeituras e governos estaduais circulavam e acompanhavam os debates e

manifestações. Professores de diferentes níveis de ensino conduziam seus alunos

em visita ao Fórum. Profissionais e colaboradores trabalhavam intensamente na

tradução para diversas línguas de tudo que era dito nos debates, em auxílio para

reuniões, conversas e entrevistas.

No palco principal, onde aconteceram as atividades programadas diretamente

pela organização do FSU, os debates estavam permanentemente cheios – com

cerca de 300 participantes ou mais. Paralelamente, mais 12 palcos funcionavam nos

três andares do Galpão da Ação da Cidadania, apresentando debates, oficinas e

atividades culturais propostas e organizadas de forma descentralizada pelos

participantes do Rio de Janeiro e de outras partes do país e do mundo.

Para os que vinham de fora do Rio de Janeiro (e mesmo para muitos dos

participantes cariocas), o FSU parecia acolhedor desde o momento em que

chegavam. A maioria ia primeiro se credenciar no FUM, e enfrentava longas filas,

revistas, áreas restritas para autoridades e, segundo eles, “uma burocracia danada”.

Quando entravam no Galpão da Ação da Cidadania, se surpreendiam com mais de

uma dezena de mesas perfiladas para fazer um credenciamento rápido, recebiam

seu crachá e preenchiam suas próprias fichas. Recebiam então o jornal do FSU,

com o sugestivo título “Nos bairros e no mundo, em luta pelo direito à cidade,

democracia e justiça urbanas”.

Os grupos, entidades e movimentos que haviam proposto alguma atividade

para a programação do FSU (o envio de proposta foi feito através de e-mail para a

comissão de programação), já encontravam seu debate ou oficina divulgado no

jornal. No caso de qualquer dúvida, eram prontamente atendidos por alguém da

organização que lhes mostrava onde seria a atividade, as condições de estrutura,

onde reforçar a divulgação etc. Alguns demonstravam certo receio com a cidade, o

Page 39: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

39

medo da violência e a insegurança da região portuária, principalmente à noite. Após

participarem uma vez das atividades culturais noturnas do FSU, no entanto,

esqueciam seus receios, bebiam, dançavam e sorriam, sentindo-se em casa.

Aos olhos daqueles que vinham de outros estados do país, aquela atividade,

a ousadia de, pela primeira vez, organizar um fórum paralelo ao Fórum Urbano

Mundial da ONU e a demonstrada capacidade de organização, expressavam a força

e a unidade dos movimentos sociais urbanos e seus aliados do Rio de Janeiro.

Afinal, dezenas de pessoas dos mais diversos movimentos e entidades do Rio de

Janeiro eram vistas agindo conjunta e organizadamente na preparação e durante a

realização do FSU. Viam também um espaço enorme sendo usado, com uma

significativa estrutura de cadeiras, mesas, barracas, aparelhagem de som, de vídeo

e iluminação, palcos, gerador, segurança, limpeza etc. E percebiam que toda essa

estrutura fora conquistada sem patrocínios oficiais, sem verba pública e propaganda

de empresas privadas, governos ou estatais.

Repetidas vezes, ouvia-se: “aqui no Rio vocês estão mais organizados”; “lá no

nosso estado a gente não consegue atuar em conjunto assim”; “aqui os movimentos

são mais fortes, mais mobilizados, menos cooptados”; “a gente já teve força assim

também, agora tá tudo desmobilizado lá”; “o movimento aqui no Rio está em outro

patamar”; ou “aqui vocês têm o apoio das universidades, dos sindicatos, dos

partidos, lá a gente não tem”. Mas essas frases eram carregadas de espanto e

alegria, muito mais do que de uma análise um pouco mais profunda sobre a

realidade que estavam vivenciando.

Eram frases proferidas por militantes de diversas partes do país que sofriam

no dia a dia com a fragilidade de suas entidades, com a burocratização,

institucionalização etc. Militantes que conviviam cotidianamente com acirradas

disputas entre os diferentes movimentos urbanos e que sofriam com a falta de

aliados entre sindicatos, partidos de esquerda e pessoas das universidades. Aqui,

viam uma situação que lhes parecia diferente, a ponto de dizerem: “vocês podiam

passar uns dias lá, para ajudarem a gente a organizar uma coisa assim”; “vocês têm

que viajar, ajudar a organizar a luta em outros estados”; ou, em tom de brincadeira,

“eu vou vir morar no Rio, eu quero militar aqui com vocês”; e até mesmo “chega

daquelas brigas lá na minha terra, vou vir morar aqui com vocês”.

Page 40: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

40

Esses sentimentos de espanto e alegria, por sinal, também estavam

presentes entre os organizadores cariocas do evento. Após dias de apreensão e

tensões às vésperas do início do FSU, com problemas de estrutura e finanças

resolvidos na última hora, com uma extensa programação que só se confirmava

verdadeiramente conforme as delegações chegavam, era comum ver os

organizadores, apesar do cansaço, se abraçando e festejando aquele primeiro dia

de atividades, cenas que se repetiriam durante todo o encontro por diversas vezes.

Mas, afinal, como fora o processo de organização do FSU? Quem eram esses

militantes e movimentos organizadores do Fórum? E, se existiam, quais eram as

diferenças relevantes entre a experiência recente desses movimentos sociais no Rio

de Janeiro para seus pares em outros locais do país?

2.2.2 A organização do FSU

O processo de organização do FSU havia começado quatro meses antes, em

dezembro de 2009. Convocados pela CMP-RJ e por ONGs, alguns movimentos

sociais e militantes de partidos de esquerda, outras ONGs e alguns professores e

pesquisadores universitários se reuniram no Sindicato dos Engenheiros (SENGE-RJ)

com o objetivo de organizar uma manifestação e/ou debates durante o Fórum

Urbano Mundial da ONU (FUM)16.

As lembranças das manifestações realizadas durante os jogos Pan-

Americanos de 2007 e da organização da Plenária de Movimentos Sociais do Rio de

Janeiro (PMS-RJ) reforçavam as expectativas sobre o potencial de ações dos

movimentos sociais durante o FUM. A experiência de 2007 mostrava que era

possível a mobilização unificada de diferentes movimentos e entidades e que,

mesmo em um período de refluxo no qual as manifestações dificilmente

ultrapassavam os dois ou três mil participantes, a visibilidade de um evento da ONU

16 Segundo o que se via nessas primeiras reuniões, a ideia era denunciar nacional e internacionalmente o modelo de cidade-empresa que era defendido e aplicado pela Prefeitura carioca e as crescentes desigualdades urbanas; a prioridade dada aos megaeventos em detrimento da população que morava e/ou trabalhava na cidade e que sofria diariamente com problemas de habitação e da precarização e privatização dos espaços e serviços públicos urbanos; as chamadas revitalizações que promoviam o aburguesamento de diversas áreas da cidade, como na região portuária que sediaria o FUM; e as violências urbanas e a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais.

Page 41: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

41

facilitaria a cobertura pela mídia nacional e internacional das manifestações e

bandeiras de luta dos movimentos de contestação.

Em novas reuniões, realizadas no início de janeiro de 2010, foi

amadurecendo-se a ideia de se fazer um amplo ciclo de debates, que pudesse atrair

a participação de pessoas e movimentos de diversos locais do Brasil e do mundo,

que estariam no Rio para o FUM. De uma manifestação e um ciclo de debates para

a ideia de organizar um fórum paralelo – o FSU- foi necessária apenas a

empolgação de alguns dos organizadores. As exitosas experiências do Fórum Social

Mundial, realizadas em Porto Alegre paralelamente ao Fórum Econômico Mundial de

Davos, também foram lembradas e serviram de estímulo e inspiração para a

organização do FSU.

Logo nas primeiras reuniões certa tensão se estabeleceu, relativa ao tempo e

às escalas de ação daqueles diferentes atores. Representantes de ONGs e

universidades, empenhados na organização de um evento com ramificações

internacionais, bradavam por uma organização mais dinâmica e uma divulgação nas

escalas nacional e internacional mais arrojada. Representantes da FASE,17 do

Fórum Nacional de Reforma Urbana e do ETTERN/IPPUR/UFRJ,18 por exemplo,

repetiam que não seria possível conseguir financiamentos ou confirmar a

participação de intelectuais mundialmente reconhecidos para o FSU sem uma

descrição mínima do evento e sem a preparação e o envio de convites com a devida

antecedência.

Os movimentos sociais, ainda pouco representados nessas primeiras

reuniões, enxergavam a necessidade de ampliar localmente as articulações,

envolver outros militantes que consideravam de confiança, outros movimentos etc.

Sentiam falta da presença dos sindicatos, que costumeiramente eram parceiros nas

lutas dos últimos anos. Acreditavam que era necessário atrair a participação de

movimentos considerados importantes, como o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST), atrair os partidos de esquerda e, principalmente, atrair representantes das

ocupações do Centro da Cidade, outros movimentos sociais urbanos, mais

movimentos populares, representantes de favelas, de vítimas da violência policial, de

áreas ameaçadas por remoções etc.

17 Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional.

Page 42: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

42

O resultado foi um equilíbrio quanto às prioridades de ação: avançar em

contatos internacionais e na busca de recursos e, ao mesmo tempo, mobilizar uma

maior participação de movimentos e de representantes de lutas de base para, aí sim,

serem tomadas maiores decisões sobre o formato do Fórum, sobre a programação,

a passeata e as manifestações culturais.

Entre as primeiras reuniões até o início do FSU, foram realizadas diversas

plenárias e reuniões temáticas de organização. Mais de 350 pessoas participaram

dessas reuniões, realizadas, na maioria das vezes, na sede do Sindicato dos

Metroviários do Rio de Janeiro, no Centro da Cidade. Além das plenárias gerais, que

ocorriam semanalmente e contavam sempre com mais de 100 pessoas, foram

criadas três comissões: de comunicação; estrutura e finanças; e outra para organizar

a programação proposta e auto-organizada por entidades do Rio e de diversas

partes do país e do mundo.

Foram criados também quatro grupos de trabalho (GTs) para organizar a

programação básica do palco principal, programação essa que dava a “cara” do

evento em cada dia e servia como garantia de bons e plurais debates. Essa

programação foi dividida a partir de quatro eixos temáticos, um para cada dia (ao

todo foram cinco dias de atividades, mas no primeiro ocorreu apenas a manifestação

e a abertura). Ao fim de cada dia havia uma grande atividade cultural, também

organizada pelos GTs e sempre pensada de forma a dialogar com o tema dos

debates19.

Os quatro eixos abordavam os seguintes temas: a) criminalização da pobreza

e violências urbanas; b) grandes projetos urbanos e áreas centrais e portuárias; c)

conflitos socioambientais nas cidades e justiça ambiental e; d) megaeventos e

globalização das cidades20 (tema que depois viria a ser tão importante para as

18 Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ETTERN/IPPUR/UFRJ). 19 Além da APAFUNK, participaram das atividades culturais o Lutarmada, acompanhado do B-Negão, a Orquestra Voadora e o grupo Filhos de Gandhi, entre outros. 20 A discussão sobre os megaeventos como ponto central do modelo neoliberal de cidade-empresa cidade-mercadoria era, até então, pouco disseminada nacionalmente. No Rio de Janeiro, por conta da organização do PAN 2007 e dos trabalhos teóricos desenvolvidos pelo ETTERN/IPPUR/UFRJ, esse tema era mais conhecido entre os movimentos sociais e já havia um bom histórico de lutas relativas à organização dos megaeventos. No FSU esse tema foi bastante discutido e foi aprovada a orientação para serem formados, em todo o país, comitês populares que articulassem a resistência aos megaeventos (após o FSU foram formados os comitês populares da Copa do Mundo nas 12 cidades-sede do evento). Esse foi um dos mais importantes desdobramentos do FSU, e se mostrou

Page 43: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

43

manifestações de 2013). Eram quatro eixos muito ligados à trajetória de lutas e às

experiências acumuladas pelos movimentos sociais e entre os intelectuais do Rio de

Janeiro, temas que foram objeto de manifestações, reflexões e que falavam

diretamente com a conjuntura e as lutas sociais cariocas.

As comissões de organização e GTs que preparavam os debates centrais

funcionavam de maneira bastante descentralizada e tinham plena autonomia para

resolver e encaminhar os assuntos relativos às suas tarefas21. No caso dos GTs,

geralmente participavam movimentos e militantes mais envolvidos com cada uma

das temáticas específicas. Com a possibilidade de uma programação extensa, não

era difícil acomodar nas mesas de debates e nas atividades culturais todos os

interesses, ideias ou representações dos organizadores envolvidos.

O compromisso de organizar uma atividade tão ambiciosa em tão pouco

tempo serviu como combustível para que as frequentes brigas e disputas (tanto as

de caráter mais pessoal como aquelas de fundo mais político ou ideológico) entre

movimentos, entre ONGs e entre grupos universitários ou partidos fossem deixadas

em segundo plano. Nota-se, inclusive, que por diversas vezes nas plenárias de

organização do FSU esse assunto foi abordado, frisando-se que havia espaço

político para todos e que as diferentes concepções e análises deveriam aparecer

nas manifestações e debates do FSU, para um grande público, e não naquelas

corridas e práticas reuniões de organização22.

Pode-se dizer, então, que as pessoas “vindas de fora”, que enxergavam um

alto grau de organização nos movimentos cariocas estavam certas? Estariam, aqui,

os movimentos sociais urbanos mais fortes e mais unidos? Teriam mais apoio de

sindicatos, partidos e intelectuais do que em outros lugares? Ou a fragilidade e

fragmentação, características desses (e de outros) movimentos em todo o país,

ficaram apenas escondidas naquele momento?

um passo decisivo para o trabalho de toupeira realizado pelos movimentos sociais urbanos e seus aliados antes das grandes manifestações de 2013. 21 Nas plenárias gerais de organização do FSU, foram poucas as vezes que alguma decisão foi a voto. Uma das poucas exceções se deu exatamente em um recurso apresentado pelos representantes da FIST buscando modificar uma decisão do GT de Violências Urbanas sobre a composição de uma mesa de debate. A plenária, então, rejeitou o recurso reafirmando a autonomia do GT. 22 Entre os encaminhamentos do FSU destaca-se a elaboração de um rico manifesto denominado de “Carta do Rio”, posteriormente divulgado em todo mundo, bem como a determinação do dia 25 de março como Dia Internacional de Lutas Urbanas. Para mais informações sobre o FSU, a

Page 44: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

44

Mesmo sendo este um primeiro olhar, o breve relato aqui apresentado não é

nem tão “externo” ou “de fora”, nem tão momentâneo – a partir de um único evento,

de uma única “fotografia” - como o das pessoas “que vinham de fora” e que

formulavam a hipótese dos movimentos sociais do Rio estarem em um patamar

muito mais avançado de organização e luta que aquele visto no restante do país. A

partir de uma visão de dentro do processo de organização do FSU, essas hipóteses

e perguntas podem ser revistas na tentativa de tornarem-se um tanto mais precisas

e esclarecedoras. Podem ser reformuladas buscando uma maior compreensão da

história e das características particulares das condições de luta e organização dos

movimentos sociais no Rio naquele período.

Afinal, quais experiências comuns os movimentos sociais urbanos do Rio

haviam acumulado nos últimos anos que propiciaram as condições para aquela

forma de organização do FSU? E quais dessas características eram vistas por

militantes e pesquisadores de fora do Rio de Janeiro como atributos que

diferenciariam os movimentos cariocas dos de outras cidades?

2.3 Olhando de dentro

2.3.1 Lutas e experiências comuns dos movimentos sociais urbanos cariocas

Era dia 1º de maio de 2007. Mais de uma dúzia de ônibus lotados de pessoas,

portando bandeiras e cartazes e prontas para protestar, chegavam à Comunidade

do Canal do Anil, Zona Oeste carioca. Mais de 500 moradores do local e de outras

comunidades próximas, também ameaçadas de remoção pela Prefeitura - que

ancorava-se nos interesses dominantes do mercado imobiliário - aguardavam a

chegada dos ônibus. Estavam mobilizados para tentar impedir que suas casas

fossem demolidas e, por consequência, que fossem expulsos de uma região que se

valorizava cada vez mais. Ali, ao lado daquela comunidade pobre formada por

pescadores há mais de 50 anos, imperavam prédios altos em um condomínio

fechado, típico da classe média alta da Barra da Tijuca: tratava-se da recém

construída Vila Residencial do PAN, como que anunciando a chegada de novos

tempos.

programação completa, a Carta do Rio na íntegra, o Jornal do FSU e matérias sobre o encontro, acessar: forumsocialurbano.wordpress.com

Page 45: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

45

Barra da Tijuca, Recreio, Jacarepaguá, Vargem Grande, Vargem Pequena,

entre outros bairros, formavam a rota de expansão da cidade formal, com seus

grandes condomínios de alto padrão e, também, de loteamentos clandestinos e

favelas novas e antigas. Região com um promissor mercado de trabalho, inclusive

na construção civil, onde alguns dos moradores mais pobres viam a chegada dos

prometidos investimentos não apenas como uma boa notícia, mas também como

uma possível ameaça a sua permanência ali. Receios que aumentavam

proporcionalmente à valorização da região com os Jogos Pan-americanos,

especialmente pela construção da Vila – que, em seguida aos Jogos, seria

transformada em um condomínio para as “classes” média e alta - e pelas prometidas

melhorias urbanas na região. Afinal, ainda havia na memória de alguns mais antigos

as remoções que os haviam feito se mudar para aquela região, expulsos das

extintas favelas da Zona Sul anos atrás, lembranças que estimulavam a

transformação do receio em revolta e, também, em protestos, como aquele do 1º de

Maio de 2007.

Os manifestantes se reuniram, então, dentro da comunidade do Anil. Abriram

suas faixas, empunharam seus cartazes e terminaram de montar os “bonecões”,

feitos artesanalmente e simbolizando aqueles homens importantes que, segundo

eles, ameaçavam as comunidades: o então prefeito do Rio, César Maia, o ministro

dos esportes à época, Orlando Silva, o presidente do Comitê Organizador do PAN,

Carlos Nuzman, o Governador Sérgio Cabral, entre outros.

A manifestação no Dia Internacional dos Trabalhadores de 2007 foi a primeira

de uma série. Sua importância é até hoje lembrada entre os militantes um pouco

mais antigos dos movimentos urbanos cariocas. Ao invés das costumeiras

manifestações localizadas e com participação restrita a um único movimento social

ou comunidade, nesse dia, pessoas de diversas partes da cidade e organizadas ou

animadas por diferentes movimentos, grupos e entidades se uniram para denunciar

e enfrentar aquilo que parecia ser o centro das políticas urbanas no Rio de Janeiro:

a organização de megaeventos esportivos como eixo para uma ampla renovação

urbana23.

23 Mesmo contando com a representação de diversos grupos e movimentos, o número de manifestantes não foi superior a duas mil pessoas, demonstrando a dificuldade de mobilização dos MSUs naquele período.

Page 46: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

46

A realização dessa manifestação, por seu caráter popular, pela demonstração

de unidade entre os movimentos e por sua vinculação com uma luta ao mesmo

tempo específica e geral da cidade naquele momento, contrastava com as

comemorações de 1º de Maio vistas na época, mais festivas e distantes das lutas e

regiões populares. Na contramão dos grandes shows com artistas famosos,

patrocinados por grandes empresas e com sorteios de carros e apartamentos, essa

manifestação no dia Internacional dos Trabalhadores foi simbólica e tornou-se um

marco. No mesmo dia, outras manifestações de 1º de Maio também ocorreram, mas

apenas aquela foi reconhecida por todos como verdadeiramente popular e de luta24.

Uma longa passeata sob sol forte em ruas de barro dentro de uma favela.

Uma manifestação sem grandes recursos, sem carro de som e com faixas e

cartazes pintados à mão. Discursos apenas de trabalhadores pobres, negros e

favelados ameaçados de remoção. Os “políticos” presentes (parlamentares de

partidos de esquerda), andavam no meio do povo, sem área vip ou palcos. E a

polícia não estava ali para garantir a festa, mas para impedir que as ruas fossem

totalmente fechadas e para intimidar ou mesmo reprimir os manifestantes caso estes

praticassem qualquer ação mais ousada.

As principais reivindicações, apresentadas nas falas dos oradores, cantos,

palavras de ordem e cartazes, eram por políticas urbanas que respeitassem os

trabalhadores, os favelados e pobres. Eram discursos, em primeiro lugar, contra as

remoções, mas também em defesa de políticas habitacionais para a população de

baixa renda. Reivindicavam saúde pública de qualidade, educação para seus filhos e

investimentos nas comunidades: segurança, saneamento, coleta de lixo, asfalto,

meios de transportes baratos. Diziam que não havia participação popular nas

decisões dos governos e que queriam ser ouvidos - e não reprimidos pela polícia.

Enfim, queriam paz, com voz e sem medo, fosse esse medo dos fuzis ou das

retroescavadeiras.

24 Entre as outras manifestações do 1º de Maio de 2007, merece destaque a organizada pela CONLUTAS e pela INTERSINDICAL, além de sindicatos como o SEPE-RJ, o SINDISPREV-RJ, o ANDES-SN e partidos de esquerda como o PSOL, o PSTU e o PCB, realizada à noite, em frente aos Arcos da Lapa. Essa manifestação/comemoração também não contou com recursos patronais nem com sorteios e brindes, e reuniu entre três e quatro mil pessoas, contando com a presença de vários participantes da manifestação realizada pela manhã no Canal do Anil, na qual militantes e representantes desses movimentos, entidades e grupos também estiveram presentes.

Page 47: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

47

Entidades, grupos e movimentos como o Conselho Popular (CP), o

Movimento de União Popular (MUP), o Conselho de Cidadania do Alto da Boa Vista

(CONCA), algumas ocupações do Centro, como a Chiquinha Gonzaga, o Casarão

Cultural na Rua do Riachuelo, a da Mem de Sá e a Zumbi dos Palmares, a Pastoral

das Favelas, o Comitê Social do PAN, a Federação Internacionalista dos Sem-Teto

(FIST), entre outras, que estiveram entre os principais organizadores daquele ato,

passaram a ser mais conhecidas pelo conjunto dos militantes de outros movimentos

sociais e sindicais cariocas. Somavam-se assim à Central de Movimentos Populares

(CMP), à Frente de Luta Popular (FLP), ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto

(MTST) e a algumas ONGs como atores reconhecidos e importantes para as lutas

sociais urbanas no Rio de Janeiro. Além de tudo, tais grupos conseguiram mobilizar

uma rede de apoios que extrapolava os aliados mais tradicionais e específicos.

Passada a manifestação do 1º de maio, se aproximava a data da abertura dos

Jogos Pan-Americanos, dia 13 de julho. Como cidade-sede, o Rio de Janeiro era

palco de intervenções urbanas pontuais realizadas pelo poder público, como a

construção de equipamentos esportivos e da Vila do PAN. A valorização fundiária de

áreas beneficiadas por esses equipamentos era acompanhada de uma política de

remoções e limpeza social, visando deixar estas áreas mais atrativas ao capital. A

agressiva política de segurança visava impedir a ocorrência de manifestações que

pudessem abalar a imagem de uma cidade livre de conflitos e sede de um bom

ambiente de negócios. Era um plano ambicioso, visto que havia anos que a cidade

era considerada estagnada, que a crise da segurança dominava os noticiários, que o

número de lançamentos imobiliários era baixíssimo e que as obras de infraestrutura

urbana não saíam do papel.

A propaganda massiva em torno dos jogos Pan-americanos era, portanto,

essencial para esse projeto de mudar a imagem da cidade e atrair investimentos

privados. Por outro lado, a falta de legados sociais deixados pela realização do

megaevento ficava cada dia mais explícita para grande parte da população, que não

via qualquer das prometidas melhorias na cidade, tanto na área dos transportes

quanto nas de moradia, saneamento, despoluição de baías, lagoas etc.25 Nada, a

não ser nas constantes peças publicitárias.

25 Entre outras promessas oficiais relacionadas à realização do PAN, estava a despoluição das lagoas e ampliação da rede de saneamento, a construção da linha 4 do metrô, até a Barra da Tijuca, e de

Page 48: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

48

Além da manifestação no 1º de maio de 2007 no Canal do Anil, outra, ocorrida

no dia 23 daquele mesmo mês, também havia reunido uma série de movimentos e

entidades - estes de caráter mais nacional e sindical - no Centro do Rio de Janeiro,

“contra as reformas neoliberais”26. Foi então que, estimulados pela ocorrência

dessas duas manifestações, pelo sentimento de injustiça que envolvia as

“arbitrariedades” das políticas urbanas e pela visibilidade que o PAN proporcionaria,

inclusive para a mídia internacional, um grande número de movimentos e entidades

começou a organizar um protesto programado para o dia 13 de julho, o dia da

abertura oficial dos Jogos.

As primeiras conversas sobre o tema ocorreram nas reuniões do Conselho

Popular (CP), na sede da Pastoral das Favelas, das quais participavam militantes de

diferentes MSUs. Logo após o ato do dia 23 de maio contra as reformas neoliberais,

em uma reunião de avaliação dessa manifestação, realizada na sede do SEPE-RJ, e

que contou com representantes das principais entidades organizadoras daquele ato,

esse tema também foi discutido. Uma nova reunião, com o objetivo de unir esses

dois grupos de entidades e movimentos (que organizaram os atos do 1º e do 23 de

Maio), foi então agendada.

A primeira reunião/plenária para organização desse protesto, cerca de um

mês antes do início do PAN, ocorreu também na sede do SEPE-RJ, horas depois da

invasão policial no Morro do Alemão, que deixara 19 mortos, a maior parte deles

com indícios de execução. A plenária contou com cerca de 100 pessoas

representando mais de trinta movimentos e entidades. Além de uma discussão inicial

sobre a organização do protesto no dia da abertura do PAN, discutiu-se a relação

entre a organização do megaevento esportivo e aquela violenta ação policial. Como

resultado, foi decidido que no dia seguinte haveria um protesto em frente à

Secretaria de Segurança do Governo Estadual, na Central do Brasil, com

participação de representantes dos grupos presentes. Foi decidido também que a

luta contra a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais seria uma das

um VLT no Centro, promessas que depois foram associadas à organização dos Jogos Olímpicos de 2016. 26 Central Única dos Trabalhadores (CUT); Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS); INTERSINDICAL; MST; CMP; Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES-SN); SEPE-RJ; Sindicato dos Petroleiros (SINDIPETRO-RJ); PSTU; PSOL e PCB eram alguns dos organizadores dessa manifestação, que abordou temas como o desemprego, os juros da dívida pública, reforma da previdência, reforma agrária, os leilões do petróleo, a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais e aumentos salariais do funcionalismo público.

Page 49: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

49

bandeiras principais na manifestação do dia 13 de julho. Uma nova plenária para

organizar esse ato foi marcada.

Havia muita pressa para preparar os materiais de divulgação, tensões para

decidir quais seriam as prioridades entre as bandeiras de luta apresentadas na

manifestação e, nesses materiais, se e como seriam feitas críticas e a quais

governos, além de decidir quem coordenaria o ato e quem teria direito a discursar

em cada momento da manifestação. Havia também o receio da repressão policial -

visto que o PAN era um evento internacional -, dúvidas quanto ao trajeto da

manifestação e um grande desafio: arrecadar recursos para aluguel de ônibus, de

carro de som, confecção de panfletos, faixas, estrutura para as delegações que

vinham de outros estados, dentre outras questões. Em meio a tudo isso, novas

manifestações foram marcadas, outros grupos foram aderindo, entrevistas coletivas

ocorreram e a maioria dos encaminhamentos previstos para o ato se concretizaram.

A despeito das disputas políticas entre e nos diversos movimentos e mesmo

da divisão ocorrida na manifestação do dia 13 de julho27, na plenária de avaliação do

ato, realizada na semana seguinte na sede do Sindicato dos Trabalhadores do

Serviço Público (SINTRASEF-RJ), houve um acordo de que aquela experiência

deveria ter continuidade. Avaliou-se que as diferenças entre os movimentos sociais e

suas formas de ação eram reais e, por vezes, esses movimentos não caminhariam

juntos. Mas, naquelas reuniões horizontalizadas, onde a voz de todos era igual, era

favorecida a realização de ações conjuntas, sem que isso implicasse em que todos

estivessem obrigados a adotar exatamente as mesmas formas ou bandeiras de luta.

Foi, então, decidido que aquele espaço político deveria continuar existindo,

organizando ou apoiando as lutas e movimentos, como foi o caso da manifestação

que ocorreu três dias depois lembrando a chacina da Candelária28.

27 A manifestação no dia da abertura dos Jogos Pan-americanos de 2007 ocorreu em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro, na Cidade Nova, no Centro da Cidade, e contou com cerca de três mil participantes. O decreto das diferentes esferas de governo, tornando ponto facultativo aquela data, porém, havia esvaziado a área central da cidade. Apesar da diminuta presença policial no ato, o “clima” de medo vivido naqueles dias por parte dos manifestantes se evidenciou na decisão da maior parte dos movimentos e entidades presentes em não seguir em passeata até o Maracanã (onde ocorreria a abertura oficial do evento), como propuseram algumas entidades e movimentos. A divisão do ato se consumou, então, com duas passeatas seguindo em direções opostas: uma, menor, em direção ao Maracanã, e outra seguindo a deliberação do comando do ato, em direção à Cinelândia. 28 Em 23 de julho, dias depois da reunião de avaliação do ato na abertura do PAN, foi realizada na Cinelândia uma bonita manifestação lembrando a “Chacina da Candelária” de 1993, quando meninos de rua foram assassinados por policiais militares. No aniversário dessa tragédia carioca, foi

Page 50: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

50

Na semana seguinte ao término dos Jogos Pan-americanos, uma nova ação

reforçou a importância da PMS. Como já era temido, a Prefeitura do Rio de Janeiro

resolveu remover as famílias do Canal do Anil. Logo que as retroescavadeiras

chegaram à comunidade, militantes do Conselho Popular e da Pastoral das Favelas,

entre outros, foram avisados e começaram a mobilizar pessoas para irem para lá.

Essa mobilização passou pelas redes da PMS que, por acaso, teria reunião na noite

daquele mesmo dia. Nessa reunião foi organizada a ida de militantes dos mais

variados movimentos para a comunidade no dia seguinte, para reforçar a luta dos

moradores do Anil, além de encaminhar uma denúncia para a imprensa, via internet,

em espaços institucionais e em outros canais. Com a mobilização nos três dias que

se seguiram, as remoções e demolições foram suspensas, o que representou uma

grande vitória para os moradores da comunidade do Canal do Anil, assim como das

comunidades vizinhas. Para os movimentos sociais cariocas foi uma vitória e tanto,

pois ocorreu em um período de poucos êxitos, num conflito que tocava o centro do

projeto de cidade defendido por governos e empresas, o que reforçou bastante a

sensação de importância da PMS-RJ.

Cerca de um mês depois, na primeira semana de outubro, o Movimento

Nacional de Luta pela Moradia (MNLM-RJ) realizou uma grande ocupação no Centro

do Rio. O local escolhido foi o prédio que abrigou por muitos anos o Cine Vitória, na

Cinelândia. Eram mais de setenta famílias, oriundas de diversas partes da cidade,

algumas delas que haviam participado de outras manifestações e campanhas

promovidas pela PMS. Apesar do despejo, uma semana depois estas pessoas

conseguiram angariar uma grande rede de apoios, o que foi fundamental para se

manterem organizadas por cerca de um mês, tempo que precedeu a ocupação de

outro imóvel, local onde estão até hoje: um antigo prédio do INSS também na

Cinelândia, que já havia sido ocupado sem sucesso anteriormente por outros

grupos. Essa ocupação também representou muito para a consolidação da PMS,

pois mostrou que com mobilização e o devido apoio era possível obter algumas

conquistas que pareciam muito difíceis.

reafirmada a importância do Estatuto da Criança e Adolescentes (ECA) e da não redução da maioridade penal.

Page 51: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

51

A Plenária de Movimentos Sociais foi, então, se tornando, pouco a pouco, o

principal espaço de articulação de movimentos e lutas sociais no Rio de Janeiro29.

Ainda em 2007, diversas outras lutas (além das já citadas) foram organizadas ou

apoiadas pela PMS como, por exemplo, o Plebiscito Popular sobre a privatização da

Vale30.

Entre 2007 e 2011, a PMS organizou diversas manifestações e campanhas,

além de se constituir num espaço onde os movimentos buscavam apoio e

solidariedade para suas lutas específicas. Também promoveu dois grandes

seminários, em março de 2008 e fevereiro de 2011, nos quais se aprovaram

calendários de lutas unificadas. Ademais, muitos outros eventos menores

aconteceram, alguns com temas específicos, assim como diversas atividades

culturais e de formação: Tribunais populares, denúncias de violações de direitos

humanos, da ação das milícias ou de crimes ambientais, campanhas contra o

caveirão, campanhas como a “Somos Todos Sem Terra”, contra a criminalização

dos movimentos sociais, contra o aumento no preço dos alimentos ou em defesa da

educação pública. Manifestações em apoio à greves, ocupações e contra remoções

ou despejos. Outras ainda como, por exemplo, contra privatizações, contra o

aumento do preço de passagens nos transportes coletivos e denunciando as

diversas formas de preconceito e de criminalização dos pobres foram articuladas na

PMS.

O 1º de Maio de 2007, na Vila do PAN, foi exemplo para que a PMS voltasse

a organizar atos com essas características, nessa mesma data, em 2009, 2010 e

29 Cumpre lembrar que a PMS-RJ não foi a primeira tentativa de criar um espaço de articulação entre movimentos sociais e seus aliados no Rio de Janeiro. Diversas experiências anteriores existiram e ajudaram a criar o “caldo de cultura” necessário para a formação da PMS. Um exemplo era a Assembleia Popular (AP), espaço que reuniu, por algum tempo, um bom número de entidades e movimentos. A existência de fóruns, como o Fórum Estadual pela Reforma Urbana, o Fórum de Acompanhamento do Plano Diretor, Frente Contra a Remoção e por Moradia Digna ou o Comitê Social do PAN também colaboraram. Além disso, o Conselho Popular, reuniu militantes de diversas entidades, e mesmo ações como as ocupações urbanas, animadas por diferentes movimentos, além dos cursos de formação, que por iniciativa do MST traziam militantes de diversos movimentos e grupos, ou do Movimento “Posso Me Identificar?”, de luta contra a violência policial nas favelas e o plebiscito popular sobre a ALCA. Estas foram algumas dessas ações e experiências anteriores a PMS-RJ que merecem ser registradas. 30 O Plebiscito popular sobre a privatização da Vale foi uma grande campanha nacional envolvendo esse e outros temas. No Rio de Janeiro, o plebiscito foi organizado pela PMS, juntando movimentos, partidos, meios de comunicação alternativos e entidades diversas. Foram promovidos cursos de formação de formadores, dezenas de debates (em escolas, praças, favelas). Foram feitas e distribuídas cartilhas e jornais. Após meses de discussões e mobilizações, centenas de milhares de pessoas votaram no plebiscito popular em novembro daquele ano.

Page 52: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

52

2011. O primeiro ocorreu em Santa Cruz, zona oeste carioca, inserido na luta contra

os impactos sociais e ambientais das atividades da Companhia Siderúrgica do

Atlântico (TKCSA). Em 2010, logo depois do FSU, a manifestação foi no Morro do

Bumba, em Niterói, contra o descaso governamental com as políticas urbanas e

habitacionais, descaso esse que, segundo os movimentos sociais, proporcionou a

tragédia dos desabamentos e mais de uma centena de mortes com as chuvas de

abril de 2010.31 Em 2011, a manifestação de 1º de Maio foi na Zona Portuária. A

passeata percorreu as ruas do bairro (da Praça do Santo Cristo ao Largo de São

Francisco da Prainha), denunciando o aburguesamento da região com a expulsão

dos pobres e a privatização da cidade posta em prática pelo projeto “Porto

Maravilha”32.

O resgate desse importante dia na história da classe trabalhadora em todo o

mundo, reafirmando-o como dia de luta, foi também importante para a história da

PMS e dos movimentos sociais urbanos no Rio de Janeiro. Simbolizava que a PMS

era um espaço de articulação de militantes e movimentos sociais que não se

curvavam e não aderiam aos governos e aos apoios empresariais. Simbolizava

também que as lutas urbanas contra remoções e a privatização do espaço e

equipamentos públicos ou contra os impactos sociais e ambientais de grandes

projetos, também eram lutas dos trabalhadores. Significava dizer, ao menos para

aquela vanguarda militante da esquerda que participava das manifestações, que

camelôs, favelados, pescadores, desabrigados ou sem-tetos também eram

trabalhadores. E que os MSUs, assim como tradicionalmente os sindicatos e

31 Em abril de 2010, as fortes e típicas chuvas de verão geraram uma série de desabamentos em todo o Estado do Rio. Em Niterói, ao lado do Morro do Céu, o deslizamento de um depósito clandestino de lixo atingiu diversas casas do Morro do Bumba, deixando dezenas de mortos e centenas de desabrigados. Autoridades estaduais se apressaram em culpar as construções irregulares feitas próximas ao lixão pela ocorrência da tragédia. Todos os militantes e movimentos sociais presentes naquele ato do 1º de Maio, no entanto, puderam perceber que aquelas comunidades populares surgiram ali muitos anos antes do lixão, e que o discurso governamental visava não apenas se eximir de suas responsabilidades pela falta de políticas habitacionais, ambientais e de saneamento, como também criminalizar os moradores de favelas. 32 Em 2013, a manifestação de 1º de Maio organizada pela PMS foi na região do Maracanã, onde em junho e julho seriam realizadas diversas grandes manifestações. Nesse 1º de Maio, além das bandeiras tradicionalmente lembradas pela PMS nessa data, como a redução da jornada de trabalho e a reforma agrária, foi denunciada a privatização da cidade e dos serviços públicos, como saúde e educação, além das mazelas sociais causadas pela organização da Copa do Mundo, Olimpíadas e da Copa das Confederações.

Page 53: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

53

partidos de esquerda, também podiam ser protagonistas dos protestos no Dia

Internacional dos Trabalhadores33.

Uma extensa lista eletrônica de informação e debate, acionada sempre que

uma mobilização ocorria, facilitou muito a divulgação das lutas, fato importante

especialmente nos casos daqueles protestos menores ou protagonizados por grupos

menos articulados. Além de ajudar nas mobilizações, essas mensagens serviam

para alertar outras entidades ou movimentos, assim como a imprensa alternativa e

popular, que depois também noticiava os conflitos, aumentando a visibilidade e

capacidade de luta dos envolvidos.

O fato de se conhecerem melhor, as trocas de contatos, as ações conjuntas e

as intermináveis reuniões seguidas de “uma cerveja no bar” colaboraram para que

boa parte dos diferentes atores que atuavam naquela arena constituíssem laços de

amizade e confiança política. Assim, mesmo sob uma conjuntura adversa, de refluxo

das grandes mobilizações de massa e com movimentos sociais pequenos, frágeis do

ponto de vista político e organizativo e fragmentados, algumas ações importantes

(mesmo que pouco massivas) foram organizadas e uma relação política de

solidariedade entre lutas e movimentos muito distintos, típica dos momentos de

ascenso das lutas sociais, foi estabelecida como fruto dessas experiências.

Algumas temáticas tiveram grande centralidade nos debates e ações da PMS-

RJ: de um lado, aquelas ligadas à questão urbana - remoções, ocupações para

moradia, privatização da cidade, tarifas dos transportes, qualidade da educação,

terceirizações na saúde, salários e condições de trabalho nos serviços públicos -; de

outro, aquelas associadas à criminalização dos pobres e dos movimentos sociais -

repressão aos ambulantes, ações policiais violentas em favelas ou contra os negros,

despejos e remoções forçadas ou violentas, ação das milícias, processos judiciais

contra lideranças populares.

Essa centralidade de alguns temas se deveu, em parte, à conjuntura vivida no

Rio naquele período, marcada pela violência, pela precariedade de equipamentos e

serviços públicos urbanos e pela prioridade governamental conferida aos

megaeventos. Mas a conjuntura, sozinha, não é suficiente para explicar a

33 Manifestações do Grito dos Excluídos, nos dias 7 de setembro, relativas ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro, ou comemorando o Dia Internacional das Mulheres, nos dias 8 de março, o dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, entre outras importantes datas

Page 54: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

54

centralidade que a temática urbana adquiriu na PMS. Afinal, setores diferentes da

população e distintos sujeitos sociais percebem (e agem) de forma diferente sob as

mesmas conjunturas. No caso da PMS, apesar do peso político da participação das

centrais sindicais e dos partidos ou grupos de esquerda organizados nacionalmente,

o número de militantes, entidades, movimentos e intelectuais ligados às lutas de

corte territorial/espacial e organizados na escala local, também favoreceu que essas

temáticas tivessem ganhado mais centralidade34.

A PMS foi o principal espaço de articulação das lutas populares no Rio de

Janeiro entre 2007 e 2011.35 Há de ser ressaltado, contudo, que essa experiência

teve uma participação significativa, mas ainda reduzida, das entidades e grupos

mais tradicionais da esquerda, como os sindicatos e as entidades estudantis

nacionais. Pode-se dizer que foram poucas as ações de apoio à greves, foi reduzida

a relação com a imprensa sindical e eram poucos os sindicatos e centrais sindicais

que participavam periodicamente da PMS-RJ. A CUT nunca priorizou atuar na PMS;

a INTERSINDICAL, desde 2009, se desmobilizou no Rio de Janeiro; mesmo a

CONLUTAS, mais ativa central na PMS, passou períodos afastada. Entre os

diversos sindicatos que participaram de reuniões da PMS, apenas o SEPE, algumas

sessões sindicais do ANDES-SN e, em alguns períodos, o SINDIPETRO-RJ tiveram

uma maior assiduidade.

Entre os representantes do Movimento Estudantil, a participação também

nunca foi grande, havendo presença constante apenas de alguns diretórios centrais

de estudantes, como o DCE da UFRJ, alguns CAs e, em alguns momentos, da

Associação Nacional dos Estudantes em Luta (ANEL) e da Frente de Oposição de

Esquerda (FOE-UNE)36. Entre os partidos de esquerda, apenas o Partido Comunista

Brasileiro (PCB), o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e, de

históricas das lutas populares, também foram, durante esses anos, organizadas em reuniões da PMS ou contaram com o seu apoio, a exemplo das manifestações realizadas nos dias 1º de Maio. 34 Mais algumas informações sobre a PMS-RJ podem ser encontradas em pmsrj.blogspot.com.br 35 Entre 2011 e 2013, a PMS passou por um período de relativa desmobilização. A periodicidade das suas reuniões diminuiu, assim como o número de movimentos e entidades participantes. Com o surgimento de outros fóruns de articulação de lutas, como o Fórum da Saúde, o FEDEP e o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, a PMS funcionou em alguns momentos como um “fórum dos fóruns”, diminuindo a participação dos movimentos “mais de base”. Na prática, passou a se reunir conforme se aproximavam algumas datas históricas de mobilização, como os dias 1º de Maio, 7 de Setembro etc. 36 Excepcionalmente, como durante a campanha pela educação pública, houve participação de um maior número de Centros Acadêmicos e grêmios estudantis. A União Nacional dos Estudantes (UNE),

Page 55: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

55

forma menos frequente, , o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tinham

representantes formais na PMS (no caso desse último, cabe frisar que sempre foi

grande a participação de seus militantes e representantes de núcleos de base, o que

por diversas vezes gerou críticas de outros partidos e de militantes

independentes)37.

Deve-se observar ainda que, em função do refluxo das grandes mobilizações

de massa no período (e a baixa capacidade de mobilização da PMS e dos

movimentos que dela participavam era um retrato dessa conjuntura), tanto as

experiências comuns quanto as relações de solidariedade propiciadas e

desenvolvidas pela PMS atingiram, sobretudo, aqueles militantes dos movimentos

que eram destacados para acompanhar esse fórum. Eram, normalmente, dirigentes

ou militantes profissionalizados e moradores da capital, com disponibilidade para

acompanhar as reuniões à noite no Centro da cidade e, em escala bem menor, as

“bases” desses movimentos.

Não obstante as limitações da PMS, somente conhecendo essa experiência é

possível entender o que propiciou a organização do Fórum Social Urbano no Rio de

Janeiro em março de 2010, e que chamou tanta atenção dos que “vinham de fora”.

Foi através da lista de e-mails da PMS que as primeiras plenárias de organização do

FSU foram convocadas. Foi a relação de confiança política construída durante anos

que criou as condições para a organização autônoma das diferentes comissões e

grupos de trabalho do FSU funcionarem e para as disputas políticas ficarem em

segundo plano naquele momento. Foram as entidades sindicais, ONGs e mandatos

parlamentares que participavam da PMS que mais contribuíram financeira e

materialmente para a organização do FSU. Os quatro eixos temáticos, de alguma

forma, já vinham sendo objetos de debates ou já eram motivos de denúncias, ações

e manifestações. Mesmo os debatedores e artistas convidados eram, em grande

parte, pessoas que já haviam participado de atividades organizadas ou apoiadas

pela PMS-RJ.

O Período de organização do Fórum Social Urbano foi marcado por uma

relativa “trégua” nas disputas e divergências mais acirradas entre os movimentos

a União Estadual dos Estudantes (UEE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) nunca priorizaram essa articulação e participaram de pouquíssimas reuniões da PMS.

Page 56: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

56

sociais cariocas e entre seus aliados. Essas “tréguas”, aliás, eram comuns em

momentos de organização de atividades mais significativas, como fora o ato na

abertura do PAN em 2007, as manifestações de 1º de Maio ou do Grito dos

Excluídos. As acirradas disputas entre os movimentos, no entanto, não deixavam de

existir. Em alguns casos chegavam até a “contaminar” a relação de alguns

movimentos com esses espaços de articulação, a ponto de alguns movimentos se

afastarem da PMS por períodos significativos ou tratarem seus participantes como

adversários. Mesmo no caso do FSU, deve-se lembrar que alguns movimentos e

grupos só aderiram à organização do Fórum às vésperas do evento, ao perceber as

dimensões que ele havia adquirido38.

Aos olhos dos que vinham de fora, o FSU passava a impressão de que aqui

os movimentos não eram (tão) frágeis, não sofriam (tanto) com a institucionalização

e cooptação dos governos e que a fragmentação e as disputas entre movimentos

não existiam ou não eram tão grandes como em outros locais do país. Aos olhos de

quem já acompanhava esses movimentos havia alguns anos e a partir de uma visão

de dentro do processo de organização, o FSU expressava as condições políticas

criadas a partir de uma experiência comum determinada, limitada porém relevante,

vivida pelos movimentos sociais urbanos e seus aliados e apoiadores no Rio de

Janeiro, nos anos imediatamente anteriores a 2010.

Para prosseguir nesse olhar inicial e buscando uma maior precisão, voltar a

algumas perguntas já parcialmente formuladas faz-se necessário: como distinguir os

movimentos sociais urbanos entre tantas entidades, grupos, conflitos e movimentos

sociais? De quais movimentos sociais urbanos se está falando aqui? E quais foram

os MSUs, assim como os seus aliados, que participaram dessas lutas e experiências

citadas?

37 O Partido Democrático Trabalhista (PDT); o Partido dos Trabalhadores (PT); o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Partido Comunista Revolucionário (PCR) também se fizeram representar formalmente em algumas ocasiões na PMS. 38 Alguns grupos e movimentos, com presença significativa durante o Fórum Social Urbano, praticamente não tinham se envolvido na organização, a não ser de suas atividades próprias. Outros haviam guardado sua artilharia de críticas para depois de encerradas as atividades. Além de tudo, muitos dos que estiveram à frente da organização do FSU não eram exatamente militantes de movimentos sociais urbanos, mas estudantes, pesquisadores e militantes de ONGs, de mandatos parlamentares etc. Mas nada disso era visto ou percebido por aqueles que “vinham de fora”.

Page 57: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

57

2.3.2 Os movimentos sociais urbanos no Rio de Janeiro e seus aliados

Construir uma definição clara e que dê conta de todas as principais

características dos movimentos sociais urbanos é um dos objetivos perseguidos

nesse trabalho. Aqui, por hora, definem-se como movimentos sociais urbanos

aqueles movimentos que se organizam para intervir nas disputas relativas à cidade e

ao processo de urbanização. Movimentos que têm a cidade não apenas como

arena, mas como objeto de suas lutas. As questões colocadas por esses

movimentos são: as leis e políticas urbanas, a forma como se alocam e distribuem

os recursos urbanos (financeiros, fundiários, locacionais, paisagísticos, políticos,

simbólicos), os serviços públicos, as políticas habitacionais, de saneamento, de

cultura, de uso e ocupação do solo, obras, transporte urbanos, segurança pública

etc. São movimentos que se distinguem de outras lutas e conflitos urbanos por

serem de cunho mais permanente, por terem objetivos delimitados e atuação

organizada,39 abrangente e recorrente sobre a problemática urbana, organizando

diretamente os atingidos ou demandantes dessas políticas urbanas40.

Além dos movimentos sociais urbanos (como definidos acima) existem

também uma série de movimentos, entidades e grupos que atuam de forma mais ou

39 Atuação organizada compreende, normalmente, algum tipo de divisão de tarefas, formas estabelecidas para a aprovação de decisões coletivas, regras de conduta, objetivos e palavras de ordem comuns etc. 40 De uma forma geral, qualquer conflito urbano (manifestação pública que envolva um grupo de pessoas e que tenha como objeto da luta a cidade e as políticas urbanas) poderia ser chamado de movimento social urbano. No entanto, em busca de iluminar essas lutas e os sujeitos sociais que atuam nelas, pode-se distinguir conflitos, de um lado, e movimentos sociais organizados de outro. Delimita-se, então, como movimentos sociais urbanos, apenas aqueles grupos que se organizam de maneira mais permanente, com objetivos definidos e que atuam de forma organizada e recorrente sobre a problemática urbana, agindo ou refletindo, pois, sobre uma escala que normalmente ultrapassa a de um conflito localizado e específico. Essa diferenciação não subentende nenhuma forma de menosprezo político ou teórico pelos conflitos urbanos mais espontâneos ou desorganizados. Afinal, qualquer cidade pode ser lida e conhecidas a partir de seus conflitos, e ao longo da história foram muitos os conflitos e revoltas que tiveram grande repercussão e participação popular, como visto na Revolta do Vintém, na Revolta da Vacina, nos “quebra-quebras” de bondes e trens, nas lutas contra as demolições dos cortiços etc. E muitas vezes, foram os conflitos espontâneos e menos organizados os que mais geraram conquistas de direitos ou mudanças nas políticas urbanas. As manifestações de 2013, em que pese a importância do trabalho de toupeira e a participação ativa dos movimentos sociais organizados, também foram marcadas pela espontaneidade e pela falta de uma maior organização. Portanto, essa distinção serve apenas para iluminar a existência de movimentos sociais organizados que atuam recorrentemente em conflitos urbanos ou mesmo para entender como os conflitos urbanos, por vezes, formam e/ou são formados por movimentos sociais organizados.

Page 58: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

58

menos recorrente sobre questões relativas à cidade e às políticas urbanas.41 São

organizações que, na maior parte das vezes, não têm suas lutas voltadas exclusiva

ou nem mesmo prioritariamente para a cidade. Organizam, de diferentes formas,

segmentos sociais específicos, a partir de critérios distintos daqueles dos MSUs,

mas atuam lado a lado com os MSUs em diversos conflitos; são parceiros em alguns

projetos ou atividades e participam dos fóruns de articulação de lutas mais gerais em

conjunto com eles. No Rio de Janeiro eram muitos esses movimentos42, entidades43

e grupos44 que, de alguma forma, tinham a cidade como objeto de suas lutas ou

eram aliados dos MSUs, participando de experiências como a PMS ou o FSU.

Eram grupos como os Círculos Palmarinos, ligados ao movimento negro, que

refletiam e atuavam sobre temas da cidade, como a mortalidade de negros pelas

forças de segurança, a repressão e violência nas favelas ou as manifestações

culturais e religiosas dos negros; eram movimentos culturais, ligados ao Hip-Hop,

como o Lutarmada, que organizava moradores de favelas, atuava com educação

popular e denunciava o extermínio de negros e pobres nas periferias; eram aqueles

ligados ao funk, como a Associação de Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK),

que atuava em favelas, presídios e organizava ações de cunho político e cultural

(como os saraus mensais na Ocupação Manoel Congo), refletindo sobre temas

como as UPPs, as remoções e a cultura da favela.

Existiam rádios comunitárias ou livres que eram espaços de lutas e debates

urbanos, como a Rádio Santa Marta, e jornais populares e comunitários, como O

Cidadão (da Maré, que já existia havia mais de 10 anos), além de grupos de

produção audiovisual ligados às favelas, que também se organizavam e tinham

41 Cabe esclarecer que está sendo chamado de: a) “grupo”: qualquer coletivo, mais ou menos organizado, de pessoas; b) “entidade”: um grupo formalmente organizado de pessoas; c) “movimentos sociais”: os grupos que organizam os diretamente atingidos ou demandantes de determinadas políticas para intervirem de forma organizada e recorrente sobre essas políticas; d) MSUs: como por ora definidos acima, são, em resumo, movimentos sociais que têm a cidade como objeto de suas lutas; e) Enfim, nem todo grupo forma necessariamente uma entidade e nem toda entidade é um movimento social. Todo movimento social pode ser considerado um grupo, mas não necessariamente uma entidade. 42 Eram, na maioria das vezes, movimentos sociais rurais, movimentos ligados às questões de raça, gênero, opção sexual, religiosa, movimentos culturais, de comunicação, ambientais, por direitos humanos, além dos movimentos sindicais e estudantis. 43 Tratavam-se, na maior parte dos casos, de ONGs, grupos de pesquisa, partidos políticos, associações profissionais, associações ou redes de apoiadores etc. 44 Tratavam-se, costumeiramente, de pequenos grupos de estudantes, de moradores de determinadas localidades ou de militantes reunidos por causas, ideologias e formas de proximidades diversas. Eram, geralmente, grupos formados recentemente ou que, por opção política, mantinham-se mais inorgânicos e informais.

Page 59: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

59

atuação voltada ao questionamento ou proposição de políticas urbanas. O Núcleo

Piratininga de Comunicação (NPC), através do curso de comunicação comunitária e

popular, realizado anualmente havia vários anos, e que produzia o jornal Vozes das

Comunidades, era outra experiência de ação que misturava comunicação e lutas

urbanas. Havia ainda manifestações culturais e comunicativas como o Bonde da

Cultura na região de Acari, o Portal Comunitário da Cidade de Deus, a Agência de

Notícia das Favelas (ANF), entre outras experiências de mídia comunitária que se

juntavam àqueles que constantemente apoiavam e divulgavam as lutas, como a

Comissão de Direitos Humanos da ABI, a TV Caos, o Centro de Mídia Independente

(CMI-RJ), a Revista Vírus Planetário, o Jornal Brasil de Fato etc.

Havia também um grande número de movimentos e entidades de direitos

humanos, entre os quais ONGs com forte atuação popular e movimentos que

organizavam diretamente moradores de favelas, como a Rede Contra Violência, que

havia mais de 10 anos vinha se constituindo em um importante espaço de

formulação e denúncias contra diversas formas de violência contra os mais pobres,

ou as Associações de Parentes e Amigos de Vítimas da Violência Policial. Notava-se

também os grupos que combatiam a violência contra as mulheres, grupos que

lutavam contra a homofobia e a transfobia, contra a violência que atinge crianças,

adolescentes e meninos e meninas de rua, entre tantos outros que discutiam

políticas urbanas de segurança, saúde, uso do espaço público etc., e até mesmo

organizações de base religiosa, como a Pastoral das Favelas, que também atuava

em comunidades ameaçadas de remoção ou pela violência policial.

Entre as ONGs, se pode citar a Justiça Global, que atuava contra a violência

policial, denunciava milícias e integrava os fóruns que lutavam contra remoções

ligadas aos megaeventos. Também merece menção o PACS (Políticas Alternativas

para o Cone Sul), com destacada atuação de denúncias quanto aos megaeventos e

megaempreendimentos urbanos, em especial em casos como os dos pescadores de

Santa Cruz atingidos pelos impactos ambientais da TKCSA. Essas duas ONGs

foram sempre muito atuantes na PMS e na organização do FSU. Outras, como o

Instituto dos Defensores dos Direitos Humanos (DDH), a Redes de Desenvolvimento

da Maré, a Anistia Internacional, a ActonAid, o Centro de Promoção da Saúde

(CEDAPS) e o Instituto Rosa Luxemburgo, além do histórico Grupo Tortura Nunca

Page 60: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

60

Mais (GTNM) também participavam eventualmente das reuniões da PMS e quase

todas participaram, de alguma forma, na organização do FSU.

Havia ONGs, como o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

(IBASE), a Fundação Bento Rubião ou a Federação dos Órgãos para Assistência

Social e Educacional (FASE), que atuavam, entre outros temas, em projetos e lutas

ligadas à moradia popular. No geral, essas ONGs tinham suas práticas voltadas para

assessorar os movimentos sociais urbanos, especialmente nos casos em que esses

conseguiam conquistar junto ao Estado projetos de moradia popular, seja através da

autoconstrução ou de verbas para reformas em prédios públicos vazios.

Colaboravam com os projetos técnicos, na formação de cooperativas, elaboravam

estudos, denúncias, ajudavam a captar recursos e obter apoio jurídico. Atuavam

também no Fórum Estadual de Luta pela Reforma Urbana, organizavam debates e

seminários e participavam das disputas institucionais. Colaboraram com a

organização do FSU, mas participavam apenas eventualmente de espaços como a

PMS-RJ.

Na área de saúde e de educação, havia também entidades e movimentos que

priorizavam uma atuação voltada para a problemática territorial e urbana, como o

Coletivo de Educadores da Cidade e do campo, os pré-vestibulares comunitários,

associações de usuários do sistema de saúde, entre outros que abordavam em

menor escala essa problemática, como o Movimento Anti-manicomial, a Frente

Drogas e Direitos Humanos e fóruns, como o Fórum Popular do Orçamento, Fórum

da Saúde e o Fórum em Defesa da Educação Pública (FEDEP), que eram espaços

importantes para ampliar as redes de apoios aos movimentos. Existiam ainda

movimentos como o Movimento pela Legalização da Maconha (MLM), que

denunciava a guerra aos pobres nos morros cariocas, apoiada na desculpa da

guerra às drogas, além do recolhimento compulsório de moradores de rua usuários

de drogas ilícitas45.

Alguns sindicatos, por representarem categorias muito influenciadas pelas

políticas urbanas e pelo poder local (ou simplesmente por opção política de se

aliarem aos movimentos urbanos), também participavam de forma mais ou menos

45 O MLM é um dos movimentos que organiza anualmente a Marcha da Maconha e era inicialmente chamado de Movimento pela Legalização das Drogas (MLD).

Page 61: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

61

costumeira das lutas urbanas. Era o caso do SEPE46 e, em menor grau, do Sindicato

dos Metroviários (SIMERJ), do Sindicato dos Previdenciários (SINDSPREV-RJ) e do

Sindicato dos Engenheiros (SENGE-RJ).

Entre as Centrais Sindicais destacava-se a CONLUTAS, que em seu encontro

nacional de 2010 decidiu incorporar movimentos sociais não sindicais à sua

organização - como o MTST e o MUST - e passou a se chamar Central Popular e

Sindical (CSP-CONLUTAS)47. A INTERSINDICAL, o Sindicato dos Petroleiros

(SINDIPETRO-RJ), a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior

(ANDES-SN) especialmente suas sessões da UFRJ e da UFF (ADUFERJ e

ADUFF), entre outras entidades sindicais, talvez pelas relações construídas na PMS,

também apoiaram e participaram periodicamente das lutas urbanas48.

Mesmo no movimento estudantil havia grupos organizados em torno de

problemáticas tipicamente urbanas, como o Movimento Pelo Passe Livre49, o Fórum

Contra o Aumento das Passagens, o Movimento Direito para Quem? (DPQ) ou o

Núcleo Estudantil em Apoio à Reforma Agrária (NEARA), que também já esteve

atuando em favelas cariocas. Havia grupos como o Comitê de Solidariedade aos

46 O SEPE, mais do que qualquer outra entidade sindical, se destacou por participar sistemática e ativamente de experiências como a PMS, o FSU e o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. O apoio e solidariedade por parte dos MSUs à greve dos professores no segundo semestre de 2013, com a realização de gigantescas manifestações que atraíram muitas pessoas que não eram da categoria, pode ser explicado, em parte, por essa relação construída ao longo dos anos anteriores. Para efeito de comparação, naquele mesmo período os bancários do Rio de Janeiro também estavam em greve, mas não atraíram a atenção e solidariedade dos MSUs como os professores, nem realizaram manifestações de rua ou ações de ocupação como o SEPE realizou em conjunto com seus aliados. 47 Além do MTST e do Movimento Urbano dos Sem Teto (MUST), participavam também da CONLUTAS o MTL, o Movimento Quilombo Raça e Classe, a ANEL, o Movimento Mulheres em Luta e outros. Registra-se que, na organização do FSU, a CONLUTAS, que estava organizando seu Congresso Nacional, pouco contribuiu. 48 Entre 2007 e 2011 houve outros sindicatos e mesmo centrais sindicais que participaram esporadicamente da PMS-RJ e de suas atividades, apoiaram política ou financeiramente ações dos MSUs e atividades como o FSU. Alguns ainda não citados são: Sindicato dos Trabalhadores dos Correios; Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (SINTUPERJ); Associações dos Docentes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Universidade do Rio de Janeiro (ASDUERJ e ADUNIRIO); Associação dos Servidores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ASSIBGE-SN); Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público (SINTRASEF-RJ); Sindicato dos Trabalhadores da Justiça Estadual (SINDJUSTIÇA-RJ); Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal Fluminense (SINTUFF), Sindicato dos Trabalhadores da UFRJ (SINTUFRJ); e Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB). 49 O Movimento pelo Passe Livre era, inicialmente, um movimento de estudantes pelo passe livre estudantil. No Rio de Janeiro o passe livre para estudantes da rede pública de ensino fundamental e básico foi conquistado em 1990 (aprovado pela Câmara de Vereadores), a partir de lutas protagonizadas pela Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas do Rio de Janeiro (AMES). No início dos anos 2000, foram realizadas diversas tentativas de suprimir ou reduzir esse direito dos estudantes, o que gerou novas mobilizações e a organização do MPL no Rio de Janeiro. Sua atuação

Page 62: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

62

Movimentos Sociais/UFRJ, formado sobretudo por estudantes e pesquisadores de

Geografia da UFRJ, com atuação junto a algumas ocupações e favelas no Centro.

A Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP) era outra entidade que,

como o DPQ e o Núcleo de Assessoria Jurídico Popular (NAJUP-RJ), atuava dando

apoio jurídico aos movimentos e às lutas urbanas e rurais. E, experiências de grupos

semelhantes, como coletivos de estudantes e profissionais de arquitetura, de

comunicação – esses através da Rede Nacional de Jornalistas Populares

(RENAJORP) - vinham se proliferando e faziam aumentar essas redes de apoio aos

movimentos sociais urbanos.

Havia também movimentos e entidades ligadas às lutas ambientais: o Baía de

Sepetiba Pede Socorro, o Fórum do Trabalhador pelo Meio Ambiente, as

Associações de Agroecologia Urbana, a Associação dos Pescadores de Santa Cruz

e a Associação Homens do Mar – os quais contavam com aliados, como a

Associação de Geógrafos do Brasil (AGB) ou a Rede Brasileira de Justiça Ambiental

(RBJA) - e tinham suas lutas voltadas para a temática ambiental da cidade.

Existiam ainda movimentos, como os dos Quilombos Urbanos - entre os quais

o da Pedra do Sal - com atuação nas vizinhanças de onde ocorreu o FSU, e que

lutavam por seus direitos de uso do solo, mas também pelo resgate de suas

histórias; ou mesmo movimentos indígenas, como o Movimento Tamoio e outros

grupos que desde 2007 ocupavam o antigo e abandonado prédio do Museu do Índio,

ao lado do Maracanã (e que como já visto, foram tão importantes para deflagrar as

manifestações de 2013 no Rio de Janeiro). Eles defendiam, entre outras questões,

que aquele espaço servisse de moradia e de espaço cultural, político e de

fomentação do saber indígena.

O Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD-RJ), movimento

nacional que em maio de 2008 se constituiu também no Rio de Janeiro (quando

realizou seu I Congresso Estadual)50, era outro que seguidamente se confrontava

com as políticas urbanas de uso e ocupação do solo e com a política de segurança,

ao defender camelôs, desabrigados e a ocupação de terrenos, prédios e galpões

e organização sempre foi, no entanto, mais frágil e inconstante do que visto em outras capitais brasileiras. 50 Em fins de 2009 o MTD-RJ viveu um período de crise na relação com suas instâncias nacionais. A partir de dezembro de 2009, o movimento sofreu com uma intensa disputa entre militantes e grupos que reivindicavam inclinações anarquistas e socialistas, o que resultou em uma cisão e na criação do MTD pela Base.

Page 63: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

63

abandonados para fins de moradia ou trabalho. Seu principal lema era: “Ocupar!

Resistir! Construir! Produzir!”

O Movimento Unificado dos Camelôs (MUCA) era mais uma organização de

trabalhadores que atuava discutindo a lógica de uso e ocupação do solo da cidade,

confrontando-se com as políticas de segurança pública, denunciando as

arbitrariedades associadas aos megaeventos (com efetiva participação no Comitê

Popular da Copa e Olimpíadas) e apoiando as ocupações urbanas para moradia.

Atuavam também nas lutas urbanas uma série de grupos de cunho mais

ideológico, como o Núcleo Socialista de Campo Grande, o Coletivo Eco-Socialista e,

com menos intensidade, o Núcleo Socialista de Santa Teresa. Esses grupos,

formados por professores, estudantes, militantes de direitos humanos ou das áreas

de saúde, cultura e educadores populares, atuavam nas lutas urbanas locais e

participavam também de articulações mais gerais dos movimentos sociais. A

Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ)51 era outro grupo formado por

militantes de diferentes origens sociais que, reunindo estudantes, professores e

moradores de ocupações, teve atuação muito destacada nesse período, ajudando

na construção de movimentos como a FIST, o MTD, o MTD pela Base e de diversos

fóruns de articulação: Consulta Popular, Círculos Bolivarianos52, Núcleo de Lutas

Urbanas do PSOL e o Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL)53. Estes eram

51 A FARJ foi fundada e 2003 e integrava a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB). Esteve à frente de diversas ocupações ao longo dos anos 2000: Ocupação Poeta Xynayba, em uma vila na Tijuca, Ocupação Domingos Passos, um casarão em Sampaio, também na Zona Norte, Ocupação Olga Benário, em um terreno em Campo Grande e Vila da Conquista, em Curicica, também na Zona Oeste. Os militantes da FARJ participaram ativamente da fundação da FIST, onde atuaram por anos, tendo sido fundamentais para sua consolidação. Depois ajudaram na organização do MTD, com o qual tiveram uma cisão, criando então o MTD Pela Base, e também ajudaram a construir espaços de articulação como o Reunindo Retalhos. Participavam ativamente ainda de várias outras ocupações, entre elas a extinta ocupação Lima Barreto, na Rua das Marrecas, próxima a Lapa, e foram também um dos grupos que ajudaram a promover a ocupação Machado de Assis, realizada em setembro de 2008 em conjunto com militantes da extinta FLP, na Zona Portuária. Mais informações sobre a FARJ podem ser encontradas em: www.farj.com 52 Os Círculos Bolivarianos Leonel Brizola (CBLB) foram fundados em 2004. Em dezembro de 2007, no I Congresso Bolivariano Nacional, eles assumiram o nome de Movimento Revolucionário Nacionalista Círculos Bolivarianos (MORENA-CB), tendo sua principal base no Rio de Janeiro. Eles se definiam como uma organização “bolivariana, guevarista e brizolista” de fundamentação marxista e perspectiva revolucionária. Uma de suas principais bandeiras de luta era a reforma urbana. Em fins de 2011, o MORENA-CB em conjunto com as Brigadas Populares, o Coletivo Autocrítica e o Coletivo 21 de Julho (C21J) se lançaram à construção de uma entidade nacional: As Novas Brigadas Populares, a qual reivindicava o socialismo e o nacionalismo revolucionário e tinha nas ocupações urbanas uma das suas principais formas de luta. 53 O MTL atuava, mesmo que não exclusivamente, dentro do PSOL, tendo sido a força hegemônica no Partido no Rio de Janeiro por anos. Sua principal liderança política era Janira Rocha, diretora do SINDSPREV-RJ e depois Deputada Estadual de 2011 a 2014. Suas principais bases de atuação

Page 64: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

64

outros exemplos de grupos que, com maior ou menor grau de vinculação partidária,

atuaram em diferentes momentos e com distintas intensidades, nesses anos, junto

ou nos movimentos sociais urbanos, nos seus espaços de articulação, e

especificamente na PMS-RJ.

Grupos de pesquisa e/ou de assessoria ligados às universidades também

atuavam lado a lado aos movimentos sociais urbanos em diversas iniciativas. O

grupo de Assessoria Popular da Fiocruz, que atuava principalmente através do

Fórum Popular de Manguinhos, o Observatório das Favelas, iniciativa de professores

da UFF e que atuava na Maré, entre outras localidades, o Laboratório Estado,

Território Trabalho e Natureza (ETTERN), baseado no IPPUR/UFRJ, e o

Observatório das Metrópoles, também baseado no IPPUR/UFRJ, eram alguns dos

grupos ligados às universidades que prestavam assessoria, realizavam cursos de

formação teórica e atuavam na organização de atividades e fóruns de lutas criados

pelos movimentos urbanos, como foram os casos do FSU e do Comitê Social do

PAN, o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas ou a PMS-RJ.

Essa ampla diversidade de grupos, entidades e movimentos sociais citados

eram apenas parte daqueles que atuavam, de distintas maneiras e intensidades,

para intervir nas políticas urbanas54. Não é possível entender as lutas, formas de

organização e articulação dos movimentos sociais urbanos, durante esses anos no

Rio de Janeiro, sem olhar para todas essas organizações. As experiências que as

ações conjuntas fomentaram, a importância dos “apoios” para os pequenos grupos e

mesmo para os movimentos mais tradicionais, o papel que os militantes de ONGs,

partidos e universidades cumpriam nos fóruns que articulavam lutas mais gerais, a

ação de grupos culturais, de comunicação ou ambientalistas, a atuação dos

sindicatos, tudo era parte da forma que as lutas sociais urbanas adquiriram nesses

anos. Não que isso fosse exatamente uma novidade na política brasileira, como

mostra a história do MST, sobretudo nos anos 1990. Mas nem por isso deixavam de

ser experiências marcantes para as lutas e movimentos urbanos cariocas.

eram entre os trabalhadores previdenciários e em ocupações em terrenos abandonados na Região Metropolitana e no interior do Rio de Janeiro. A partir de 2012, o MTL passou por um processo de crise, com cisões e mudanças nos seus rumos. 54 Havia ainda diversos outros grupos que compunham essas redes de “apoios”, por exemplo, alguns conselhos profissionais, como o caso do Conselho Regional de Serviço Social RJ e o Conselho Regional de Psicologia RJ, além de inúmeras ONGs e laboratórios de pesquisa que, mesmo sem serem citados explicitamente nesse trabalho, tinham reconhecida importância para as lutas e a organização dos MSUs no Rio de Janeiro.

Page 65: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

65

Foram experiências que expressaram as respostas políticas e organizativas

que os movimentos e militantes construíram para intervir em uma conjuntura

marcada pelo refluxo das grandes mobilizações de massa, pela fragmentação e

processo de rupturas e tentativas de reorganização na esquerda e nos movimentos

sociais, principalmente depois da chegada de Lula à Presidência da República.

Expressavam também um momento no qual as cidades e as mudanças nas políticas

urbanas, acentuadamente no Rio de Janeiro, passaram a ser vistas por diferentes

grupos e movimentos como centrais no processo de acumulação de capital e nas

lutas de classes na atualidade. E, em decorrência, as contradições e conflitos

urbanos tornavam-se o centro das atenções para setores da esquerda, da academia

e para variadas entidades e movimentos sociais.

São experiências, portanto, fundamentais para a reflexão sobre o “trabalho de

toupeira” realizado durante anos pelos movimentos sociais urbanos cariocas e para

a relação desses com outros movimentos de trabalhadores. E foram essas

experiências que possibilitaram a organização do FSU, que por todas essas razões

atraiu tanta atenção de tantos movimentos e entidades.

2.4 Olhando de frente

2.4.1 O contexto e as lutas dos movimentos com foco na habitação no Rio de Janeiro

Entre todos os movimentos que têm a cidade como objeto de suas lutas e

reivindicações, os movimentos com foco na habitação são os mais rotineiramente

reconhecidos, inclusive pela literatura acadêmica, como movimentos sociais

urbanos. O fato de a mesa de abertura do FSU ter sido composta por quatro

movimentos envolvidos com essa temática (CMP, MNLM, UNMP e FAM-Rio) indica

que esses movimentos eram vistos, também entre os demais, como movimentos

importantes e ligados a um tema central para o conjunto dos movimentos sociais

urbanos.

É possível se dividir os movimentos sociais urbanos com foco na habitação

em dois grandes grupos. No primeiro, os “movimentos de moradores”, com destaque

para os moradores de favelas e periferias. No geral, suas lutas não são por acesso à

moradia, mas mais especificamente por melhores condições de moradia,

Page 66: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

66

regularização fundiária ou urbanização nas áreas onde moram. Reivindicam a

implantação ou melhoria de serviços públicos de saúde, educação, meios de

transporte coletivo, saneamento, passarelas, coleta de lixo e obras de contenção de

encostas ou limpeza de rios e córregos causadores de inundações etc. No essencial,

se caracterizam por suas bases populares e lutam contra as desigualdades urbanas.

Organizam-se através de associações de moradores, fundadas na ideia de

representar um conjunto determinado de pessoas – os moradores de um bairro, rua

ou favela – e, dessa forma, teriam como suas “bases” todos os moradores daquela

localidade.

Em alguns casos, quando organizam moradores de áreas mais ricas, lutam

contra os reajustes dos preços dos alugueis ou de financiamentos imobiliários, por

mais segurança ou contra a criação, progressividade ou elevação de taxas e

impostos municipais.55 Em outros casos, tentam impedir uma determinada obra ou

empreendimento imobiliário que consideram danoso às suas propriedades ou à vida

do bairro. Costumam praticar a típica luta comunitária, por vezes até de caráter

conservador, se opondo à presença de moradores de rua, camelôs, festas de rua,

defendendo a remoção de uma comunidade pobre vizinha ou denunciando uma

nova ocupação.

O segundo grande grupo de movimentos organizados com foco na habitação

é o daqueles que lutam pelo acesso à moradia. São movimentos de base popular,

compostos por famílias de trabalhadores pobres que vivem em condições

inadequadas de moradia, que não têm condições de pagar para ter acesso a esse

bem ou mesmo por aqueles em situação de rua. Utilizam diversas formas de luta,

com destaque, de um lado, para as ações diretas, através da ocupação organizada

de terrenos e prédios abandonados56 e, de outro, para a luta por leis e políticas

habitacionais que atendam aos mais necessitados.

55 Por exemplo, o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) ou a Taxa de Iluminação Pública. 56 Nem sempre as ocupações com fins de moradia são parte de lutas organizadas ou animadas por movimentos sociais. Às vezes são ações individuais, outras envolvem tentativas de obter ganhos financeiros, eleitorais etc. A rigor, todas as formas de acesso à terra urbana sem que haja compra e venda são formas de ocupações, como qualquer favela foi um dia. Já as ocupações organizadas, sobretudo por movimentos sociais, são poderosas formas de ação política que, além de possibilitar a conquista da moradia, denunciam, na prática, a falta de políticas habitacionais para os mais pobres, o déficit habitacional, a propriedade privada sem função social e a violação de um direito constitucional de todos no Brasil. É este tipo de ocupação, as organizadas, que são examinadas nesse trabalho.

Page 67: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

67

Uma característica importante dos “movimentos por moradia” é que suas

formas de organização – tanto os movimentos de luta por moradia como os sem-teto

- não pressupõem bases pré-determinadas a serem representadas, como no caso

das associações de moradores. Os movimentos por moradia são formados e

respondem, via de regra, exclusivamente aos seus participantes, que têm nos seus

movimentos mais do que uma forma de representação, mas de organização. Nesses

casos, base é sinônimo daqueles que participam regularmente, que aderem e se

tornam militantes do movimento, de suas causas, formas de luta e ideologias57.

Cabe destacar ainda as lutas contra despejos e remoções, que ocorrem

principalmente em áreas de habitação popular sem regularização fundiária ou em

terrenos, casas ou prédios ocupados. O risco de desabamentos, a preservação

ambiental, a necessidade de construção de novas vias rodoviárias ou equipamentos

urbanos e esportivos relacionados aos megaeventos são alguns dos argumentos

costumeiramente usados para justificar essas remoções forçadas. O direito de

reintegração de posse dos proprietários dos terrenos, casarões ou prédios vazios

também costuma ser acionado para justificar despejos e remoções. Esses

argumentos, no entanto, em muitos casos, escondem os interesses do complexo

financeiro imobiliário e, normalmente, ocorrem em áreas valorizadas ou em vias de

valorização, da qual buscam expulsar os pobres sem lhes oferecer as devidas

alternativas habitacionais58. Lutas contra remoções e despejos costumam guardar

características típicas tanto dos movimentos “de moradores” quanto dos movimentos

“por moradia”. Em alguns casos, é a associação de moradores da comunidade

ameaçada que organiza a luta contra a remoção, enquanto em outros casos são os

movimentos por moradia que assumem essa função. E também há casos em que

movimentos de moradores e por moradia atuam juntos59.

57 Pode-se perceber essa diferença entre movimentos organizados “de moradores” e “por moradia”, por exemplo, através da forma que são eleitas suas direções. Em uma associação de moradores, todos os moradores daquele bairro, participantes ou não de qualquer luta ou atividade, adeptos ou não da política daquele movimento, são considerados “base” da associação e podem votar (mesmo que para tal precisem, eventualmente, pagar alguma taxa de filiação/adesão). Já na eleição da direção de um movimento de moradia (por exemplo, o MNLM, o MTST ou a CMP), somente os participantes desses movimentos e de suas lutas – em outras palavras, seus militantes organizados - votam. 58 Mesmo quando são prometidas ou oferecidas indenizações, pagamento de aluguel social, programas de compra assistida ou o acesso aos programas habitacionais dos governos, a existência de luta contra a remoção indica sua condição de remoção forçada, indesejada. 59 Muitas vezes são os movimentos por moradia, como o MNLM, a CMP, a FIST ou o MTST, que estão à frente da resistência contra a remoção de comunidades pobres e, principalmente, da luta

Page 68: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

68

Essa divisão entre “movimentos de moradores” (que lutam por melhorias em

suas moradias e bairros) e “movimentos por moradia” (que lutam para obter sua

moradia) é, porém, tantas vezes tênue, se não impossível de ser percebida ou

realizada analiticamente, já que certas características desses movimentos, ao se

adaptarem às condições da luta, se embaralham conforme o desenrolar dos

acontecimentos e os atores envolvidos. É verdade também que, muitas vezes, as

lutas para conquistar ou manter a moradia aparecem bastante misturadas. Afinal,

imediatamente após a ocupação de um prédio ou terreno vazio, é comum a luta

passar a ser contra o despejo e pela construção, no local, de moradias por parte do

Estado ou pela reivindicação de verbas públicas para desapropriação do imóvel ou

para sua reforma. Em outros casos, incluem a organização de mutirões de

autoconstrução ou mesmo a contratação de projetos construtivos por movimentos,

como no caso do atual programa do governo federal Minha Casa Minha Vida

Entidades. E há movimentos sociais que atuam nas lutas contra as remoções,

organizam ocupações para moradia e defendem políticas habitacionais,

pressionando os governos ou empresas, realizando manifestações e/ou ações

institucionais ou jurídicas com esses objetivos. No entanto, conforme se olha as

características dos MSUs com foco na habitação no Rio de Janeiro e suas lutas nos

anos 2000, percebe-se que essa divisão é útil para melhor descrever e analisar suas

práticas, objetivos e formas de organização e luta60.

contra o despejo de ocupações. Em outros casos, são criadas organizações específicas contra determinas remoções, contando com características típicas de movimentos por moradia. Foi esse o caso, por exemplo, na comunidade da Indiana, na Zona Norte. Lá, a Associação de Moradores, que em tese representaria o conjunto dos moradores da comunidade, apoiava/aceitava a remoção. Então, uma comissão de mobilização foi formada pelos moradores que queriam resistir, para organizar sua luta. Eram os membros dessa comissão que representavam essa parte mobilizada da comunidade em espaços como o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. Essa situação se repetia, através de distintas formas, em vários locais. Na comunidade do Canal do Anil, por exemplo, eram os representantes da comunidade no Conselho Popular (e não a Associação de Moradores) que organizavam a resistência contra a remoção e atos como o do 1º de Maio de 2007. Registra-se que nos casos, por exemplo, da Vila Autódromo e do Horto, mesmo com a presença e apoio constante de movimentos por moradia, eram as Associações de Moradores dessas localidades que assumiam a função de estar à frente dessas lutas e que as representavam em atividades como o FSU e em fóruns como a PMS ou o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. 60 No diálogo histórico apresentado no Capítulo II ver-se-á que a literatura acadêmica, a partir dos anos 1970-80, passou a chamar de “novos movimentos sociais urbanos” os movimentos por moradia surgidos naqueles anos, em oposição aos “velhos” ou “antigos” movimentos de bairro, os típicos movimentos de moradores. No presente trabalho, o foco principal são os movimentos sociais urbanos organizados de luta por moradia.

Page 69: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

69

Em diferentes conjunturas, e dependendo da correlação de forças entre os

atores envolvidos no processo de produção, comercialização, regulação e uso de

moradias e do solo, as lutas contra as remoções (lutas de resistência) ganham mais

centralidade. Em outros momentos ou situações, são as ocupações para fins de

moradia e as lutas por políticas habitacionais que têm maior repercussão, indicando

também uma condição de maior iniciativa dos movimentos. Afinal, para realizar uma

ocupação é necessária uma ação prévia do movimento, de recrutamento e

organização das famílias ocupantes. Já nas lutas contra remoções, a ação prévia é

do Estado (e da coalizão dominante) e as famílias potencialmente mobilizáveis para

resistir são aquelas a serem atingidas, direta ou indiretamente, por essa ação e que,

desta forma, se organizam para a reação à remoção. A ocorrência maior de lutas

contra as remoções costuma ser indício de uma conjuntura em que o Estado tem a

iniciativa e está pondo em prática seu projeto de cidade. Já a centralidade das lutas

por políticas habitacionais e a ocorrência de ações diretas através de ocupações

sugere uma conjuntura de relativa força dos movimentos sociais.

Ao observar-se as lutas urbanas no Rio dos anos 2000, percebe-se um

período que, em linhas gerais, foi de 2004 (com a ocupação Chiquinha Gonzaga,

próxima à Central do Brasil) até fins de 2008 (com a ocupação Machado de Assis,

na Região Portuária), em que as lutas por moradia estavam centradas nas ações

diretas de ocupação realizadas pelos movimentos sociais. Nesse período, nasceram

algumas das principais ocupações cariocas, como as duas citadas e a Zumbi dos

Palmares, Federação dos Tamoios, Quilombo das Guerreiras, Aldeia Maracanã,

Carlos Marighella e Manoel Congo, entre outras61. Pode-se dizer que esse foi o mais

importante ciclo de ocupações organizadas que a cidade do Rio de Janeiro

conheceu desde os anos 1990 e talvez de toda sua história.

A partir de 2009, no entanto, percebe-se que o eixo principal das lutas por

moradia no Rio de Janeiro se deslocou para a questão das remoções. Segundo

dados de 2011, do Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos do

61 Além das ocupações que foram vitoriosas ou que resistiram por um tempo relativamente significativo, nesse período ocorreram também uma série de tentativas de ocupações que foram despejados em um curto período de tempo. Cabe lembrar que, mesmo nesses casos de “derrotas”, essas ações geravam repercussão social para o problema da moradia, davam visibilidade pra os movimentos sociais envolvidos e, muitas vezes, essas famílias despejadas voltavam a se organizar e participavam de novas ocupações.

Page 70: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

70

Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro (MEGAEVENTOS, 2013)62,

1860 famílias já haviam sido removidas e 5325 estavam ameaçadas de remoção,

totalizando 7185 famílias, apenas por decorrência das intervenções vinculadas à

Copa do Mundo e às Olimpíadas, como a construção da Transcarioca, da

Transoeste e da Transolímpica e da promoção do turismo, através de projetos como

o Porto Maravilha63. Se somadas às famílias removidas ou ameaçadas de remoção

pelas intervenções do Programa de Aceleração do Crescimento PAC/Comunidades

(centenas na Rocinha, em Manguinhos e outras comunidades), se vê que esse

número era ainda maior. Acrescentando ainda as centenas de famílias do Horto, da

Indiana, do Alto da Boa Vista, do Morro dos Prazeres, de Campinho, do Fogueteiro,

Tubiacanga, entre outras áreas da cidade, deslocadas em nome da preservação

ambiental por estarem em áreas consideradas de risco, para a construção de

teleféricos ou ampliação de aeroportos e outros equipamentos urbanos, entende-se

por que a luta contra as remoções ganhou tanta centralidade nesse período.

Essa mudança de cenário nas lutas por moradia no Rio de Janeiro atingiu em

cheio os movimentos urbanos que, ao menos desde 2007, já discutiam que as

remoções eram parte fundamental do modelo de cidade que vinha sendo

implantado. E os motivos dessa mudança de cenário não parecem ligados a

processos próprios aos movimentos. Parece que a eleição de Eduardo Paes como

prefeito do Rio de Janeiro, em fins de 2008, favoreceu o alinhamento dos governos

federal, estadual e municipal e a aprovação do Rio de Janeiro como sede da Copa

do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 - o que possibilitou a instalação de

uma verdadeira cidade de exceção, na qual os negócios passaram a valer mais do

que as leis e justificaram isenções fiscais, violação de direitos e a flexibilização de

obrigações nesses megaempreendimentos. Estes foram os fatores mais relevantes

para as remoções ganharem tamanha centralidade nas lutas urbanas cariocas.

Esses são indícios de uma conjuntura desfavorável aos movimentos sociais,

na qual a iniciativa estava com a coalização dominante na cidade. Ao que parece, a

62 O Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos indica que eram mais de duzentas mil famílias removidas ou ameaçadas de remoção em todo o país, e pode ser encontrado em: portalpopulardacopa.org.br. O Dossiê sobre o Rio de Janeiro pode ser encontrado em: comitepopulardacopario.wordpress.com Muito mais sobre as remoções no Rio de Janeiro e no Brasil pode também ser encontrado em: raquelrolnik.wordpress.com. 63 Mais sobre como o projeto Porto Maravilha vem impactando a vida dos moradores locais e sobre as remoções na região, ver em: forumcomunitariodoporto.wordpress.com

Page 71: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

71

conformação de um amplo bloco de poder das classes dominantes no Rio de

Janeiro, com a participação hegemônica das grandes empreiteiras “donas” das

grandes obras e do capital imobiliário, se expressava no alinhamento dos governos

e no apoio midiático à agenda política e aos projetos econômicos em curso (com

destaque para as intervenções urbanas) 64. Isso “empurraria” os MSUs cariocas a

concentrarem suas atenções e lutas na resistência a essas iniciativas.

A existência de tantas ações no sentido de uma ampla renovação urbana é

indício da força desse projeto de cidade, no qual as remoções tinham papel central.

Sugere também uma ampliação (tanto em direção à Barra quanto a bairros da Zona

Norte) do núcleo rico da cidade e, acompanhando essa expansão, a expulsão dos

moradores pobres dessas áreas65.

Sugere, enfim, que era um momento delicado, mas de grande potencial para

os movimentos sociais urbanos cariocas, pois ao atingir uma grande parcela da

população (diretamente os setores mais pobres e indiretamente a maioria dos

trabalhadores) da cidade, essas ações poderiam gerar reações e alimentar

sentimentos de injustiça em amplos segmentos sociais (como, aliás, se viu de fato

em 2013). E a participação dos movimentos organizados nessas lutas de resistência

64 O crescimento econômico do Estado do Rio era amplamente alardeado pelas manchetes dos jornais: “Rio lidera investimentos no país”; “Pré-sal, Copa e Olimpíadas farão estado crescer quase o dobro do país”; “Renda em alta no Rio: salário sobe 4,1% e supera o do trabalhador paulista” (O GLOBO, 1/7/2013; 5/9/2013; 20/12/2013). Esse crescimento era puxado pela indústria naval e do petróleo e ligado ao pré-sal no Norte Fluminense, pelo polo siderúrgico e automotivo na região do Sul Fluminense, pelos investimentos nos polos petroquímico e tecnológico, pelo capital imobiliário em meio ao vertiginoso aumento nos preços dos imóveis e do solo urbano, pela flexibilização das leis urbanísticas, pelas grandes empreiteiras responsáveis por obras em portos, aeroportos e, principalmente, aquelas relacionadas aos megaeventos, além do sucesso midiático e de opinião pública das UPPs. São fatores que ajudam a explicar aquele momento de maior força e iniciativa da classe dominante e do Estado na questão urbana e a tentativa de realizar tantas remoções por toda a cidade. 65 Segundo Maurício Abreu, em sua obra Evolução Urbana do Rio de Janeiro, os investimentos públicos e privados no Rio de Janeiro sempre privilegiaram os locais que asseguram maior retorno financeiro ao capital. “Resulta daí a acentuação das disparidades intrametropolitanas e, por conseguinte, do modelo espacial dicotômico, no qual um núcleo hipertrofiado e rico (...) é cercado por periferias cada vez mais pobres e carentes desses serviços, à medida que se distanciam dele” (ABREU, 1988, p.11). Destaca-se o que o autor chamou de “um paradoxo básico”: por tanto buscar ser uma cidade parecida com as europeias ou americanas, teria o Rio tomado uma configuração exatamente oposta à delas. Lá, os mais privilegiados procuram as periferias “para que possam gozar as amenidades da urbanização moderna”. No Rio, pela escassez de recursos investidos em bens urbanísticos e pela pouca renovação da infraestrutura, aconteceu o contrário. “A solução foi amontoar os ricos em torno desses bens para que pudessem desfrutá-los ao máximo, e impedir a entrada dos pobres no núcleo, ou expulsá-los para fora dele”. O resultado desse processo de “depuração” a partir do núcleo foi um ordenamento de grupos sociais “a partir de suas possibilidades de acesso e desfrute das vantagens urbanas de qualquer natureza (de produção ou de consumo)”. (ABREU, 1988, p.17-18)

Page 72: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

72

poderia não apenas fortalecê-las, como também os próprios movimentos e a classe

trabalhadora como um todo.

2.4.2 Os movimentos sociais organizados com foco na habitação no Rio de Janeiro

Eram muitos os movimentos sociais urbanos com foco na habitação no Rio de

Janeiro.66 O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) era um dos principais

e sua organização no Rio viveu distintas fases. As primeiras tentativas de

organização do movimento no Rio ocorreram ainda no final dos anos 1990,

influenciadas por militantes do MST e do MTST de São Paulo, entre algumas

lideranças locais. Nesse período, realizaram algumas ocupações, como a Paulo

Freire, em 1998, e a Che Guevara, em 1999, que resultaram em dois assentamentos

na região de Sepetiba, Zona Oeste carioca, a partir de 2001.

Depois, já nos anos 2000, foram universitários que apoiaram/tentaram

construir/fortalecer o movimento no Rio de Janeiro. Houve ainda iniciativas de

militantes locais e de moradores de ocupações descontentes com as políticas dos

demais movimentos sociais urbanos cariocas. Em todos esses casos foram feitos

contatos com o MTST nacional, especialmente com os militantes de São Paulo, que

em algumas ocasiões acompanharam mais de perto essas iniciativas67.

O MTST realizou ou participou também de ocupações em prédios

abandonados no Centro, sendo a mais conhecida a Ocupação Carlos Marighella, na

Rua do Riachuelo, Lapa, posteriormente despejada. Na Zona Oeste, realizaram

ocupações em terrenos vazios, como a Ocupação Serra do Sol, em Santa Cruz,

efetivada em junho de 2008 por cerca de 150 famílias. Após mais de um ano de

muitas manifestações, lutas e negociações, o MTST conseguiu a liberação de um

terreno, a cerca de 500 metros da ocupação, onde foi iniciado o processo de

construção de moradias para os moradores da Serra do Sol (nesse período já

passavam de 300 famílias)68. Apesar de vitoriosa, essa luta custou ao MTST-RJ a

66 Adverte-se que o uso do tempo verbal no passado indica que essa análise se refere a um período que, apesar de recente, já passou. Não indica, portanto, que qualquer dos MSUs citados tenha deixado de existir ou mudado suas práticas e discursos, embora seja previsível que, após as manifestações de 2013, ocorram mudanças entre os MSUs. 67 Em 2011, a Direção Nacional do MTST destitui um grupo de militantes que representava o movimento no Rio de Janeiro. Desde então, o Movimento no Rio passou a ter um acompanhamento maior das instâncias nacionais. 68 Nesse período os moradores da Ocupação Serra do Sol sofreram com diversas tentativas de despejo, ameaças de mortes e com a prisão de seus dirigentes. Mesmo assim mantiveram a

Page 73: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

73

vida de seu principal dirigente e fundador do movimento no Rio, o Pepé,

assassinado em 2009, o que gerou graves problemas políticos para o MTST-RJ e

sua atuação na Serra do Sol.69

Deve ser dito ainda que o MTST era o movimento de luta por moradia que,

em âmbito nacional, mais mobilizava gente e promovia manifestações. Na região

metropolitana de São Paulo, sua ação era o que existia de mais massivo e

mobilizador entre os movimentos sociais urbanos brasileiros. Aliava as formas de

ação direta às negociações com os governos e se articulava com o movimento

sindical (o MTST participava da CONLUTAS e mantinha relações de proximidade

com a INTERSINDICAL)70. Era a principal referência entre e para os novíssimos

MSUs que surgiram nos anos 2000 em todo o país.

Em 2011, o MTST realizou o seu I Congresso Nacional. Em suas resoluções,

se definia como um movimento “que organiza trabalhadores urbanos a partir do local

em que vivem: os bairros periféricos”. Em seu website, afirmava ser um movimento

“de trabalhadores sem-teto que luta por moradia e por uma Reforma Urbana popular

e classista”. Segundo eles, a luta por moradia era parte de uma luta maior, “por

condições de vida dignas”. Ressaltavam que “não é nem nunca foi uma escolha dos

trabalhadores morarem nas periferias”, mas que esse fato “criou as condições para

que os trabalhadores se organizem nos territórios periféricos por uma série de

reivindicações comuns”, gerando identidades coletivas em torno dessas lutas. Para

eles, “a organização sindical, no espaço de trabalho, tem tido enormes dificuldades

em organizar um segmento crescente de trabalhadores (desempregados,

temporários, terceirizados, trabalhadores por conta própria, etc)”.

Consequentemente, “o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil e em

resistência, para a qual contaram com a solidariedade de outros movimentos, entre os quais do MORENA–CB, da FAFERJ e da CMP. A prefeitura do Rio, inicialmente, se negava a aceitar qualquer negociação que envolvesse a permanência da ocupação. As negociações com o poder público só avançaram efetivamente após uma manifestação nacional do movimento, em 2009, na qual um grupo de manifestantes do MTST se acorrentou à portaria do prédio onde morava o então presidente Lula. Aberto o diálogo com o Governo Federal, o Secretário de Habitação do Rio na época, Jorge Bittar, voltou atrás, suspendeu as tentativas de despejo e incluiu os moradores (sem sorteios ou filas) no Programa MCMV, em terreno vizinho ao ocupado. 69 José Carlos Moraes, o Pepé, fora eleito presidente da Associação dos Moradores da Serra do Sol. Ele foi assassinado na porta da Associação, em 4 de março de 2009, quando se preparava para seguir com os moradores da ocupação para uma manifestação na sede da Prefeitura. Em decorrência desse crime, outros militantes tiveram que se afastar da ocupação. 70 O MTST “entrou” para a CSP-CONLUTAS em 2010 e, depois, em julho de 2012, se desligou da Central.

Page 74: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

74

outros países têm se organizado e lutado é o território”. Então concluíam: “Somos

um movimento territorial dos trabalhadores”.

Nas resoluções do Encontro Nacional, o MTST afirmava também que sua luta

era contra o capital e o Estado, em busca da construção de uma sociedade

socialista e da construção do poder popular (reafirmando a necessidade das lutas

autônomas dos trabalhadores). Sobre suas formas de luta, diziam que “estão

centradas na luta direta” contra os seus inimigos e que isso os “diferencia da maioria

dos movimentos urbanos, que optaram por focar suas ações na participação

institucional: negociações de projetos com o Estado, participação em Conselhos

(conselho de habitação, das cidades, orçamento participativo, etc.) e parcerias com

os governos”. Mas ressaltavam que também sabiam negociar.

O MTST organizava manifestações nacionais conjuntas com diversos

novíssimos movimentos sociais urbanos, articulados na chamada Resistência

Urbana – Frente Nacional de Movimentos. Elaboravam pautas de reinvindicações,

propostas para os programas governamentais de habitação popular, além de

também terem estado à frente de manifestações por melhorias nos transportes etc71.

Hoje, fala-se com naturalidade da existência dos “sem-teto” como forma de

nomear as pessoas ou grupos que participam de lutas e ocupações por moradia. O

caráter de luta dessa forma de nomeação desse grupo social (e assim da própria

constituição desse grupo) fica evidente pela distinção (também feita com

naturalidade) entre sem-teto e moradores de rua. Em grande medida isso se deve às

ações do MTST, o que demonstra, apesar das polêmicas relativas a essa forma de

nomeação, a força que o movimento assumiu e seu impacto na construção das

representações dos grupos sociais no Brasil.

No Rio de Janeiro, eram vários os movimentos que poderiam ser chamados

de novíssimos MSUs. Novíssimos em “idade” e por emergirem com um discurso que

fazia contraposição aos “novos” MSUs surgidos nos anos 1980. Alguns eram

organizados localmente, como o MTD Pela Base72 (cisão carioca do MTD) e a

71 Mais informações sobre o MTST e sobre as resoluções do seu I Encontro Nacional podem ser encontradas em: www.mtst.org 72 Segundo sua carta de princípios, o MTD Pela Base, fundado em 2010, era um “movimento classista”, sua luta “se direciona ao fortalecimento dos espaços das classes populares, de moradia ou trabalho, como subúrbios, periferias, favelas e ocupações do movimento sem teto”. Ainda segundo sua carta de princípios, o MTD Pela Base era “antiautoritário, antirreformista e revolucionário”. Defendia a “organização dos trabalhadores desempregados, não-empregados e subempregados, caminhando para a conquista dos meios de produção”. Seu “projeto amplo é a construção de uma

Page 75: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

75

Federação Internacionalista dos Sem Teto (FIST) que atuavam, sobretudo, em

pequenas ocupações urbanas cariocas. Sobre a FIST, cabe destacar que seus

militantes acompanhavam (aparentemente mais do que a maioria dos outros

movimentos) diversas pequenas ocupações, sobretudo no Centro do Rio. Algumas

foram organizadas diretamente pela FIST, outras foram realizadas sem a presença

inicial de movimentos sociais organizados, as quais prestavam assessoria jurídica e

tentavam organizar e envolver na luta política.73 Ao mesmo tempo publicavam com

relativa periodicidade seu jornal e participavam de um programa na rádio do

Sindicato dos Petroleiros, sindicato com o qual mantinham estreita relação,

prestando e recebendo apoio. Assim como o MTD Pela Base, participavam com

pouca regularidade da PMS, sempre com uma postura muito crítica, afirmando que

esses espaços eram controlados por partidos, ONGs, movimentos burocratizados e

pessoas das universidades. Costumavam estar presentes nos atos e manifestações

em conjunto com outros movimentos urbanos e também participaram do processo

de organização do FSU.

O Reunindo Retalhos (fórum que abrigava diversos grupos, ocupações,

indivíduos e movimentos como o MTD pela Base) e o Coletivo Pela Moradia (coletivo

que reunia comunicadores engajados na luta por moradia e produzia um site) eram

outros dentre os variados grupos e articulações de base local, formados no fim da

década de 2000, que envolviam militantes de ocupações, de pré-vestibulares

comunitários, comunicadores e estudantes que apoiavam essas lutas74. Eram

exemplos também de uma forma organizativa horizontalizada, movidos por ideais

mais autonomistas e referenciados na ideia de poder popular. A extinta Frente de

Luta Popular (FLP), grupo que esteve à frente (em conjunto com outros movimentos)

da organização de diversas ocupações cariocas, da organização do movimento

sociedade socialista, fraterna e justa, sem explorados e nem exploradores”. Mais sobre o MTD Pela Base pode ser encontrado em: mtdrio.wordpress.com 73 A ocupação Federação dos Tamoios, que ocupava um casarão abandonado no Largo do Boticário, local histórico e turístico no bairro do Cosme Velho, e que foi despejada em 2007, foi provavelmente a mais famosa ocupação acompanhada pela FIST e certamente aquela que teve maior repercussão na imprensa. Em janeiro de 2013, a FIST realizou seu VII Congresso, na Aldeia Maracanã, que segundo eles contou com a presença de representantes de 17 das 25 ocupações da FIST, além de representantes de vários outros MSUs e entidades. Mais informações sobre a FIST e seu VII Congresso podem ser encontradas em: fistrj.blogspot.com.br 74 Os dois grupos tinham atuação (conjuntamente com outros grupos ou movimentos) em ocupações como a Quilombo das Guerreiras, Chiquinha Gonzaga, Machado de Assis e Flor do Asfalto, na Zona Portuária, e no Morro da Providência, na mesma região. Mais informações em: pelamoradia.wordpress.com

Page 76: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

76

“Posso Me Identificar?”, da Rede de Movimentos e Comunidades Contra a Violência

e de várias importantes manifestações, era outro grupo que também se referenciava

no ideário autonomista e do poder popular75.

A despeito de sua já reconhecida importância na primeira década do século

XXI, os novíssimos movimentos urbanos no Rio de Janeiro ganharam maior

centralidade política, capacidade de articulação e visibilidade, sobretudo a partir de

2011. Um exemplo dessa maior articulação (e consequentemente da constituição de

uma rede de apoios própria) foi a realização da III Confederação Tamoia de Povos

Originários e Sem Teto, em abril de 2011. Organizaram esse encontro grupos como

o Acampamento Indígena Revolucionário (AIR), a FIST, o Fórum de Educadores

Populares, o Reunindo Retalhos (RR) e o MTD pela Base. Entre os participantes do

Encontro, destaca-se a Rede Contra a Violência, o MTST, a Frente Nacional dos

Torcedores (FNT) e o Movimento Indígena Revolucionário (MIR), além de

representantes de grupos mais tradicionais como o MST, o Conselho Popular e

algumas associações de moradores.

Durante esses anos, realizaram o típico trabalho da “velha toupeira”, atuando

em diversos conflitos e estimulando a resistência contra as remoções, a violência

policial, as privatizações etc. Em 2013, foram muito atuantes nas lutas que

precederam e serviram como estopim para as grandes manifestações de junho, nas

quais também se destacaram, especialmente pelas ações mais radicalizadas.76 Em

75 A Frente de Luta Popular foi extinta em fins de 2008. Durante alguns anos foi um dos principais grupos que atuavam nas lutas urbanas cariocas, tendo participado da organização de ocupações como a Chiquinha Gonzaga e a Zumbi dos Palmares. Junto com o MTST, a CMP e o MST, a FLP esteve à frente de diversas iniciativas de organização de fóruns de articulação de lutas, como a Assembleia Popular e também da PMS-RJ, da organização de manifestações como o Grito dos Excluídos ou, em 2005, da “visita dos sem-tetos ao shopping” Rio Sul, na Zona Sul carioca. Essa manifestação, vista na época com muita “curiosidade” e apreensão pela imprensa e pela polícia, pode ser considerada “precursora” dos “rolezinhos” que tanto “animaram” os debates políticos nos primeiros meses de 2014. 76 Vários grupos, com distintas bases sociais e inspirações teóricas e políticas, surgiram no Rio de Janeiro nos primeiros anos dessa segunda década do século XXI. Alguns desses, como o Favela Não se Cala (que reunia moradores de diversas favelas) e o Movimento de Moradores e Usuários em Defesa do IASERJ (MUDI), podem ser chamados de novíssimos movimentos sociais urbanos. Outros, que já existiam, se consolidaram ou aumentaram suas influências, enquanto alguns viram diminuir sua importância, se fundiram com outros grupos e, em alguns casos, até mesmo deixaram de existir. Em 2013, com as grandes mobilizações de massa vistas nas ruas do Rio de Janeiro, alguns desses grupos obtiveram grande visibilidade política e a Frente Independente Popular (FIP), criada por eles em agosto de 2013 (em conjunto com outros grupos que não são necessariamente MSUs), se tornou uma das principais referências desse processo e um dos mais importantes agentes dessas mobilizações. Alguns desses grupos eram: o Coletivo Lenin, a União Popular Anarquista (UNIPA) e as Novas Brigadas Populares. Entre os que participam da FIP, estavam: o Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR), a Organização Anarquista Terra e Liberdade (OATL), a FIST, a

Page 77: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

77

comparação com a quantidade de novíssimos MSUs vista em 2014, foram poucos

os novíssimos movimentos que tiverem atuação mais destacada na PMS ou na

organização do FSU. Parte desses grupos sequer existia em março de 2010 (data

do FSU). A FLP, a FIST, o MTD, o MTD Pela Base e a Rede Contra a Violência,

além do MTST, em certos momentos, foram alguns desses grupos que participaram

dessas experiências.

Existiam também aqueles movimentos que funcionavam no formato de fóruns,

caso do Conselho Popular. O CP articulava moradores de comunidades pobres,

sobretudo da região de Jacarepaguá e seus entornos. As ameaças de remoção,

constantes nessa área da cidade, constituíam o principal foco das lutas organizadas

ou apoiadas pelo CP. Participavam das reuniões do CP militantes de diversos

movimentos e Associações de Moradores77. Entre esses, tinha participação mais

constante e destacada o Movimento de União Popular (MUP), que atuava em

comunidades e loteamentos das Vargens e de Jacarepaguá. O CP contava também

com apoio “técnico” e jurídico. A participação de Miguel Baldez, histórico jurista

defensor das causas populares e fundador do CP era um elemento fundamental

para o funcionamento, unidade e influência política do CP.

O Conselho Popular foi um dos principais espaços políticos de organização

das lutas urbanas ligadas à habitação no período marcado pela organização do

FSU, quando a prefeitura intensificou as remoções e demolições na zona oeste

Unidade Vermelha (UV), a FNT, a Rede Contra a Violência, Favela Não Se Cala, Coletivo Calisto, Coletivo Inimigos do Rei (UERJ), Comitê de Apoio ao jornal A Nova Democracia, Grupo de Luta dos Petroleiros (GLP), Movimento Feminino Popular (MFP), Movimento de Resistência Popular (MRP), MUDI, Rede Estudantil Classista e Combativa (RECC), Universidade Indígena Aldeia Maracanã, e os ainda mais recentes, formados a partir de meados de 2013, Oposição de Resistência Classista (OCR)-Educação RJ, Ocupa Cabral, Black Bloc RJ e o Anonymous Rio. A FIP realizou o seu I Encontro entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014, no qual aprovou um manifesto, um plano de lutas, e definiu como sua principal palavra de ordem para 2014: “Não vai ter copa, nem eleição: 2014 o povo quer revolução!”. Não obstante o inegável papel que esses grupos cumpriram nas mobilizações de junho e julho de 2013, a radicalização das manifestações, com intensos e recorrentes enfrentamentos com a polícia, passou a ser apontada por diversos analistas sociais e da mídia, e mesmo por outros militantes sociais, sobretudo já em 2014, como um dos motivos para a queda do número de participantes nas manifestações (polêmica essa que, apesar de importante, por extrapolar o período examinado nesse trabalho, não será objeto de reflexão). Mais informações sobre a FIP podem ser encontradas em: frenteindependentepopular.wordpress.com 77 Participavam do CP militantes da Rede Contra a Violência, da CMP, da Pastoral de Favelas (que por um bom período sediou as reuniões), do CONCA, de algumas ocupações do Centro, de Associações de Moradores como as do Alto da Boa Vista, do Horto, da Vila Autódromo e, com menor frequência, do MNLM, FAFERJ, FARJ etc. Colaboravam com o CP também militantes e grupos de assessoria jurídico-popular, como a RENAP, mandatos parlamentares, militantes das universidades e de projetos de pesquisas e membros do ministério público, da defensoria etc.

Page 78: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

78

(tanto de casas, como de templos, oficinas, bares, mercadinhos e outros espaços de

trabalho, lazer ou culto). Todavia, o CP nunca priorizou espaços como a PMS (entre

outras razões pela dificuldade que reuniões noturnas no Centro representavam para

moradores pobres da zona oeste, especialmente para os que moravam em

comunidades controladas pela milícia) e sua atuação na organização do FSU foi

pequena. Esteve presente, porém, com mais intensidade, durante os dias de

atividades do Fórum. Assim como a PMS-RJ, o Conselho Popular também conheceu

um período de relativa desmobilização após 2011.

O caso da comunidade do Horto, cuja associação tanto participou do CP,

merece registro por suas particularidades. Em primeiro lugar, um dos principais

grupos defensores da sua remoção era também uma associação de moradores, a

atuante AMAJB, do Jardim Botânico. Em segundo, era uma comunidade que

ocupava um terreno da União, no qual se instalaram havia décadas, em virtude de

serem funcionários do Jardim Botânico. Trata-se de uma das mais valorizadas áreas

da cidade (vizinha da sede da Rede Globo). Ali, com recursos próprios, construíram

suas casas, algumas há um século atrás. E, mesmo tendo fortes relações com o

Governo Federal (o deputado e ex-ministro petista Édson Santos morava na

comunidade e sua irmã presidia a associação), viviam sob constante ameaça de

remoção, que se justificaria com base na necessidade de expansão das instalações

do parque e da preservação ambiental (preservação garantida durante um século

pelos próprios moradores da comunidade do Horto).78 Por todas essas razões e

relações, uma solução negociada, que evitasse conflitos, mesmo que prejudicasse

uma parte da comunidade, seria a alternativa previsível. Mas, ao contrário disso, a

comunidade continuou unida e resistindo.

A Associação de Moradores da Vila Autódromo foi outro grupo muito

vinculado ao Conselho Popular e que merece registro. Essa comunidade vinha

sendo ameaçada de remoção havia duas décadas. Todo tipo de argumento foi

utilizado para tentar justificar a expulsão dos moradores de lá: a proximidade com o

autódromo, as necessidades do PAN 2007, a proximidade e o risco para a

segurança do Parque Olímpico que estava sendo construído ao seu lado, estar no

78 No Horto, como em outras situações e contextos de implantação ou ampliação de áreas de preservação ambiental, o grupo social que é responsável pela preservação de alguma área ou recurso é expulso ou ameaçado de expulsão sob o pretexto de que devem sair para que a área ou recurso sejam preservados.

Page 79: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

79

traçado da Transcarioca e da Transolímpica e de outras vias, e até argumentos

sobre “danos estéticos e ambientais” para a região. Com o passar dos anos e

sempre resistindo às tentativas de remoção, a Vila Autódromo foi se tornando um

símbolo das lutas urbanas cariocas. A partir de 2011, a Associação de Moradores e

Pescadores da Vila Autódromo desenvolveu, com o apoio técnico do Núcleo de

Planejamento Conflitual do ETTERN/IPPUR/UFRJ, o Projeto Popular da Vila

Autódromo, que fortaleceu seus argumentos contra a remoção e a luta dos seus

moradores por melhorias no bairro.79

O Fórum Popular de Manguinhos era outra experiência de luta local que se

organizava na forma horizontalizada de fórum. Reunia moradores de diversas

favelas que compõem o complexo, representantes de ONGs que atuam na

comunidade e que tinham o importante apoio da Fiocruz. Sofriam com problemas

relacionados à violência urbana, com ameaças de remoção por conta das obras do

PAC e com a carência de serviços públicos. A longevidade dessa articulação, com

iniciativas que iam da realização de pré-vestibulares comunitários à participação em

manifestações de rua era notável e digna de reflexões sobre as formas organizativas

desenvolvidas nas lutas urbanas cariocas.

O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas era mais uma das experiências de

espaços de articulação de militantes, entidades e movimentos sociais no Rio de

Janeiro. Foi criado em 2010, após a realização do Fórum Social Urbano, e

influenciado pelas experiências do Comitê Social do PAN e da Plenária de

Movimentos Sociais. Adquiriu destaque com suas denúncias de violações dos

direitos humanos em decorrência dos megaeventos, principalmente nos casos de

violações dos direitos de moradia e da privatização de espaços e equipamentos

públicos na cidade, alguns com grande repercussão, como o Maracanã. O já citado

dossiê foi um exemplo da eficiência do Comitê em sistematizar e denunciar essas

violações e levantar o debate sobre o modelo de cidade associado aos

megaeventos. Funcionava através de plenárias quinzenais, abertas a todos que

79 Apresentado em 2012, o Plano Popular da Vila Autódromo – Plano de Desenvolvimento Urbano, Econômico, Social e Cultural – recebeu a premiação máxima do Concurso Deutsche Bank Urban Age Award (DBUAA), em dezembro de 2013, na sede do IAB. Com a premiação, o plano recebeu ainda oitenta mil dólares. Mais informações sobre o prêmio, sobre o Plano Popular da Vila Autódromo e sobre os argumentos e pretextos usados para justificar a remoção dos moradores da Vila Autódromo podem ser encontradas em: http://www.ettern.ippur.ufrj.br/ultimas-noticias/204/plano-popular-da-vila-autodromo-conquista-premio-internacional

Page 80: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

80

quisessem participar, e contava com GTs para encaminhar temas específicos, como

o GT Remoções e o GT Maracanã80.

Participavam do Comitê movimentos urbanos como o MNLM, a CMP, o

MUCA, representantes de comunidades em luta - como a Vila Autódromo e a

Indiana - sindicatos - como o SEPE-RJ-, ONGs - como a Justiça Global e o PACS-,

mandatos parlamentares de esquerda, representantes do movimento estudantil,

associações com vínculos com o esporte - como a Associação Nacional dos

Torcedores (ANT) e a FNT - e grupos acadêmicos - como o Observatório das

Metrópoles e o ETTERN. Representantes da FIST, da Aldeia Maracanã e da

CONLUTAS, entre outros, eventualmente também participaram das plenárias do

Comitê Popular durante o período aqui examinado.

O Comitê Rio integrava a Articulação Nacional dos Comitês Populares da

Copa (ANCOP) e realizava manifestações de rua com regularidade. Sua temática e

suas bandeiras de luta estavam no centro da disputa do projeto de cidade, fazendo

suas ações terem grande importância tanto na disputa de hegemonia mais geral

entre a população, quanto para as lutas mais específicas dos movimentos urbanos,

particularmente para os que resistiam às remoções. As manifestações de 2013 e a

mudança da opinião pública sobre a realização da Copa no Brasil indicam que o

trabalho de toupeira realizado pelo Comitê Rio e pela ANCOP logrou profundo êxito.

Entre os MSUs com foco na habitação, havia também os organizados

nacionalmente e de mais longa história. Eram movimentos com origens nas lutas do

período final da ditadura e que, atuando ao lado do chamado Novo Sindicalismo,

ficaram conhecidos como Novos Movimentos Sociais Urbanos (PERRUSO, 2009).

Os quatro grandes e antigos movimentos nacionais (CMP, MNLM, UNMP e CONAM)

80 O Comitê, através do GT Remoções, organizava visitas (“missões”) às comunidades e promoveu debates e atividades como a Copa das Remoções (realizada em 2013 entre times de futebol de comunidades ameaçadas de remoção, no Quilombo Gamboa), participava da confecção de vídeos sobre as remoções etc. Além disso, o Comitê também apoiava ou participava de manifestações contra remoções mesmo quando essas não eram diretamente associadas aos megaeventos, como no Horto. Do GT participavam também representantes de comunidades em luta, como a da Indiana, ameaçada de remoção por argumentos que não eram diretamente associados aos megaeventos. O GT Maracanã também trabalhava com o tema das remoções, pois apoiava as lutas contra as tentativas de remoção e demolição da Aldeia Maracanã, do Estádio de Atletismo Célio de Barros, do Parque Aquático Júlio De Lamare e da escola municipal Fridenreich. O Comitê sempre participou também das lutas contra a privatização de espaços públicos em nome dos megaeventos (o Maracanã foi o principal exemplo), ou também no caso da Marina da Glória, e contra projetos que geravam grandes impactos ambientais, como a construção do campo de golfe em uma área de preservação ambiental na Zona Oeste. Mais informações sobre o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas RJ podem ser encontradas em: rio.portalpopulardacopa.org.br

Page 81: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

81

também atuavam no Rio de Janeiro (e não foi mera coincidência comporem a mesa

de abertura do FSU). Tiveram raízes nas lutas pela reforma urbana ocorridas nos

anos 1980, que culminaram com uma forte atuação no processo constituinte. Foi

desse período também a organização (em 1987) do Fórum Nacional de Reforma

Urbana, histórico espaço de articulação de lutas e propostas sob o lema do “Direito à

Cidade”, reunindo movimentos populares, sindicatos, ONGs e instituições de

pesquisa81.

No Rio de Janeiro, durante os anos 2000, o Fórum Nacional de Reforma

Urbana e sua seção estadual - o Fórum Estadual de Luta pela Reforma Urbana

(FELRU-RJ)82 -, tinham uma atuação política mais limitada a determinadas disputas

no âmbito institucional, à realização de seminários e eventos sobre políticas urbanas e

programas habitacionais, participando esporadicamente das lutas ou eventos

organizados, por exemplo, na PMS. Na prática, os movimentos ligados ao Fórum

pouco falam deste e apenas em momentos específicos, como na organização do FSU

ou em atividades nas distintas edições do Fórum Social Mundial, alguns militantes,

sobretudo de ONGs, falavam como representantes do FNRU ou do FELRU-RJ.

A Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM) era o

mais antigo dos quatro grandes movimentos nacionais. Como o nome já diz, era um

típico movimento de moradores, e não de luta por moradia, conforme classificação

apresentada aqui. Foi fundada em 1982 e reunia federações estaduais, uniões

municipais e associações de bairros83 de todo o país. No Rio de Janeiro, a CONAM,

81 O Fórum Nacional de Reforma Urbana nasceu do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Segundo Ana Clara Torres Ribeiro, “a Reforma Urbana talvez expresse o mais complexo processo de articulação entre instituições e entre formatos de mobilização social e representação política apresentada, sob a forma de emenda popular à Assembleia Nacional Constituinte. (...) A emenda popular pela Reforma Urbana apoiou-se na ideia básica de função social da cidade (...) assumiu posição contrária à absoluta hegemonia exercida, até hoje, pela propriedade privada do solo urbano; aos múltiplos processos de privatização dos equipamentos coletivos, dos serviços públicos e da infraestrutura urbana; ao recuo da esfera pública no direcionamento do crescimento urbano; aos processos de repressão à luta desenvolvida pela população para o alcance de condições de sobrevivência no espaço urano; aos processos de especulação com a terra urbana e à falta de visibilidade nas políticas urbanas.” (RIBEIRO, 1990, p. 14-15) Mais sobre a história do FNRU pode ser encontrado em: http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/quem-somos/historico.html 82 O FELRU-RJ participou com assiduidade da PMS em 2007. 83 Os movimentos de bairros são considerados as formas mais antigas de movimentos sociais urbanos no Brasil. Desde, ao menos, os anos 1950, em várias partes do Brasil, os movimentos de bairro vêm agindo. A despeito das ligações com os governos ou políticos locais e das práticas clientelistas derivadas dessas relações, nos anos 1970 esses movimentos ressurgiram e protagonizaram importantes mobilizações, atuando em conjunto com a Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e com o movimento sindical combativo que renascia também

Page 82: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

82

assim como a Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de

Janeiro (FAMERJ)84 e a Federação das Associações de Moradores do Município do

Rio de Janeiro (FAM-Rio)85 tiveram, no período examinado, presença pouco

significativa nas lutas e atividades conjuntas dos movimentos sociais urbanos, tendo

tido participação expressiva apenas nas esferas e espaços mais institucionais, como

as Conferências das Cidades. Dessas três entidades representativas das

associações de bairros, apenas a FAM-Rio se fazia representar com relativa

frequência em manifestações, na construção de eventos, como o FSU, ou em

fóruns, como a PMS.

Eram algumas associações de bairros mais ricos as que vinham tendo maior

visibilidade política no período em exame. Associações como a dos moradores do

Jardim Botânico, de Ipanema ou do Leblon que, através de cartas aos jornais,

campanhas pela internet, abaixo-assinados e mesmo mobilizações de rua, defendiam

a tranquilidade de seus bairros contra os “problemas” que, segundo eles, os

desvalorizavam: moradores de rua, proximidade de favelas, comunidades de

trabalhadores como a do Horto, blocos de carnaval de rua, etc. E essa pauta era de

grande interesse da mídia empresarial, o que garantia ampla divulgação para ideias e

ações dessas associações. Por vezes também se contrapunham à construção de

novos e valorizados prédios, shopping centers ou festas de elite com som alto. Em

alguns casos, atuavam em conjunto com associações comerciais na elaboração de

projetos voltados para a reinvindicação de mais segurança pública ou constituição de

polos gastronômicos e comerciais. Essas associações não costumavam participar das

manifestações, eventos e fóruns com o conjunto dos movimentos urbanos. Havia,

porém, algumas associações com práticas diferentes dessas. Um exemplo era a

Associação dos Moradores de Santa Teresa, que se destacava pela defesa do

transporte público e com preços acessíveis (os bondes), buscava preservar a história

do bairro, as moradias populares e se opunha aos projetos de aburguesamento que

visavam fomentar o turismo com novos e chiques bares e lojas em detrimento da

população local.

nesse período. Mais informações sobre a CONAM podem ser encontradas em: http://www.conam.org.br/historico_1.htm 84 A FAMERJ foi fundada antes da CONAM, em 1978. Nos seus primeiros anos, a FAMERJ teve sua história muito vinculada à luta dos mutuários do BNH. Mais informações sobre a FAMERJ podem ser encontradas em: http://www.famerj.com.br/index.php/historia. 85 A FAM-Rio foi criada em 1992.

Page 83: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

83

Ainda na esfera da representação comunitária, existia a Federação das

Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ)86 e a

Federação das Associações de Moradores de Favelas do Município do Rio de

Janeiro (FAF-Rio). Sofrendo com o controle territorial imposto por traficantes e

milicianos, apresentavam grandes dificuldades para atuar. Suas relações com

governos no Rio de Janeiro já foram objeto de críticas, principalmente de

clientelismo e cooptação de lideranças. Por outro lado, segmentos conservadores da

sociedade e da mídia “culpavam” essas relações “populistas” pela interrupção do

processo de remoção de favelas e pelo tema ter se convertido em “tabu” a ser

superado. A FAFERJ e a FAF-Rio participavam eventualmente do CP e, com mais

frequência, de atos específicos de reivindicações dos favelados e das disputas

institucionais, como as Conferências da Cidade. Nas manifestações gerais,

organizadas ou apoiadas pelos MSUs, participavam esporadicamente, assim como

da PMS e de eventos como o FSU.

Cabe destacar que as favelas cariocas tornaram-se palco de diversos projetos

culturais, esportivos e de geração de renda. Eram desenvolvidos por ONGs,

OSCIPs, empresas, igrejas, políticos e associações e buscavam fomentar o que

chamavam de empreendedorismo social, disseminar a paz e evitar os conflitos,

promovendo a “inclusão” e a formalização dos negócios nas favelas. Essas ações

recebiam, em alguns casos, forte apoio do poder público, patrocínios privados e

grande divulgação na mídia. Essas entidades e seus projetos disputavam a atenção

dos moradores dessas comunidades com os movimentos sociais, mas não se

somavam às lutas políticas ou às ações dos movimentos sociais urbanos.

Fundada em 1983, a história da Central de Movimentos Populares remete aos

anos anteriores e à experiência da Articulação Nacional dos Movimentos Populares

e Sindicais (ANAMPOS). A ANAMPOS, uma das mais ricas experiências de

articulação entre distintos tipos de movimentos no Brasil, foi constituída em 1980 e

dissolvida no fim dessa década, dando lugar à Comissão pró-Central de Movimentos

86 Fundada em 1963 e muito atuante nos anos 1980, período que suas relações com os governos (especialmente do PDT) foram objeto de variadas críticas, a FAFERJ, a partir dos anos 1990, passou a sofrer com a crise das associações de moradores de favelas. Por conta do controle territorial imposto pelo tráfico, aumentaram as dificuldades de funcionamento autônomo e muitos dirigentes e representantes comunitários foram assassinados, intimidados ou depostos. Nos anos 2000, esse problema se agravou com a expansão das milícias, que impunham um controle territorial, econômico e político ainda maior que o efetuado pelos grupos de traficantes. Mais sobre a FAFERJ pode ser encontrado em: http://faferj.blogspot.com/2008/03/faferj-o-que.html.

Page 84: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

84

Populares. Sua relação com o Novo Sindicalismo era umbilical e reunia movimentos

e militantes que tiveram participação ativa na construção da CUT e do PT (e depois

da CMP). O projeto inicial da CMP era ser exatamente uma CUT dos movimentos

populares não sindicais, no momento em que a Central Única dos Trabalhadores se

decidia por ser uma central especificamente sindical. Se nos anos 1990 a CMP

organizava, de fato, diversos tipos de movimentos populares, a partir dos anos 2000

suas atenções se concentraram mais na temática da cidade e da habitação. Não era

um movimento de moradores, e mesmo não sendo exclusivamente de luta por

moradia, podia ser incluído nesse grupo87.

No Rio de Janeiro, entre os quatro grandes e antigos movimentos nacionais, a

CMP foi aquele que mais assiduamente participou da construção de espaços

políticos, como a PMS, o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, de eventos como o

FSU e de manifestações como o 1º de Maio e o Grito dos Excluídos. Foi também o

mais presente em fóruns de direitos humanos, participou ativamente na formação do

movimento “Posso me Identificar?”, da Rede Contra a Violência, colaborou com a

organização do Conselho Popular e outras ações. Participou das lutas ligadas à

moradia através de ações diretas em ocupações urbanas, junto com outros grupos,

ou apoiando as lutas contra as remoções e despejos em favelas, outras ocupações

etc.

Três das mais importantes ocupações urbanas no Rio de Janeiro, todas na

área central da cidade e realizadas entre 2004 e 2008, contaram com a colaboração

da CMP-RJ, desde o recrutamento dos moradores, passando pelo processo de

organização interna, até às negociações com governos para a conquista dos antigos

prédios abandonados para moradia88. Essas ocupações, além de concentrarem

grande número de famílias, simbolizaram - especialmente a primeira delas, a

87 Essa classificação se refere especialmente a CMP do Rio de Janeiro nos anos 2000. Mais informações sobre a CMP podem ser encontradas em: http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/coordenacao/movimentos-populares/57-cmp-central-dos-movimentos-populares.html 88 As três ocupações eram: Chiquinha Gonzaga, em um prédio público até então vazio, ocupado em julho de 2004, na região da Central do Brasil; Zumbi dos Palmares, também em um grande prédio público, ocupado em abril de 2005 e desocupado em 2012, na região portuária carioca; e Quilombo das Guerreiras, em um prédio privado, ocupado em fins de 2006, também na zona portuária, e despejada em 2014. Todas essas ocupações, assim como também a Rede Contra a Violência, foram organizadas por militantes da CMP, em conjunto com militantes da já extinta Frente de Luta Popular (FLP) e de outros movimentos como o MUCA.

Page 85: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

85

Ocupação Chiquinha Gonzaga89 -, uma importante mudança nas experiências de

ocupação para fins de moradia no Rio de Janeiro, passando a prevalecer a opção

por ocupar prédios vazios na região central. A “Chiquinha” fez suas primeiras

reuniões na rua, durante a vigília contra a guerra do Iraque, em frente ao consulado

dos EUA, reunindo muitos trabalhadores e moradores de rua. Contou com a

participação de militantes de diferentes movimentos que buscavam retomar ou

reafirmar as ações diretas como forma de luta e serviu de exemplo para que novas

ocupações fossem feitas no Rio de Janeiro.

Nos três casos, ocorreram ocupações em prédios no Centro, organizadas

desde os primeiros momentos por movimentos sociais e que, imediatamente,

desenvolveram sua organização interna, criando políticas de geração de renda e

atuando em lutas em defesa dos camelôs, contra a repressão policial etc. Além

disso, contaram com a participação de um histórico movimento nacional, que havia

tempos não realizava esse tipo de ação direta, tanto no Rio quanto em outras partes

do país. Essas ocupações devolveram à CMP uma imagem (e uma prática) de

radicalidade que vinha sendo perdida em todo o país, fizeram aumentar sua

importância política no Rio e ajudaram na consolidação de seus laços políticos com

outros movimentos.

Por ser um movimento nacional com história relativamente longa, a CMP tinha

representação em conselhos dos diferentes níveis do Estado, desde aqueles das

Conferências das Cidades até os conselhos dos fundos para habitação social, nos

quais atuava em defesa de políticas habitacionais para os mais pobres, como

acontecia também no Rio de Janeiro. Tinha também canais abertos para negociação

com os diferentes governos e entre parlamentares. Por isso, era comum a CMP ser

solicitada por grupos em luta quando esses queriam abrir negociações com o Estado.

Ao mesmo tempo, a CMP recebeu críticas daqueles que consideravam que essas

relações favoreciam a institucionalização e perigosas relações de cooptação com

governos, em detrimento da “autonomia ou combatividade dos movimentos”.

A CMP, embora continuasse reunindo algumas entidades e movimentos

filiados,90 ao longo dos anos passou a ser vista por muitos militantes como “mais

89 Os moradores da Ocupação Chiquinha Gonzaga, com o apoio da CMP, conquistaram a concessão real de direito de uso, tornando-se a primeira ocupação em prédios a conquistar esse direito no Brasil. 90 A UNMP, por exemplo, é filiada à CMP. O MNLM, após alguns anos, voltou a discutir a refiliação à CMP.

Page 86: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

86

um” movimento, e não mais como “a” central que congregava os movimentos

populares. Essa origem talvez explique a manutenção de uma prática que a diferia

das outras entidades, prática esta marcadamente voltada à colaboração com outros

movimentos e grupos, como nos casos das citadas ocupações, as quais ajudou a

organizar, sem nunca ter pretendido, aparentemente, incorporá-las como parte

orgânica da Central. Era o caso também das lutas contra as remoções, em grande

mediada realizadas através da participação no Conselho Popular, no Comitê Popular

da Copa e Olimpíadas ou outros fóruns.

No Rio, quando havia mobilizações, a CMP quase sempre era responsável

por contatar uma série de outras entidades (como a Pastoral das Favelas, o MUP, a

UNMP ou a FAM-Rio). Seu principal dirigente no Rio, Marcelo Edmundo, um antigo

militante dos movimentos populares, conhecia como poucos os movimentos sociais

urbanos cariocas, e isso também colaborava para o importante papel de articulação

que a CMP costumava cumprir. Talvez por influência dessa prática, a CMP-RJ

aparentava ser um movimento pouco orgânico, com uma base dispersa e pouco

delimitada, sem uma referência territorial clara (por exemplo, um prédio ocupado sob

sua bandeira ou um trabalho mais consolidado em uma área específica da cidade).

Apoiava e se fazia representar na maioria das manifestações dos MSU cariocas,

mas não costumava ter bandeiras ou grupos com camisas, bonés e outras formas de

identificação visual próprias, sendo muito poucos aqueles militantes que se

apresentavam como pertencentes à CMP, sendo que alguns respondiam também

por outras entidades.

Nos anos 2010, a CMP, em conjunto com a UNMP, desenvolveu com a

Fundação Bento Rubião e o apoio técnico da Chiq da Silva, um projeto habitacional

na Zona Portuária, ligado ao programa federal Minha Casa Minha Vida Entidades.

Mais de cem famílias vinham sendo organizadas pelos movimentos, participando de

reuniões periódicas e acompanhando as obras do Quilombo Gamboa, o que talvez

tenha se constituído como uma base mais orgânica para a CMP no Rio de Janeiro91.

91 Em setembro de 2013, a CMP-RJ realizou seu V Congresso Estadual, no Sindicato dos Laticínios, contando com cerca de 80 militantes do estado. Além de representantes de movimentos filiados à CMP, como a UNMP e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), eram militantes da CMP ligados à luta por moradia, educadores, militantes de movimentos LGBT e de mulheres. No congresso foi eleita uma nova direção da CMP-RJ, que segundo eles teria como uma das prioridades reorganizar a entidade, através da “ampliação dos setoriais: Mulheres, Juventude, LGBT, Meio Ambiente, e outros”. Buscavam assim fortalecer a atuação da CMP “ao lado do povo e dos ativistas da moradia popular, como a Ocupação Chiquinha Gonzaga, o Projeto Quilombo da Gamboa, entre

Page 87: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

87

A União Nacional por Moradia Popular – UNMP -, ou apenas União, como

costumava ser chamada, iniciou sua articulação em 1989 e consolidou-se a partir do

processo de coletas de assinaturas para o primeiro Projeto de Lei de Iniciativa

Popular, que criou o Sistema, o Fundo e o Conselho Nacional por Moradia Popular

no Brasil (Lei 11.124/05). Sua história sempre esteve muito associada ao Fórum

Nacional de Reforma Urbana, às lutas por políticas habitacionais que atendessem

aos mais pobres e aos projetos de habitação popular, baseados na autoconstrução,

formação de cooperativas habitacionais etc92.

No Rio de Janeiro, o que parece coerente com sua história, a União atuava

quase que exclusivamente em torno de seus projetos habitacionais, alguns

baseados na autoconstrução de moradias, e participava das disputas nos espaços

institucionais, como a Conferência das Cidades, chegando até mesmo a ter tido

militantes em secretarias governamentais. Concentrava sua base em terrenos

conquistados para fins de moradia popular – Shangri-lá, na Taquara, zona oeste

carioca; Herbert de Souza, em São Gonçalo; e em dois novos projetos: Esperança,

em terreno da antiga Colônia Juliano Moreira, na zona oeste; e o outro, Quilombo da

Gamboa, conjuntamente com a CMP, na região portuária do Rio de Janeiro. Esses

projetos, já em fase de execução, faziam parte do programa Minha Casa Minha Vida

Entidades.

Ações diretas de ocupação, manifestações mais gerais e fóruns que

envolviam diversos movimentos sociais não eram prioridades para a União no Rio de

outras frentes de massa” onde atuavam “em apoio e na construção das vitórias, da resistência e conquistas populares”. Ainda sobre a necessidade de uma maior organização e de uma política que proporcionasse mais visibilidade para o movimento, afirmavam que “se torna urgente a construção de meios de comunicação da Central com um Jornal” e apontavam também às necessidades de ampliar a “presença nas redes sociais, também a Escola Nacional Livre de Formação Popular para a educação militante de nossos companheiros (as) em parceria com movimentos sociais e Universidades Públicas”. Declaravam ter por objetivo a “construção popular do Socialismo” e a luta por “um Brasil Popular, Livre e Socialista”. Em outubro ocorreu também o V Congresso da CMP Brasil, em Ipatinga, MG, onde foram comemorados os 20 anos da CMP. Disponível em: <http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/coordenacao/movimentos-populares/57-cmp-central-dos-movimentos-populares.html>. 92 Segundo eles, sua luta era por “moradia, por reforma urbana e autogestão e assim (para) resgatar a esperança do povo rumo a uma sociedade sem exclusão social” Após quase 20 anos, a União estava organizada em 19 estados brasileiros e sua forma de organização “tem uma forte influência da metodologia das Comunidades Eclesiais de Base, de onde se originam grandes partes de suas lideranças”. A UNMP se organizava em torno de princípios “que se traduzem em reivindicações, lutas concretas e propostas dirigidas ao poder público nas três esferas de governo. Nesse sentido, tem enfrentado as diferentes gestões, ao longo desse tempo, buscando a negociação e a ação propositiva, sem deixar de lado as ferramentas de luta e pressão do movimento popular”. Mais informações sobre a UNMP podem ser encontradas em: http://www.unmp.org.br

Page 88: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

88

Janeiro. Nesses espaços, costumeiramente, era a CMP-RJ que representava a

UNMP-RJ. Em certas ocasiões, em mobilizações especificamente relacionadas às

reivindicações habitacionais ou de alguma lei ou recursos, a União participava de

forma ativa e seus militantes usavam camisetas e bonés próprios, reforçando sua

identidade. As manifestações na semana mundial do Habitat, em 2007, em frente à

Superintendência de Patrimônio da União, e em 2008, com a ocupação/protesto do

casarão abandonado na Praça Mauá (hoje sede do Museu de Arte do Rio),

realizadas conjuntamente com a CMP e o MNLM, foram exemplos dessa

participação.

No FSU, durante o processo de organização, a UNMP teve participação

bastante restrita nas reuniões e divisão de tarefas, mas durante o evento estava

presente diariamente. Como no caso da CMP, eram poucos os militantes que

representavam a entidade, mesmo sendo um movimento que aparentava ter uma

base mais orgânica e delimitada, inclusive com referências territoriais.

Em comparação com a CMP e a UNMP, era o Movimento Nacional de Luta

por Moradia (MNLM) que tinha uma base mais organizada, mais importantes

referências territoriais e o maior número de militantes no Rio de Janeiro, vários

“revelados” a partir de 2007. Como o nome já diz, era um típico movimento por

moradia. Foi criado em julho de 1990, no I Encontro Nacional dos Movimentos de

Moradia e, como a CMP, era um dos principais representantes dos novos

movimentos sociais urbanos. Materializou-se depois das grandes ocupações de

áreas e conjuntos habitacionais nos centros urbanos, deflagradas na década de

1980, processo que acelerou diferenciações nas formas de luta por moradia e

culminou com a construção de dois movimentos organizados diferentes ligados a

essa temática: a UNMP e o MNLM93.

No Estado do RJ, após um período de relativa desmobilização, um encontro

estadual realizado em Duque de Caxias, em 2002, retomou a articulação do

movimento e deu início à alteração de suas prioridades políticas. Em 2006 e 2007, o

93 O MNLM se definia como “uma entidade do movimento popular de moradia, com 20 anos de luta, organizado nacionalmente em 18 estados” e que “possui como missão estimular a organização e articulação da classe trabalhadora na busca da unidade de suas lutas, pela conquista de uma política habitacional de interesse social com reforma urbana, sob o controle dos trabalhadores, que garanta a universalização dos direitos sociais, contribuindo para a construção de uma sociedade socialista, igualitária e democrática”. Mais informações sobre o MNLM podem ser encontradas em: http://fnru.unmp.org.br/index.php/coordenacao/movimentos-populares/56-mnlm-movimento-nacional-de-luta-por-moradia.html.

Page 89: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

89

MNLM-RJ já havia voltado a participar ativamente das lutas e articulações dos

MSUs, mas foi a partir de outubro de 2007 que assumiu uma posição de maior

centralidade nas lutas cariocas, depois de uma grande ação de ocupação: a Manoel

Congo. O MNLM retomava, assim, suas características históricas, então tão

secundarizadas no Rio de Janeiro e na maior parte do país.

Desde o processo de organização das famílias, o MNLM já vinha formando

um novo grupo de militantes que se consolidou após a ocupação, assim como uma

nova rede de apoio. Foi através dessa ação direta de ocupação que realmente foi

posta em prática a reorientação decidida no Encontro Estadual de 2002 e, portanto,

quando o MNLM-RJ foi efetivamente “refundado”. A Manoel Congo teve início

quando mais de setenta famílias ocuparam um prédio privado, de dois blocos, com

um amplo espaço no térreo que outrora fora um famoso cinema na Cinelândia,

centro do Rio – o Cine Vitória, fechado havia mais de dez anos. Após um longo

processo de reuniões, debates em comunidades, cursos de formação e articulações,

a iniciativa foi efetivada, simbolicamente, durante a Semana Internacional do Habitat.

As famílias permaneceram no Cine Vitória por uma semana e, após algumas

ações culturais no local94, foram despejadas no dia 8 de outubro. Rumaram para um

prédio vazio, que abrigara a Secretaria Estadual da Fazenda, também no Centro.

Com a pressão do Governo e a polícia à postos, sofreram novo despejo. Após mais

alguns dias de intensas manifestações (inclusive dormindo em frente à sede de

governos) e contando com o apoio e solidariedade de diversos movimentos

sociais95, as famílias ocuparam outro prédio, novamente na Cinelândia. Era um

prédio pertencente ao Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, que se

encontrava vazio e sem cumprir qualquer finalidade social havia muitos anos.

Passados mais de 6 anos, o MNLM-RJ conseguiu o direito de permanência

das famílias no prédio, que foi comprado ao INSS com verbas do Fundo Nacional de

94 Entre as ações culturais destaca-se a “reabertura” simbólica do cinema, com a apresentação (pré-estreia) do filme sobre Milton Santos, o internacionalmente reconhecido geógrafo de esquerda e um dos mais importantes intelectuais negros brasileiros. O filme, que ainda não havia entrado em cartaz e sob o qual já havia muita expectativa, foi cedido por seu diretor Silvio Tendler, que esteve presente e participou de um emocionado debate após a sessão. 95 Após esse segundo despejo, os moradores da Manoel Congo passaram algumas noites na Ocupação Quilombo das Guerreiras e em uma subsede do SEPE. Esse fato é ilustrativo da grande rede de solidariedade que o MNLM conseguiu articular em apoio à ocupação. O fato de ser um movimento nacional, com as “portas abertas” também em Brasília, e com diálogo com o Governo Federal, também foram fatores importantes para o MNLM conquistar o prédio, então do INSS, para fins de moradia popular.

Page 90: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

90

Habitação de Interesse Social (FNHIS) e deveria ser também reformado96.

Conseguiu também aprovar um projeto de geração de renda, junto à Petrobrás, para

reforma, aquisição de materiais e treinamento para o funcionamento da Casa de

Samba Mariana Crioula, espaço cultural voltado para geração de trabalho e renda

que vinha funcionando, apesar das precariedades, em parte do andar térreo do

prédio desde os primeiros meses da ocupação.

A localização da Manoel Congo, exatamente ao lado da Câmara de

Vereadores do Rio, o momento político de intensa ação conjunta dos movimentos

sociais e de formação da PMS, no qual a ocupação foi realizada, e a abertura do

prédio aos diferentes movimentos sociais, fez com que a Manoel Congo se tornasse

a ocupação mais conhecida no Rio de Janeiro. Diferentes movimentos, entidades e

fóruns fizeram, desde então, suas reuniões, atividades culturais e de formação na

Manoel Congo (o movimento reservou um salão no 2º andar para realização de suas

assembleias, local que também era usado para essas atividades).

A Manoel Congo era uma experiência que se destacava das demais

ocupações também por ser diretamente vinculada a um movimento social

organizado (o MNLM). Talvez por esse motivo era a ocupação com maior grau de

organização interna, contava com uma carta de princípios aprovada por todos e

assembleias semanais, além de possuir o espaço Criarte, que funciona como uma

escolinha dentro da ocupação. E essa política do MNLM, de gerir e integrar ao

movimento as ocupações, não se restringia à Manoel Congo.

Em Volta Redonda, a ocupação Nove de Novembro, iniciada em 2010, e que

se encontrava em processo de regularização, também seguia essa política. O MNLM

atuava ainda em Duque de Caxias, em um terreno ocupado em fase de

regularização fundiária, e em uma antiga ocupação ameaçada de remoção, a

Francisco Eugênio, em São Cristóvão. Tinha alguns núcleos de base em favelas e

desenvolvia também um projeto de moradia popular na Gamboa, na zona portuária,

vinculado ao programa Minha Casa Minha Vida Entidades. Lá (na “ocupação”

Mariana Crioula) eles pretendiam contar com moradia para cerca de 60 famílias que

96 A reforma do prédio da Manoel Congo se tornou uma verdadeira odisseia para seus moradores. Após montado o canteiro de obras dentro do prédio, o Governo Estadual percebeu que cometera um erro burocrático no processo, o que ameaçava suspender e atrasar as obras.

Page 91: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

91

já se reuniam na Manoel Congo há um ano, além de espaço com auditório e para a

criação de um restaurante popular.

No Rio de Janeiro, mesmo tendo como política apoiar qualquer luta contra a

remoção, o MNLM só participava “de fato” de algumas. Impossibilitado, como outros

movimentos, de participar de todos os conflitos decorrentes de remoções e

despejos, em virtude do grande número de processos simultâneos, o MNLM

priorizava aquelas lutas que considerava terem maior capacidade de mobilização,

importância política ou em locais mais receptivos ao movimento. Nesses casos, por

exemplo, nas comunidades do Horto ou da Vila Autódromo, o movimento passava a

ser atuante e, até mesmo, a organizar pessoas desses locais no próprio movimento.

Nesse período, quando havia manifestações de rua organizadas pelos

movimentos sociais, o MNLM era o movimento que costumeiramente “mais levava

gente”. E levava uma militância mais organizada, com camisas, bonés e bandeiras

próprias, assim como palavras de ordem e músicas sobre a reforma urbana e a luta

pela moradia. Entre essas, destacava-se a sempre repetida “a nossa luta é todo dia,

moradia não é mercadoria” - segundo seus militantes, essa era a questão central da

luta pela reforma urbana. O MNLM costumava ser seletivo também quanto às

manifestações que participava.

Em fóruns como a PMS e eventos como o FSU, a participação do MNLM

variava conforme o momento político e suas atividades próprias. Costumavam ser

críticos desses espaços, segundo eles “cheios de ONGs, mandatos parlamentares,

acadêmicos e indivíduos que só representam a si mesmos mas falam muito”. Vivia,

mais do que outros movimentos urbanos no Rio, a contradição entre as ações

próprias ou em fóruns, eventos e lutas mais gerais. Esse fato decorria, entre outras

razões, de uma vida orgânica mais intensa, com cursos de formação e atividades

culturais periódicas. Encontros estaduais e municipais frequentes, além da

trabalhosa política de gestão de suas ocupações também tornavam intensa a “vida”

interna do MNLM-RJ. Sua principal liderança, Maria de Lurdes (Lurdinha), era

provavelmente a mais carismática liderança dos MSUs cariocas e seu conhecimento

sobre tudo que envolve o tema da luta por moradia era bastante vasto. Sua

Page 92: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

92

importância para o MNLM no Rio era inestimável e quando participava de fóruns

como a PMS, sua atuação era sempre muito destacada97.

Por ser um histórico movimento nacional, o MNLM, assim como a UNMP e a

CMP, tinha forte relação com governos e parlamentares e participava de conselhos e

espaços institucionais. Segundo seus militantes do Rio, em contraste com a prática

majoritária no restante do país, o MNLM-RJ priorizava menos a ação institucional.

Essa era uma questão permanentemente discutida no movimento no Rio, objeto de

autocrítica por parte de militantes mais antigos e experientes e de severas críticas

dos militantes daqui aos seus pares de outros estados. Isso, não obstante a relação

do movimento com o Estado em suas diferentes esferas e níveis, foi importante, por

exemplo, para as conquistas das ocupações Manoel Congo e Nove de Novembro e

para a realização do projeto habitacional na Gamboa. E o MNLM, assim como a

CMP, também já recebeu críticas de outros movimentos e militantes em função

dessa “perigosa” relação.

Os quatro grandes e antigos movimentos nacionais, e especialmente os três

de luta por moradia (CMP, UNMP e MNLM), têm sua relevância histórica

reconhecida e foram os mais destacados “novos movimentos sociais urbanos”.

Estiveram à frente de lutas que modificaram (ao menos parcialmente) a relação do

Estado brasileiro com os conflitos urbanos e incentivaram a aprovação de diversas

leis sobre a administração das cidades, como foi o caso do Estatuto das Cidades.

Foram fundamentais para o reconhecimento da moradia como direito constitucional

e na elaboração do ideário da reforma urbana.

97 Interessante notar que a trajetória de vida de Lurdinha, sempre muito ligada à luta por moradia, guardava semelhanças com a própria história do MNLM. Filha de lavradores pobres, foram expulsos da terra (que era da Igreja e foi vendida sem que os que nela moravam sequer fossem avisados) nos anos 1970. Sua família se mudou para Volta Redonda, no sul Fluminense onde, nos anos 1980, Lurdinha se envolveu nas lutas por moradia. Após comprar um “barraco em área de posse” entrou de vez na luta pela regularização fundiária e urbanização de favelas. Católica, vinculou-se ao trabalho social da Igreja e à Teologia da Libertação, organizando “núcleos de posse” nas favelas, uma comissão municipal de posseiros e um fundo comunitário para regularização fundiária e produção de novas unidades para baixa renda. A partir daí se envolveu com a construção da Articulação Nacional do Solo Urbano – ANSUR, participou da elaboração e coleta de assinaturas para o capítulo sobre política urbana no processo constituinte e “rodou o país” organizando a luta por moradia. Participou do processo que levou à construção da CMP, além de ter ajudado a fundar o MNLM. Nos anos 1990, militando em um ativo movimento social, viu seu partido, o PT, chegar à prefeitura através de uma aliança com o PSB. Viveu, assim, intensamente as contradições da relação entre movimento, partido e governo. Anos depois, desempregada, se mudou para o Rio de Janeiro e, mesmo trabalhando, sofria com o aluguel até que, com a Ocupação Manoel Congo, Lurdinha e outros membros de sua família também envolvidos com a luta, conseguiram conquistar seu direito à moradia.

Page 93: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

93

Contavam com uma rede de aliados de longo prazo e lideranças experientes,

que conheciam bem os programas sociais, as leis e a máquina do Estado (em todo o

país, muitos dos seus militantes já fizeram parte de governos, principalmente

daqueles encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores). Suas relações históricas

com o novo sindicalismo e com o PT proporcionavam apoio no meio sindical e

faziam suas ações terem mais repercussão na imprensa sindical e na mídia

comercial. Tinham amigos e aliados em vários níveis e esferas do Estado, relações

com intelectuais e contatos internacionais. Por todas essas razões, mantiveram uma

importância singular entre os movimentos sociais urbanos durante os anos 2000,

mesmo com o surgimento de vários novíssimos movimentos urbanos. Ao mesmo

tempo, eram os movimentos mais suscetíveis à burocratização, à institucionalização

e à cooptação de suas lideranças.

Durante muitos anos viveram a expectativa de chegar ao poder (através do

PT). Depois, passaram a esperar as prometidas mudanças que ocorreriam com a

tão sonhada reforma urbana, que nunca foi concretizada. E essa longa espera talvez

tenha sido um dos principais combustíveis para o surgimento de novíssimos

movimentos, que não queriam mais esperar, mas agir. Nesse período, alguns se

decepcionaram, outros se acomodaram, de forma que a realidade desses

movimentos, nos anos aqui analisados, foi profundamente marcada pelas respostas

que seus militantes e, particularmente, suas seções no Rio de Janeiro, construíram

para enfrentar essa situação. Essas respostas, ao moldarem suas práticas,

influenciaram também outros atores sociais, os fóruns de articulação de movimentos,

como a PMS-RJ, e atividades como o FSU, que tanto chamaram a atenção de quem

era de fora do Rio de Janeiro.

2.4.3 Práticas e discursos dos movimentos por moradia

Nesse primeiro olhar, foi visto que algumas perguntas e observações feitas

por pessoas de fora do Rio durante o FSU, sobre a capacidade e formas de ação

dos movimentos sociais do Rio de Janeiro, só poderiam ser respondidas ou

entendidas a partir das experiências comuns acumuladas por esses movimentos,

especialmente na segunda metade dos anos 2000. Afinal, foi em um período de

grande paralisia de muitos movimentos sociais em todo o país (urbanos, sindicais e

Page 94: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

94

populares) que a prática das ocupações para fins de moradia foi retomada e

ampliada no Rio de Janeiro, ainda em 2004. Foi em um período de muita

propaganda em decorrência da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, que

as manifestações unificadas contra esse modelo de cidade ganharam as ruas e

quando foi constituída a PMS-RJ. E, embora a PMS apresentasse limitações e as

manifestações não tivessem números expressivos de participantes como as vistas

em 2013, essas experiências e ações plantaram sementes para a disputa de

hegemonia dos anos seguintes. E foi paralelamente ao Fórum Urbano Mundial da

ONU, megaevento de urbanismo realizado aqui, que dentre outras justificativas,

serviu para celebrar “a força” do Brasil e do Rio no “novo” cenário internacional, que

foi organizado o FSU para fazer a crítica em diversas escalas: ao FUM, ao Brasil e

ao Rio de Janeiro.

A organização do FSU seria, então, uma possibilidade de ação criada pela

experiência da PMS-RJ, através da qual os MSUs constituíram um arco de alianças

e relações políticas com movimentos, entidades e grupos que atuavam também em

lutas diferentes, com orientações políticas diversas e que não eram voltados

exclusiva ou prioritariamente para as lutas urbanas. A agenda e as bandeiras das

lutas por direitos humanos, ligadas à educação, saúde, meio ambiente ou à reforma

agrária, tornaram-se, assim, um pouco mais presentes nas políticas dos movimentos

urbanos cariocas. E os MSUs também influenciaram e ajudaram a transformar

algumas problemáticas específicas urbanas em problemáticas consideradas gerais

para todos esses movimentos, entidades e grupos. Problemáticas e lutas urbanas

motivaram manifestações “gerais” (como os atos no 1º de Maio) e o modelo

neoliberal de cidade-empresa, tão almejado e propagado pela prefeitura do Rio,

passou a ser identificado e combatido, ganhando o sentido de luta geral que

unificava os diversos setores políticos da Plenária.

Quando se observava cada movimento separadamente, especialmente os

mais antigos, percebia-se que as experiências e relações acumuladas ao longo de

suas histórias, desde quando foram fundados, ainda diziam muito sobre como agiam

e se organizavam nos anos 2000. A UNMP-RJ continuava centrada na realização de

projetos habitacionais e na ação institucional para alavancar esses projetos. A CMP-

RJ, por mais que tenha concentrado suas ações nas lutas ligadas à cidade e tenha,

ela mesmo, organizado ações diretas de luta por moradia, continuava sendo um

Page 95: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

95

movimento que, nos processos de mobilização ou na organização de atividades e

eventos gerais, priorizava seu papel de articuladora e apresentava-se de forma

pouco orgânica. Já o MNLM-RJ, conforme a experiência histórica dos seus primeiros

anos de existência, continuava tendo nas ações diretas de luta por moradia e nas

ocupações de prédios organizadas e diretamente vinculadas ao movimento, suas

formas mais expressivas de ação.

A história e as experiências acumuladas, contudo, não impedem (e de fato

não impediram) que novas respostas em novas conjunturas fossem formuladas e

postas em prática. No Rio de Janeiro, os movimentos urbanos enfrentavam a

mesma conjuntura e as mesmas adversidades que seus pares em outros locais. A

fragilidade dos movimentos cariocas, observada nos pequenos números de

militantes e na baixa capacidade de mobilização, continuava existindo, do mesmo

modo que persistia a extrema fragmentação de movimentos e lutas urbanas. Porém,

eles haviam apresentado, mesmo timidamente, algumas respostas políticas a essa

conjuntura, as quais os diferenciavam: frente à acomodação, uma ocupação; frente

à fragmentação, uma plenária de movimentos sociais. Era isso que “os de fora”

viam, durante o FSU, e tanto se surpreendiam.

Em diversas partes do Brasil, a paralisia dos históricos movimentos nacionais

quanto às manifestações de rua e ações diretas de ocupação, bem como a

prioridade conferida às negociações com governos, favoreceu com que surgissem

outros movimentos, menos institucionalizados e muito críticos dessa atuação tão

focada nos conselhos e conferências do Estado. Os novíssimos movimentos

urbanos, então, se desenvolveram a partir de um discurso em oposição às velhas

práticas dos chamados novos movimentos sociais, adquirindo significativa

centralidade política. Em certa medida, o MNLM-RJ e a CMP-RJ acompanharam

essa ruptura, que na escala nacional foi impulsionada principalmente por novíssimos

movimentos como: o MTST; o Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), em São

Paulo; o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), no Rio Grande do

Sul; as Brigadas Populares, em Minas Gerais; o Movimento dos Conselhos

Populares (MCP), no Ceará, o Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB) e o

Movimento das Famílias Sem Teto (MFST), em Pernambuco, etc.

Os novíssimos MSUs passaram a se articular nacionalmente, constituíram

uma frente (Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos) e realizaram

Page 96: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

96

diversas ações nacionais coordenadas, com manifestações de rua e ocupações.98

Entre essas ações, destacava-se, por exemplo, a campanha “Minha Casa Minha

Luta”, lançada em 2010 para denunciar o programa federal MCMV que, segundo

eles, atendia mais às empresas de construção civil do que aos trabalhadores.

Buscavam ainda forçar o Governo Federal a incluir no MCMV todas as ocupações

de sem-tetos existentes no país99, conquistando assim vitórias baseadas na ação

direta desses movimentos.100

No Rio de Janeiro, o fato de dois históricos movimentos nacionais assumirem

as ocupações como forma de luta, de terem logrado vitórias e constituído um novo

campo de alianças através da PMS, fez com que mantivessem um tipo e grau de

representatividade política que, em outros estados, haviam perdido. Alguns

novíssimos movimentos encontraram espaço para emergirem também no Rio de

Janeiro: FLP, MTD, MTD pela Base, FIST, MTST, Coletivo pela Moradia, além de

fóruns como o Reunindo Retalhos e o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. No

entanto, no período examinado, marcado pelo trabalho de toupeira que precedeu as

grandes manifestações de 2013, não haviam desenvolvido uma base social mais

numerosa, uma rede de apoios própria mais consolidada e uma representação

política mais expressiva, como aparentemente alcançaram em outros estados. Além

98 A lista de movimentos que integravam a Resistência Urbana incluía os citados MCP, Brigadas Populares, MSTB, MFST e o MTST (com seus coletivos no PA, RR, AM, RJ, SP, DF etc). Incluía ainda o Círculo Palmarino, do PA, Movimento de Luta Popular (MLP), Movimento Popular por Moradia (MPM), Movimento Urbano dos Sem Teto (MUST) de SP, Resistência Camponesa e Urbana do Piauí, Terra Livre – Movimento Popular do Campo e da Cidade, Quilombo Urbano do MA, Fórum de Moradia do Barreiro de MG, Rede Contra a Violência do RJ, Associação de Familiares da BA, MTL de SP, Movimento Passe Livre (MPL) de SP. 99 O Jornal O Globo noticiou, em tom de denúncia eleitoral, a inclusão de famílias ligadas ao MTST no Minha Casa Minha Vida: “MTST recebeu 89 milhões do Minha Casa. Promessa de construção de moradia com verba federal aumenta adesão a ocupações do braço urbano do MST” (O Globo, 11/1/2014). Alguns dias depois, O Globo voltou ao tema, dessa vez no seu editorial: “Métodos do MST são aplicados em cidades (...) o programa (MCMV) tem funcionado como fonte de alimentação de tensões em cidades, principalmente São Paulo, com a ampliação de invasões de terrenos (...) Demorou, mas as tensões agrárias, sempre acompanhadas do atropelamento das leis, podem ter desembarcado nas cidades a bordo das eleições.” (O GLOBO, 15/1/2014) 100 Em sua carta de princípios, a Resistência Urbana afirmava que sua luta fundamental era pelo socialismo. Diziam também que na Frente “estão unificados movimentos que acreditam que só a luta pode mudar a vida”. E que o seu “desafio é estimular e desenvolver lutas que não estejam limitadas a uma única demanda específica dos trabalhadores – seja ela a moradia, infraestrutura, trabalho ou qualquer outra”. Dessa forma, buscariam “articular e unificar todo um conjunto de demandas do povo pobre das periferias urbanas, a partir do princípio da unidade de classe”. Diziam ainda que sua intervenção era baseada em 4 eixos fundamentais para uma organização territorial urbana: “Projeto popular e combativo de reforma urbana; Direito à moradia digna; Contra a criminalização da pobreza e do movimento popular e; Direito ao trabalho”. Destaca-se que, apesar de sua proximidade política com o MTST, a Resistência Urbana nunca participou da CONLUTAS. Mais informações sobre a Resistência Urbana são encontradas em: www.resistenciaurbana.org

Page 97: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

97

do mais, mesmo apresentando formas de ação que os diferenciavam dos novos

movimentos sociais e buscando construir suas identidades próprias, com relações

de alianças próprias e críticas aos históricos movimentos nacionais, os novíssimos

mantinham relações e alianças com os novos MSUs no Rio de Janeiro101.

As ocupações urbanas, a despeito dos diferentes graus de vinculação que

mantinham com cada movimento, representavam uma importante base de

sustentação e de influência, tanto para a CMP e o MNLM, quanto para a FIST ou

MTD pela Base. Os moradores dessas ocupações eram, em sua maioria,

trabalhadores pobres, de empresas terceirizadas, com baixos salários, vigilantes,

trabalhadores do ramo da construção civil, do comércio, ambulantes, camelôs,

desempregados ou trabalhavam em empregos precários e de grande rotatividade102.

A influência dessa base social era sentida, por exemplo, quando os movimentos

priorizavam organizar formas de geração de trabalho e renda nas ocupações ou

quando participavam das lutas contra a repressão aos trabalhadores de rua, contra

os “choques de ordem” etc. E essas lutas tornavam-se, muitas vezes, centrais para

esses movimentos. Assim, esses movimentos transformavam-se também na forma

de organização (tantas vezes a única) de uma parte dessa parcela imensa da

população trabalhadora mais pobre. Parcela que se organizava a partir de lutas

imediatistas, vislumbrando conquistas materiais que melhorassem sua condição de

vida ao curto prazo e, a partir dessa experiência, tantas vezes se mantinha

organizada nesses movimentos. Organizadas se transformavam e, ao mesmo

tempo, faziam desses movimentos representantes de seus anseios, transformando

movimentos por moradia em movimentos de luta e representação dos mais pobres e

subalternos entre os subalternos das cidades.

101 A partir de 2011, com o aparente declínio da importância da PMS-RJ e sem a ocorrência de novas ocupações animadas pela CMP ou pelo MNLM, esse quadro parece ter começado a se alterar, e esses históricos movimentos sociais urbanos e seus aliados, segundo essa hipótese, passaram a “perder terreno” frente aos novíssimos movimentos e suas redes próprias de apoios, conforme já ocorria em outros estados do país, quadro que parece ter se intensificado com as manifestações de 2013. 102 Percebia-se, no convívio com moradores de ocupações urbanas cariocas, um aumento do número de trabalhadores formais nessas ocupações, assim como uma diminuição do número de desempregados. Essa foi uma das características das mudanças no mercado de trabalho no Brasil vistas, sobretudo, a partir de 2008. No entanto, ao conversarmos com muitos desses moradores, eles relacionavam a obtenção de um novo emprego, muitas vezes com carteira assinada, também ao fato de estarem morando “bem”, de terem um endereço fixo e de estarem próximos ao trabalho, no Centro da cidade.

Page 98: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

98

A influência dessa base social podia ser percebida também nas falas e

discursos de seus dirigentes e militantes de base. Termos como “trabalhadores

pobres”, “proletários”, “sem-tetos”, “pobres”, “classe trabalhadora” ou “trabalhadores

informais” eram usados corriqueira e confusamente nesses movimentos para se

autodenominar. Ao participar de reuniões ou manifestações com sindicalistas,

militantes de ONGs, universidades e partidos políticos, muitas vezes faziam questão

de reafirmar sua condição de “trabalhadores sem direitos”, de “trabalhadores

pobres”. Estariam assim reafirmando sua condição de trabalhadores e, por outro

lado, distinguindo-se dos movimentos e entidades que organizavam trabalhadores

“com direitos”, mais qualificados e de maior renda. Às vezes essa distinção tinha

também um caráter mais marcadamente político, que ia além da tradicional busca

por se distinguir de ONGs e grupos universitários, compostos por pessoas vistas por

eles como da “classe média”, que segundo esses militantes estudavam e muitas

vezes falavam em nome dos pobres, mas não sofriam com a pobreza que

fundamentava seus projetos e obtenção de recursos.

Tudo isso refletia, de alguma forma, uma conjuntura na qual, apesar do

refluxo generalizado das grandes mobilizações de massa e fragmentação das lutas

sociais, os movimentos sociais não sindicais conseguiram realizar algumas ações

relevantes e/ou de grande repercussão, como o ciclo carioca de ocupações entre

2004 e 2008, os conflitos envolvendo camelôs ou moradores de favelas contra a

violência policial e as manifestações organizadas pelo MST em todo o país. Nesse

mesmo período, foram raríssimas as lutas sindicais que extrapolaram as paredes

dos seus locais de trabalho, que ganharam as ruas e uma maior visibilidade. Ao

realizarem essa distinção entre movimentos de trabalhadores sem direitos e o

movimento sindical, pareciam reafirmar que eram movimentos de luta e que não se

renderiam à acomodação.

Quando organizavam cursos de formação política e teórica, esses

movimentos priorizavam chamar, para falar, seus aliados da academia, sem se

preocuparem tanto com algumas posições conceituais que esses viessem a ter.

Buscavam pessoas que reafirmassem a necessidade e importância das lutas

sociais, que conhecessem os movimentos, suas lutas e seus espaços de articulação

e que relacionassem os seus problemas cotidianos à mercantilização da cidade e da

Page 99: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

99

vida. Na maioria das vezes, chamavam intelectuais que explicavam e criticavam o

capitalismo e defendiam o socialismo.

Os movimentos sociais urbanos eram, ao fim da primeira década do século

XXI, mais do que movimentos organizados que tinham a cidade como objeto de suas

lutas: em grande parte e medida, eram também movimentos que organizam uma

parcela dos “de baixo” que pouco se organizava em outros movimentos e entidades.

Nos processos de interação com outros movimentos sociais, reafirmavam a

necessidade de lutas por políticas urbanas que atendessem aos anseios dos

trabalhadores mais pobres. Falavam de ações diretas, de resistência e criticavam as

“longas reuniões que não encaminham nada”. Cumpriam, assim, um papel também

educativo para militantes e movimentos que organizavam estudantes, trabalhadores

sindicalizados, intelectuais etc. Apesar de serem frágeis e pequenos, tinham

reconhecida legitimidade. Por isso, entre outras razões que ainda serão vistas neste

trabalho, suas lutas adquiriram tanta centralidade na PMS-RJ e em atividades que

envolviam diversos setores sociais e políticos, como o FSU, onde eles foram as

estrelas do evento.

2.5 Olhando de um lugar

A definição do procedimento como diálogo entre hipótese e experiência pode, entretanto, se degradar na imagem antropomórfica de uma troca pela qual dois parceiros assumiriam papéis perfeitamente simétricos e intermutáveis; ora não se pode esquecer, de modo algum, que o real nunca toma a iniciativa, já que só dá respostas quando é questionado (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2005, p.48).

Não existe conhecimento da história desde fora, quero dizer, ninguém está fora do rio da história, olhando para ele de suas margens. Todo observador está imerso no curso da história. (LÖWY, 1985, p. 70)

As citações acima se referem à importância da explicitação e reflexão sobre o

lugar a partir do qual o pesquisador constrói o objeto de pesquisa, lugar que tento

apresentar agora.

Neste primeiro olhar foi apresentado o que observei nos últimos dez anos,

período no qual, por força do mestrado e do doutorado, acompanhei de perto as

Page 100: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

100

práticas desses movimentos. Deixei os questionamentos e análises de cunho mais

teórico ou histórico de mais longo prazo para um momento seguinte. O objetivo, com

isso, era poder apresentar um texto mais factual, como uma massa bruta, para

depois, a partir de um diálogo mais sistematizado como as análises teóricas e

históricas sobre o tema, tentar problematizar e responder algumas questões sobre a

relação entre movimentos sociais urbanos e classes sociais103.

Essa massa bruta, no entanto, precisava ser recheada de informações e

reflexões, um relato que mesmo não sendo exaustivo, contivesse um mínimo de

elementos necessários para servir como ponto de partida (da observação imediata e

das representações), capaz de nortear a reflexão teórica e a análise histórica. O

objetivo desse processo de interação - e mesmo confronto - entre a observação

empírica e as análises teóricas e histórica é construir e, ao mesmo tempo,

apresentar meu objeto de pesquisa, além de ajudar a iluminar uma questão que

parece tão mal resolvida na literatura acadêmica quanto no campo político, inclusive

entre aqueles que participam desses movimentos ou são seus aliados.

Nesses anos, sobretudo entre 2007 e 2011, realizei o que se pode chamar de

uma “pesquisa participante” juntamente a esses sujeitos sociais. Além de atuar como

militante e de participar ativamente de uma série de fóruns e ações desses

movimentos, tive a oportunidade também de acompanhar diversos tipos de

atividades na condição de pesquisador e mesmo de representante do ETTERN,

laboratório de pesquisa coordenado pelo professor Carlos Vainer, orientador desse

trabalho.

O FSU foi um exemplo dessa forma de atuação, pois tendo sido um evento

organizado por todos os tipos de movimentos, entidades e grupos, o ETTERN teve a

oportunidade de ser um dos atores mais atuantes desde o início da organização do

evento. Isso me possibilitou colaborar politicamente com os movimentos sociais

urbanos, acompanhar de dentro todo o processo e analisar de perto as ações e

relações dos MSUs, além de poder compartilhar essas impressões e análises com

meu orientador e outros pesquisadores.

103 Claro que também a narrativa apresentada nesse Capítulo I, mesmo mais factual, também é influenciada pelos acúmulos teóricos e experiência política que tenho. No entanto, a questão propriamente dita desta tese não aparece como o fio condutor desse primeiro olhar, o que ocorrerá no Capítulo III, a partir dos diálogos realizados no Capítulo II.

Page 101: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

101

Por participar ativamente dos fóruns como a PMS-RJ, estive dentro e fiz parte

das principais articulações e lutas de alguns MSUs cariocas nesse período. Ao

mesmo tempo, por organizar visitas de cunho acadêmico nas ocupações ou realizar

entrevistas para artigos que depois foram divulgados nesses meios, passei a ser

visto como alguém da universidade, mas que também era um militante e apoiador

dos movimentos nas suas ações e relações políticas. Passei, então, a ser também

convidado para reuniões, seminários ou simples conversas que discutiam a

estratégia desses movimentos, para colaborar nas lutas ajudando a confeccionar

panfletos, jornais, na divulgação via internet, arrecadação de recursos e outras

demandas.

Também por conta de ser visto como um militante e pesquisador da área de

movimentos sociais urbanos (além de ser estudante de Planejamento Urbano e

Regional com formação em História), participei de um imenso número de atividades

da área de formação política e teórica desses movimentos (no Rio e em outros

estados). Palestras, cursos e debates ajudaram-me, então, a ver diretamente e sem

mediações, a organização e a cultura política desses movimentos, suas

contradições, disputas políticas internas, suas considerações sobre outros

movimentos e outras questões. Pude também estar presente em diversos tipos de

encontros, seminários e atividades, inclusive alguns de caráter marcadamente

interno aos movimentos, acompanhando a formação de uma nova direção ou a

organização de uma ocupação.

Passei a ser convidado também para participar de reuniões e articulações

políticas entre os movimentos urbanos, nos “bate papos” informais na mesa do bar

ou durante eventos e manifestações. Do mesmo modo, participei de centenas de

reuniões entre os movimentos sociais urbanos e seus aliados sindicais, do

movimento estudantil, de partidos de esquerda ou ONGs. Não obstante, minha

posição de pesquisador sempre foi explicitada e claramente percebida por aqueles

com quem me relacionei e me relaciono. Do mesmo modo que minha condição de

pesquisador, minha opção partidária (sou filiado ao PSOL desde 2006) sempre foi

claramente explicitada.

Pude ainda usufruir da amizade e do carinho de muitos militantes desses

movimentos. Realizei, por exemplo, uma festa de aniversário e o chá de fraldas da

minha filha dentro de uma ocupação (a Manoel Congo), onde também participei de

Page 102: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

102

festas de Natal, fim de ano e carnaval. Essa relação me possibilitou conhecer

pessoas que não conheceria em reuniões e com as quais dificilmente faria

entrevistas. Muitas e ricas foram as conversas descontraídas, sem maiores

pretensões políticas ou acadêmicas. Mas tudo isso me ajudou a perceber melhor

como funcionava uma ocupação, quem eram seus moradores, ouvir suas histórias

de vida antes e depois da ocupação e como interagiam entre si e com os

movimentos sociais. E, principalmente, quais eram seus sonhos, seus gostos,

costumes, suas frustrações, angústias, seus medos e alegrias. Em outras palavras,

como eram as suas vidas.

Essa relação de proximidade e confiança me permitiu ver de perto, de frente e

mesmo por dentro, muitas das práticas e discursos desses movimentos. Por outro

lado, me obrigou a ter um rigor metodológico, sem o qual a tendência seria

reproduzir a visão que esses movimentos têm de si mesmos, ao invés de realizar

uma análise própria e teoricamente embasada, que permita inclusive examinar

essas representações.

Como toda relação de proximidade, a que estabeleci com os MSUs cariocas

também era marcada por diferentes intensidades com os diversos movimentos e

atores sociais. Por conta de uma maior ou menor identidade política, teórica ou

pessoal, por conta das opções dessa pesquisa ou mesmo por mero acaso – por

exemplo, em função do período que iniciei essa pesquisa-, convivi mais com alguns

grupos, observei mais alguns movimentos e entidades, acompanhei mais de perto

algumas experiências de articulação entre movimentos e estive mais presente em

algumas ocupações do que em outras.

Por isso, nesse trabalho, busquei apresentar uma análise geral dos

movimentos urbanos cariocas, mas sem qualquer pretensão de abordar com

detalhes todas as ricas experiências que esses movimentos vinham produzindo nos

últimos anos. Ao mesmo tempo, para realizar determinadas análises que

demandavam maior quantidade de informações, uma visão de perto e de dentro

mais significativa ou um conhecimento mais pormenorizado sobre determinados

aspectos, me baseei naquelas experiências e movimentos que acompanhei com

Page 103: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

103

mais intensidade. Foram os casos, principalmente, da PMS-RJ, do FSU, da CMP-

RJ, do MNLM-RJ e da Ocupação Manoel Congo104.

Os casos acima mencionados refletem também uma opção teórica e

metodológica. Priorizei examinar os movimentos com foco na habitação e, entre

esses, aqueles de luta por moradia. A importância política desses movimentos e o

reconhecimento que recebiam do conjunto dos MSUs e da literatura acadêmica, a

quantidade e diversidade de movimentos organizados em torno dessa temática, a

centralidade do problema da habitação entre as lutas e conflitos urbanos e também

por atingirem grande parte dos trabalhadores, me levaram a essa escolha. Priorizei,

por consequência, examinar mais de perto os fóruns e articulações nos quais esses

movimentos tinham maior participação.

Do mesmo modo que algumas experiências e movimentos foram objeto de

análise mais profunda do que outras, o período de efetiva pesquisa de campo não

abarca os mais de 10 anos que venho acompanhando esses movimentos, visto que

esta pesquisa foi realizada com um recorte temporal entre 2007 e 2011. Se é

verdade que antes de 2007, inclusive por razões acadêmicas, eu já acompanhava

esses movimentos, e que depois de 2011 eu também mantive relações e algum grau

de observação sobre eles, há que se dizer que essas observações e

acompanhamento não foram tão sistemáticos ou rigorosos (mantive uma observação

104 Essas foram experiências e movimentos que, entre 2007 e 2011, acompanhei diariamente. Nesse período, presenciei praticamente todas as reuniões e ações da PMS e participei da organização do FSU desde suas primeiras reuniões até as avaliações que se seguiram ao evento. Estive também em contato diário com militantes da CMP e do MNLM, acompanhando suas reuniões, manifestações, troca de e-mails etc. E pude também acompanhar a ocupação Manoel Congo desde o período de recrutamento das famílias até sua consolidação ao longo desse tempo. Com relação aos outros movimentos de luta por moradia, lutas e experiências vistas nesse período, em boa parte dos casos também pude acompanhá-los e conhecê-los, mesmo que com distintas intensidades. Participei, por exemplo, de dezenas de reuniões do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, do CP e de tantas outras com grupos como a FARJ, a FIST, o MTD, o MTD pela Base, o MTST, as Brigadas Populares, o MUP, a CONAM, a UNMP, FLP e Associações como as do Horto, Vila Autódromo, Indiana etc. Visitei e conheci moradores de diversas outras ocupações, como a Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares, Casarão Cultural, Federação dos Tamoios, Mariana Crioula, Quilombo das Guerreiras, Carlos Marighella, Machado de Assis, entre outras menores da FIST, do MNLM, além de comunidades como o Anil, Santa Marta, Vila Autódromo, Maré etc. Estive em contato e participei de atividades também de e com diversos movimentos, entidades e grupos que atuavam com a temática da cidade ou em parceria com os movimentos urbanos, como o Lutarmada, o NPC, o Cidadão, a Rádio Santa Marta, o PACS, a Justiça Global, MST, MLM, Núcleo Socialista de Campo Grande, Rede Contra a Violência, Pastoral das Favelas, RENAP, Coletivo Pela Moradia, Movimento Passe Livre, Círculos Palmarinos, SEPE, CONLUTAS, ANDES, além dos grupos de pesquisa, mandatos parlamentares e partidos políticos, entre muitos outros. E, estive presente também em boa parte das principais manifestações realizadas nesse período, especialmente naquelas articuladas na PMS e no Comitê da Copa ou dos movimentos com os quais estabeleci maior proximidade. Sou muito grato a todos esses movimentos e seus militantes que permitiram essa vivência e aprendizado.

Page 104: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

104

mais sistemática apenas nos casos da Ocupação Manoel Congo e da PMS-RJ).

Portanto, concentrei o relato e as análises nas experiências e movimentos que

acompanhei no período efetivo da pesquisa de campo, e me refiro aos

acontecimentos anteriores e posteriores de forma mais vaga, apresentando algumas

hipóteses - que por essas razões não podem aqui ser devidamente comprovadas ou

descartadas - e faço isso, sobretudo, através do uso de notas de rodapé.105

No caso das manifestações de 2013, que não são o foco dessa pesquisa, fui

obrigado, pela força da realidade, a também tratar delas. Mesmo tendo participado

de parte dessas manifestações aqui no Rio - inclusive de algumas menores que as

precederam e serviram de estopim - além de diversas reuniões com os MSUs e em

espaços como a PMS e o Comitê da Copa - com e nos quais pude participar de

avaliações e da preparação de ações para intervir naquela jornada - preferi

(diferentemente do restante do capítulo) relatá-las e analisá-las, principalmente, a

partir de textos escritos naquele período, no “calor dos acontecimentos”, de

importantes autores que refletiram sobre aquelas manifestações, dado que esse não

era exatamente o tema desta tese. Busquei também identificar o papel que esses

autores conferiam aos problemas urbanos e, especialmente, às ações dos MSUs

naquele processo. A figura da “velha toupeira”, como mostrou a reflexão de Carlos

Vainer, tornou-se uma nova e valiosa chave de leitura para analisar as ações e

experiências dos movimentos sociais e, particularmente, dos MSU no período mais

exaustivamente examinado nessa tese.

Por todas essas razões, dividi o relato apresentado nesse primeiro olhar a

partir de onde e quando estava olhando, de forma a tentar apreender diferentes

“ângulos” sobre o mesmo objeto ainda em construção: olhando “depois” do período

de efetivo trabalho de campo, quando falo das manifestações de 2013; olhando “de

fora”, quando falo sobre o FSU e busco dialogar com algumas visões relatadas por

pessoas de outros Estados sobre a experiência dos MSUs no Rio de Janeiro;

olhando desde “dentro”, quando abordo a história da PMS-RJ e a rede de aliados

105 Aparentemente, ao não apresentar aqui uma análise mais detalhada do período posterior a 2011, a riqueza da experiência representada pelos novíssimos movimentos sociais urbanos não seria compreendida. No entanto, boa parte desses movimentos já existia em nível nacional nesse período e, mesmo no Rio de Janeiro, alguns dos movimentos mais representativos dos “novíssimos” MSUs já estavam em pleno funcionamento. Além do mais, para a reflexão proposta por esse trabalho, o que interessa é perceber a dinâmica de constituição e consolidação desses movimentos, suas formas de ação e organização, a base social que representavam e as relações que estabeleciam com outros movimentos de trabalhadores.

Page 105: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

105

dos movimentos urbanos cariocas (pois sempre participei da PMS e também me

tornei um desses aliados); olhando “de frente”, quando examino diretamente os

MSUs com foco na habitação e, principalmente, os de luta por moradia, que

compõem o caso central objeto desse trabalho; e, por fim, olhando “de um lugar” no

qual apresento, em linhas gerais, como se deu minha observação e interação com

os movimentos e processos examinados.

Destaco ainda que a questão que me propus a pesquisar e refletir nesse

trabalho, sobre a relação entre as práticas e discursos nesses e desses movimentos

com o fazer-se da classe trabalhadora, é uma questão externa ao cotidiano desses

movimentos, que têm na investigação da política interna aos movimentos uma de

suas prioridades. É uma questão de cunho histórico e teórico, uma construção do

pesquisador que, para ser objeto de reflexão, necessita um olhar para além das

práticas e discursos desses movimentos. Um olhar que busque perceber as

particularidades dessas práticas e discursos, mas que se atente também para as

relações de classe nas quais essas ações se inserem, propiciam ou favorecem. Um

olhar que veja essas ações a partir de uma teoria de classes sociais, do fazer-se da

classe trabalhadora, e de como essas ações se enquadram ou não, e transformam

ou não, essas teorias ou as leituras que se fazem delas.

Para escrever esse trabalho de tese, assim como para fazer alguns outros

artigos ou trabalhos de fim de curso, acabei por realizar uma série de entrevistas

com pessoas vinculadas aos MSUs cariocas, tanto com dirigentes, como com

pessoas que podem ser consideradas da “base”. Pessoas, por exemplo, que moram

em ocupações, mas, por diferentes motivos, não são muito participantes ou tão

orgânicas nos movimentos. Essas entrevistas, mesmo sendo uma parte pequena de

um grande processo de pesquisa, mostraram-se de enorme valor, pois ajudam a dar

materialidade ao observado durante anos de trabalho de campo.

Por fim, o lugar desse primeiro olhar é marcado pela experiência de quem

estudou esse tema, ainda que menos diretamente, também no mestrado106. E que,

como veremos mais detidamente a seguir, aceitou sem maiores críticas ou

questionamentos, alguns pressupostos teóricos, reproduzidos e questionados nessa

106 Cursei mestrado no IPPUR, de 2003 a 2005, quando defendi a dissertação Cidade e Conflitos Urbanos na Imprensa Sindical Carioca (1995-2002). Destaco ainda minha participação no Observatório dos Conflitos Urbanos da Cidade do Rio de Janeiro ETTERN/IPPUR/UFRJ, durante parte dos anos de 2006 e 2007.

Page 106: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

106

tese, para definir e localizar os movimentos sociais urbanos como movimentos que

se organizam para lutas relativas à “reprodução da força de trabalho” ou lutas

relativas ao “local de viver”. Alguém que também leu sobre a história desses

movimentos e suas lutas organizadas em bairros, parceiras de mobilizações do

movimento operário e sindical e, muitas vezes, tendo como dirigentes sindicalistas e,

como base, os bairros operários. Uma história marcada pela luta pela

democratização e pela ampliação das esferas de participação no Estado. História da

luta contra a ditadura, o inimigo de todos que se rebelavam.

E agora, disposto a também colaborar com o registro da história e da

memória dos MSUs, e a partir de um acompanhamento mais próximo das ações e

da cultura política desses movimentos - ações e cultura política que mudaram muito

ao longo dos anos – sou alguém que reconhece pouco do que vê em boa parte do

que leu, sente insuficientes algumas explicações e valoriza reflexões antes mais

despercebidas. Busco, assim, ser crítico mesmo com o (pouco) que escrevi, por

exemplo, na dissertação de mestrado.

Enfim, esse é um olhar que quer avançar sobre questões tipicamente

externas aos movimentos, a partir de um olhar por dentro desses e de suas

experiências. Um olhar de quem está disposto a rever, estranhar e questionar

pressupostos teóricos e históricos para melhor entender a relação entre movimentos

sociais urbanos e classes sociais no Brasil nos anos 2000.

Page 107: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

107

3 CAPÍTULO II - OS DIÁLOGOS

O concreto é concreto por ser síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto, igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. (MARX, 1971, p. 229)

Após o primeiro olhar sobre os movimentos sociais urbanos no Rio de

Janeiro, busca-se dialogar agora com algumas teorias e análises históricas que

articulam cidade e habitação, lutas e movimentos sociais urbanos, com classes

sociais e o fazer-se da classe trabalhadora. O relato inicial apresentado no Capítulo I

se constitui, portanto, no ponto de partida para nortear o diálogo com essas teorias e

como base para confrontar as análises teóricas com a observação empírica. É a

partir desses diálogos que algumas questões gerais sobre o tema ou mais

específicas para esse trabalho irão sendo postas, repostas e reformuladas, e que o

objeto dessa tese vai sendo construído e apresentado.

O primeiro objetivo desses diálogos é iluminar a observação imediata. É

questionar o primeiro olhar e identificar os pontos obscuros, os conceitos imprecisos,

as perguntas mais importantes e as relações que devem ser feitas para analisar os

movimentos sociais urbanos e suas ações como parte de um processo de fazer-se

da classe trabalhadora. Desta forma, se poderá depois, no Capítulo III, retomar o

olhar sobre os movimentos urbanos cariocas e reexaminar com mais profundidade e

precisão aspectos e questões que lancem luz sobre essa relação entre os MSUs e o

fazer-se de classe nos anos 2000.

Outro objetivo é refletir sobre a pertinência dessas teorias, conceitos e

análises históricas quando confrontadas com a pesquisa sobre os MSUs no Rio de

Janeiro do século XXI. Afinal, em que medida essas teorias e conceitos ajudam a

descrever e entender esses movimentos, como vistos nesse início de século XXI, em

termos de luta de classes? Existem inadequações ou insuficiências nessas teorias,

conceitos e análises que podem ser identificadas? Quais opções teóricas e

analíticas podem ser feitas para melhor entender essa relação entre MSUs e o fazer-

se da classe trabalhadora? Feitas algumas dessas opções, como aplicá-las, de fato,

em uma análise histórica, em uma investigação?

Page 108: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

108

Duas questões gerais devem também ser repensadas através desses

diálogos. A primeira diz respeito ao conceito de movimentos sociais urbanos e, em

que medida, ele ajuda a descrever esses movimentos, seus participantes e suas

lutas. Outra questão geral, também fundamental, é sobre a pertinência e as formas

do uso do conceito de classes sociais e de classe trabalhadora, em particular, para

entender os movimentos sociais urbanos e suas ações e formas de organização.

Não será apresentada uma revisão bibliográfica exaustiva, mas somente um

diálogo com teorias e análises que relacionam diretamente movimentos sociais

urbanos e classes sociais. O primeiro diálogo é com as teorias de Harvey (1982) e

Castells (1983), que relacionam movimentos sociais urbanos às lutas “no espaço de

viver” e às lutas relativas à “reprodução da força de trabalho”. Associado a essa

discussão, buscar-se-á dialogar também com análises sobre a relação entre luta de

classes e a cidade capitalista, a propriedade privada, o fundo público e a questão da

habitação. O segundo diálogo é com as teorias sobre classes sociais, especialmente

com Thompson (1987; 2001) e a noção de fazer-se da classe, que permitiria pensar

sobre o papel ativo dos MSUs nesse processo. E se tentará entender melhor a

conjuntura da luta de classes no Brasil no período em exame, refletindo sobre temas

como a relação dos movimentos sociais com o Estado, com os intelectuais, a

criminalização dos pobres, a fragmentação do mundo do trabalho e das lutas sociais.

Em terceiro lugar, será observado como a historiografia sobre os MSUs no

Brasil relacionou movimentos e classes sociais. O Diálogo será com Telles (1987),

Sader e Paoli (1986) e tantos outros autores que analisaram essas lutas e

movimentos nos anos 1970-1980, período de muita ação desses movimentos, e no

qual se desenvolveu o campo de estudos sobre o tema no Brasil. Esses autores

identificaram o surgimento de novas práticas de novos movimentos sociais urbanos

e trouxeram para reflexão importantes questões, como a da autonomia dos

movimentos, da heterogeneidade de suas bases sociais e da classe trabalhadora

brasileira - questões essas, entre outras analisadas por esses autores, que deverão

ser também objeto de análise nessa tese. Por fim, se buscará entender as

mudanças percebidas nas análises que abordam esse tema nos anos 1990, período

em que, sob uma conjuntura bem diversa daquela vivida nas duas décadas

anteriores, os MSUs viveram um período de crise e transição, no qual novas

respostas políticas começaram a ser elaboradas e antigas questões reconfiguradas.

Page 109: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

109

Respostas e questões que, com o desenrolar dos anos 2000, tornam-se marcantes

para os movimentos sociais urbanos no Brasil e para o entendimento sobre a

relação entre os MSUs e o fazer-se da classe trabalhadora.

3.1 O 1º diálogo: local de trabalhar e local de viver e movimentos sociais urbanos

Há 60 ou 80 anos a Inglaterra era um país como todos os outros, com pequenas cidades, uma indústria pouco importante e elementar, uma população rural dispersa, mas relativamente importante. Agora é um país ímpar, com uma capital de dois milhões e meio de habitantes, colossais cidades industriais, uma indústria que alimenta o mundo inteiro e que fabrica quase tudo com a ajuda das máquinas mais completas, com uma população densa, laboriosa e inteligente, da qual 2/3 trabalha na indústria, e composta por classes completamente diferentes das de outrora (ENGELS, 1975, p. 47).

Escritas em 1845 na Inglaterra, as palavras de Friedrich Engels demonstram

quão espantosas e abrangentes eram as mudanças causadas pela revolução

industrial e pela urbanização capitalista. Antigas cidades foram reconstruídas,

enquanto novas surgiam, em um incessante fenômeno que atingia todas as relações

sociais e que, guardada as múltiplas particularidades, atingiu a escala mundial.

O desenvolvimento capitalista leva à urbanização capitalista, que não

somente àquele se adapta como também o impulsiona. A cidade capitalista é

espaço de produção de riquezas. Concentra o que pode ser chamado de um

verdadeiro mercado de trabalho (e consumo), onde os trabalhadores, despossuídos

dos meios de produção, precisam vender a sua força de trabalho para sobreviver. A

desigualdade, característica estrutural do modo de produção capitalista, se reproduz

nas cidades e, com as devidas mediações, gera profundas desigualdades urbanas.

Os escritores burgueses ingleses lançam o anátema contra os efeitos desmoralizantes das grandes cidades (...) Se eles dissessem que a miséria, a insegurança, o excesso de trabalho e a obrigatoriedade do trabalho são as causas principais, todos responderiam, eles próprios seriam obrigados a responder: pois bem, demos aos pobres a propriedade, assegurem-lhe a existência, promulguemos leis contra o excesso de trabalho. E é isso que a burguesia não pode confessar (ENGELS, 1975, p 162-163).

Page 110: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

110

A produção nas cidades e das cidades é produção de mercadorias, é

produção capitalista, cujo motor e fim são o lucro. A produção é social, mas a

propriedade é privada. O processo de urbanização em cada cidade é resultado de

um processo histórico contraditório, de múltiplas influências, entre as quais se

destacam a concorrência entre capitais, as disputas de interesses entre diferentes

setores e grupos capitalistas (envolvidos na produção ou no uso da cidade) e as

diversas lutas dos trabalhadores.

3.1.1 Local de trabalhar e local de viver e a divisão dos trabalhadores em duas lutas independentes

O capitalismo industrial, pela reorganização do processo de trabalho e pelo advento do sistema fabril, força a separação entre local de trabalho e local de reprodução e consumo. (...) A separação dos locais de trabalhar e viver significa que a luta do trabalhador para controlar as condições de sua própria existência divide-se em duas lutas independentes (...) reconhecendo, evidentemente que a dicotomia entre viver e trabalhar é, ela própria uma divisão artificial imposta pelo sistema capitalista (HARVEY, 1982, p.7-8).

A “divisão em duas lutas independentes” favoreceria que, em determinadas

circunstâncias históricas, os trabalhadores se organizassem de formas diferentes

para cada uma destas lutas. Para as lutas relativas ao local de trabalho (que têm

como objeto a venda e o consumo produtivo da força de trabalho) destaca-se a

existência dos sindicatos. Já para aquelas relativas ao local de viver, “de reprodução

e consumo”, cujo objeto seria a condição de reprodução da força de trabalho, são

criadas associações de moradores e movimentos de luta por moradia, transportes,

associações de usuários de serviços públicos, entre outros movimentos sociais

urbanos.

As condições de trabalho, como já indicava Engels, interferem diretamente

nas condições de vida nas cidades. Contudo, a reprodução da força de trabalho

(FT), e mais especificamente o seu custo, é também uma questão que interfere

diretamente nas condições das lutas no local de trabalho. Se o valor embolsado pelo

trabalhador em troca de sua força de trabalho tem como referência o custo de

reprodução desta, as lutas no “local de viver” e as características historicamente

constituídas da urbanização em cada cidade repercutem também no local de

trabalhar.

Page 111: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

111

Ora, a separação entre produção e reprodução, entre local de trabalhar e

local de viver, não seria senão a expressão de outras e fundamentais cisões – entre

trabalhadores e meios de produção, entre valor de uso e valor de troca – que estão

na base das relações de trabalho no modo de produção capitalista. Essa separação,

como as outras, segundo Harvey, seria bastante funcional para o capital:

Os primeiros industriais tinham que lidar com os trabalhadores tanto dentro quanto fora da fábrica. Mas o confronto direto entre capital e trabalho no ambiente de vida exacerba as tensões e conflitos de classe, principalmente porque o trabalho pode identificar facilmente o inimigo (...) Não foi por acaso que algumas das mais ferozes confrontações e greves (...) ocorreram em ‘Company Towns’. Sob tais condições, é vantajoso para os produtores capitalistas procurar influências mediadoras que tornam difuso o objetivo do descontentamento dos trabalhadores. A privatização da oferta de habitação, a criação de inúmeros intermediários nos setores varejistas e atacadistas e ainda a prestação pelo governo, de serviços sociais e bens públicos. Tudo isso ajuda aquela difusão. (HARVEY, 1982, p.21, 24)107.

A ideia do espaço urbano como espaço da vida cotidiana, espaço de

reprodução da força de trabalho, era compartilhada por Castells:

O essencial dos problemas que se consideram urbanos estão de fato ligados aos processos de consumo coletivo ou ao que os marxistas chamam de organização dos meios coletivos de reprodução da força de trabalho e que, por razões históricas específicas, são essencialmente dependentes, por sua produção, distribuição e gestão da intervenção do Estado. (...) Uma unidade urbana (...) apresenta uma determinada especificidade em termos de residência, em termos de cotidianidade. Ela é, em suma, o espaço cotidiano de uma fração delimitada da força de trabalho. (...) Trata-se do processo de reprodução da força de trabalho: eis a exata designação em termos de economia marxista, do que se chama ‘vida cotidiana’. (CASTELLS, 1983, p. 469, 474, 475).

Harvey e Castells identificam os problemas urbanos e, por consequência, as

lutas e movimentos urbanos, ao “local de viver”, à “vida cotidiana”. Segundo eles,

esse local ou vida seriam parte do processo de reprodução da força de trabalho.

107 David Harvey admite, sobre esta divisão, que existe uma clara distinção entre: 1) uma fração do capital que procura a apropriação da renda, quer diretamente (como os proprietários de terra, as empresas imobiliárias, etc) ou indiretamente (como os intermediários financeiros ou outros que investem em propriedades visando uma taxa de retorno); 2) uma fração do capital procurando juros e lucro através da construção de novos elementos no meio construído (os interesses da construção); 3) o capital em geral, que encara o ambiente construído como um dreno para o capital excedente e como um pacote de valores de uso e com vistas ao estímulo da produção e acumulação de capital. (HARVEY, 1982)

Page 112: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

112

Ainda segundo Harvey, a separação das lutas relativas ao local de trabalhar e ao

local de viver e as “influências mediadoras” da divisão entre o capital industrial e o

capital que produz os bens ou presta os serviços urbanos, ajudaria a tornar “difuso o

descontentamento dos trabalhadores” e seria uma forma de dificultar a exacerbação

das “tensões e conflitos de classe”.

Os dois autores citam também o papel do Estado nos processos de

urbanização, através da oferta de serviços e bens públicos (organização dos meios

coletivos de reprodução da força de trabalho). Castells afirma que a ação do Estado

é essencial nesse processo; já Harvey destaca o quanto isso ajudaria na difusão do

descontentamento dos trabalhadores, já que suas lutas teriam como alvo, além das

empresas privadas, também o Estado. Tanto a intervenção do Estado nos processos

de urbanização quanto sua omissão influenciaria as formas e objetivos das lutas dos

movimentos sociais urbanos.

Segundo Topalov, “o Estado não é um sujeito dotado de vontade, é um

conjunto de aparatos que realizam (...) o interesse geral da classe dominante”. E

assim, segundo ele: a “atividade de planificação se converte em um momento de um

processo social complexo, o das lutas de classes”. Sua “tese fundamental” é que a

“cidade constitui uma forma de socialização capitalista das forças produtivas”, tendo

valor de uso para o capital por concentrar as condições gerais para a produção

capitalista: condições de produção e de circulação do capital e da reprodução da

força de trabalho (TOPALOV, 1978, p. 18,19,20)108. “O fundo público, em suas

diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento da acumulação de

108 A partir desse entendimento do que é a cidade capitalista, Topalov aponta o que seria sua contradição principal: se a urbanização cria condições gerais para a produção capitalista, por outro lado ela é produzida por capitais particulares que buscam maximizar seus lucros. Essa contradição, que seria a principal da urbanização capitalista, se desdobra, segundo Topalov, em três contradições que determinam a constituição e utilização da cidade. A primeira contradição advém do fato de que o capital não produzirá certos elementos necessários, porém não rentáveis, do “valor de uso complexo” das cidades. Entre esses elementos se destacam a infraestrutura produtiva e os “equipamentos coletivos de consumo”. A segunda contradição se refere à busca do lucro privado, que se opõe à organização espacial racional dos elementos que compõem o “valor de uso complexo” e a terceira remete ao problema da renda do solo. Além dessas contradições, haveria também aquelas ligadas à “produção e reprodução da força de trabalho”. A primeira, que o valor de troca da força de trabalho não incluiria todas as necessidades do trabalhador. A segunda diz respeito à forma de pagamento pela força de trabalho comprada: o salário, que por sua própria forma normalmente só responde às necessidades fracionadas, imediatas e que sejam uniformes. A terceira contradição seria que o valor de troca da força de trabalho não reconheceria uma parcela das necessidades do trabalhador, as “necessidades dissociadas”, que só poderiam ser atendidas pelo fundo público, forma “não mercantilizada de consumo”. (TOPALOV, 1978)

Page 113: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

113

capital, de um lado e, de outro, do financiamento da reprodução da força de

trabalho” (OLIVEIRA, 1998, p. 19-20).109

Todas as grandes cidades possuem um ou vários ‘bairros de má reputação’ – onde se encontra a classe operária (...) Estes são organizados em toda a Inglaterra mais ou menos da mesma maneira, as piores casas na parte mais feia da cidade (...) quase sempre irregularmente construídas (...) Habitualmente as próprias ruas não são pavimentadas. São sujas, cheias de detritos vegetais e animais, sem esgotos nem canais de escoamento (...) o mercado está instalado nas ruas (...) As casas são habitadas das caves aos telhados (...) Mas isso ainda não é nada ao pé dos alojamentos nos pátios e vilas transversais (...) Mas no fim das contas, os que possuem um teto seja ele qual for, ainda são felizes ao pé daqueles que nem isso tem. Em Londres levantam-se todas as manhãs 50.000 pessoas sem saberem onde repousarão a cabeça na noite seguinte (ENGELS, 1975, p.59-64).

O relato de Engels sobre os bairros populares e as condições de moradia dos

trabalhadores na primeira metade do século XIX na Inglaterra lembra, em grande

medida, o que se vê no Brasil e particularmente no Rio de Janeiro do século XXI. A

profundidade e a recorrência histórica desse problema, ao longo de tantos anos e

em tantos lugares, sugere que esse é um problema estrutural no capitalismo. No

Brasil, esse é um problema muito grave para os trabalhadores110.

A localização e as condições de moradia interferem diretamente nas

possibilidades de acesso dos trabalhadores a diversos bens e serviços urbanos,

109 As mudanças na economia capitalista vistas no final do século XX e a força do modelo neoliberal teriam desequilibrado essa equação e mudado as prioridades e formas de ação dos poderes locais. “Dado que o objetivo principal tem sido o de estimular ou atrair empresas privadas através da criação de pré-condições para um investimento lucrativo, o governo local de fato acabou por sustentar a empresa privada, participando do fardo dos custos de produção (...) ao mesmo tempo em que os subsídios locais para o capital provavelmente irão aumentar, a provisão local para os menos privilegiados irá diminuir, produzindo uma maior polarização na distribuição de renda” (HARVEY, 1996, p. 58). 110 Apenas à título de ilustração: no Brasil, cerca de 40% da população não tem acesso à rede de esgoto e mais de 60% do esgoto recolhido não é tratado. Cerca de 40% da população das maiores cidades brasileiras não conta também com serviço de coleta de lixo. Na cidade do Rio de Janeiro, mais de 20% das residências não têm coleta de esgoto e mais de 1,3 milhão de pessoas moram em favelas, vivendo entre vielas e becos mal iluminados e ventilados (cerca de 600 mil pessoas moram em favelas dominadas pelo tráfico e 420 mil naquelas dominadas pelas milícias, o que indica a ausência do Estado nessas comunidades), e sofrem coma falta de serviços regulares de educação, creches, saúde, transportes, coleta de lixo, água tratada, entrega de correspondência etc. Entre esses, mais de 20 mil famílias moram em áreas consideradas de alto risco de desabamentos (O GLOBO, 22/3/2013; 1/9/2013; 2/10/2013; 5/12/2013). Com relação ao problema da habitação, o déficit habitacional no Brasil, segundo dados do Governo Federal, ultrapassa 6 milhões de unidades habitacionais. Mais de 80% das famílias que vivem em “condições inadequadas de moradia” recebem menos do que 3 salários mínimos de renda familiar e, apesar disso, boa parte delas (famílias com

Page 114: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

114

como energia, água, esgoto, educação, saúde, segurança, transporte e no acesso

ao local de trabalho. Tanto a localização quanto as condições de moradia são,

portanto, fundamentais na definição das condições de vida dos trabalhadores. “O

valor de uso da moradia é uma das condições desta reprodução: de fato, é o suporte

e o lugar a partir do qual se organizará a família operária e suas principais atividades

de consumo” (TOPALOV, 1978, p.96).

Castells associa os problemas de moradia a uma verdadeira e abrangente

crise, decorrente das condições sociais de produção desse bem:

A questão da moradia é primordialmente a de sua crise (...) O que caracteriza essa crise é que ela afeta outras camadas sociais além das que se encontram embaixo da escala de renda e atinge amplos setores dos estratos médios, que se situam melhor em outros domínios do consumo, mas não conseguem escapar a penúria das moradias (...). Essa penúria é determinada pelas condições sociais de produção do bem, objeto do mercado, quer dizer, a moradia (CASTELLS, 1983, p.183).

Ao estudar as peculiaridades da produção da mercadoria moradia, Jaramillo

(1981) destaca quatro pontos decisivos para o problema da habitação: a) o período

excessivamente longo de rotação do capital (o que leva ao encarecimento da

mercadoria moradia e à extrema dependência do sistema financeiro); b) a ligação do

espaço construído com o solo urbano (que também gera elevação do preço da

moradia); c) a vulnerabilidade frente à flutuação nas condições de produção e

circulação (restringindo investimentos capitalistas na produção dessa mercadoria) e;

d) a escassez da demanda solvável, pois, segundo ele a necessidade de moradia

não estaria acompanhada da capacidade de pagamento que garanta a acumulação

dos produtores desta mercadoria (JARAMILLO, 1981). Assim, muitos trabalhadores

seriam “excluídos da demanda solvável, e para poder ter acesso ao valor-de-uso da

moradia, devem recorrer a fortes restrições no consumo deste bem, a formas não

capitalistas de produção, ou à ação do Estado em termos de capital desvalorizado”

(JARAMILLO, 1981, p.23).

Ele apresenta, então, quatro formas de produção-circulação da moradia: a)

construção promocional privada (típica do setor capitalista desenvolvido); b)

renda per capita igual ou superior a 320 reais) é considerada - e comemorada pelos governantes - como a “nova classe média brasileira”.

Page 115: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

115

produção por encomenda; c) autoconstrução;111 d) produção capitalista

“desvalorizada” por parte do Estado - através da produção direta e posterior

distribuição ou aluguel ou de subsídios para a compra ou construção. (JARAMILLO,

1981)

O peso que cada uma dessas formas adquire na produção geral de moradias

seria determinado pela luta de classes. Não é à toa, pois, que as lutas por moradia

motivem tantos conflitos, adquiram tanta centralidade entre os MSUs e que palavras

de ordem contra a moradia ser tratada como mercadoria e contra a propriedade

privada do solo tornem-se tão importantes para alguns desses movimentos.

Ao examinar as condições em que se desenvolvem os conflitos e lutas dos

trabalhadores relativas ao urbano, em seu estudo “O trabalho, o capital e o conflito

de classe em torno do ambiente construído nas sociedades capitalistas avançadas”,

David Harvey chama atenção também para o lugar ocupado pela propriedade

privada na cidade capitalista:

A luta na qual o trabalho se compromete em seu ambiente de vida, contra a apropriação da renda, é uma luta contra o poder monopolístico da propriedade privada. (...) Por essa razão a classe capitalista como um todo não pode se permitir ignorá-la. Essa classe precisa manter como sacrossanto o princípio da propriedade privada (HARVEY, 1982, p. 12-13).

No Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, a defesa da propriedade

privada como “uma questão de princípios, inegociável” ou “sacrossanto” - a despeito

da existência de inúmeros imóveis vazios em áreas ricas em infraestrutura urbana

em meio a todos os problemas habitacionais - é difundida pelos maiores veículos da

mídia empresarial. Por exemplo, no dia 5 de abril de 2014, por conta da ocupação

de um terreno da empresa de telecomunicações OI, na zona norte carioca, o Globo

tratou desse tema em seu editorial: “A ocupação em si de um imóvel (particular ou

público) exige uma resposta imediata do poder público – a expulsão dos invasores e

garantia de posse do terreno à sua proprietária. (...) Esta é uma questão de

111 Sobre a autoconstrução, Jaramillo diz que: “um elemento fundamental que explica esse tipo de produção é a extrema pobreza de uma parte importante da população”. Para “o capital”, o barateamento do custo monetário da moradia produzida sem remunerar a força de trabalho se traduziria em uma diminuição do custo de reprodução da força de trabalho e para o Estado seria “funcional esta forma de produção (...) que diminui o custo de reprodução da força de trabalho e atenua as tensões derivadas da crise da habitação e, no geral (o Estado), tolera e propicia sua extensão”. (JARAMILLO, 1981, p. 56)

Page 116: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

116

princípios, inegociável”. O Editorial continuava e exigia punição para aqueles que

violaram esse “sacrossanto” princípio: “É obrigação do Estado de, pelos seus

organismos responsáveis, agir em defesa não só do primado da propriedade

privada, mas também para apurar em que circunstâncias foi organizado esse ato de

força e identificar os responsáveis procedendo às punições cabíveis”. (O GLOBO,

5/4/2014)

Harvey aponta ainda, a partir da análise sobre esses conflitos urbanos nos

países capitalistas avançados, que a luta dos trabalhadores se dá de diferentes

formas. Ele cita “três situações gerais”: o individualismo competitivo, a ação

comunitária e a luta classista, como três formas possíveis e não excludentes de

participação dos trabalhadores nas disputas em torno do urbano. Ele afirma ainda

que:

Do ponto de vista do capital, as concorrências individual e comunitária são vantajosas (...) As formas ostensivas de conflitos em torno do ambiente construído dependem, portanto, do desfecho de uma luta ideológica mais profunda e frequentemente oculta, luta essa que tem por objetivo a consciência dos contendores. Essa luta mais profunda entre consciência e posicionamento individuais, comunitários e de classe oferece o contexto no qual ocorrem as lutas do dia-a-dia sobre os problemas do dia-a-dia (HARVEY, 1982, p. 33-34).

Quando são observados os movimentos sociais urbanos, suas práticas e lutas

nos anos 2000 no Rio de Janeiro, e confrontados com as análises de Harvey,

Castells e Topalov, entre outros, algumas questões chamam atenção. A primeira, e

talvez uma das mais importantes, diz respeito à separação entre local de trabalhar e

local de viver, de produção e de reprodução da força de trabalho: Será que é

possível fazer essa separação, ou será que essa separação é tão acentuada na

realidade do Rio de Janeiro do século XXI - uma cidade do capitalismo periférico que

nunca foi considerada exatamente uma cidade industrial -, a ponto de ser suficiente

ou tão determinante para descrever, conceituar e analisar os movimentos sociais

urbanos?

As favelas, por exemplo, não são também o local de trabalho de muitos de

seus moradores? Ao analisar o mercado de moradias em favelas, Abramo (2003)

afirma que “para uma parcela das novas gerações, a noção de proximidade de uma

fonte de rendimento perde sua dimensão territorial ‘strictu sensu’ e passa a adquirir

Page 117: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

117

uma conotação de rede de relações”. Essa rede de relações, muitas ligadas ao local

de moradia, gera oportunidades de trabalho. “A contrapartida desse circuito

econômico endógeno na favela é que se reforçam os fatores de escolha de

localização residencial a partir dos critérios de proximidade” (ABRAMO, 2003, p.

189-192).

Recentemente, com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora

(UPPs)112, ocorreu a proliferação de uma série de projetos visando legalizar os

negócios existentes nas favelas. Segundo a UPP Social, ligada ao Instituto Pereira

Passos (IPP) da Prefeitura, “2.161 microempresários de favelas tiraram seu CNPJ

com a ajuda do Projeto Bacana, 1761 desses em áreas com UPPs”. Com a ajuda do

SEBRAE-RJ, foram 617 em 2010, 813 em 2011, 1083 em 2012 e cerca de 1500 em

2013, totalizando quase quatro mil novos pequenos empreendedores em favelas

com UPPs. E segundo o próprio SEBRAE, a informalidade ainda persiste,

representando 87% dos negócios nessas favelas. (O GLOBO, 9/12/2013) Segundo

José Domingos Vargas, presidente da Agência de Fomento do Estado do Rio de

Janeiro, foram atendidos com microcrédito cerca de dois mil empreendimentos em

2013 e serão sete mil em 2014, apenas em áreas com UPPs. (O GLOBO,

11/12/2013)

Esses números mostram que uma significativa quantidade de moradores das

favelas cariocas tem o seu trabalho ligado aos locais de moradia, fato que se

reproduz também nos novos conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida,

como relatado - e caracterizado como um “problema” - em matéria do Jornal O

Globo de 15 de janeiro de 2014: “há ainda práticas que começam a se disseminar

(...) a instalação de puxadinhos que funcionam como bares, cabelereiros, e vendas

de alimentos entre outros serviços”. Na mesma matéria, o diretor do Instituto dos

Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) comenta: “a falta de renda leva os

moradores a instalarem pequenos negócios, repetindo a lógica da favela – criar

formas de ganhar dinheiro com um pequeno comércio é uma característica do

empreendedorismo das comunidades do Rio” (O GLOBO, 15/1/2014)113.

112 A primeira UPP foi instalada em dezembro de 2008 na favela Santa Marta, em Botafogo, bairro da Zona Sul da cidade. Em abril de 2014, segundo dados do Governo Estadual, eram 37 UPPs, várias delas atingindo duas ou três comunidades. Segundo o Censo de 2010, o Rio de Janeiro tinha 1071 favelas identificadas. 113 É interessante notar que a matéria do Globo explica a existência dos puxadinhos que funcionam como local de trabalho pela falta de educação das famílias que, acostumadas à informalidade das

Page 118: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

118

Empreendedorismo, informalidade ou relações precárias e instáveis de trabalho, o

fato é que favelas e comunidades pobres, além de espaço de moradia, são também

lugares de trabalho.

3.1.2 Movimentos sociais urbanos e a divisão em duas lutas independentes

Ainda sobre a questão da (não) separação entre local de trabalhar e local de

viver, percebe-se, nas lutas contra as remoções no Rio de Janeiro, que muitas

pessoas não estão lutando exclusivamente pela manutenção das suas moradias,

mas também dos seus locais e condições de trabalho. Estão lutando contra a

demolição de suas casas, mas também de suas oficinas, biroscas, marcenarias,

salões de beleza, mercadinhos, bares etc. Pequenos negócios que muitas vezes são

parte ou extensão das próprias moradias.

Da mesma maneira, as pessoas que participam de ocupações organizadas de

prédios vazios têm motivações que não se restringem a um teto. A moradia (e sua

localização) é vista como meio também de busca por trabalho ou por melhores

condições de trabalho.114 Em depoimento durante o FSU, uma moradora da

Ocupação Quilombo das Guerreiras dizia: “aqui no Centro você não passa fome,

você faz uma garrafa de café, desce, vende e garante o jantar”115. Outra moradora

de uma ocupação no Centro - Manoel Congo - respondendo a uma entrevista, dizia:

“aqui no Centro é bem mais fácil, porque você está muito perto. Por mais que você

não pegue um mega emprego, você consegue pelo menos estar com emprego

garantido” 116.

favelas, não conseguem se adaptar a vida na formalidade. E entre as soluções para tal “problema” está o fornecimento de cursos para educar essas pessoas ao invés de projetos de geração de trabalho e renda e de obras que permitam oferecer as pessoas locais para trabalharem e/ou a prestação desses serviços próximos a essas moradias. A matéria critica ainda a inadimplência dessas famílias com as taxas de condomínio e de serviços urbanos, explicando essa inadimplência e a instalação de gatos também como uma questão de (falta de) educação e costume. 114 O Centro e a Zona Portuária concentram 36,73% dos empregos formais da cidade e apenas 4,71% da população do Rio de Janeiro mora nessas localidades (Censo 2010) (O GLOBO, 2/1/2014). 115 Depoimento de A., moradora da Ocupação Quilombo das Guerreiras, em mesa de debate sobre ocupação e revitalização de áreas centrais e portuárias, no último dia do FSU, no Rio de Janeiro, em março de 2010. 116 Entrevista realizada em 10 de outubro de 2010 com J., moradora da Manoel Congo.

Page 119: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

119

Pode-se mesmo dizer que as próprias ocupações são lutas por espaços que

permitam também obter ou melhorar as condições de trabalho e renda. Não é à toa

que todas as grandes ocupações urbanas no Rio de Janeiro desenvolvem políticas

de geração de trabalho e renda. “A implementação de projetos de geração de renda

nas ocupações tem sido considerada, tanto por moradores como pelos militantes

que as apoiam, como um passo fundamental para a consolidação da ocupação”

(MAMARI, 2008, p. 79). Além do mais, “o direito ao trabalho”, a melhores condições

de trabalho ou ao acesso a um trabalho digno são reivindicações apresentadas

como prioritárias pela maioria dos movimentos sociais urbanos e constam nas cartas

de princípio desses movimentos ou de seus estatutos e programas aprovados em

congressos, tanto de movimentos mais antigos quanto dos recentes (cf. Capítulo I).

Quase como um desdobramento dessa primeira questão, a delimitação de

lutas e movimentos sociais urbanos como formas organizativas de lutas relativas à

reprodução da força de trabalho merece reflexão. Quando Harvey e Castells falam

dessas separações - entre lutas no local de trabalhar (sindicais) e lutas no local de

viver (urbanas) e entre lutas relativas à produção (sindicais) e lutas relativas à

reprodução (movimentos urbanos) - em nenhum momento eles abordam a situação

como se verifica no Rio de Janeiro, dessas lutas e movimentos organizarem setores

diferentes da população trabalhadora. Quando Harvey diz que “a separação dos

locais de trabalhar e viver significa que a luta do trabalhador para controlar as

condições de sua própria existência divide-se em duas lutas independentes”, está se

referindo a um único e mesmo conjunto de trabalhadores: que se envolve nas lutas

sindicais no seu local de trabalhar e nas lutas dos movimentos sociais urbanos no

seu “local de viver”.

No caso dos movimentos sociais urbanos cariocas dos últimos anos, eles

organizam, com poucas exceções, pessoas que têm nesses movimentos suas

únicas formas de organização. Organizam pessoas que trabalham, sobretudo, em

condições precárias e instáveis e que não são (e na maioria das vezes nunca foram)

sindicalizadas nem participaram de lutas sindicais. Levantamento entre os

moradores da Ocupação Chiquinha Gonzaga é ilustrativo dessa questão: entre 47

moradores entrevistados, 23 disseram participar de algum tipo de movimento social

ou organização política. O mais significativo é que desses 23, 16 apontaram a

própria Ocupação Chiquinha Gonzaga como esse movimento e 2 indicaram a

Page 120: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

120

cooperativa de trabalho da ocupação como sua organização. (MAMARI, 2008, p. 89-

90)

Na Ocupação Manoel Congo, entre as mais de quarenta famílias residentes,

apenas oito contavam com pessoas que já militavam antes da ocupação, sendo que

a maioria dessas (cinco) participava do próprio MNLM e uma de outro movimento

urbano. Alguns já tinham militado ou ainda militam em outros movimentos urbanos

ou rurais, ONGs ou partidos de esquerda. Mas, como em quase todos os

movimentos urbanos cariocas, é muito reduzido o número de pessoas, sejam elas

militantes orgânicos, de suas redes de apoios ou moradores de ocupações, que

participam ou já participaram de sindicatos117.

A participação ou o apoio dos movimentos sociais urbanos ou de seus

militantes e de moradores de ocupações nas lutas em defesa dos direitos dos

camelôs é outro exemplo da ação desses movimentos em questões relativas ao

mundo do trabalho. No Rio de Janeiro, por iniciativa dos MSUs (como a FIST e a

CMP) e de moradores de ocupações e seus apoiadores foi criado, em 2009, o

Fórum contra o Choque de Ordem. Esse foi um exemplo de uma prática que é

recorrente e que pode ser explicada, em parte, pela participação de trabalhadores

ambulantes nas ocupações e na “base” desses movimentos. Mas que pode também

ser uma expressão de um sentimento de identidade, resultado da experiência

comum de lutas que envolvem o uso e ocupação do solo urbano e do espaço

público, do constante enfrentamento com as forças de segurança do Estado ou pelo

sentimento de pertencimento a uma mesma fração de classe. Fração essa ligada a

um segmento dos trabalhadores que tem, entre várias características, a baixa

remuneração, a instabilidade no emprego e a não participação em sindicatos.

Nesses casos, o (mesmo) trabalhador não está se organizando e participando

de duas lutas independentes que dizem respeito a suas condições de vida, como

dizia Harvey. Ele está se organizando em um único movimento (social urbano) para

lutar por moradia e por uma vida melhor (ou ao menos para que essa vida não piore,

117 São tão poucos esses casos que é possível, por exemplo, registrar que C. - um dos principais dirigentes da UNMP no Rio - foi um ativo sindicalista ferroviário nos anos 1980, tendo depois, nos anos 1990, se afastado do sindicato e da categoria. Registra-se ainda que A. - um dos principais militantes da FARJ - é professor e, hoje em dia, faz parte da direção do sindicato específico de sua base. É verdade também que entre os apoiadores desses movimentos há pessoas com algum tipo de participação em sindicatos (na maior parte das vezes como base e não como dirigentes sindicais). Mas, mesmo nesses casos, esse número é quase irrelevante perto daqueles apoiadores com ligações com o movimento estudantil, partidos de esquerda, grupos anarquistas etc.

Page 121: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

121

como nos casos da ameaça de remoções e despejos), o que inclui também lutar

para adquirir, manter ou melhorar as condições de trabalho e renda. Pode-se até

mesmo dizer que esses trabalhadores fazem do movimento social urbano do qual

participam também o seu sindicato, partido e ONG, pois tantas vezes é nesse

movimento que eles discutem seus problemas (e lutas) do trabalho, seus

posicionamentos políticos e eleitorais, questões de gênero e raça, além de

desenvolverem projetos, como os de geração de trabalho e renda. Como diz

Thompson: “olhemos a história como história”, pois se está falando de “homens

situados em contextos reais (que eles não escolheram) e confrontados perante

forças incontornáveis com uma urgência esmagadora de relações e deveres,

dispondo, apenas, de uma oportunidade restrita para inserir sua própria ação”

(THOMPSON, 2001, p. 140).

O estranhamento da ideia de separação entre local de trabalhar e de viver e

de lutas relativas à produção e a reprodução da força de trabalho, não significa

dizer, necessariamente, que essas cisões não existam. Quer dizer, sim, que

precisam ser examinadas à luz da realidade de cidades como o Rio de Janeiro, do

capitalismo periférico, à luz das mudanças no mundo do trabalho etc. E,

principalmente, que precisam ser examinados os significados e representações que

os trabalhadores constroem sobre essas cisões, sobre o espaço de viver e a

urbanização, bem como as respostas políticas que elaboram para agir em

conformidade com essas representações. A própria formação de movimentos sociais

urbanos pode ser lida como uma resposta dos trabalhadores (de um segmento dos

trabalhadores) aos significados e representações que têm sobre essa separação. Os

movimentos sociais urbanos, assim, falam sobre essa própria separação e sobre

esse (separado) “espaço de viver”.

E, ao menos aparentemente, os MSUs falam que essa separação não os

define. Afirmam que, se a “crise urbana” ou o “problema da habitação” atingem de

forma quase generalizada os trabalhadores, isso não é o suficiente para que os

trabalhadores, generalizadamente, se organizem em MSUs. Dizem que os

trabalhadores de empregos mais estáveis, formais, com melhores salários e

benefícios, que podem e tradicionalmente se organizam em sindicatos, não

percebem essa cisão e os problemas urbanos como suficientes para que eles se

mobilizem e se organizem (separadamente) em movimentos sociais urbanos.

Page 122: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

122

Falam também que os trabalhadores mais pobres, de empregos precários e

instáveis, fazem dos movimentos sociais urbanos uma oportunidade de organização

para intervir - não exclusivamente, mas principalmente - nos problemas urbanos. E

isso sugere que os problemas urbanos os afetam de forma particular e/ou que eles

conferem um sentido particular para os problemas urbanos. Nesse caso, uma

hipótese explicativa seria que, para além da crise urbana, existiria nesse segmento

de trabalhadores um sentimento de descontentamento, carência ou exclusão mais

profundo com relação aos serviços e equipamentos urbanos do que normalmente se

descreve como contradições e problemas urbanos. E nada impede de se supor que

esse sentimento realmente exista e seja forte118.

A hipótese desenvolvida nessa tese é de que essas cisões não são tão

marcantes aqui quanto as identificadas por Harvey e Castells para os países

centrais. Que os problemas urbanos, por mais graves e generalizados que sejam,

não chegam a motivar os trabalhadores para se organizarem separadamente para

duas lutas “independentes”. E que apenas os trabalhadores de empregos mais

precários, que tradicionalmente não se organizam de outras formas, como em

sindicatos, formam e participam dos movimentos sociais urbanos.

Consequentemente, a caracterização dos MSUs como parte das lutas relativas à

reprodução da FT ou ao “local de viver” parece, no mínimo, insuficiente ou

incompleta para descrever esses movimentos, pois isto seria descrevê-los sem falar

sobre os sujeitos sociais e políticos que os constituem e neles se constroem.

Ao definir os MSUs como movimentos dos trabalhadores pobres que têm a

cidade e as políticas urbanas como objeto de suas lutas, ter-se-ia uma perspectiva

menos restritiva da que quando se fala do espaço de viver ou da reprodução da

força de trabalho. Afinal, a cidade capitalista não é apenas local de viver (e de

consumo), e as políticas urbanas interferem (para muitos) também nas suas

possibilidades e condições de trabalho.

De fato, outra chave de leitura sobre essa questão poderia ser explorada:

Seria um questionamento de cunho mais teórico sobre a própria definição de

118 Seriam expressões desse sentimento as seguintes falas colhidas de pessoas que moram em comunidades pobres do Rio de Janeiro: “Mesmo se fosse pequenininha, meu sonho é ter a minha casinha” (s/n 3/2010); “quem me dera ter tido uma creche pra deixar minhas filhas, mesmo que não tivesse muita coisa, era melhor do que elas ficarem sozinhas em casa” (J., moradora da Vila Autódromo, 4/2012) “eu esperei tanto, queria ser atendida, por uma enfermeira já tava bom, né!” (L., moradora de Mesquita, Região Metropolitana do Rio, 9/2013).

Page 123: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

123

“cotidiano” que sustenta a identificação do local de viver como local de consumo.

Ora, essa definição de vida cotidiana e de espaço de viver não seria uma definição

ideológica, que não leva em conta a existência de classe sociais? Afinal, não haveria

diferenças entre o que é vida cotidiana e espaço de viver para burgueses e para

trabalhadores? O cotidiano e o local de viver dos trabalhadores não são feitos

também de trabalho? A vida do trabalhador, mesmo nos espaços-tempo livres, não é

dominada pelo trabalho?

A opção perseguida nessa tese, por questionar a separação entre local de

viver e local de trabalhar a partir dos significados que os MSUs e seus integrantes

dão a esses espaços e a essa separação, não se contrapõe nem é excludente ao

citado questionamento teórico sobre a noção mesma de cotidiano e de local de

viver.

Dessa forma, nem toda luta urbana seria considerada necessária ou

exclusivamente uma luta por melhores condições de reprodução da FT. E

caracterizar esses movimentos como expressões dos trabalhadores mais pobres

(que por suas condições de trabalho precárias e instáveis não participam de

sindicatos e estão entre os que mais sofrem com as desigualdades urbanas), parece

ser essencial para se descrever como atuam e se constituem os MSUs, suas formas

de organização, prioridades de luta e suas relações com outros movimentos de

trabalhadores.

Olhando por outro ângulo para essa questão, mais uma pergunta que se pode

fazer é: todas as lutas relativas à reprodução da força de trabalho são lutas

urbanas? As manifestações contra a inflação, ou mais especificamente contra o

aumento dos preços dos alimentos, são manifestações por melhores condições de

reprodução da força de trabalho (FT), mas devem ser consideradas lutas urbanas?

Considerando que essas manifestações e campanhas tinham como mote críticas e

propostas de mudanças na política econômica e na defesa da reforma agrária,

seriam então lutas urbanas?119

119 Manifestações com esse tema foram realizadas nos últimos anos tendo à frente os movimentos ligados à Via Campesina. No Rio de Janeiro, algumas dessas manifestações foram articuladas na PMS e dialogavam com datas, como o dia 8 de Março, com ocupações de supermercados etc.

Page 124: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

124

Essas perguntas - e exemplo - reforçam os questionamentos sobre a

identificação das lutas e movimentos urbanos como relativos à reprodução da FT.

Afinal, do mesmo modo que nem toda luta urbana seria necessariamente por

melhores condições de reprodução da FT, aparentemente, nem toda luta por

melhores condições de reprodução da FT seria uma luta especificamente urbana.

Assim sendo, a definição de lutas urbanas como relativas à reprodução da FT,

apesar de favorecer determinadas reflexões, pode ser considerada um tanto

imprecisa.

Com relação à descrição dos MSUs como expressão dos trabalhadores mais

pobres, um exemplo interessante para reflexão é a forma como se dá a luta pela

apropriação do fundo público. Como já foi visto, o fundo público é usado tanto para

garantir as condições de acumulação do capital quanto para a reprodução da força

de trabalho. Se observada na escala local, essa é uma típica questão urbana. No

Rio de Janeiro, esse tema foi abordado em diversas lutas, manifestações e

campanhas promovidas através da PMS. Em geral, segundo o conjunto de atores

que participam desse espaço, os recursos públicos, ao invés de serem usados para

concessão de isenções fiscais para os investimentos capitalistas, na construção de

estádios para a Copa da FIFA ou para o pagamento dos juros da dívida pública “aos

banqueiros e rentistas”, deveria ser usado para melhoria dos serviços e

equipamentos públicos de transportes, saúde, educação, entre outros serviços que

atendem os trabalhadores, bem como em contratações e aumentos salariais para os

funcionários públicos.

Os movimentos sociais urbanos nunca discordaram desse posicionamento

geral na/da PMS, mas sempre fizeram questão de reforçar ou especificar alguns

aspectos dessa posição em favor do uso do fundo público na reprodução da FT.

Segundo eles (em suas intervenções na PMS), não basta aumentar verbas para

saúde e educação, tem que abrir posto e escola de qualidade nas favelas e

periferias. Não basta lutar contra as perdas de direitos dos trabalhadores dessas

áreas (que ocorrem principalmente com as terceirizações e privatizações), mas

melhorar também as condições dos “trabalhadores sem direitos”.

Não basta melhorar serviços de água, esgoto, coleta de lixo, luz ou

transportes, é necessário que eles sejam gratuitos ou tenham algum tipo de tarifa

social, para que possam ser usufruídos pelos mais pobres e não se tornem motivos

Page 125: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

125

para novas dívidas e mesmo para processos de aburguesamento de áreas de

moradia popular.

Essa observação sugere que a luta pela apropriação do fundo público é uma

típica luta relativa à reprodução da força de trabalho e, assim, é assumida por uma

série de movimentos e entidades (sindicatos, ONGs, partidos de esquerda e MSUs).

Já o posicionamento específico dos MSUs nessa questão sugere que esses não são

movimentos exclusivamente de luta por melhores condições de reprodução da FT, e

nem mesmo apenas por questões urbanas. Sugere que são, na prática, movimentos

em defesa dos trabalhadores mais pobres das cidades que, em meio às

reivindicações gerais por melhores condições de reprodução da FT e de vida nas

cidades, se posicionam especificamente em favor desse segmento.

As discussões sobre o problema da habitação também apresentam traços

similares aos das discussões sobre o uso do fundo público. Visto que a crise da

moradia é estrutural no capitalismo e que as respostas a esse problema são muito

variadas, os MSUs também costumam afirmar posições sobre essa questão que

diferem da abordagem geral do conjunto dos movimentos e entidades participantes

da PMS-RJ. No geral, outros movimentos e entidades falam da necessidade de

investimentos públicos em moradia ou, mais particularmente, em moradia popular de

qualidade. Já as falas dos MSUs apontam que não basta defender o uso de

recursos para construção de casas, mas é preciso que essas casas sejam em

regiões com infraestrutura urbana e possibilidades de trabalho (preferencialmente

nas áreas centrais)120 e que atendam principalmente as famílias que recebem de

zero a três salários mínimos. Além de frisarem a importância da localização dessas

moradias e dessas atenderem aos mais pobres, costumeiramente se posicionam

também contra a cobrança de qualquer taxa para aquisição dessas casas (repetindo

que “moradia não é mercadoria”) e muitas vezes defendem a concessão do direito

de uso aos moradores das ocupações ou de áreas e casas populares, tentando

evitar a reprodução da lógica (e da ideologia) da propriedade privada em suas lutas

por moradia e nos espaços por eles conquistados121.

120 MSUs, como a CMP e o MNLM, em conjunto com seus aliados (intelectuais, ONGs etc) chegaram a fazer, nos anos 2000, uma série de atividades, seminários, materiais de divulgação e manifestações com o lema “Moradia é central”, indicando a centralidade desse tema e fazendo referência à importância da luta por moradia (e defesa das ocupações) nas áreas centrais das cidades. 121 Tanto o MNLM quanto a CMP, entre vários outros movimentos sociais urbanos (e mesmo rurais como o MST), defendem que as ocupações sejam regularizadas através da concessão real de direito

Page 126: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

126

Em consequência dessas primeiras observações, pode-se questionar também

a ideia de que essa separação de lutas é funcional ao capital por ajudar a tornar

“difuso o descontentamento dos trabalhadores”. Esse raciocínio parece mais

poderoso se forem os mesmos trabalhadores a participarem das duas lutas (de dia

no local de trabalho, de noite no local de viver). Mas, se são trabalhadores

diferentes, essa separação terá como consequência dificultar a exacerbação das

tensões e conflitos de classe? Aliás, haveria mesmo sentido em falar dessa

separação de lutas?

O mundo do trabalho nas cidades é muito heterogêneo: trabalhadores da

indústria, do setor de serviços; de empresas privadas ou funcionários públicos,

formais e informais; desempregados, aposentados; de tempo integral ou parcial;

assalariados, autônomos, com baixos e altos salários, diferentes níveis de

escolaridade, hierarquias etc.. Tal heterogeneidade cresceu e ganhou visibilidade

com o processo de precarização do trabalho visto nos últimos 20 anos de políticas

neoliberais e reestruturação produtiva. No Brasil, por conta da precarização das

relações de trabalho e da estrutura sindical corporativa - da qual muitos sindicatos

“de carimbo” são “filhotes” e à qual sindicatos e centrais sindicais historicamente

mais combativos se adaptaram - significativa parcela trabalhadores não pode

participar dos sindicatos122, não havendo, porém, quaisquer restrições para participar

dos MSUs123.

Como já visto, os MSUs são compostos, majoritariamente, por pessoas

oriundas dessa parcela dos trabalhadores, e essa composição influencia

diretamente as políticas e prioridades dos MSUs. Não obstante as questões

levantadas sobre a separação entre “local de trabalhar” e “local de viver” e sobre o

objeto de luta dos MSUs, examinar as relações entre os MSUs e outros movimentos

de uso (garantindo assim o direito de morar e mesmo de transmissão da casa como herança, mas não o de vender) ao invés da titulação de propriedade dos moradores. 122 Ver: ANTUNES (2004); MARQUES (2004); GIANNOTTI e LOPES NETO (1990; 1991; 1993); BOITO JR (1991). 123 A forma como o MTST se “apresenta” nas resoluções do seu Congresso Nacional é bastante ilustrativa dessa questão: “a organização sindical, no espaço de trabalho, tem tido enormes dificuldades em organizar um segmento crescente de trabalhadores (desempregados, temporários, terceirizados, trabalhadores por conta própria, etc)”. Consequentemente, “o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil e em outros países tem se organizado e lutado é o território”. Então conclui: “é aí que o MTST se localiza: Somos um movimento territorial dos trabalhadores” (FONTE: site do MTST).

Page 127: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

127

de trabalhadores é uma condição para se qualificar a luta dos MSUs e para a

reflexão sobre o fazer-se da classe trabalhadora.

Tanto a pesquisa de campo - que permitiu a observação de manifestações

como as do dia 1º de Maio e das relações entre os MSUs e outros movimentos dos

trabalhadores nos fóruns de articulação de movimentos quanto o exame dos

resultados de como a imprensa sindical aborda a cidade e os conflitos urbanos

(MARQUES, 2005), indicam que através de suas lutas, os MSUs pautam, em

alguma medida, os sindicatos (e também partidos e ONGs) a respeito dos problemas

urbanos e das condições de vida dos trabalhadores de empregos precários. A

pesquisa realizada em jornais sindicais indicou uma expressiva presença de

matérias sobre conflitos urbanos em suas pautas124:

Sabendo que o número de matérias sobre políticas públicas foi 3,74 vezes maior do que o de matérias sobre conflitos urbanos, chama atenção que no caso dos temas Habitação e Camelôs e Trabalhadores de Rua essa relação se inverta. Sobre Habitação, foram publicadas 30 matérias ao todo, sendo que 23 referiam-se a conflitos e apenas 7 a políticas públicas. Sobre Camelôs e Trabalhadores de Rua foram 8 matérias, sendo 5 motivadas por conflitos e 3 pela discussão de políticas públicas. O assunto Favelas, sobre o qual foram publicadas 19 matérias, 10 referindo-se a políticas públicas e 9 a conflitos urbanos, também chama atenção pelo mesmo motivo. No caso dos temas Favelas e Camelôs e Trabalhadores de Rua, pode-se sugerir que a maioria dos trabalhadores representados por esses sindicatos nunca tenham sido camelôs ou moradores de favelas. Se se admite esta hipótese, mesmo sem ter os meios de comprová-la, ter-se-ia que a imprensa sindical estaria abordando esses assuntos em função de sua importância política geral, e não como um assunto que atinja o dia-a-dia da maioria dos trabalhadores da “base” dos sindicatos. Esses temas assumiriam então maior importância política conforme a ocorrência de conflitos, e assim suscitariam matérias. (...) Cabe ainda destacar que a grande maioria das matérias sobre conflitos referentes à Habitação tratava de conflitos, protestos e ocupações organizadas por movimentos como o dos sem-teto, da CMP, FLP etc. Essa constatação leva a duas conclusões. A primeira diz respeito à importância política desses movimentos e conflitos, graças aos quais o tema Habitação entra na pauta da imprensa sindical e,

124 Essa pesquisa foi realizada para minha dissertação de mestrado, sobre “Cidade e Conflitos Urbanos na Imprensa Sindical Carioca: 1995 – 2002”, apresentada ao IPPUR/UFRJ em 2005. Foram analisados os jornais e boletins de seis entidades sindicais cariocas (SINTEL; SENGE-RJ, SINTRASEF; SINDIPETRO-RJ; SINTUFRJ e; CUT-RJ) entre os anos de 1995 e 2002. Todas as 590 matérias encontradas sobre cidade e conflitos urbanos foram classificadas conforme o objeto da luta em 12 (doze) temas e, posteriormente, divididas entre aquelas que falavam sobre a cidade e as políticas urbanas e as que abordavam os conflitos e movimentos sociais urbanos.

Page 128: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

128

consequentemente atinge uma grande parcela dos trabalhadores125. (MARQUES, 2005, p. 107-108)

Segundo essa pesquisa, pode-se concluir que os sindicatos discutiam ou

abordavam temas ligados a essa fração “mais pobre e sem direitos” da classe

trabalhadora quase que exclusivamente a partir da ocorrência de lutas e conflitos e

conforme eles se organizam e se expressam em MSUs. Mesmo no caso da

habitação, problema central nas cidades e que atinge uma enorme parcela dos

trabalhadores (inclusive aqueles que se organizam em sindicatos), esse tema só foi

pautado na imprensa sindical conforme a existência e lutas dos MSUs.

A participação dos movimentos sociais urbanos (organizados) nos conflitos

urbanos não interferia apenas na quantidade de matérias publicadas na imprensa

sindical, mas também qualitativamente, influenciando significativamente como eram

feitas essas matérias sobre os diferentes conflitos urbanos:

A quantidade de entrevistas publicadas com representantes de movimentos e entidades como o MTST, a FLP ou a CMP, que foram protagonistas de conflitos urbanos ligados ao tema Habitação, se for comparada com as poucas entrevistas de “mata-mosquitos”, motoristas de vans ou camelôs, que também protagonizaram grande quantidade de conflitos, contribui para reforçar a hipótese aqui levantada sobre a proximidade dos sindicatos e da imprensa sindical com os interlocutores políticos mais organizados126. Como nem estes movimentos e entidades, apesar de sua organização, costumam ter voz na grande imprensa, ao dar-lhes voz, a imprensa sindical os reconhece como atores políticos e os legitima. Segundo esta hipótese, poder-se-ia concluir que os sindicatos publicam mais matérias (e nestas mais entrevistas) com os movimentos mais organizados e politizados, como os de luta pela moradia. Publicam menos matérias (e nestas menos entrevistas) com os movimentos menos organizados, como os de camelôs. E, praticamente, não publicam matérias (e nem entrevistas) acerca dos conflitos espontâneos e desorganizados, como os protestos coletivos contra atropelamentos ou contra tiroteios envolvendo forças policiais. (MARQUES, 2005, p. 122-123)

A constituição de movimentos sociais distintos, urbanos de um lado e

sindicais do outro lado, poderia até ser considerada uma decorrência da cisão

capitalista entre local de trabalhar e local de viver. Mas a consequência da existência

125 “A tiragem dos jornais das seis entidades pesquisadas, se somadas, atingia mais de 100 mil exemplares e a periodicidade variava entre semanal e bimestral”. (MARQUES, 2005, p.108) 126 “Registra-se que nestes casos a comparação é muito significativa, já que motoristas de vans, mata-mosquitos e camelôs possuíam algum tipo de organização e protagonizaram conflitos muito

Page 129: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

129

dessas distintas formas de organização no caso do Rio de Janeiro de hoje é que os

MSUs organizam uma parcela dos trabalhadores que não se organiza em sindicatos.

E mais: é a existência desses movimentos e suas lutas que faz com que os

sindicatos “olhem” para algumas das principais contradições urbanas e falem (e às

vezes até mesmo participem) dessas lutas e reconheçam seus representantes como

interlocutores e aliados políticos. Em outros termos, essa dualidade não cinde os

trabalhadores em dois, mas contempla diferentes segmentos e frações da classe

trabalhadora e, em certa medida, propicia um diálogo e encontro entre eles.

A respeito das formas dos conflitos em torno do ambiente construído

analisadas por Harvey (e da consciência e posicionamento individuais, comunitários

e de classe), assim como sobre a caracterização das lutas urbanas como “contra o

poder monopolístico da propriedade privada”, cabe dizer que apenas a análise dos

processos históricos pode iluminar essas questões. Se uma análise mais estrutural

nos permite dizer que a luta urbana é contra o poder monopolístico da propriedade

privada, apenas o exame sobre os discursos e a cultura política desses movimentos

pode mostrar se as representações (ou a consciência) dos trabalhadores é de que

essa é uma luta realmente contra a propriedade privada. Afinal de contas, uma coisa

é afirmar que os conflitos urbanos expressam e têm na sua origem o poder

monopolístico da propriedade privada, outra coisa é tirar como consequência que os

movimentos têm como alvo e objeto esta dimensão estrutural do capital e da cidade

capitalista. Nessas operações, o teórico projetaria no sujeito suas análises abstratas

e, um pouco hegelianamente, pensaria a história como manifestação dos conceitos.

A ênfase dada às lutas pelo conjunto dos movimentos que participavam da

PMS-RJ contra as privatizações seria um indício de um posicionamento contrário à

propriedade privada? E as lutas mais específicas contra a privatização da cidade,

do espaço e de equipamentos públicos: do Maracanã e seu entorno, do Aterro do

Flamengo, da Zona Portuária etc, seriam indícios de um posicionamento desse tipo

ou seriam lutas (apenas) contra os impactos desses projetos, como as remoções?

Especificamente sobre os MSUs, palavras de ordem dizendo que “moradia não é

mercadoria” seriam indícios de um posicionamento contrário à propriedade privada?

As ocupações em terrenos e prédios vazios, públicos ou privados, são ações

mais organizados que os protestos espontâneos motivados, por exemplo, por atropelamentos ou atrasos nos ônibus e trens”. (MARQUES, 2005, p. 122)

Page 130: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

130

práticas que expressam alguma forma de condenação à propriedade privada ou de

crítica à falta de função social dessas propriedades?127 Nas lutas contra os despejos,

o argumento que o direito à propriedade não deve se sobrepor ao direito à moradia,

ou de que a propriedade precisa cumprir função social são recorrentes. Mas seriam

indicativos de um questionamento mais profundo ao “poder monopolístico da

propriedade privada” ou apenas discursos visando responder e se contrapor à

defesa da propriedade feita pela mídia, legitimar as ocupações e conquistar os

imóveis? A reinvindicação de que os moradores das ocupações recebam a

concessão do direito de uso para moradia parece ser o mais prático e significativo

posicionamento crítico dos MSUs sobre a propriedade privada.

Esses exemplos, mesmo com as dúvidas que suscitam, sugerem que as

práticas e discursos dos MSUs expressam, de alguma forma e em alguma medida,

críticas ou questionamentos ao se tratar como “sacrossanto o princípio da

propriedade privada”. Não obstante, dizer que a luta dos MSUs que estão sendo

examinados nesse trabalho é contra a “poder monopolístico da propriedade privada”

seria uma afirmação desprovida de sentido e sustentação empírica. Afinal, a luta

pela abolição da propriedade privada não aparece nos discursos e materiais

impressos por esses movimentos, não é objeto de manifestações ou campanhas

nem é uma bandeira que eles reivindiquem em fóruns como a PMS128.

Quanto às formas dos conflitos analisadas por Harvey, o posicionamento do

tipo comunitário pode ser comparável ao corporativismo no meio sindical. Tanto um

quanto o outro podem ser considerados empecilhos ao desenvolvimento de uma

identidade ou consciência de classe. Contudo, identidade e consciência de classe

nascem das experiências reais de lutas e posicionamentos políticos. E tantas vezes

127 O maior número de ocupações em terrenos e prédios públicos do que em privados seria uma forma de zelo à propriedade privada? Ou não passa de uma estratégia para conquistar imóveis para moradia? No Rio de Janeiro foram feitas algumas ocupações em espaços privados – ocupações Federação dos Tamoios - ou pertencente a uma sociedade de economia mista - Quilombo das Guerreiras. A Manoel Congo, como a Serra do Sol, também ocupou primeiro um imóvel privado, antes de conquistar o prédio do INSS. Nesses quatro casos aconteceram despejos. Ocupar – e permanecer - mais em prédios públicos, não seria então uma opção ideológica dos MSUs nem uma forma de zelo ou defesa da propriedade privada, mas uma condição da luta por moradia nesse período. 128 Vários MSUs se declaram movimentos de luta pelo socialismo ou dizem explicitamente que esse é o objetivo principal de suas lutas. CMP, MNLM, MTST, Frente de Resistência Urbana, MTD e MTD pela Base são alguns desses movimentos (cf. Capítulo I). Se autodeclarar socialista, por mais simbólico que seja em termos de posição político-ideológica de seus dirigentes e militantes, não faz das lutas dos MSUs uma luta pelo socialismo nem pelo fim da propriedade privada.

Page 131: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

131

são dos processos e contradições experienciados criticamente, em lutas

coorporativas ou comunitárias, que nascem as identidades e consciência de classe.

Além do mais, é comum, principalmente entre os trabalhadores mais pobres

que compõem as bases dos MSUs, a adesão às lutas a partir de perspectivas mais

imediatistas, visando obter melhorias das suas condições de vida a curto prazo. Uma

vez inseridos nessas lutas, integrando um movimento organizado, participando de

cursos de formação política ou interagindo com militantes mais experientes, muitos

começam a rever suas antigas maneiras de pensar e seus valores, como mostra o

seguinte depoimento de uma moradora de uma ocupação carioca:

Antes eu não tinha noção de nada, nada vezes nada. (...) Hoje em dia, não. Eu gosto desses cursos que fazem a gente ficar mais preparado pra estar nos lugares, pra ter resposta pras coisas. A gente tá aprendendo bastante. Ainda falta muita coisa pra gente aprender. Mas eu acredito que, como a nossa luta é uma luta importante, faz com que a gente esteja participando de mais cursos pra estar mais preparado129.

E, assim, através desse processo, se abrem para novas experiências,

aprendizados e constroem novas relações que, dependendo da conjuntura e do

desenrolar das lutas sociais, podem gerar identidade e consciência de classe.

Esse primeiro diálogo teórico apontou que a caracterização de movimentos

sociais urbanos como relativos ao “local de viver” ou às lutas por melhores

condições de reprodução da força de trabalho é insuficiente ou inadequada para se

entender toda a complexidade desses movimentos. A própria divisão entre “local de

trabalhar” e “local de viver” não seria tão marcante no Brasil quanto aparece nas

análises de Harvey e Castells, e seria também passível de questionamento teórico.

Apontou também que os MSUs organizam um segmento específico dos

trabalhadores - pobres, com empregos precários e instáveis e que não participam de

sindicatos – e que, normalmente, estes fazem dos movimentos sociais urbanos sua

única forma de organização. Por influência dessa base social, os MSUs lutam por

diversas questões, algumas delas relativas ao mundo do trabalho, e suas propostas

e palavras de ordem para temas e lutas como habitação ou o uso do fundo público

também são marcadas por essa influência. Quando se relacionam com outros

movimentos sociais, com seus aliados ou em fóruns de articulação de lutas, além de

129 Entrevista concedida por R, moradora da Ocupação Manoel Congo, em 10/10/2010.

Page 132: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

132

pautarem a vida nas cidades em suas várias dimensões, os MSUs se diferenciam

pela defesa de políticas que priorizam os mais pobres e, por vezes, essas passam a

ser divulgadas ou apoiadas por outros movimentos e segmentos dos trabalhadores.

Pode-se então dizer que a ação dos MSUs, em vez de separar, favorece o diálogo e

o encontro entre diferentes segmentos dos trabalhadores em movimento.

Por fim, se existem em maior ou menor grau cisões entre lutas no “local de

viver” e no “local de trabalhar”, ou cisões relativas à produção e à reprodução da

força de trabalho, e se essas poderiam se tornar empecilhos para o desenvolvimento

de identidade e consciência de classe, por outro lado, as condições de vida nas

cidades, a aglomeração dos trabalhadores, a ocorrência de diversas lutas, conflitos e

a organização dos trabalhadores em movimentos sociais nos grandes centros

urbanos poderiam ser vistos também como fatores que favorecem o

desenvolvimento dessa consciência, como afirma Engels na citação abaixo:

Se a concentração da população tem um efeito estimulante e favorável sobre a classe possuidora, ela ainda faz progredir mais rapidamente a evolução da classe trabalhadora. Os trabalhadores começam a sentir que constituem uma classe na sua totalidade. Tomam consciência de que, fracos isoladamente, todos juntos representavam uma força. (...) As grandes cidades são o centro do movimento operário (...) foi aí que saíram as associações operárias, o cartismo e o socialismo (ENGELS, 1975, p.165).

3.2 O 2º diálogo: movimentos sociais urbanos e classes sociais

Não é objetivo desse trabalho uma discussão mais exaustiva sobre o conceito

e os usos da categoria classe social. No entanto, algumas considerações são

necessárias para explicitar a forma como esse conceito é utilizado. Já com relação à

pertinência e maneiras de uso para analisar os movimentos sociais urbanos, será

preciso uma atenção maior. Do mesmo modo, a noção de fazer-se da classe

trabalhadora exige ser revisitada em busca de um detalhamento que possa iluminar

como se dá esse fazer-se e se e como os movimentos sociais urbanos participam

dele. Apresenta-se agora, à luz do que foi visto no Capítulo I, as principais questões

que serão objeto de reflexão, na busca por aprimorar o entendimento da relação

entre classes sociais e movimentos sociais urbanos.

Page 133: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

133

Além de já ter sido objeto de maior prestígio, o termo “classe social” foi e é

usado de maneiras muito diversas. Muitos autores de distintas matizes teóricas

utilizam este conceito, mas foi a partir das análises de Marx e Engels que as ciências

sociais o incorporaram130. Mesmo entre os autores marxistas há significativas

diferenças na aplicação deste conceito. Duas correntes marxistas principais podem

ser identificadas: uma daria mais ênfase às estruturas sociais e a posição que os

grupos de indivíduos ocupam no processo de produção; a outra corrente enfatizaria

mais o aspecto político, no qual as classes são sujeitos sociais e históricos, que têm

experiências comuns, identidade e que lutam por seus interesses frente às outras

classes sociais.

As condições econômicas transformam primeiro a massa da população do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Essa massa é, portanto, já uma classe no que se opõe ao capital, mas não é ainda uma classe para si. Na luta (...) essa massa se unifica, e se constitui como uma classe para si. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta de classe contra classe é uma luta política. (MARX, 1976 apud MATTOS, 2006, p.164)

Marx deixa em aberto duas possibilidades de entendimento sobre o conceito

de classes sociais nas quais se apoiam as referidas correntes marxistas: uma classe

que “não é ainda classe para si” que poderia ser interpretada como fruto da divisão

de trabalho ou das “condições econômicas”; e uma “classe para si” constituída na

ação, na luta política de classe contra classe.

Ridenti (1994), em seu trabalho Classes Sociais e Representação, sugere que

a ausência de definição mais formal de classes em Marx “revela que elas são

processos em andamento, não enquadráveis em fórmulas, mas determinadas pela

luta de classes” (RIDENTI, 1994, p. 13). Ao examinar esses dois entendimentos

sobre classes sociais, Ridenti, provocativamente cita, entre outros, Lenin, um grande

líder político e revolucionário – e não um economista ou acadêmico distante das

lutas sociais - para apresentar a noção de classe social que enfatiza as estruturas do

modo de produção:

130 A partir de então, segundo Mattos (2006), mesmo quando divergindo do marxismo, a maioria dos cientistas sociais teve nos marxistas os interlocutores e a referência central no debate sobre o uso deste conceito.

Page 134: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

134

Lenin define as classes como: “grandes grupos de homens que se diferenciam pelo lugar que ocupam num sistema historicamente determinado de produção social, por suas relações com os meios de produção (na maioria das vezes estabelecidas e formuladas por leis), pelo papel que desempenham na organização social do trabalho, e consequentemente, pelo modo como obtêm a parte da riqueza social de que dispõem e pelo tamanho desta”. (RIDENTI, 1994, p. 46)

Bourdieu (2007a), que também trabalha com o conceito de classes sociais,

critica os marxistas por conferirem demasiada (ou quase exclusiva) ênfase nos

aspectos econômicos na definição de um modo de produção – o que os levaria a

ignorar subcampos como o das relações de produção cultural - e na identificação

das estruturas sociais fundamentais para o funcionamento da sociedade. Ele

constrói um espaço social no qual posiciona pessoas e grupos conforme seus

volumes de capital econômico e de capital cultural. A partir da proximidade nesse

espaço social, Bourdieu identifica as classes advertindo, no entanto, que essas são

classes teóricas, classes “no papel”:

O espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição131 nas distribuições estatísticas de acordo com dois princípios de diferenciação (...) o capital econômico e o capital cultural. (...) O espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomada de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus).132 (BOURDIEU, 2007a, p. 19-21-22) Mas a própria validade da classificação arrisca a indução a ver classes teóricas, agrupamentos fictícios que só existem no papel, por uma decisão intelectual do pesquisador, como classes reais, constituídos como tais na realidade. (BOURDIEU, 2007a, p. 24)

Para Thompson (2001), o problema residiria numa certa interpretação da

teoria marxista na qual classe e consciência de classe são “derivadas” das relações

de produção:

131 Para Bourdieu, além da posição do indivíduo ou grupo no espaço social, deve-se também, examinar-se sua trajetória: “A posição de um indivíduo ou de um grupo na estrutura social não pode jamais ser definida apenas de um ponto de vista estritamente estático, isto é, como posição relativa (superior, média ou inferior) numa dada estrutura e num dado momento. O ponto de trajetória, que um corte sincrônico apreende, contêm sempre o sentido do trajeto social. Logo, sob pena de deixar escapar tudo o que define concretamente a experiência da posição como etapa da ascensão ou de um descenso, como promoção ou regressão” (BOURDIEU, 2005, p. 7-8). 132 Para Bourdieu: “A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (...) O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco de escolha de pessoas, de bens, de práticas. (...) São princípios geradores de práticas distintas e distintivas”. (BOURDIEU, 2007, p. 21-22)

Page 135: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

135

Muito da teoria marxista e, igualmente, embora em menor parte, muito da historiografia marxista foi distorcido pelo exame da classe segundo as categorias de “base” e “superestrutura”. As forças e as relações produtivas nos forneceriam a “base” (que se supõe real e objetiva), e delas a consciência de classe emergiria como uma superestrutura “derivada. (THOMPSON, 2001, p 277 - 278)

Para Bourdieu, a classe “recortada” teoricamente, conforme a proximidade

dos agentes no espaço social, só tem existência teórica. É uma “classe provável”,

pois essa proximidade favorece ações semelhantes, tomadas de posições

semelhantes e a mobilização, estando assim predispostas a se tornarem “realmente

uma classe”, “no sentido marxista do termo”.

Com base no conhecimento do espaço das posições, podemos recortar classes no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes. Esta classe no papel tem a existência teórica que é das teorias: enquanto produto de uma classificação explicativa, perfeitamente semelhante à dos zoólogos ou dos botânicos, ela permite explicar e prever as práticas e as propriedades das coisas classificadas – e, entre outras, as das condutas de reunião em grupo. Não é realmente uma classe, uma classe atual, no sentido de grupo e de grupo mobilizado para a luta; poder-se-ia dizer, em rigor, que é uma classe provável, enquanto conjunto de agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes. (BOURDIEU, 2007b, p. 136) Isso não significa que elas constituam uma classe, no sentido de Marx, isto é, um grupo mobilizado por objetivos comuns e particularmente contra uma outra classe. As classes teóricas que construí, mais do que qualquer outro recorte teórico, mais, por exemplo, do que os recortes conforme sexo ou etnia etc, estão predispostas a se tornarem classes no sentido marxista do termo (BOURDIEU, 2007a, p. 25)

Thompson enfatiza a ação, o conflito, o compartilhar de valores e

experiências e a disposição para se comportar como classe como aspectos

essenciais para a existência, o “acontecimento” de uma classe.

Classe é uma formação social e cultural (frequentemente adquirindo expressão institucional) que não pode ser definida abstrata ou isoladamente, mas apenas em termos de relação com outras classes; e, em última análise, a definição só pode ser feita através do tempo, isto é, ação e reação, mudança e conflito. Quando falamos de uma classe, estamos pensando em um corpo de pessoas, definido

Page 136: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

136

sem grande precisão, compartilhando as mesmas categorias de interesses, experiências sociais, tradição e sistema de valores, que tem disposição para se comportar como classe, para definir, a si próprio em suas ações e em sua consciência em relação a grupos de pessoas, em termos classistas. Mas classe, mesmo, não é uma coisa, é um acontecimento. (THOMPSON, 2001, p 169)

Aqui, classe só pode ser definida a partir da ação e da relação com outras

classes: ela existe se e porque luta e não luta porque existe. Segundo essa

perspectiva, as classes sociais não podem ser vistas fora do processo histórico, pois

é neste que as pessoas compartilham interesses, valores e vivem experiências

comuns, tanto em relação às lutas políticas quanto às relações sociais e econômicas

(condicionamentos), podendo assim apresentar disposição para se comportar como

classe, com identidade e consciência classistas. Elas são processo histórico e não

um dado estrutural.

Suponho que ninguém possa pensar, por tudo isso, que eu corrobore a ideia de a formação da classe ser independente de determinações objetivas, nem que eu sustente que classe possa ser definida como simples fenômeno cultural, ou coisa semelhante. (...) A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do “conjunto de suas relações sociais”, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural. (...) Na história, nenhuma formação de classe específica é mais autêntica ou mais real que outra. As classes se definem de acordo com o modo como tal formação acontece efetivamente. (THOMPSON, 2001, p 277)

3.2.1 O fazer-se da classe trabalhadora

A classe, então, não é “derivada” da estrutura, mas, como Thompsom chama

atenção, depende de como são experienciadas as relações de produção e as

relações sociais como um todo. Assim, a classe acontece conforme os

condicionamentos estruturais, mas também como resultado da ação dos homens.

“Ela” depende de ser feita. Ao explicar porque adotou o título de fazer-se da classe

trabalhadora para sua principal obra, Thompson é claro:

Fazer-se, porque é um estudo sobre um processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos. A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava

Page 137: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

137

presente ao seu próprio fazer-se. (...) A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. (THOMPSON, 1987, p. 10)

Thompson enfatiza que a classe só pode ser observada como parte do processo histórico:

Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição. (THOMPSON, 1987, p. 12)

Para Bourdieu, a forma como os homens percebem as relações sociais e

entendem o próprio espaço social depende de suas posições nesse espaço. Para

uma classe no papel se tornar uma classe real, mobilizada, dependeria do trabalho

político feito para constituí-la.

Não se passa da classe-no-papel à classe “real” a não ser por um trabalho político de mobilização: a classe “real”, se é que ela alguma vez existiu “realmente”, é apenas a classe realizada, isto é, mobilizada, resultado da luta de classificações como luta propriamente simbólica (e política) (...) O que existe é um espaço social, um espaço de diferenças, no qual as classes existem de algum modo em estado virtual, pontilhadas, não como um dado, mas como algo que se trata de fazer. (...) O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto de vista, princípio de uma visão assumida a partir de um ponto situado no espaço social, de uma perspectiva definida em sua forma e seu conteúdo pela posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a realidade primeira e última já que comanda até as representações que os agentes sociais podem ter dele. (BOURDIEU, 2007a, p. 26-27)

Ao que parece, o nó da questão está em como se daria esse fazer da

classe133. Afinal, segundo Bordieu, como o espaço social “comanda” até mesmo as

133 Aqui se identificou no (como) fazer-se da classe o nó a ser dissolvido. Porém, para muitos marxistas a questão classe/estrutura x classe/agência continua sendo polêmica. Ridenti (1994) apresenta, por exemplo, o rico debate entre Perry Anderson e Thompson sobre essa questão. Sobre esse debate, ver também Thompson (2001).

Page 138: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

138

representações que se pode ter dele, seria preciso uma ação (externa, fruto de uma

aliança com os intelectuais e detentores de capital cultural), um acontecimento que

coloque em crise as instituições sociais, e/ou um trabalho político que possa

favorecer o desenvolvimento, entre os dominados, de uma representação não

reprodutora, mas sim crítica, sobre esse mesmo espaço social.

Os que ocupam as posições dominadas no espaço social estão também em posições dominadas no campo de produção simbólica e não se vê de onde lhes poderiam vir os instrumentos de produção simbólica de que necessitam para exprimirem o seu próprio ponto de vista sobre o social, se a lógica própria do campo de produção cultural e os interesses específicos que aí se geram não produzisse o efeito de predispor uma fração dos profissionais envolvidos neste campo a oferecer aos dominados, na base de uma homologia de posição, os instrumentos de ruptura com as representações que se geram na cumplicidade imediata das estruturas sociais e das estruturas mentais e que tendem a garantir a reprodução continuada da distribuição do capital simbólico”. (BOURDIEU, 2007b, p. 152) O mais importante, do ponto de vista do problema da ruptura do círculo da reprodução simbólica, está em que, na base das homologias de posição no interior de campos diferentes (...) se podem instaurar alianças mais ou menos duradouras (...) A homologia de posição entre os intelectuais e os operários da indústria – os primeiros ocupam no seio do campo do poder, isto é, em relação aos patrões da indústria e do comércio, posições que são homólogas das que são ocupadas pelos operários da indústria no espaço social tomado no seu conjunto – está na origem de uma aliança ambígua, na qual os produtores culturais, dominados entre os dominantes, oferecem aos dominados, mediante uma espécie de desvio do capital cultural acumulado, os meios de constituírem objetivamente a sua visão do mundo e a representação dos seus interesses numa teoria explícita e em instrumentos de representação institucionalizados – organizações sindicais, partidos, tecnologias sociais de mobilização e de manifestação, etc. (BOURDIEU, 2007b, p. 153-154)134

Já como visto em Thompson (assim como para outros marxistas), seria

através de uma experienciação crítica e comum dessas contraditórias relações

sociais e de produção (e dos conflitos decorrentes desse processo) que seriam

criadas as condições para a emergência e o desenvolvimento de práticas e de

identidade e consciência classistas.

134 Essa necessidade de um agente externo, de um intelectual (aliado) aos trabalhadores, como fundamento para ações classistas (lutas não exclusivamente coorporativas e econômicas, mas também política entre classes) está presente também entre os marxistas, e em formulações sobre o papel dos partidos políticos nas lutas de classes, com destaque para as reflexões de Lenin em “O que Fazer”.

Page 139: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

139

Sallum Jr., em seu artigo Classe, Cultura e Ação Coletiva, de 2005, aborda

essa questão que opõe Bourdieu e Thompson. Ele examina e compara as formas

como Bourdieu e Marx tratam essa questão e afirma que o esquema conceitual de

Bourdieu, por sugerir tanta sintonia entre “experiência social (posição e trajetória) e

habitus”, seria pouco apropriado para perceber as “fissuras” que podem favorecer a

que seja “rompido o processo circular de reprodução social” (SALLUM JR., 2005, p.

31). Diz ainda que, para Marx, a experienciação das próprias contradições do

processo de produção capitalista “abrem reiteradamente a possibilidade para o

conflito social fundado em classes”:

Elas aparecem aí como suportes de um processo contraditório, o processo de reprodução do capital. Neste processo de reprodução, a liberdade e a igualdade inerentes às relações entre os agentes da esfera da circulação de mercadorias convertem-se em seu contrário, em escravidão e desigualdade entre as classes polares do sistema. (...) Nesta interpretação de Marx, na raiz da experiência operária estão estas contradições: a liberdade que é e não é liberdade e a igualdade que é e não é igualdade, para usar a fórmula da dialética. São tais contradições e seus desdobramentos, para além das diferenças de fortuna e cultura, que abrem reiteradamente a possibilidade para o conflito social fundado em classes ou, nos termos de Marx, à luta de classes. (SALLUM JR., 2005, p. 35-36)

Em suma, não são apenas as posições e trajetórias das classes e dos atores (divergentes ou não) que explicam a possibilidade de variação das disposições de conduta inerentes a cada classe; a própria experiência social de cada classe – e especialmente a das dominadas – é, como disse antes, ambígua e dinâmica, na medida em que o sistema capitalista de classes é contraditório e cíclico. A ambiguidade introduzida na experiência das classes sociais pelas contradições do capitalismo, amplia os limites dos esquemas reflexivos de percepção e das disposições de conduta que caracterizam o habitus de cada classe social. (SALLUM JR., 2005, p. 40)

A interpretação thompsoniana da possibilidade de emergências de práticas de

classe a partir da experiência vivida pelos próprios trabalhadores, tanto em suas

relações de trabalho como no conjunto de suas relações políticas e sociais, é a

perspectiva adotada nesse trabalho.

Segundo essa perspectiva, não foi por acaso que a primeira frase do Estatuto

da Associação Internacional dos Trabalhadores, também conhecida como I

Internacional, afirmava que “a emancipação das classes trabalhadoras deverá ser

Page 140: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

140

conquistada pelas próprias classes trabalhadoras”135. A necessidade da organização

autônoma dos trabalhadores em partidos políticos próprios, que tivessem como ideal

e programa político a superação do capitalismo e a construção do socialismo era o

objetivo de Marx e da Internacional. Thompson problematizava a interpretação que

sugere a dependência dos trabalhadores com relação aos intelectuiais e, em certa

passagem, ele assim se refere aos intelectuais136 e suas pretensões de dirigirem a

classe trabalhadora:

Os intelectuais sonham amiúde com uma classe que seja como uma motocicleta cujo assento esteja vazio. Saltando sobre ele, assumem a direção, pois têm a verdadeira teoria. Essa é uma ilusão característica, é a “falsa consciência” da burguesia intelectual. Mas, quando semelhantes conceitos dominam a inteira intelligentsia, podemos falar de “falsa consciência”? Ao contrário, tais conceitos terminam por ser muito cômodos para ela. (THOMPSON, 2001, p. 281)

Essa temática da autonomia não é exclusiva da época de Marx nem dos

partidos políticos. Ela está na base de uma série de interpretaçãoes acerca dos

movimentos sociais urbanos no Brasil. Como será visto mais detidamente no diálogo

histórico apresentado a seguir, essa é considerada uma questão central na

constituição dos novos movimentos sociais que emergiram em fins dos anos 1970 e

início dos anos 1980. E, também atualmente, são vários os MSUs que reivindicam

essa autonomia e tecem críticas à participação (ou mais especifica e

recorrentemente à “hegemonia”) dos setores e militantes por eles identificados como

de classe média e/ou intelectuais em fóruns como a PMS-RJ ou o Comitê Popular da

Copa e Olimpíadas (cf. Capítulo I).

A perspectiva interpretativa aqui adotada (conforme as citações de Marx e

Thompson) compreende então: a) Que o fazer-se da classe trabalhadora por ela

135 Marx, Karl; Estatuto da Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1871, baseado em primeira versão de 1864. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos 3. São Paulo: Edições Sociais, s/d. 136 Entre os marxistas existem diferentes abordagens sobre a relação entre intelectuais e a classe trabalhadora, o que demonstra a importância desse tema. Uma das abordagens mais interessantes é proposta pelo célebre revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci. Para ele, intelectual é quem dirige (um cabo que dirige os soldados ou um chefe das ligas de assalariados agrícolas), e são eles que mantêm coeso um bloco histórico, elaboram a hegemonia da classe dominante e criam e mantêm o consenso necessário ao exercício do poder. Mas para ele, há também os intelectuais que colaboram na construção da contra-hegemonia dos dominados e na guerra de posições por eles travada, intelectuais orgânicos à classe e ao partido político da classe, partido esse que, como “príncipe moderno”, corporificaria a inteligência e vontade coletiva. (GRUPPI, 1986)

Page 141: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

141

mesmo, autonomamente, é uma possibilidade; b) Que a ênfase dada por Marx e

vista entre os militantes dos MSUs à necessidade dessa autonomia é decorrência de

suas buscas por construírem (o fazer-se) uma classe (que possa ser) efetivamente

revolucionária; c) Que autonomia não é sinônimo de isolamento nem pressupõe a

inexistência de alianças, mas sim uma elaboração própria (autônoma) sobre essas

relações; d) Que a adoção dessa interpretação, de um fazer-se autônomo como

possibilidade, não impede ou reduz a necessidade de ser examinado o papel dos

detentores de capital simbólico e cultural (intelectuais) para e na ação e organização

dos MSUs e da possível contribuição desses intelectuais no fazer-se da classe

trabalhadora no Brasil.

A relação dos movimentos sociais com militantes e entidades associadas ao

campo intelectual é um fenômeno marcante na experiência recente dos MSUs no

Rio de Janeiro (cf. Capítulo I). As redes de apoios aos movimentos e as ações

possibilitadas por essas redes constituíram importantes contribuições às lutas

urbanas cariocas e são fatores explicativos fundamentais, por exemplo, para a

organização e realização do FSU. O papel e as formas como se dá essa “aliança”

(que dependendo do ponto de vista pode ser uma ingerência) entre intelectuais e

trabalhadores pobres, expressa na existência de fóruns como a PMS e percebida

nas atividades de formação política de diversos MSUs, deve ser, portanto, objeto de

reflexão. Deve buscar iluminar o processo histórico aqui em exame e, assim,

iluminar também essa controversa questão teórica (e política).

Esse entendimento sobre classes sociais, que de uma forma ou de outra

“estão para ser feitas”, obriga que se examine, tanto entre as pessoas que atuam

nos movimentos sociais urbanos, assim como entre seus aliados, se existem

interesses, valores, costumes e experiências políticas, sociais e culturais comuns.

Obriga também que se interrogue se esses interesses, valores e experiências são

compartilhados com outros movimentos de trabalhadores. Exige, em suma, uma

leitura do funcionamento desses movimentos e suas ações e, assim, das identidades

e experiências comuns que essa participação e relação favorecem.

Consequentemente, a primeira pergunta a ser feita é se essas experiências,

identidade e consciência classistas, que longe de serem dadas a priori seriam

forjadas no processo histórico, existem ou estão sendo forjadas e, em caso positivo,

como são forjadas. A segunda pergunta deveria ser em que medida a participação

Page 142: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

142

nesses movimentos é responsável ou favorece essas experiências comuns,

identidades e consciência de classe? Ainda segundo Thompson, a resposta para

essa(s) pergunta(s) está na história, na luta de classes:

Na verdade, na medida em que é mais universal, luta de classes me parece ser o conceito prioritário. (...) classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pessoas se veem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe. Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real. (THOMPSON, 2001, p 274) Uma classe não pode existir sem um tipo qualquer de consciência de si mesma. De outro modo, não é, ou não é ainda, uma classe. Quer dizer, não é “algo” ainda, não tem espécie alguma de identidade histórica. (THOMPSON, 2001, p 279)

Se classe e consciência de classe são o último degrau, um resultado possível

do processo histórico, o objeto dessa análise (que busca apreender a relação entre

MSUs e classe trabalhadora), deve ser o próprio processo de fazer-se, deve ser a

classe em processo - classe que, como dizia Thompsom, “não surgiu como o sol

numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON,

1987, p. 9). Ainda segundo Thompson, nesse processo de fazer-se as classes estão

em permanente transformação:

Em tamanho e força, esses grupos estão sempre em ascensão ou declínio, sua consciência de identidade de classe é incandescente ou escassamente visível, suas instituições são agressivas ou se mantêm apenas pela força do hábito, ao passo que, entre eles, há aqueles grupos sociais amorfos e sempre cambiantes em cujo interior a linha de classe é constantemente desenhada e redesenhada, nesta ou naquela direção, referente à polarização deles, que esporadicamente se tornam conscientes de seus interesses e de sua própria identidade. (THOMPSON, 2001, p. 170-171)

Para examinar então o fazer-se da classe, não se deve buscar ou analisar

uma classe como um “dado pronto e cabado”. Exige-se também evitar a visão sobre

esse proceso como uma sucessão de etapas pré-determinadas. É preciso, por isso

Page 143: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

143

mesmo, identificar pontos que possam servir de referência para caracterizar melhor

esse processo da classe. Lutas mais restritamente econômicas ou com um caráter

mais político, lutas mais localizadas e corporativas e lutas mais gerais envolvendo

diversos segmentos dos trabalhadores, lutas e organizações mais fragmentadas ou

mais coletivas, algum tipo de identidade histórica e consciência (incandescente ou

escassamente visível) de si mesmo e das relações sociais a que estão submetidas

são alguns desses possíveis pontos.

Sobre a questão da fragmentação, “pode-se supor que os detentores do

capital, bem como os assalariados a eles subordinados, subdividem-se em vários

grupos, estratos ou ‘classes’, conforme a concorrência entre si pelo mercado”

(RIDENTI, 1994, p. 22). Essas divisões seriam expressas na ocorrência de lutas

corporativas e fragmentadas, sinalizando um momento e as formas históricas do

processo de fazer-se da classe. Outro momento e forma possível desse processo

(que seria consequência das experiências acumuladas também a partir dessas lutas)

seria o desenvolvimento da consciência de que interesses corporativos, parciais e de

grupos específicos, podem tornar-se interesses comuns, compartilhados por outros

grupos subordinados. Momentos e formas distintas que, com maior ou menor

intensidade, coexistem em um processo histórico real.

Fragmentação fundada na concorrência, mas também em questões culturais,

políticas etc – precisamente por questões históricas e conforme as representações

sobre essas questões137. Mobilizações e lutas de frações de classe e de grupos

sociais específicos, condições objetivas e subjetivas que ajudam a reproduzir

representações e identidades fragmentadas e parciais de suas condições sociais:

tudo isso parte do processo (possível) de fazer-se de classe e, ao mesmo tempo,

características encontradas em profusão nas lutas sociais no Brasil:

Se são visíveis múltiplas e diferenciadas mobilizações de frações da classe, tais lutas se dão de forma extremamente fragmentada, sem maiores articulações e na ausência de qualquer direção unificada legitimada pelos movimentos. Isso se deve a condições objetivas de fragmentação da classe, mas também a aspectos subjetivos. De um lado, muitos dos sujeitos desses movimentos acabam se

137 Poder-se-ia citar também questões de cunho histórico/espacial ou territorial, como as separações entre lutas rurais e urbanas, lutas regionais e lutas de moradores do “morro” e do “asfalto”, entre outras.

Page 144: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

144

identificando apenas por características parciais da sua condição social (MATTOS, 2009, p. 36 e 37).

Foi visto anteriormente que os MSUs organizam uma parcela dos

trabalhadores que pouco ou nunca participa de sindicatos, e que há dezenas, se não

centenas, de grupos, entidades e movimentos organizados de lutas urbanas e por

moradia. Havia também um grande número de iniciativas, ainda que limitadas, de

organização de fóruns e espaços que congreguem e articulem esses movimentos e

lutas, seja em escala nacional (porém mais restrita aos MSUs) - como a Resistência

Urbana - ou na escala local (mas aglutinando movimentos e grupos de diversos tipos

e objetos de luta) - como a PMS-RJ (cf. Capítulo I). Se não se procuram classes

prontas, mas processos possíveis, e se a ocorrência de lutas fragmentadas e as

tentativas de unificá-las são aspectos fundamentais desse processo, ter-se-ia que

esse processo expressa também um momento da consciência. Consciência que

“não pode nem ser verdadeira nem falsa”, que “é simplesmente o que é” (Thompson,

2001, p. 280) e que se transforma nesse processo, não podendo ser analisada a

partir de predeterminações de qualquer tipo, nem teóricas nem políticas:

“Ela”, a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente – uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se possível deduzir a consciência de classe que “ela” deveria ter (mas raramente tem), (...) Essas ‘defasagens’ e distorções culturais constituem um incômodo, de modo que é mais fácil passar a alguma teoria substitutiva: o partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como ela é, mas como deveria ser. (THOMPSON, 1987, p. 10)

Ao (re) analisar os MSUs e suas lutas no Rio de Janeiro, buscar-se-á

perceber se e como a ação desses grupos possibilita ou favorece a emergência de

uma consciência de classe. É verdade que entre esses movimentos e entre seus

militantes e aliados há a intenção mais ou menos explícita de desenvolver uma

consciência “revolucionária” ou da necessidade de reformas e superação do

capitalismo e construção do socialismo. Essas posições estão explícitas nos

programas e cartas de princípios de diversos movimentos ou em materiais

impressos, como os jornais distribuídos pela PMS-RJ nas manifestações de 1º de

Maio. As ações dos agentes políticos em busca de desenvolver uma determinada

consciência de classe também devem ser objeto de exame, pois são partes da luta

Page 145: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

145

política e simbólica, representações sobre a história que influenciam na construção

dessa história. Iasi (2006) e Bourdieu (2007a) chamam atenção para essa questão:

O caráter reformista ou revolucionário desta classe em ação só pode ser determinado por esta ação. Ajuda muito pouco a reflexão sociológica trocar uma metafísica por outra. O pensamento não pode resolver em si mesmo, a gênese do real. Se este é um problema para quem acredita em uma essência revolucionária, quase sempre adormecida, não é menos um problema para quem sustenta um reformismo ontológico frequentemente negado pela persistência da resistência cotidiana e a eventual emergência da luta revolucionária. (IASI, 2006, p. 59) Por uma espécie de falsificação de escrita, fazem-se desaparecer as questões mais importantes: por um lado, a própria questão do político, a da ação própria dos agentes que, em nome de uma definição teórica da “classe”, destinam aos seus membros os fins oficialmente mais conformes com os seus interesses “objetivos”, quer dizer, teóricos (...) A teoria mais acentuadamente objetivista tem de integrar não só a representação que os agentes têm do mundo social, mas também, de modo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para a própria construção desse mundo (BOURDIEU, 2007b, p. 139).

Uma classe em processo de fazer-se, a partir de suas experiências e das

mais diversas lutas, e que deve ser interrogada por suas ações e representações.

Segundo Mattos, “as consequências deste referencial teórico-interpretativo para as

análises da classe são muitas”, entre as quais se destaca a “percepção da

heterogeneidade das classes” e a “obrigatoriedade de encarar-se a classe não

apenas a partir do lócus da produção, mas também nos ambientes de moradia e

sociabilidade” (MATTOS, 2006, p.12). Estudos sobre movimentos sociais urbanos,

consequentemente, seriam muito elucidativos para a conceituação de classes

sociais e para a utilização desse conceito em análises históricas específicas.

Em amplo balanço sobre as teorias dos movimentos sociais, Gohn (2007)

afirma que na América Latina em geral, e no Brasil em particular, há uma

“hegemonia dos movimentos populares diante de outros tipos de movimentos

sociais”. Para a autora, são movimentos sociais populares aqueles que aglutinam

demandas e participação das classes populares. A maioria lutaria por terra, casa,

comida, equipamentos de consumo coletivo e “ao contrário do que afirmam algumas

teorias americanas e europeias, as ideologias não morreram e são elementos

fundantes da própria ideia de movimento social na América Latina” (GOHN, 2007,

Page 146: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

146

p.228). A despeito disso, com as mudanças no mundo do trabalho nas duas últimas

décadas do século XX (diminuição relativa do número de trabalhadores industriais,

aumento da precarização do trabalho, crise do movimento sindical/operário etc.),

muitos pesquisadores sociais passaram a falar em um esgotamento das

possibilidades de analisar a realidade contemporânea a partir dos critérios de classe

ou mesmo a negar a sua existência138. Essas formulações e representações sobre o

mundo social, de alguma maneira, influenciavam também diversos agentes sociais.

Entre os militantes dos movimentos sociais urbanos e seus aliados

sindicalistas, intelectuais e de partidos de esquerda, a questão da luta de classes

fora do espaço da produção é reiterada e crescentemente reposta para reflexão

conforme o peso relativo das lutas sociais urbanas aumenta em relação às lutas

sociais como um todo. Conforma-se assim, nesses momentos, um processo curioso

no qual, quanto mais frequentes e massivas são as lutas urbanas, e em

consequência, quanto maior é a centralidade política dessas lutas, maior é também

o questionamento sobre sua importância e papel em termos de luta de classes.

Por um lado, se esses questionamentos refletem uma interpretação teórica e

política de que essas lutas têm menos importância do que as ligadas diretamente à

produção, ou de que não seriam lutas dos mais autênticos representantes da classe

(os operários e seus sindicatos e partidos), por outro lado, há também autores e

militantes que questionam essa visão e ressaltam a importância das lutas e

movimentos existentes fora do espaço da produção para o fazer-se da classe.

Se o patamar de reprodução ampliada do capital conforma a classe da produção à circulação e apropriação da riqueza, tanto as lutas em relação à exploração na produção quanto às relativas às dificuldades na esfera da reprodução da vida, são lutas de classe, da mesma classe. (MATTOS, 2009, p. 72)

Não obstante as polêmicas sobre a pertinência do uso da categoria classes

sociais, as mudanças vividas nos últimos 30 anos em todo o mundo e a propagação

do receituário neoliberal, tiveram como contrapartida lutas e resistências por parte de

138 Sobre essa questão, Mattos afirma: “Diante das transformações na organização da produção, de mudanças na composição da classe e de recuo das instituições e caminhos de ação política operária tradicional, muitos falaram em um esgotamento das possibilidades de analisar a realidade social contemporânea (quando não analisar a sociedade em geral) e de propor alternativas políticas a partir de critérios de classe”. (MATTOS, 2009, p. 53) Segundo Bourdieu: “Negar a existência de classes, como a tradição conservadora se encarniçou em fazer (...) é em última análise negar a existência de diferenças e de princípios de diferenciação”. (BOURDIEU, 2007a, p. 26)

Page 147: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

147

sindicatos, movimentos rurais e urbanos, intelectuais e partidos de esquerda. Essas

lutas, no entanto, na maior parte das vezes, sofreram dramáticas derrotas, levando à

quebra de alguns dos mais combativos sindicatos e à crise de muitos partidos de

esquerda (comunistas, socialistas e socialdemocratas), entre os quais vários se

converteram à ideologia dominante.

Destaca-se também que nesse período desmoronaram as experiências de

construção do socialismo em diversas partes do mundo. É verdade que muitos

movimentos e partidos de esquerda, de inspirações socialistas e anarquistas, já

denunciavam o chamado “socialismo real” como uma experiência burocrática que se

afastara dos ideais revolucionários e na qual a classe trabalhadora teria deixado de

ser protagonista. Isso, não obstante certo equilíbrio de forças então existente, foi

rompido, favorecendo ainda mais a aplicação das políticas neoliberais. Além disso,

as imagens da queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética

(URSS), entre outras, serviram como propaganda em todo o mundo da vitória,

superioridade e mesmo inevitabilidade do capitalismo e do fim da luta de classes e

da história.

No Brasil, a chamada reestruturação produtiva, que acompanhou a aplicação

das políticas neoliberais, teve aplicação rigorosa durante os anos 1990, sob o

governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Foram duros os enfrentamentos

e a criminalização dos opositores desse modelo. A repressão à greve dos Petroleiros

em 1995, seguida de prisões e multas, que levaram ao fechamento da maioria dos

sindicatos da categoria no Brasil, foi o principal exemplo dessa política, que se

abateu sobre o conjunto dos movimentos sociais brasileiros.

A partir de 2003, com o Governo de Lula da Silva, do PT, as maiores e mais

importantes entidades e centrais sindicais, de estudantes e também dos movimentos

sociais urbanos, todas apoiadoras do governo e com históricas relações com o PT,

passaram a viver intensamente as contradições decorrentes dessa relação. Lutar

contra ou a favor do governo? Centrar a ação política nos espaços institucionais ou

nas ações de massa? Greves, passeatas e ocupações deveriam ser intensificadas

ou evitadas? A dificuldade e a demora em encontrar respostas políticas para essas e

outras questões vinculadas à nova conjuntura que enfrentavam, gerou um processo

de profunda desmobilização e mesmo de crise para muitos movimentos sociais.

Entre os MSUs, a expectativa pela realização da reforma urbana levou os grandes

Page 148: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

148

movimentos nacionais a abandonarem ou reduzirem drasticamente as

manifestações de rua e as ações diretas de ocupação. O refluxo das grandes

mobilizações de massa se intensificou e cresceu a fragmentação entre os

movimentos sociais e as distintas frações de classe. Alguns militantes e analistas

das lutas sociais passaram então a caracterizar esse quadro como uma derrota da

classe trabalhadora:

Do ponto de vista da subjetividade coletiva, a derrota teve por consequências principais o recuo do sentimento de pertencimento a um coletivo social – a identidade de classe – e da identificação com os projetos de transformação social orientados por uma perspectiva de classe dos trabalhadores. Fragmentação, portanto, não apenas no nível objetivo das relações de trabalho, mas também no plano da consciência de classe. (MATTOS, 2009, p 27)

A fragmentação vista nos anos 2000 entre os movimentos sociais urbanos,

poderia então ser considerada parte da “derrota” da classe trabalhadora e um

empecilho para o desenvolvivento de experiências e identidades comuns? A

emergência de novíssimos movimentos urbanos, a retomada das ações diretas por

alguns dos movimentos mais tradicionais e a proliferação de lutas específicas e

localizadas e, em um momento seguinte, as tentativas de construção de fóruns e

espaços de articulação como a PMS-RJ, não seriam indícios de que uma transição

estava em curso e que novas respostas políticas estariam sendo formuladas e

particadas? Quais efeitos essas novas respostas e práticas teriam para os MSUs?

Estavam surgindo novas experiências significativas para o processo de fazer-se da

classe trabalhadora? Como essas novas experiências impactariam nas teorias e

análises sobre os MSUs e suas relações com o fazer-se de classe? Como essas

experiências encaram e enfrentam a diversidade de movimentos e lutas e a questão

da fragmentação? Quais identidades e consciência essas experiências – novas e

comuns - favoreciam?

3.2.2 O fazer-se da classe e os movimentos sociais

No primeiro olhar apresentado sobre os movimentos sociais urbanos no Rio

de Janeiro durante a década de 2000, a experiência da PMS recebeu bastante

destaque. Os Comitês Populares da Copa, a ANCOP e a articulação da Resistência

Page 149: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

149

Urbana são outras dessas bem sucedidads iniciativas realizadas na escala nacional,

o que sugere que a vontade de realizar ações conjuntas e a troca de experiências

não seria um privilégio dos movimentos urbanos cariocas. A retomada das ações

diretas de ocupação e a realização de manifestações “de luta” nos dias 1º de Maio

são algumas das ações que podem ser entendidas como respostas políticas e que

tiveram como efeito uma maior capacidade de luta e articulação dos movimentos

sociais urbanos cariocas (cf. Capítulo I). Todas essas ações e experiências são

importantes indícios (ou mesmo demonstrações) da relevância do papel dos

movimentos sociais urbanos no processo de fazer-se da classe trabalhadora no

Brasil nos anos 2000.

A relação entre classes sociais e política e, mais especificamente, entre

classes, lutas e movimentos sociais, vêm sendo, porém, frequentemente negada ou

secundarizada na literatura acadêmica, tanto na mais voltada aos estudos sobre

classes sociais, quanto entre aqueles que examinam os movimentos sociais e as

ações coletivas. Afirma Sallum Jr:

Nos últimos decênios, observa-se na teoria social um declínio acentuado e constante da concepção teórica de origem marxista, que vincula classe e política. Na literatura acadêmica predominam as teses de que as formas contemporâneas de protesto coletivo não são explicáveis pela dinâmica da luta de classes. (SALLUM JR., 2005, p. 11) A literatura sociológica passou a apresentar uma dissociação crescente entre as investigações sobre classe e os estudos sobre movimentos sociais e outras formas de ação coletiva. (SALLUM JR., 2005, p. 25)

Ainda segundo Sallum Jr., “o exame da constituição e atuação dos atores

coletivos é a ponte que poderá, talvez, permitir reconectar, de forma teoricamente

consistente, classe social e política.” (SALLUM JR., 2005, p. 41) É necessária,

consequentemente, uma reflexão mais específica sobre o papel desses movimentos

e grupos (e das experiências comuns por eles sucitadas) na conformação de uma

consciência crítica, que poderia tornar-se classista, de modo que possibilite se

Page 150: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

150

apreender com mais profundidade essa relação entre os MSUs e o fazer-se da

classe trabalhadora139.

Iasi confere grande importância à questão da formação de grupos (como os

movimentos sociais urbanos), para um possível processo de fazer-se da classe

trabalhadora. Para ele, o desenvolvimento de uma consciência de classe é um

processo que ocorre “se, e somente se” ao viverem (ou experenciarem no sentido de

Thompson) as contradições do modo de produção capitalista, os seres humanos “se

encontrarem em certas condições coletivas para romperem o invólucro individual e

se verem como seres coletivos, desde a mediação particular do grupo até a

generalidade da classe” (IASI, 2006, p. 69). E, para ele, é através da ação (coletiva)

que se criam essas “condições coletivas”.

Como a superação da consciência é um ato prático, esta contradição se resolve na ação, mas não na ação individual, própria do estranhamento serial, porém num tipo de ação que permite ao ser social a primeira negação desta serialidade: a ação no grupo. Quando o capital nega o ser social por sua fragmentação até a abstração do indivíduo egoísta, o que corresponde à fragmentação do próprio ato produtivo do trabalho, acaba determinando que a negação da negação só pode ser a recuperação do ser social subsumido em suas representações ilusórias do mercado ou do Estado. Negar a fragmentação do ser implica recuperar o ser social. Mas, neste primeiro processo de negação, o ser social só pode aparecer na forma particularizada do grupo, e não poderia ser de outra forma. (IASI, 2006, p. 117)

Para Iasi, uma questão central sobre o processo da consciência é: “como

certa ordem de relações sociais objetivas, um modo de vida determinado

historicamente, converte-se em sua expressão ideal na consciência dos seres

sociais?” Ele segue o que considera ser a pista fundamental dada por Marx: “A

consciência é, antes de mais nada, ‘relação’, isto é, ‘minha consciência são as

minhas relações’, ou ainda, as ideias dominantes nada mais são do que as relações

sociais dominantes convertidas em ideias.” (IASI, 2006, p. 125) A primeira

característica dessa consciência típica da atual época histórica seria a noção de

139 Segundo Iasi: “O ponto de partida da polêmica que envolve o tema da consciência poderia ser assim resumido: existiria alguma ligação comprovável entre a posição de classe dos indivíduos, ou seja, a posição em que se encontram no interior de certas relações sociais de produção ou de uma ordem ‘econômica’, e uma determinada forma de visão de mundo que poderia levar a uma consciência mais ou menos homogênea relativamente à identidade coletiva, a ação política e os fins almejados?” E, como Sallum Jr., Iasi afirma que: “Um dos traços mais marcantes da sociologia contemporânea tem sido colocar em dúvida exatamente esta possibilidade.” (IASI, 2006, p. 27-28)

Page 151: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

151

indivíduo, a noção do “eu”. Iasi lembra que o isolamento do núcleo familiar e a

divisão de trabalho por gênero, como visto na sociedade capitalista, são

características próprias dessa sociedade e que em outros períodos da história a

criança era cuidada por uma multiplicidade de adultos favorecendo a constituição de

uma identidade que se aproximava mais do “nós”, do que do “eu”: Ele diz: “Este grau

de individualização não é um dado natural. Partilhamos com Elias (1993, 1996) a

ideia de que esta individualização é fruto de um longo processo cujo sentido parece

ser um desequilíbrio da balança nós-eu em favor do eu.” (IASI, 2006, p. 184-185)

Iasi então aborda a questão da consciência. Diz que a primeira forma de

consciência, a consciência imediata, já apresenta o particular como universal, o

histórico como natural, e que a ideologia é apenas a funcionalidade desse processo,

“é a expressão organizada e sistemática deste particular para permanecer como

universalidade com fins de dominação política de uma classe sobre outra”. (IASI,

2006, p. 223) O autor, então, apresenta uma interrogação que parece importante

para esse trabalho: como é possível a emergência, dentro da ordem capitalista, de

uma consciência contra essa mesma ordem? Novamente, Iasi busca respostas nas

relações sociais, afirmando que não basta uma mudança nas condições materiais de

vida para que ocorra essa transformação da consciência, essa ruptura com o senso

comum:

Existe sempre um ‘resto do real’ que não pode ser totalizado na visão de mundo aceita como válida, contradições, acidentes, casualidades que podem produzir, e de fato produzem, arestas, conflitos, em uma palavra: crise. De maneira sintética diríamos que se a consciência é a internalização de certas relações sociais, a inserção da pessoa em novas relações sociais pode, de igual forma, permitir novas internalizações. (...) Mesmo esta mudança no contexto material (por exemplo, migrar do campo para a cidade, começar a trabalhar, enfrentar um momento conjuntural de crise, ou simplesmente viver em uma época diferente etc.) não produz diretamente a possibilidade de internalização de novos valores, ainda que possa gerar questionamentos profundos em relação aos velhos valores interiorizados. O mais provável aqui é que a pessoa molde a nova realidade mediante os antigos valores por ela aceitos como sua visão de mundo. Aqui também é fundamental a mediação do outro, de uma nova fonte de identificação, pela qual é possível, por meio de um vínculo afetivo, transpor as relações materiais e objetivas em cargas valorativas enraizadas afetiva e psicologicamente como visão subjetiva do mundo. (IASI, 2006, p. 230-231)

Page 152: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

152

Sentimento de pertencer a uma coletividade e identidade de grupo são

condições apontadas por Iasi para a superação do “princípio da realidade”,

devolvendo ao ser humano – em grupo - sua condição de ser social e permitindo a

negação da serialidade e da primeira forma de consciência. Ele também chama

atenção para o papel fundamental da ação como base para constituição do grupo

como espaço “da livre expressão da práxis”:

É o grupo que permite o espaço da livre expressão da práxis, é na situação de grupo que vivemos o primeiro processo de negação da serialidade e da primeira forma de consciência, principalmente por propiciar que o ser humano se veja como sujeito de uma possível mudança de algum aspecto, inicialmente pontual, que vivenciou como injustiça. (IASI, 2006, p. 282) É na ação em que se sobrepõem dois processos simultâneos – a superação da serialidade e a formação do grupo em fusão -, sendo neste espaço que o grupo se constitui como grupo, no espaço da ação, do fluir da práxis aberta à totalização. (IASI, 2006, p. 288)

A ação coletiva e a formação de um grupo contestatório permitiriam se

experienciar uma força que, fora da coletividade, seria desconhecida e abriria a

possibilidade do ser humano se ver como sujeito social de uma mudança. Mas,

segundo Iasi, “o grupo vive permanentemente uma tensão entre o caminho aberto

pelo grupo em fusão no sentido da totalização e a ameaça de se dissolver

novamente na serialidade.” (IASI, 2006, p. 288)

Em conversas com militantes dos MSUs e com moradores de ocupações, são

percebidas algumas sutis diferenças quando eles relatam o período da ação que

gerou a “fusão” do grupo (período próximo à realização da ocupação) e os períodos

posteriores a esse momento originário. Essa sutis diferenças poderiam ser

interpretadas como indícios da tensão que falava Iasi: “Foi uma luta muito grande”,

“foi um período muito difícil, de muita luta”, ou mesmo, “foi bom demais né, nós

enfrentamos mesmo”, são falas constantes nesses relatos. Por vezes, essas falas

vêm acompanhadas de um sentido de continuidade (dessa luta): “agora, nossa luta

é pra conquistar nosso direito de ficar aqui”, “estamos ajudando o povo que está se

organizando para a nova ocupação, eles se reúnem aqui toda 5ª feira”, ou “eu não

sabia nada dessas coisas, agora eu vou a um monte de manifestações, porque tem

Page 153: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

153

outros em situação pior que a nossa, né?!”140. Mas, nas conversas do dia a dia,

ouve-se também: “graças a Deus aquela coisa toda passou, hoje a gente tá mais

tranquilo” ou “foi muita luta, né, mas graças a Deus a gente conseguiu e agora pode

tocar a vida”.

São algumas pequenas diferenças, vistas em relatos e falas, que sugerem

não apenas momentos distintos, mas também diferentes graus no sentimento de

pertencimento às lutas e à condição de sujeito social capaz de mudar a realidade.

Por certo, o momento da ocupação é especial para aqueles diretamente

envolvidos141. Momento de muita tensão, receios, agitação e que, na maioria das

vezes, é seguido por semanas ou meses de manifestações quase diárias.

Certamente é um período duro, mas que proporciona alegrias e, como visto em

diversos casos, profundas mudanças na vida dos envolvidos. Mudanças materiais

sim, mas também na forma de encarar suas vidas e o mundo, como se percebe na

seguinte fala de uma moradora da Manoel Congo: “depois que eu vim pra cá, que eu

estou morando aqui, a maioria das pessoas, não só eu, não só a L., mas a maioria

das mulheres que são casadas, das jovens que tinham parado de estudar, voltou a

estudar. Hoje a gente tem mais objetivo na vida”142.

Essa mudança na forma de ver o mundo, porém, nem sempre ocorre e, em

outros casos, se perde com o passar do tempo. Como foi visto no Capítulo I, os

MSUs costumam organizar famílias de trabalhadores pobres que se envolvem na

luta por objetivos imediatistas. Conquistados esses objetivos, muitos permanecem

mobilizados por algum tempo. Alguns se tornam até lideranças do movimento e

militantes de causas mais gerais e de longo prazo. Mas, para a maioria, apenas a

ocorrência de novas lutas (por exemplo, uma nova ocupação) organizadas pelo

mesmo movimento, e lutas que sejam determinantes para o funcionamento do

movimento (na qual uma vitória representará uma grande mudança e uma derrota

140 Entrevistas com J., S., W., N., e R., moradores da Ocupação Manoel Congo, realizadas em agosto de 2010 e em 10/10/2010 e falas registradas em atividades na Ocupação. 141 No caso da Ocupação Manoel Congo, tive a oportunidade de conhecer boa parte das famílias antes mesmo da ocupação ser marcada e estar presente nos momentos em que eles adentraram os prédios e durante os despejos que sofreram. E, nos dois primeiros meses da ocupação, estive presente quase todos os dias no local. Pude, assim, acompanhar de perto esse intenso e penoso processo pelo qual aquelas pessoas, muitas das quais mal se conheciam, se transformavam em um grupo político através da descoberta de que agindo organizada e coletivamente, podiam conquistar um direito (o de moradia adequada) que até então sempre lhes fora negado. 142 Entrevista concedida por R., mãe de dois filhos e moradora da Manoel Congo desde os primeiros dias da ocupação, em 10/10/2010.

Page 154: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

154

poderia até ameaçar a integridade do grupo), consegue gerar novamente um alto

grau de participação e mobilização143. Apenas a ocorrência de novas e fundamentais

lutas organizadas pelo mesmo movimento ao qual as pessoas se ligaram política e

afetivamente, proporcionaria, então, a ação mais continuada dessas pessoas e do

grupo, processo que possibilitaria para esse grupo de pessoas uma transformação

mais profunda no modo de ver o mundo.

Iasi, após discorrer sobre a ação e fusão do grupo, trata de questões que

envolvem o funcionamento e permanência do grupo, e que poderiam representar ou

ter como consequência a manutenção de um “espaço de livre práxis” ou o retorno à

“serialidade”.

Vemos que o retorno à serialidade não ocorre apenas por uma mecânica circular despida de sentido, mas encontra-se permeado por relações de poder e interesses. A transformação do grupo em fusão em organização pode, em um primeiro momento, apenas dotar o coletivo dos meios de atingir fins igualmente coletivos, ainda em luta contra um determinado campo prático-inerte, pode mesmo ser a condição de unidade do grupo contra forças, externas ou internas, que operam no sentido de sua dissolução. Já o momento da transformação do grupo-organização em instituição se dá de maneira a cristalizar hierarquias, posições de poder, privilégios, direitos e deveres, procedimentos válidos e condenáveis de acordo com códigos fixos.144 (IASI, 2006, p. 302)

Fica claro na análise de Iasi que os processos de organização dos grupos

podem gerar efeitos positivos de aumento da capacidade de ação desses grupos.

Mas poderiam também (ou tenderiam), com o passar do tempo, gerar processos de

institucionalização onde as normas e as hierarquias passariam a ser mais

importantes do que as ações e o coletivo. Entre os MSUs processo semelhante é

visto e revisto constantemente. Se cada nova ocupação gera um rejuvenescimento

do movimento, a burocracia enfrentada, por exemplo, para regularizar uma

ocupação, tem o efeito contrário. O espírito transformador e de luta, necessário para

143 Segundo Iasi, essa novas mobilizações ocorrem também contra as ameaças internas: “A figura do dissidente, em casos-limite do traidor, funciona internamente na situação do grupo como substituto da ameaça externa (...) Por este motivo o grupo se manifesta de maneira ambivalente, pois ao mesmo tempo exige o “linchamento”, mas espera que ele não vá até o fim com a eliminação do dissidente (que quando ocorre deve imediatamente ser substituído nesta função por outro membro do grupo).” (IASI, 2006, p. 290-291) 144 Quando o grupo “se institucionaliza a si mesmo”, segundo Iasi, ele: “endurece, envelhece, o que era movimento se torna rotina, o que era ação converte-se em ‘procedimentos’, o que era o poder jurisdicional difuso se torna instâncias, o que eram laços de solidariedade torna-se disciplina, o que era projeto torna-se ‘programa’”. (IASI, 2006, p. 293)

Page 155: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

155

ocupar, tenderia, assim, a ser substituído pelo conhecimento técnico para elaborar

projetos e pela paciência para negociar.

Os MSUs, portanto, seriam permanentemente desafiados a se manterem

como grupos de ação e movimento ou a tornarem-se instituições burocráticas que

apenas encaminhariam reinvindicações corporativo-comunitárias de moradia ou por

determinadas políticas urbanas. As pessoas que deles participam se mantêm mais

ou menos abertas para novas lutas e para transformarem-se a si mesmas e suas

consciências, conforme o desenvolvimento dos movimentos de que fazem parte. E,

no caso de permanência (das pessoas e movimentos) nesse processo de ação e

transformação, criar-se-iam, aí sim, as possibilidades para novos saltos de qualidade

nas práticas e consciência dessas pessoas e grupos. Segundo Iasi, o que se segue,

então, depende da natureza do grupo e das contradições nas quais ele está inserido

e que, em certas circunstâncias, pode ocorrer um “salto de qualidade” no sentimento

de pertencimento e identidade dos participantes desse grupo:

O salto de qualidade se apresenta, principalmente, na capacidade de estabelecer vínculos de identificação não mais apenas presenciais, mas com aqueles que se colocam em movimento contra uma ameaça maior e mais geral (...) Neste ponto é que a dialética circular de Sartre nos impõe uma camisa-de-força. (...) nos impede de supor a condição de que este movimento do grupo encontre as condições de uma fusão que vai muito além dele e que a natureza da impossibilidade enfrentada se produz a partir de uma contradição mais abrangente que ameaça a continuidade da produção social da vida em níveis societários. Esta particular circunstância, a nosso ver, produz uma identidade, ação e correspondente momento do movimento da consciência que não podem simplesmente ser reduzidos aos mecanismos do grupo, muito menos derivados dos mecanismos individuais. Este é o salto do grupo em direção à classe. (IASI, 2006, p. 306-307)

O “salto do grupo em direção à classe” permitiria que a identidade com o

grupo e aquela situação de somente agir conforme a ocorrência de lutas

fundamentais para o grupo fossem superadas. Quando a moradora de uma

ocupação dizia que se manifestava “porque tem outros em situação pior do que a

nossa” ela já estava demonstrando um nível de solidariedade significativo. Mas a

sua identidade era com o grupo (situação dos outros e a nossa). Esse “nossa”, não

era de “nossa” classe, mas de “nosso” grupo. Além do mais, o que estava posto

como motivo de luta para aquela moradora era uma determinada condição (ruim) de

vida de alguém. Uma melhora parcial dessa condição de vida já poderia desfazer a

Page 156: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

156

situação de ser uma condição “pior que a nossa”, sem representar com isso uma

transformação social que diminuísse em proporções significativas ou mesmo

extinguisse as formas de exploração e dominação que levavam a se discutir quem

vivia em situação pior.

Uma força externa percebida como ameaça comum e a ação de

enfrentamento a esse inimigo permitiriam o salto de qualidade para uma identidade

mais ampla que a do grupo, para a identidade de classe:

O que permite a fusão de elementos separados no espaço é uma força externa que se apresenta como uma ameaça comum (...) Não se trata de um simples agregar quantitativo no qual os indivíduos se somam em grupos; estes grupos se associam formando a classe. Aquilo que no grupo imediato é a fusão, no caso da classe é um pouco mais complexo. A fusão de classe exige um movimento ou ação de classe gerando um paradoxo aparentemente insolúvel: como a classe pode agir se ela é produto da fusão que esta ação produzirá? (IASI, 2006, p. 317)

A identificação e a ação contra um inimigo comum criariam as condições para

um processo de alteridade-identidade mais amplo e complexo. Esse processo

favoreceria a percepção daquele outro que vive em condição pior (ou mesmo

melhor) que a “nossa”, mas que, de alguma maneira, também é vítima desse inimigo

comum, como um aliado ou mesmo com parte do “nós”. Essa alteridade (e luta)

frente a um inimigo comum - um Estado repressor ou diretamente com a burguesia,

por exemplo - ajudaria a revelar, mesmo que parcialmente, as relações sociais que

conformam a sociedade capitalista. Por exemplo: não somos nós os brasileiros, mas

nós os trabalhadores e (eles) os burgueses, ou nós o povo e (eles) os defensores da

ditadura etc.

Ainda sobre essa questão da formação de uma identidade comum, de grupo e

de classe, seria destacado o papel da “liderança”. Iasi conta que em diferentes

histórias, pessoas se tornaram militantes “por viverem em comum certas condições e

pela influência de certas lideranças, que em muitos casos são pessoas próximas em

que eles confiavam, ou que ‘falavam sua língua’”. (IASI, 2006, p. 369) Entre os

MSUs de luta por moradia, percebe-se toda a importância do papel do líder. No

geral, são pessoas com mais tempo de participação política, cujo volume de capital

econômico e cultural não se diferencia tanto do restante dos participantes desses

movimentos. Não são intelectuais ou pessoas “de outra classe”. Mas pessoas com

Page 157: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

157

um volume de capital político (aquele típico do campo político) significativamente

superior, que falam a mesma língua dos demais e que corporificam a luta e a

coragem que os outros tantas vezes admiram e acham que não têm.

Há ainda outro elemento importante no papel exercido por algumas

lideranças: recorrentemente, são pessoas que se transformam também em objeto de

afeto. Ilustrativo o depoimento de R., moradora da Ocupação Manoel Congo e

militante do MNLM-RJ. Em uma entrevista, após ser perguntada sobre os cursos de

formação, R. disse achar que esses são muito importantes, e aí, como que ligando

uma coisa à outra, começou a falar sobre Lurdinha, principal liderança da Ocupação

e do MNLM no Rio:

Uma pessoa que pra mim é muito importante, que eu sei que se não fosse ela eu teria desistido fácil, é a Lurdinha. Porque ai, eu não quero chorar, não! Ela, eu tenho como um apoio, já que eu não tenho mãe, não tenho irmão aqui perto. Eu me aproximei bastante dela, e acho que ela de mim também. Acho que a gente troca muito, nossos sofrimentos, nossas alegrias, tudo, né? Então, eu acho que aprendi muito com ela (...) Pra mim, ela é essencial. Eu aprendo muito com ela, todo dia. (...) E eu gosto de conversar com ela, porque ela me faz entender as coisas, tanto do nosso movimento, quanto de vários outros movimentos. Tem coisas que eu fico perguntando, ou que eu não concordo, e eu gosto, porque eu fico perguntando e ela me responde direitinho145.

Outro aspecto fundamental no papel cumprido pelas lideranças seria o de

porta-voz autorizado. Como destaca Bourdieu, ele é instituído pelo grupo, que ao

mesmo tempo o institui, nomeia, faz o próprio grupo ao falar por ele. Assim “em um

processo que é sempre coletivo e nunca totalmente artificial” (BOURDIEU, 2007b, p.

156) o porta-voz autorizado dá ao grupo voz e identidade:

O porta-voz dotado do pleno poder de falar e de agir em nome do grupo e, em primeiro lugar, sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o substituto do grupo que somente por esta procuração existe; personificação de uma pessoa fictícia, de uma ficção social, ele faz sair do estado de indivíduos separados os que ele pretende representar, permitindo-lhes agir e falar, através dele, como um só homem. Em contrapartida, ele recebe o direito de se assumir pelo grupo, de falar e de agir como se fosse o grupo feito homem (...) A política é o lugar, por excelência, da eficácia simbólica, ação que se exerce por sinais capazes de produzir coisas sociais e, sobretudo, grupos. (...) O porta-voz é aquele que, ao falar de um grupo, ao falar em lugar de um grupo, põe, sub-repticiamente, a existência do grupo

145 Entrevista concedida por R., em 10/10/2010.

Page 158: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

158

em questão, institui este grupo, pela operação de magia que é inerente a todo ato de nomeação. (...) A classe existe na medida em que – e só na medida em que – os mandatários dotados de plena potentia agendi podem ser e sentir-se autorizados a falar em nome dela (BOURDIEU, 2007b, p. 158-159-160).

Ao examinar a trajetória da classe trabalhadora que, segundo Iasi, se fez no

Brasil nas lutas do período final da ditadura militar, e dos grupos e lideranças que

fizeram e foram feitos por essa classe, o autor afirma que o período de refluxo

(vivido a partir dos anos 1990) e as respostas produzidas para enfrentá-lo (de

classe, de suas organizações e lideranças), afetaram a consciência de classe que

havia sido desenvolvida nos anos anteriores:

Se processa uma dialética entre a classe e suas lideranças, assim como com suas organizações, de forma que simultaneamente a classe cria sua expressão política ao mesmo tempo em que esta cria a classe como classe. Assim, ao se moldar pelo comportamento da classe em seu refluxo, o partido acaba por agir de volta e moldar a classe dentro dos limites deste refluxo. (IASI, 2006, p. 534)

A constituição de grupos, como são os MSUs, nos quais se estabelecem

diversas dessas relações, tanto com as lideranças, como as de afetividade, o

juramento (expresso na aprovação coletiva das cartas de princípios das ocupações),

o “terror” aos “dissidentes” e, em vários casos, também a institucionalização - ou

mesmo processos de desistitucionalização - são aspectos importantes para o

entendimento acerca do funcionamento dos MSUs e sobre a participação desses

movimentos no fazer-se da classe trabalhadora no Brasil146.

146 Surpreendentemente, processos de desinstitucionalização são/foram possíveis conforme a ocorrência de novas ações, como ocupações, que criam uma (re)fusão do grupo. Em sua análise, Iasi critica “a dialética circular de Sartre” que imporia uma “camisa de força” ao não prever a possibilidade de um grupo se fundir em classe, processo que evitaria sua burocratização e envelhecimento como instrumento de libertação. No entanto, ao resumir as possibilidades de um grupo à institucionalização e burocratização ou fusão em classe, Iasi parece cair na mesma armadilha analítica que subestima o poder da ação, da história. Ação e respostas políticas que podem transformar a história de um movimento, recolocando-o no centro da política, ampliando e oxigenando sua base social, atraindo novos militantes e aliados etc (cf. Capítulo I). No Capítulo III esse tema será retomado, mas por ora, já fica ressaltada sua importância para o presente trabalho. Afinal, está em exame um período de refluxo das grandes manifestações e de profunda fragmentação política nas lutas e movimentos sociais, período no qual os MSUs e outros movimentos atuavam como a “velha toupeira” e incidiam sobre uma classe em processo (de desfazer-se e refazer-se). Consequentemente, se as únicas alternativas na história dos grupos fossem burocratização ou a fusão em classes, sob conjunturas como a dos anos 2000, todos estariam condenados ou destinados à burocratização pura e simples, o que parece não ser condizente com a complexidade vista nos movimentos e processos aqui examinados.

Page 159: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

159

Em meio ao refluxo das grandes mobilizações de massa nos anos 2000,

esses movimentos sociais, em grande medida, se reinventaram, se recriaram.

Através da ação, uns surgiram e outros ressurgiram e se desinstitucionalizaram.

Algumas ações contestatórias que incidem sobre questões centrais do modo de

produção capitalista, como o uso dos recursos públicos e a mercantilização da

moradia ou da cidade, foram realizadas. E a vontade de articular e unificar

movimentos e lutas, demonstrada através de experiências como a PMS-RJ - que

fortaleceu laços de solidariedade entre distintos militantes e movimentos,

favorecendo a produção de experiências comuns e a transformação de lutas

específicas em lutas gerais – indicam também que os MSUs foram/são parte

integrante e formadora (ou fazedora) da classe trabalhadora (vista em seu processo)

no Brasil.

3.2.3 Mais algumas questões sobre o fazer-se da classe

A formação de identidade e consciência de classe, para ser mais bem

compreendida, exige olhar atento sobre as ações dos MSUs e de fóruns como a

PMS. Algumas questões e temas considerados mais gerais e que afetam grandes

parcelas dos trabalhadores e movimentos, exigem ser examinados. São

identificados agora alguns temas que, por tudo o que foi visto nos Capítulo I e

Capítulo II, parecem mais relevantes para a reflexão sobre a participação dos MSUs

no fazer-se da classe trabalhadora e sua consciência no Brasil dos anos 2000.

Um deles é a visão sobre o Estado e a sociedade civil, a relação entre esses

e mais particularmente sobre as distintas formas de democracia e participação

política. As passagens de Mattos (2009) e Vainer (2011) fornecem pistas de como

são tratados esses temas nos anos 2000 e do contexto em que se dá esse debate

entre os MSUs, particularmente no Rio de Janeiro:

A sociedade civil é uma arena privilegiada da luta de classes, uma esfera do ser social em que se dá uma intensa luta pela hegemonia, e, precisamente por isso, não é o “outro” em relação ao Estado, mas – junto com a sociedade política, isto é, o “Estado-coerção” – um dos seus inelimináveis momentos constitutivos. Para Gramsci, nem tudo que parte da sociedade civil é bom (nela não prevalece a “lei da selva”?) e nem tudo que vem do Estado é mau (ele pode expressar

Page 160: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

160

instâncias universais que se originam na luta das classes subalternas, pode servir de barreira contra as forças abusivas dos “poderes fortes”, pode ser instrumento capaz de redistribuir recursos segundo critérios de justiça). Só uma análise histórico-concreta das relações de força presentes em cada momento pode definir, da perspectiva das classes subalternas (...) a função e as potencialidades positivas ou negativas tanto da sociedade civil quanto do Estado147. (MATTOS, 2009, p 87) Certamente, a categoria de estado ou regime de exceção não se aplica senão de modo parcial à cidade dos megaeventos. As formas institucionais de democracia representativa burguesa permanecem, formalmente, operantes. O governo eleito governa, o legislativo municipal legisla... Mas a forma como governam e legislam produz e reproduz situações e práticas de exceção, em que poderes são transferidos a grupos de interesse empresarial. (...) A cidade de exceção transforma o poder em instrumento para colocar a cidade, de maneira direta e sem mediações na esfera da política, a serviço do interesse privado de diferentes grupos de interesses. Não se trata mais de uma forma de governo em que o “interesse geral” cederia lugar a formas negociais, como sugeria Ascher. (...) Nestas redes de poder e correias de transmissão paralelas que constituem o terreno propício às parcerias público-privadas, a cidade de exceção se conforma também como democracia direta do capital. (VAINER, 2011, p 11-12)

O Estado cumpre papel fundamental nos processos de urbanização, na

constituição das cidades, na produção e administração de equipamentos de

consumo coletivo e no provimento dos serviços urbanos e de bens, como a moradia.

Por essa razão, o Estado costuma ocupar posição de destaque entre as discussões

e ações dos MSUs. De inimigo principal a interlocutor e potencial parceiro para

implantação de políticas públicas, os posicionamentos acerca do Estado costumam

variar conforme os distintos momentos políticos, os grupos que estão nos governos

e as formas de luta e ideologias dos movimentos. No período examinado nesse

trabalho, os posicionamentos dos diversos MSUs são muito variados (cf. Capítulo I).

Há desde aqueles que, em quase todos os casos, se recusam a negociar com o

Estado (como alguns novíssimos MSUs), até aqueles, como a UNMP, que têm sua

existência marcada por essas negociações e parcerias (mesmo que conflituosas).

Em meio a essa diversidade, há um posicionamento que parece largamente

adotado entre os MSUs, segundo o qual a participação nos processos decisórios do

Estado aparece como um direito conquistado através de muita luta. Direito que

apesar de alardeado pelo Estado e objeto de vários programas de governo seria,

147 LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.

Page 161: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

161

segundo esses movimentos, corriqueiramente negado e praticamente inviabilizado

pelo próprio Estado, ou transformado em tecnologia de legitimação de determinadas

políticas governamentais ou de cooptação dos movimentos e lideranças. A defesa

da democracia direta, do poder popular e do socialismo também são

posicionamentos largamente difundidos entre os MSUs (cf. Capítulo I).

As falas de Lurdinha (dirigente do MNLM) e de Marcelo Edmundo (dirigente

da CMP) citadas a seguir são exemplos dessa posição segundo a qual, apesar da

conquista de espaços de participação popular, o Estado é burguês e, na prática,

negava o direito de decisão aos movimentos sociais e aos trabalhadores. Eles

abordam também a defesa, por suas respectivas entidades, da democracia direta,

ressalvando que nesse processo deveria ser garantido o direito de decisão à maioria

da população:

A gente defende a democracia direta. E não é nem que faça parte da nossa luta: é a nossa luta! Porque a democracia representativa - que é essa do estado burguês - na nossa avaliação, ela já não cabe mais dentro dela. Ela já não dá frutos nem para a própria política de reparação, para a garantia do estado democrático de direito. A democracia representativa não consegue dar conta nem disso. Então, para nós, que somos socialistas – e o nosso movimento tem no seu estatuto, lá, escrito, que nós somos socialistas – então, é que não serve mesmo essa democracia representativa! A democracia participativa, para a gente, a democracia direta, passa pela construção de conselhos populares, e passa pela inversão da lógica da máquina. Não é nem uma questão de inversão de prioridades (...) É uma questão de ideologia, é uma inversão da lógica da máquina: a máquina, que está a serviço do capital, passa a estar a serviço da vida.148

Lurdinha faz questão de lembrar as posições do seu movimento, que tem

“escrito” no “estatuto” que é “socialista”, para demarcar a diferença com outros

grupos (e governos) que até defendem a participação e a democracia sem que isso

seja sinônimo, fundamento ou reperesentação de uma mudança mais profunda na

sociedade e no Estado. Ela segue, então, falando sobre sua visão sobre a

democracia direta e o funcionamento do Estado:

Então, para passar a estar a serviço da vida, tem que equiparar o acesso às condições de vida para a maioria da população, que é excluída do acesso a bens e serviços da cidade. Para inverter essa

148 Entrevista realizada com Maria de Lourdes, a Lurdinha, da Coordenação Estadual (RJ) e Nacional do MNLM, em agosto de 2009.

Page 162: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

162

lógica, há que se ter um conselho, em que pelo menos a grande maioria, a absoluta maioria, seja representante dessa maioria. Então, não são conselhos paritários, conselhos tripartites, que vão dar conta disso. Nós temos que ter uma maioria, e uma maioria consciente, com o respaldo de grandes fóruns, que discutam e reflitam as políticas, as demandas, as necessidades, para que se inverta a lógica dessas máquinas administrativas. Para que se respalde o governo que queira realmente inverter a lógica, e se derrube o governo que não queira inverter essa lógica. Então, para a gente combinar democracia representativa com a democracia participativa, é fazer uma gestão invertida, uma gestão que priorize, com absoluta e clara preferência ideológica, a maioria da população. 149

Nota-se que, ao falar sobre o Estado, Lurdinha o caracterizava como

“burguês”. Ela considera a luta pela democracia direta uma prioridade, mas era clara

ao afirmar que para implantá-la deveriam existir conselhos com maioria absoluta de

trabalhadores e condições de realmente mudar profundamente as políticas do

Estado. Marcelo, da CMP, também diz que a democracia direta é uma das principais

“bandeiras” do seu movimento, mas, asssim como a representante do MNLM, ele

adota uma linha crítica em relação ao Estado e às políticas de participação então

vingentes:

Na verdade, essa [a democracia direta] é uma das principais bandeiras da CMP. O pessoal geralmente resume essa questão como de políticas públicas com participação popular. A (nossa) intenção é que toda a discussão da política pública seja sempre feita com a participação e com a consulta popular. Então, essa é uma das pontes principais, uma das principais bandeiras da CMP. (...) No ano passado eu participei de uma mesa de debates sobre essa questão

149 Na mesma entrevista, ao analisar a implementação do Orçamento Participativo em Volta Redonda, Lurdinha revela que os movimentos querem discutir a cidade como um todo e não políticas específicas. Essa é uma questão importante, que diferenciaria os MSUs dos grupos menos organizados que atuam apenas em determinadas lutas locais ou específicas. Ela diz: “um pedacinho do investimento, um pedacinho das obras, ao invés de discutir o projeto da cidade. E isso foi feito deliberadamente. (...) Como é que eu vou discutir onde eu vou morar, se eu não discutir especulação imobiliária, IPTU progressivo, edificação compulsória. (...) Como é que eu vou discutir mais recursos para saúde, ou baixar o valor do transporte coletivo, se eu não discutir a política de transporte coletivo? Como é que eu vou participar de um conselho tarifário, se eu não discutir política de transporte, arrecadação, quem é que faz o asfalto onde passa o ônibus, com que dinheiro? Quem é que paga ICMS, como e quanto é perverso o ICMS... Para discutir receita tem que discutir política! O que adianta discutir... Se eu pego todo o povo, e boto numa sala, para brigar por causa de um pedacinho de obra, esse povo vai brigar com aqueles que dizem a eles que eles têm que gastar tempo discutindo a política do urbano. E foi isso que foi feito com a gente. E foi feito com uma marca, um rótulo, uma grife, que nós não demandamos. E a coisa foi pegando no Brasil inteiro, porque a instituição quis. Porque aqueles que pesquisam a falência do estado democrático de direito, a falência da democracia representativa, (...) o direito de participar do orçamento, que está em algumas constituições estaduais (como na Constituição do próprio Rio de Janeiro). Aqueles que liam isso de fora para dentro achavam que aquilo (o Orçamento Participativo) era um grande avanço. E isso foi consolidando uma ideia que levou de roldão vários setores do movimento social”.

Page 163: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

163

da reforma urbana. Estava sendo discutida a participação. Na ocasião, eu falei que nós (movimento), nós (população pobre), a população que luta pela transformação, nós não queremos mais essa história de participação. A gente quer poder determinar. Não é participar. Essa é a grande diferença. A gente quer determinar o que será feito na rua, no bairro, nos prédios abandonados. Essa história de participação é muito “bonitinha”; mas é isso, você participou, legal, já era. Já participou, então acabou. Eu acho que isso é o fundamental da história. É essa a bandeira que a gente tem que começar a levantar. Muito mais do que participar do destino do orçamento, a gente tem que determinar onde será aplicado. E a gente tem direito e pode errar. Quando a gente discute, determina alguma coisa, a gente tem o direito de errar. Se errar, beleza, a gente volta a reconstruir. O governo, o Estado, não tem o direito nem de acertar, se isso for feito passando por cima daqueles que formam, que constituem a cidade. 150

A fala de Marcelo deixa transparecer um claro sentimento de frustração e

revolta com os processos de elaboração de políticas governamentais nos quais os

movimentos e a população participavam, mas não tinham poder real de decisão.

Assim como Lurdinha, Marcelo faz questão de diferenciar suas ideias de democracia

direta das experiências que o seu movimento vinha vivendo, ao ponto de dizer: “não

queremos mais essa história de participação”151.

Percebe-se nas falas desses dois representantes de movimentos sociais

urbanos cariocas uma percepção de que as conferências, conselhos e distintas

formas de participação na elaboração de políticas urbanas de diferentes níveis do

Estado não garantiram uma democracia direta dos trabalhadores. Democracia direta

que, pelo visto na análise de Vainer, era garantida apenas ao capital.

150 Entrevista concedida por Marcelo Edmundo Braga, da Coordenação Estadual (RJ) e Nacional da CMP, em agosto de 2009. 151 Na mesma entrevista, também comentando sobre as experiências relacionadas ao Orçamento Participativo, Marcelo reafirma a importância dos movimentos sociais organizados para evitar os particularismos e bairrismos na discussão sobre a cidade: “para mim, todo o processo de administração da cidade tem que ser a partir das demandas das localidades, mas a partir de uma discussão que enxerga a cidade como um todo. Um dos grandes problemas, também, é que obviamente você chega na base – e não sei como se pode resolver isso – e aquele grupo, de uma tal rua, ele pensa muito mais o problema da sua rua, do que no impacto que tem o que acontece na sua rua sobre a cidade. E aí, sim, é que entra a questão do movimento. Por isso é sempre importante fortalecer os movimentos. Porque o movimento dá uma noção muito mais ampla e geral do que a questão local. (...) Porque, de repente, o que pode ser bom para uma rua, ou para uma região, pode afetar seriamente uma outra região. E se você não faz uma discussão em conjunto dessas regiões, para a gente ver efetivamente o que pode atender às necessidades de cada uma delas, por mais democrática que possa ter sido, aparentemente, a discussão, você realmente não vai conseguir uma cidade democrática e justa. (...) Acho que tem que partir de uma discussão maior, aí você vai para a discussão menor, já com uma ideia do que é a cidade como um todo. E, a partir daí vê como você vai conseguir, em cada pequena região, contribuir para a construção de uma nova cidade”.

Page 164: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

164

A criminalização dos pobres e movimentos sociais é outro tema considerado

fundamental. Apesar de repercurtir sobre o conjunto das lutas sociais e de ter tido

como marco de sua intensificação recente (no período pós-ditadura) a repressão à

greve dos petroleiros em 1995, as formas de criminalização são muito variadas e

atingem, cada uma delas, segmentos específicos dos trabalhadores e das lutas e

movimentos sociais, o que dificultaria a percepção da criminalização como uma

questão de classe. Mattos aborda esse tema e relaciona a intensificação da

criminalização nos anos 2000 à necessidade de uma maior coerção sobre a classe

trabalhadora, especialmente sobre o “contingente da população dita excedente”,

para garantir sua subordinação ao capital:

A atual fase de criminalização da “pobreza” e dos movimentos sociais corresponde a uma etapa da acumulação capitalista (com maior “despossessão” ou alto nível de expropriação), em que o capital (...) de forma análoga à da fase da “assim chamada acumulação primitiva”, precisa na mesma escala ascendente lançar mão do aparelho de Estado (...) para garantir o controle sobre o grande contingente da população dita excedente, que compõe sim a classe trabalhadora (até porque é essencial à manutenção dos patamares mais baixos dos salários), mas é tratado como potencialmente perigoso e criminoso. Como criminosos são todos os movimentos que como consequência procuram se posicionar pela transformação das condições sociais hoje dominantes. (...) No Rio de Janeiro, em 1998-1999, para cada pessoa morta por auto de resistência havia aproximadamente sessenta presas pela polícia. Em 2007-2008 essa relação foi de uma pessoa presa para cada seis mortas, numa inversão literalmente brutal. (...) Deve-se entender tais mecanismos [a criminalização dos pobres e a criminalização dos movimentos sociais] como de coerção sobre a classe trabalhadora e suas organizações para garantir a subordinação do trabalho ao capital. (MATTOS, 2009, p 112-113-114)

As distintas formas de criminalização dos pobres e dos movimentos sociais

têm motivado uma enorme variedade de protestos, campanhas unificadas e

manifestações. Do ato na abertura do PAN Rio 2007, passando pelas manifestações

de 1º de Maio, essa questão foi recorrentemente reconhecida como uma luta geral e

fundamental para os movimentos sociais cariocas, tanto sindicais, estudantis quanto

para os rurais ou urbanos. Foram realizadas também campanhas como a “Somos

todos Sem-Terra” - contra a criminalização dos movimentos sociais - e foram criados

fóruns como o “Contra o Choque de Ordem” e realizados encontros como o EMPOP

(Encontro Popular por Outra Segurança Pública). No FSU, um dos eixos temáticos

Page 165: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

165

foi sobre as violências urbanas e criminalização dos pobres. Pode-se, portanto,

afirmar que essa questão foi vista como uma prioridade, tanto pelos MSUs quanto

pelos fóruns que articulam também outros movimentos, como a PMS, o Comitê

Popular da Copa e Olimpíadas etc. (cf. Capítulo I).

Ao priorizarem esse tema, unificando sobre uma única palavra de ordem -

“contra a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais” -152 os movimentos

revelavam um entendimento e postura de classe relevante. Afinal, além das

manifestações que abordavam formas particulares de criminalização que se abatiam

sobre grupos sociais específicos, existia também: uma luta geral que questionava

conjuntamente a repressão aos trabalhadores e moradores de rua, as remoções e

despejos forçados no campo e na cidade, os processos judiciais contra

manifestantes, pesquisadores e grevistas e mesmo prisões com base na Lei de

Segurança Nacional da ditadura, os interditos proibitórios que impedem de piquetes

e ocupações de hidrelétricas, o uso indiscriminado por policiais das armas menos

letais, os autos de resistência em favelas e as ameaças contra testemunhas e

familiares de vítimas da violência policial etc. Essa unificação de lutas com a mesma

palavra de ordem pode ser considerada fruto de uma análise classista das lutas

sociais e um fator que colaborava para a construção de uma identidade comum e

classista153.

Outra questão importante para reflexão é como esses movimentos (e seus

porta-vozes) nomeiam a si mesmos e aos outros movimentos, tanto quando falam

para o público interno como quando a fala é “para fora”. Essa pode ser uma

importante pista para se entender as identidades desenvolvidas pelos e nos

movimentos sociais urbanos e nos fóruns de articulação como a PMS-RJ. Algumas

terminologias parecem favorecer uma identificação maior entre diferentes

movimentos e uma identidade de classe, outras parecem estimular uma maior

152 A expressão exata usada pelos movimentos às vezes era “contra a criminalização da pobreza”, ao invés de criminalização dos “pobres”. 153 Nas manifestações de 2013 e com a chegada do período de realização dos megaeventos no Brasil, a intensa violência policial, com o uso massivo de balas de borracha e bombas de gás e de efeito moral, as prisões e detenções indiscriminadas de centenas de manifestantes e a discussão ou aprovação de novas leis para reprimir os protestos - como as que proíbem o uso de máscaras em manifestações, aumentam as penas para danos ao patrimônio ou a lei antiterrorismo - esse tema da criminalização dos pobres dos protestos e movimentos sociais adquiriu uma importância política ainda maior. Entre os movimentos sociais, diferentes táticas de luta e graus de radicalidade ficaram explícitos nessas manifestações, mas, de forma geral, a palavra de ordem contra a criminalização

Page 166: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

166

distinção e identidades mais restritas e fragmentadas em grupos ou frações

específicas de classe. A fragmentação das lutas e movimentos sociais não é um

mero reflexo de condições “objetivas” (mudanças no mundo do trabalho ou

consequência da concorrência capitalista). É resultado dos significados atribuídos às

condições objetivas e das formas de experienciação e representação da realidade. A

forma como os movimentos se denominam a si próprios e aos seus pares é, pois,

um aspecto importante para a conformação dessas divisões e grupos sociais.

Bensaid (2008), ao examinar essa questão, problematiza o emprego de um

vocabulário restritivo para fazer referência à classe nos dias atuais e recupera o

conceito marxiano de proletários, em busca de uma forma de nomeação mais

abrangente e precisa, que contemplaria a classe em seu conjunto:

No século XIX, falava-se em classes trabalhadoras, no plural. O termo alemão Arbeiterklasse ou a expressão inglesa working class continuam extremamente genéricos. “Classe ouvriére”, dominante no vocabulário francês, tem uma conotação sociológica propícia a equívocos. (...) Marx fala de proletários. Apesar de seu aparente desuso, o termo é ao mesmo tempo mais rigoroso e mais abrangente do que classe operária. Nas sociedades desenvolvidas, o proletariado da indústria e dos serviços representa de dois terços a quatro quintos da população ativa.154 (BENSAID, 2008, p. 36 apud MATTOS, 2009, p. 21)

Excluídos, pobres, apartados socialmente e diversas outras categorias

vinham sendo usadas com frequência para analisar os MSUs no Brasil. Massa

marginal (NUN, 2000), multidão (HARDT e NEGRI, 2001) são também categorias

que tentam descrever os sujeitos sociais nas sociedades contemporâneas, ou

especificidades daquelas da periferia do capitalismo global. Como consequência,

falava-se menos de proletários e até em trabalhadores, que seriam termos mais

abrangentes e mais diretamente associados (via posição ou experiência) às relações

de trabalho capitalistas. Essas (novas) formas de nomeação impulsionavam e eram

impulsionadas pela perda de referência na categoria das classes e pelo contexto

político no qual a própria luta de classes teria perdido centralidade entre as lutas

sociais. Gohn aborda essa problemática e suas consequências especificamente

entre os movimentos sociais urbanos brasileiros e para as análises sobre esses:

continuou sendo acionada, mesmo por aqueles grupos mais críticos e menos dispostos aos enfrentamentos e ações mais radicais.

Page 167: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

167

Pobres, excluídos, apartados socialmente pela nova estruturação do mercado de trabalho. (...) O pensamento dos cientistas sociais brasileiros, ao incluir a temática dos “excluídos” nas análises sobre os movimentos sociais, seguiu uma tendência internacional. (...) A pobreza persistente e o desemprego continuado por longos períodos são as novas questões de cidadania. Elas são o cerne da luta dos excluídos. Os incluídos também enfrentam problemas no novo modelo, no qual o conflito entre as classes teria perdido centralidade: deterioração do seu habitat, ausência ou precariedade dos serviços coletivos etc. São todos problemas de cidadania e geram também movimentos sociais. (GOHN, 2007, p 288-289)

A análise de Gohn é elucidativa por relacionar as formas de nomear os

sujeitos sociais com a caracterização do conteúdo de suas lutas, no caso, pobres,

excluídos e apartados socialmente com luta por cidadania e não com luta de

classes. Essa operação, feita repetidas vezes por governantes, jornalistas,

comentaristas da mídia e também por analistas dos conflitos sociais, reproduz a

visão na qual “as classes e seus interesses são considerados como dedutíveis das

suas posições sócio-econômicas” (SALLUM, JR., 2005, p. 24). Dessa forma, as

análises se esforçariam para demonstrar que as lutas reais não eram lutas de

classes e, consequentemente, seriam necessários outros ou novos referenciais

analíticos e terminologias para serem descritas e analisadas. A temática passava a

ser, então, essa dissociação entre ação e luta social de um lado e classe e luta de

classes do outro, e muito do esforço analítico era voltado a dar substância teórica a

essa dissociação.

Entre os militantes dos diversos movimentos sociais, entidades e grupos que

participavam da PMS, algumas terminologias usadas eram parecidas com as

empregadas por aqueles que pregam a dissociação entre classes e lutas sociais,

mas o sentido que davam a esses termos não eram necessariamente os mesmos.

Também esses sentidos estavam em disputa. Disputa que, para além das análises

teóricas, se dá na prática política. Entre esses militantes, falar de trabalhadores

pobres é muito comum, como também o termo “excluídos” era regularmente

usado155. Designava os desempregados e os “sem direitos” – trabalhadores com

vínculos precários ou parciais de emprego – e, às vezes, também os trabalhadores

154 BENSAID, Daniel. Os Irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo atual. São Paulo: Boitempo, 2008, p 36. 155 Cabe lembrar que militantes e grupos católicos costumam usar recorrentemente o termo “excluídos”, além de darem muita importância para Manifestações como o Grito dos Excluídos.

Page 168: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

168

de setores com alta rotatividade da mão de obra e de baixa remuneração. Como

“trabalhadores pobres”, “excluídos” descreveria aquela parcela dos trabalhadores

que se organiza em MSUs156.

Além das possíveis dificuldades para a construção de identidades coletivas, o

uso desses termos estava associado também à outra questão. Para alguns

militantes dos diferentes movimentos sociais ou partidos de esquerda, a posição

ocupada pelas pessoas ou grupos na produção, ou suas formas específicas de

inserção no mercado de trabalho (e consequentemente também os movimentos que

as representam), seria um fator determinante de sua condição e potencialidade

como sujeito político. Essas análises e crenças sustentam um jogo de poder pelo

qual alguns militantes e movimentos se consideram ou são apontados, a priori, como

mais importantes ou potencialmente mais revolucionários do que outros. Essa

questão se apresentava da seguinte forma: os operários industriais (que seriam os

verdadeiros produtores de mais-valia), e seus movimentos e entidades são o

principal sujeito revolucionário, sendo uma fração tão especial da classe a ponto de

se confundir com a classe: classe trabalhadora igual à classe operária igual a

sindicatos operários. Outros segmentos dos trabalhadores ou movimentos que

organizam, por exemplo, lutas urbanas, seriam considerados atores secundários ou

que atuam em contradições secundárias para o capital157.

Entre os MSUs, essas diferentes nomenclaturas são utilizadas no dia a dia de

forma muito mais política do que teórica. Com a relativa exceção dos momentos em

que acontecem cursos de formação política, nos quais estudos e debates mais

teóricos estimulam a reflexão sobre alguns conceitos, no restante do tempo essa

questão aprece inserida em outras preocupações. Uma delas é a tentativa de

156 Segundo Mattos, corriqueiramente se chamava de excluídos os proletários, mas isso não significaria que não existissem, de fato, estratégias de exclusão: “São proletários, pois nada possuem além da sua força de trabalho para mercadejar, conseguindo vendê-la ou não. Não possuem condições de fugir ao mercado, que os cerca o tempo todo. Sua experiência no local de moradia (na favela e na periferia) é uma experiência de classe, assim como suas dificuldades para comer, para se transportar, para reproduzir sua existência são experiências de classe. (...) O que não nos deve tornar cegos para o fato de que as necessidades de controle dessas massas proletárias e principalmente de seus setores mais atingidos pelo desemprego e a precarização, levam o capital a criar, através do Estado, estratégias de exclusão de fato (vide o crescimento da população carcerária), quando não elimina fisicamente grande quantidade de pessoas, em sua maioria jovens, negros e moradores de periferias e favelas”. (MATTOS, 2009, p 70) 157 Segundo a interpretação de classe aqui adotada, a importância relativa de determinados movimentos ou frações de classe advém de suas ações e experiências, da história, e não da posição ou local que ocupam na produção, por mais importantes que algumas posições e locais possam ser para a valorização do capital.

Page 169: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

169

rechaçar nomenclaturas que parecem carregar o peso de certos preconceitos ou são

vistas como pejorativas. Termos como marginais e lumpemproletariado, ou

simplesmente lumpem, pareciam causar certo desconforto entre militantes dos

MSUs e poucas vezes eram utilizados.

De forma geral, os militantes dos MSUs costumam usar os termos

trabalhadores, classe trabalhadora e trabalhadores pobres para se autonomearem.

Ao se apresentarem como trabalhadores e, principalmente, como classe

trabalhadora, ajudariam a criar uma identificação de seus movimentos e militantes

com outros movimentos e seus militantes. Já o termo “trabalhadores pobres”

costuma ser usado para reafirmar uma condição própria, uma distinção, uma

caracterização dos MSUs como representantes por excelência de uma parte dos

trabalhadores, aqueles mais pobres, que mais sofrem com as desigualdades e que,

como consequência, formariam uma fração de classe com mais necessidade,

legitimidade e disposição para lutar.

Estariam, dessa forma, subvertendo a afirmação de Bourdieu segundo a qual

“as classes mais desfavorecidas do ponto de vista econômico não intervêm jamais

no jogo da divulgação e da distinção, forma por excelência do jogo propriamente

cultural que se organiza objetivamente em relação a elas”. (BOURDIEU, 2005, p. 24)

Marcam, assim, sua posição naquele jogo de poder comum ao campo da militância

de esquerda relacionado às nomenclaturas e posições ocupadas na produção, se

distinguindo de outros segmentos dos trabalhadores e suas organizações “mais

burocratizadas e acomodadas”.

A questão da alteridade, da identificação do inimigo que aparece quase como

o outro necessário, é também um aspecto poderoso na conformação identitária. Do

ponto de vista da relação capital-trabalho, dizer que o outro do trabalho é o capital

parece um tanto óbvio entre os militantes dos movimentos sociais. A disseminação

dessa percepção entre os trabalhadores varia conforme a história e as experiências

de luta, sendo ela mesma parte da luta simbólica entre as classes.

Entre os MSUs, se percebe, através de conversas, textos e discursos, que as

referências aos seus inimigos apontam, de maneira geral, para o capital imobiliário,

ou simplesmente para o capital, para os proprietários de terra, o Estado, os ricos, os

políticos, para a justiça “injusta”, o capitalismo, a burguesia, a classe dominante ou

mesmo a classe média. Já quando os participantes desses movimentos,

Page 170: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

170

especialmente os dirigentes, estavam diante de outros movimentos sociais, em

reuniões de fóruns como a PMS, em manifestações ou conversas informais com

militantes, era comum vê-los falando de forma mais abrangente sobre seus inimigos.

Nesses momentos, referências à classe média, aos proprietários ou ao capital

imobiliário davam vez às referências ao capitalismo, ricos, burguesia, classe

dominante e ao Estado burguês.

Essa adaptação discursiva conforme seus interlocutores sugere uma ação,

mais ou menos consciente, de busca por desenvolver alianças, identidades e

alteridades comuns com outros movimentos e segmentos dos trabalhadores158 e

com seus demais aliados. A forma como é operada essa construção de identidade e

alteridade nos e pelos MSUs é um indicativo do modo como buscam influenciar e

participar do fazer-se da classe trabalhadora.

As várias interpretações expostas indicam que as classes sociais não são

derivadas das estruturas econômicas da sociedade, mas se constituem como

agentes sociais e políticos conforme a ação e as experiências comuns produzidas na

luta e pela vivência das contraditórias relações capitalistas de produção. As classes

precisam ser feitas, e de maneira mais ou menos autônoma com relação aos

intelectuais e outros detentores de capital simbólico/cultural. Esse fazer-se não se

atualizaria senão a partir de lutas e da constituição de grupos que organizem os

trabalhadores e criem condições para a superação do senso comum e a emergência

de identidades e da consciência de classe. Classe esta vista como um resultado,

mas, sobretudo, como um processo, no qual a consciência dos trabalhadores é

transformada e reflete as múltiplas experiências, lutas, culturas e formas de

organização que as produziu, e não predeterminações teóricas ou políticas.

158 É ilustrativo dessas formas de denominação entre os MSUs o seguinte exemplo: Em outubro de 2013, quando foi aprovada a verba para compra e reforma do prédio da Manoel Congo, presenciei uma entrevista concedida por Lurdinha, da coordenação do MNLM, ao Boletim do Vereador Renato Cinco do PSOL-RJ. Perguntada sobre o que representava aquela conquista, ela imediatamente respondeu: “uma vitória da classe trabalhadora”. Menos de três meses depois, em janeiro de 2014, quando participei de um seminário interno do MNLM-RJ para discutir a conjuntura e as perspectivas de luta no ano, ao falar sobre a participação dos jovens e trabalhadores pobres de empregos precários nas manifestações de 2013, a mesma Lurdinha e outros militantes do movimento reagiram: “era o nosso povo, nossa classe”. Esse exemplo indica que os militantes dos MSUs se percebem como parte ou representação de um segmento dos trabalhadores, e mais especificamente ainda de uma fração de classe em luta, mas que ao falarem para outros atores políticos, falam em classe trabalhadora, sem adjetivos ou distinções, promovendo assim, com maior ou menor intencionalidade, uma ideia de unidade de classe, uma identidade que extrapola a daquela fração mais específica.

Page 171: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

171

Com esse entendimento sobre classes, é possível concluir, mesmo se ainda

parcialmente, que os MSUs, conforme agem - organizando pessoas, formulando

ideias e intervindo na história - tornam-se parte ativa desse processo de fazer-se da

classe trabalhadora e de sua consciência. Ao organizarem um segmento dos

trabalhadores que tradicionalmente pouco se organiza em sindicatos ou partidos, e

ao colocá-lo em movimento, favorecem diretamente o fazer-se de uma fração de

classe que, em certas circunstâncias, pode se fundir com outras frações e fazer a

classe trabalhadora.

Conforme as questões identificadas anteriormente, a respeito da propriedade

privada, do Estado, das lutas contra a criminalização, para além das políticas

urbanas, da reprodução da força de trabalho e das condições de vida e trabalho nas

cidades, percebe-se que os MSUs, mesmo com todas as fragilidades e em meio a

uma conjuntura adversa, realizam um verdadeiro trabalho de toupeira. Formulam e

divulgam práticas, críticas e políticas que expressam a composição por

trabalhadores pobres - entre outras que podem ser entendidas como expressões de

classe - e organizam ações que influenciam suas bases, seus aliados, apoiadores e

que, como indicam as manifestações de 2013, podem obter grandes repercussões.

Por tudo isso, sua contribuição no processo de fazer-se da classe trabalhadora pode

ser não apenas relevante como também fundamental.

3.3 O 3º diálogo: os movimentos sociais urbanos no Brasil

Neste trabalho não será possível apresentar um debate mais exaustivo sobre

a história e a historiografia acerca dos movimentos sociais urbanos no Brasil. Busca-

se aqui, em primeiro lugar, contextualizar o presente estudo entre os que vêm se

desenvolvendo no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980. Para isso, é necessário

identificar alguns traços de rupturas e permanências na história dos MSUs no Brasil

e na produção teórica e histórica sobre eles. O objetivo é perceber as formas que a

historiografia explica e define os MSUs, se e como relaciona MSUs e classes sociais

e quais seriam as principais questões e características apontadas para descrever e

analisar essa relação.

Os anos finais da década de 1970 e os anos 1980 formam um período

especial da história do Brasil, sobretudo para a classe trabalhadora. Nesses anos,

Page 172: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

172

viu-se o renascimento das lutas populares, a organização de diversos tipos de

movimentos e entidades e a busca pela conquista de direitos sociais nas mais

variadas esferas da vida, muitos desses depois inscritos na nova Constituição

Federal aprovada em 1988. Manifestações e campanhas pela anistia, contra a

carestia e por “Diretas Já” mobilizaram milhões.

Diferentes movimentos de base se uniram, por exemplo, na luta pelo direito à

saúde pública e, depois de organizadas as conferências nacionais populares sobre o

tema, foi inserido na Constituição o direito universal a saúde através da criação do

Sistema Único de Saúde (SUS). Na área da educação, foram aprovados índices

mínimos de investimento orçamentários para todos os níveis do Estado, a autonomia

universitária e consolidada a ideia de que esse era um direito de todos. Conquistou-

se também o direito à livre organização em partidos políticos, sindicatos (inclusive

para servidores públicos) e movimentos sociais, além do direito de greve, a liberdade

de expressão e manifestação e a volta das eleições direitas. Foram reconhecidos

também direitos do consumidor e de diversas “minorias” e populações tradicionais,

criando-se as bases para, nos anos seguintes, ser aprovado o Estatuto da Criança e

Adolescentes (ECA), o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Igualdade Racial, do

Torcedor etc.

No campo mais específico das lutas e direitos relacionados à habitação e às

cidades, foi instituído na lei o direito à moradia e aprovadas bases para a posterior

consolidação do Estatuto das Cidades, tema que mobilizou movimentos,

associações profissionais e intelectuais e ajudou a conformar o ideário da reforma

urbana. Associações de moradores de bairros e favelas foram criadas ou recriadas e

movimentos de mutuários do sistema financeiro de habitação questionaram jurídica

e politicamente as políticas de financiamento habitacional então vigentes. Surgiram

também diversas e novas formas de luta e organização popular por moradia e por

serviços e equipamentos urbanos. E muitas dessas lutas e organizações estiveram

no olho desse furacão que tanto modificou a sociedade brasileira, a experiência das

classes populares e o imaginário social e acadêmico a respeito delas. É

especificamente sobre essas lutas, movimentos e, principalmente, sobre os estudos

realizados sobre eles que se refletirá agora, num diálogo (histórico) em busca de

questões consideradas mais relevantes para o entendimento das relações entre

MSUs e classes sociais no Brasil.

Page 173: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

173

Desde 1964 o Brasil vivia sob um regime ditatorial. A ditadura militar havia se

instalado com significativo apoio em meio a uma dividida sociedade civil e

derrubando um governo eleito que prometia realizar amplas “reformas de base”159. A

ditadura conheceria seus anos de maior recrudescimento a partir de 1968. O início

da década de 1970, sob o Governo Médici, é considerado o seu período mais duro.

Boa parte dos grupos de esquerda e dos militantes sociais que até 1968 vinham

organizando a luta contra a ditadura através de ações de massa - principalmente no

movimento estudantil, mas também nos sindicatos de base operária -, tinham

apostado no enfrentamento aberto ao regime e na luta armada. No período final dos

anos 1960 e no início dos anos 1970, esses grupos e militantes foram caçados,

presos, torturados ou mortos, quando não conseguiam sair do país em busca do

exílio. A repressão ao movimento estudantil e ao que restava de mais combativo

entre os sindicalistas (principalmente depois das greves de Osasco-SP e Contagem-

MG, em 1968), praticamente impediu que qualquer nova manifestação de massa

fosse realizada nesses anos.

Ao mesmo tempo em que a repressão calava os opositores, as condições de

vida no campo e o acelerado crescimento econômico, que criava oportunidades de

emprego nas grandes cidades, estimularam uma grande onda migratória campo-

cidade. O crescimento das cidades e da população urbana, no entanto, não era

acompanhado de políticas urbanas que conseguissem atingir e beneficiar o conjunto

dos trabalhadores. A política habitacional favorecia mais as classes médias e altas e

os altíssimos níveis inflacionários corroíam por dentro o sistema de financiamento

habitacional e os salários.

Enquanto isso, os trabalhadores mais pobres, sem qualquer auxílio do Estado

(e por vezes mesmo reprimidos por esse), construíam suas moradias em favelas e

assentamentos informais em morros e periferias, sem infraestrutura urbana e acesso

aos serviços públicos, e cada vez mais distantes dos centros e das oportunidades de

emprego. Os baixos investimentos em saneamento, transporte, saúde, educação se

somavam aos baixos e arrochados salários e ao aumento do custo de vida,

reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais e as urbanas em particular,

159 O Presidente João Gullar fora eleito Vice- Presidente da República e assumiu a presidência com a renúncia do Presidente Jânio Quadros. Jango era do PTB e apoiado pelo PCB e por amplos setores do movimento sindical e estudantil. Entre as prometidas reformas de base, destacam-se as reformas agrária e urbana.

Page 174: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

174

tornando muito duras as condições de vida da população trabalhadora nas grandes

cidades.

Foi nesse contexto de duras condições de vida e forte repressão aos

sindicatos, movimentos e partidos políticos160 que, a partir de meados dos anos

1970, começaram a surgir diversas manifestações contra o sistema de transportes

(com os quebra-quebras de trens e ônibus), exigindo melhorias na saúde e

educação, ocupações de terra para moradia, protestos organizados por bairros

contra o aumento do custo de vida, por saneamento básico etc. A Igreja Católica,

através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), acolheu manifestantes, que

passaram a se organizar contando com a participação e/ou apoio de novos e velhos

militantes da esquerda, impedidos de atuar em outras esferas políticas, e do novo

sindicalismo que surgia. Desse processo de lutas surgiram muitos movimentos

sociais urbanos; os quais alguns deles existem até hoje.

A volta das greves e manifestações sindicais, a partir de 1978, recolocou de

vez a classe trabalhadora (em seu pleno processo de fazer-se) no cenário político

nacional e na pauta de pesquisa dos cientistas sociais. As grandes greves de

massas, iniciadas pelos metalúrgicos em São Paulo – na capital e na região do ABC

– em pouco tempo eram também realizadas em todo o Brasil por diversas

categorias, dirigidas por sindicatos oficiais ou oposições sindicais, que exigiam

melhores condições de trabalho, de vida e o fim da ditadura. Também no campo viu-

se a volta das ações de massa, através de ocupações de terra para a reforma

agrária e nas lutas de trabalhadores de canaviais, dentre outras.

3.3.1 Novos e velhos movimentos sociais urbanos

Militantes de esquerda e intelectuais – entre os quais se destacavam vários

novos pesquisadores161 – passaram então a voltar suas atenções para esses

160 Note-se que esse contexto foi apresentado de forma muito simples, apenas como um recurso para introduzir o tema que será objeto de reflexão. 161 Segundo Perruso, nesse período, surgiram também novos intelectuais, vinculados às universidades e aos novos movimentos populares. Ele diz: “Relacionado à inflexão fenomenológica e mais à postura “internalista” do que a “externalista”, havia, no meu entender, um elemento ao mesmo tempo teórico e político presente na produção dos “novos” intelectuais: a ênfase num ‘antiinstitucionalismo’ (...) Esse elemento se vincula a uma característica fundamental imputada ao ‘novo sindicalismo’ e aos ‘novos’ movimentos sociais urbanos, a defesa da autonomia dos movimentos populares”. (PERRUSO, 2009, p. 259)

Page 175: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

175

movimentos que surgiam em plenos anos 1970 e que, em breve, seriam chamados

de “novos”: novo sindicalismo e novos movimentos sociais (urbanos):

O uso do termo “novo sindicalismo” foi muito disseminado nos meios intelectuais e políticos do Brasil a partir dos anos 1970. Já quanto aos movimentos sociais urbanos inexiste a expressão “novos movimentos sociais urbanos”, seja porque praticamente não havia um campo de estudos de movimentos sociais urbanos no Brasil pré-64 – uma vez que não seria muito comum qualificar algo de “novo” se mal havia o “velho” (...) Mas para além de categorias ou conceitos, havia uma ênfase analítica e teórica em elementos “novos” dos movimentos sociais urbanos existentes no pós-64. (PERRUSO, 2009, p. 23) No final dos anos 70, quando se falava em novos movimentos sociais (...) tinha-se bem claro de que fenômeno se estava tratando. Era sobre os movimentos sociais populares urbanos, particularmente aqueles que se vinculavam às práticas da Igreja católica, na ala articulada à Teologia da Libertação. A denominação buscava contrapor os novos movimentos sociais aos ditos já velhos, expressos no modelo clássico das sociedades amigos de bairros ou associações de moradores162. (GOHN, 2007, p. 281)

As análises sobre os novos movimentos sociais urbanos e suas lutas, como

frisado por Perruso (2009) e por Gohn (2007), passaram a ressaltar aspectos tidos

como novos, como heterogeneidade de suas bases sociais, a autonomia dessas

lutas e movimentos, suas formas de organização fundadas na democracia direta ou

de base, suas mobilizações massivas e combativas, a incapacidade do Estado de

negociar ou resolver os problemas demandados, transformando-se no principal alvo

e inimigo desses movimentos, e a proximidade entre as lutas urbanas e sindicais.

Perruso (2009) contabilizou e sistematizou as características mais citadas

sobre esses movimentos. Eram elas: a) usuários frequentes da ação direta e de

práticas auto-gestionárias; b) reivindicativos junto às diversas autoridades do Estado

e setores empresariais; c) reivindicativos em diversas questões (habitação,

transportes públicos, saúde, creches, etc.); d) críticos em relação a movimentos e

entidades tradicionais de moradores, ignorando-as ou disputando suas direções; e)

autônomos, muitas vezes anti-estatais e anti-institucionais; f) comunitaristas e

162 Gohn, ao apresentar o que seria um paradigma Latino-Americano sobre os movimentos sociais, e que teve seus alicerces construídos nesse período, diz ainda, que: “a diferenciação básica não é entre os novos movimentos sociais (questões de gênero, raça, sexo, ecológicas etc.) e antigos (movimento operário clássico), como na Europa; a diferença é entre novos (lutas pela moradia e equipamentos coletivos em geral) e antigos movimentos populares (tipo sociedades amigos de

Page 176: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

176

igualitaristas; g) interclassistas, com base social heterogênea em termos de

ocupação, mas compostos por pessoas pobres e/ou das periferias e por vezes com

a presença de setores das classes médias; h) construtores de lutas organizadas e

processuais, lançando mão de conhecimentos do universo popular e da assessoria

de profissionais especializados; i) espontâneos, as vezes sem maior organização; j)

ciosos do trabalho de base e da democracia interna, massivos, resultando na

formação de uma nova geração de militantes populares; k) valorizadores das

experiências cotidianas e da vivência subjetiva das questões e problemas dos

setores populares; l) influenciados pelas pastorais da Igreja Católica, via Teologia da

Libertação e CEBs, e por grupos de esquerda, especialmente os dissidentes,

havendo ativistas com e sem experiência prévia em movimentos; m) criadores de um

novo espaço público para o exercício da cidadania e a luta por direitos.163

(PERRUSO, 2009, p. 204-205-206)

A seguir, após o quadro geral das características mais ressaltadas dos novos

movimentos sociais urbanos dos anos 1970-80, serão apresentadas uma série de

passagens retiradas de importantes textos de autores que ajudaram a conformar o

campo de estudos sobre os movimentos sociais urbanos no Brasil164. São análises

que ajudam a entender a conjuntura da época, as lutas, com seus distintos motivos,

objetivos e formas de ação, os movimentos sociais que se constituíram nesse

processo - muitas das características listadas na compilação de Perruso - e,

principalmente, a relação dessas lutas e movimentos com as classes sociais e os

recursos teóricos usados para analisar essa relação.

Em parte dessas análises, a questão urbana, ou as contradições e

“espoliações” urbanas (e seu acirramento), aparecem como motivo e fonte

explicativa para as lutas e movimentos urbanos. Essas explicações, além de

inovadoras, seriam importantes por apontarem como causa para esses protestos

bairros), onde imperavam práticas de cunho populista e clientelista. Observe-se que a diferenciação básica se dá na forma de fazer política” (GOHN, 2007, p. 227-228). 163 Perruso pesquisou quais eram “os atributos dos novos” mais citados dos movimentos sociais urbanos a partir da análise dos trabalhos dos seguintes autores: Ruth Cardoso, Eunice Durham, Pedro Jacobi, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Paul Singer, Maria da Glória Gohn, Vera da Silva Telles e José Álvaro Moisés & Verena Martinez-Alier. (PERRUSO, 2009, p. 204). 164 Segundo Perruso: “O campo dos estudos sobre movimentos sociais urbanos principiava no Brasil (...) Efetuavam-se pesquisas em que eram apontados fatores de distinção analítica e teórica entre os movimentos sociais urbanos e o movimento operário/sindical. Com isso, propiciava-se a autonomização do campo de estudos sobre movimentos sociais urbanos, desvinculando-o do campo

Page 177: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

177

contradições propriamente urbanas, ao invés de meras decorrências da contradição

geral entre capital e trabalho. Conferiam, segundo Telles, estatuto teórico a

movimentos que não encontravam lugar nos referenciais tradicionais165. No entanto,

explicar os movimentos por essas contradições (urbanas, objetivas) podia ser

também uma forma de obscurecer seus significados, como aponta a mesma autora:

Ao deduzir das “condições objetivas” a emergência, a existência e o futuro desses movimentos, na verdade, deixa-se de problematizá-los. (...) de acordo com o lugar que ocupam no conjunto das contradições existentes, tendem a ser vistos como manifestações de uma essência (democrática ou revolucionária e anticapitalista, conforme o enfoque privilegiado por cada autor). (...) Seus significados não são desvelados das condições criadas pelos próprios movimentos ao fazerem-se. São, na verdade, atribuídos. (TELLES, 1987, p. 78-79)

Kowarick (1988) também aborda a importância do uso desse referencial

teórico para a análise dos movimentos urbanos surgidos nos anos 1970-80. Na

segunda das duas passagens citadas abaixo, das Considerações Finais do livro, ele

também problematiza as análises que, sem as devidas mediações, tentam explicar

as lutas e movimentos sociais pelas contradições urbanas:

Falta ainda muito esforço teórico e de pesquisa para obter instrumentos conceituais adequados que deem conta da problemática referente à ligação entre exploração do trabalho e espoliação urbana (...) há pelo menos um intento de descrever estas relações, e fazê-lo de modo a não colocar os movimentos que se voltam para a conquista de melhorias urbanas como meros tributários dos embates que se processam no âmbito da exploração do trabalho. (...) a partir daquilo que foi denominado de novas contradições urbanas. (KOWARICK, 1988, p. 22-23) Neste mundo destituído de mediações, em que a exploração, espoliação ou opressão tornam-se variáveis explicativas externas e lineares do movimento social, sua causalidade passa a ser decorrente do agravamento das condições de vida das classes populares. Estas interpretações esquecem-se de que entre estas condições e os embates sociais avoluma-se todo um complexo e

dos estudos do movimento operário/sindical, centrado na esfera do trabalho.” (PERRUSO, 2009, p. 153) 165 Vera Telles afirma que “as discussões acerca da chamada ‘questão urbana’ tinham importância no sentido de conferir estatuto teórico a movimentos que não encontravam lugar nos referenciais tradicionais, voltados para a análise da ‘classe operária na fábrica no sindicato no partido’. (...) De fato, no interior dos paradigmas tradicionais pelos quais se interpretava a presença dos trabalhadores urbanos (...) esses movimentos só poderiam ocupar um lugar subordinado de ‘forças secundárias’ porque não atinentes às ‘contradições principais’ do capitalismo. Ou então, porque dizendo respeito ao plano do consumo, esses movimentos poderiam dar origem a um reformismo que os tornava presa fácil da manipulação populista.” (TELLES, 1987, p. 67)

Page 178: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

178

diverso processo de produção cultural (...) que, em certas conjunturas, dão vida, movimento às ditas contradições imperantes na sociedade. (KOWARICK, 1988, p. 320)

Kowarick problematizava ainda o que seria uma importação

descontextualizada desse conceito: “boa parte dos pesquisadores, colando-se nas

análises realizadas, principalmente por Castells, importou o conceito de contradições

urbanas para uma urbanização capitalista inteiramente diversa daquela que

caracteriza os países centrais”. Ele questionava a utilização de um conceito “de

abrangência macroestrutural” para explicar as lutas então desenvolvidas nas cidades

brasileiras, “pois o risco estaria em atrelar os movimentos urbanos às assim

chamadas condições materiais objetivas.” (KOWARICK, 1988, p. 317) Jacobi, a

partir de argumentos diferentes, também criticava essa importação conceitual:

Em sua grande maioria, os movimentos sociais urbanos estão relacionados com a deterioração e a precariedade das condições reprodutivas, em suas dimensões cotidianas. Portanto, a ênfase na questão da crise urbana pertinente aos países capitalistas avançados não é adequada para explicar a realidade latino-americana. (JACOBI, 1987, p. 255)

Jacobi (1987) observava ainda a composição “nitidamente popular” dos MSUs

no Brasil:

Não se pode restringir a análise dos movimentos sociais apenas àqueles que apresentam uma base nitidamente popular urbana, na medida em que os problemas decorrentes das transformações no modo de vida afetam não só a população mais pauperizada, mas também outros grupos sociais, gerando por exemplo o movimento ecologista, o movimento homossexual, o movimento negro, o movimento feminista. (JACOBI, 1987, p. 260)

Na primeira parte do Capítulo II, foi visto que as contradições urbanas e a

deterioração das condições de vida nas cidades, mesmo quando afetam os

trabalhadores de forma generalizada, não motivam uma participação generalizada

dos trabalhadores nos movimentos sociais urbanos cariocas do século XXI. Pelo que

se percebe através das passagens citadas sobre os anos 1970-80, abordando

principalmente as experiências de São Paulo, também lá, naquela época, os

movimentos urbanos organizavam, sobretudo, os trabalhadores mais pobres,

indicando que essa seria uma característica recorrente entre os MSUs no Brasil

Page 179: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

179

(característica que será examinada mais detidamente à frente, ainda nesse 3º

Diálogo).

Quanto às contradições urbanas, se elas não explicam (ao menos sem as

devidas mediações) a emergência, e menos ainda a composição social e as formas

de ação e organização desses movimentos, parece que esses movimentos se

ancoram sim nessas contradições e problemas tipicamente urbanos. Não obstante

as contradições urbanas, na maior parte das análises, apareciam relacionadas ao

Estado, tanto por ser o responsável por essas contradições, quanto porque teria os

meios para resolvê-las. Dessa forma, o alvo dessas lutas e manifestações seria o

Estado (incapaz, espoliativo ou burguês), o que não teria por consequência a

difusão das lutas dos trabalhadores, mas favoreceria uma maior politização dessas

lutas e movimentos. Associado às contradições urbanas, o Estado se tornava fator

explicativo para emergência dos MSUs e para a politização de suas lutas.

Moisés e Martinez-Alier (1977) apontavam a existência de algo novo nos

processos de mobilização popular, como nos “quebra-quebras” de trens, que

estariam adquirindo maior continuidade e politização. Segundo eles, as novas

formas de reinvindicações populares se deviam ao acirramento das contradições

urbanas e das condições de vida e da incapacidade do Estado de resolver esses

problemas:

Sua continuidade parecia indicar que algo de novo estava ocorrendo entre as massas populares urbanas que, agora, ofereciam uma reação qualitativamente nova diante de suas difíceis condições de existência material. A questão dos quebra-quebras se politizava e, diante da impossibilidade do Poder Público em oferecer soluções adequadas e duráveis (...) o impasse se mantinha. (MOISÉS e MARTINEZ-ALIER, 1977, p 17) O acirramento das contradições urbanas fizeram emergir novas formas de reivindicação popular e pressão sobre o Poder Público. Alguns organismos, como comunidades de base da Igreja Católica ou outros, como os Clubes de Mães da periferia, que se desenvolveram em torno daquelas, passaram a desempenhar as funções de coordenação das atividades de várias associações locais (...) e dirigiram o surgimento de uma nova onda de reivindicações diretamente ao Estado. (MOISÉS e MARTINEZ-ALIER, 1977, p. 51)

Oliveira (1977) apontava a atuação do Estado - “capturado pela burguesia” e

“principal agente” e “obstáculo” da urbanização - como aspecto fundamental para o

entendimento das lutas da época. E Moisés (1982) era ainda mais incisivo ao

Page 180: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

180

relacionar o surgimento desses novos movimentos às contradições urbanas e à luta

contra o Estado:

Se a cidade foi o espaço por excelência do conflito de classes entre burguesia e proletariado, a urbanização da economia e da sociedade amplia esse espaço; se essa urbanização tem no Estado capturado pela burguesia internacional-associada seu principal agente e simultaneamente seu principal obstáculo, esse espaço não apenas se amplia: se redefine para colocar no centro da contradição o próprio Estado. (OLIVEIRA, 1977, p 75) Essa incapacidade do Estado, gerada pelas raízes de classe de sua gestão dos serviços de consumo coletivo (...) criou as condições para que surgissem, entre as classes populares dos grandes centros urbanos, os movimentos de reivindicação de serviços sociais urbanos, cuja carência afetava as condições populares de sobrevivência na metrópole. Por essa razão, é necessário examinar, um pouco mais de perto, a natureza dessas contradições, cuja emergência coloca o Estado no centro das atenções (MOISÉS, 1982, p 15).

Nunes e Jacobi (1982) também enfatizavam o caráter excludente da

urbanização e “espoliativo” do Estado, que geraria a “situação de moradores

subalternos”, contexto no qual se multiplicavam as lutas “das classes populares” por

“cidadania” (regularização de loteamentos, água, esgoto, transportes, creches, etc).

Lutas estas que seriam caracterizadas por sua autonomia perante outros grupos

sociais e o Estado, pela elaboração de novos padrões organizatórios e por uma

“ruptura” com as práticas “populistas do passado”:

O papel do Estado tem sido fator fundamental no processo espoliativo, em decorrência da orientação excludente da política de investimentos públicos, tornando-se gradativamente o principal responsável pela precariedade da vida da população, que cada vez mais estava sendo relegada a uma situação de “moradores subalternos”, sem direito ao usufruto das benesses da urbanização. A partir de 1976-1977 estes movimentos se multiplicam, surgindo nos mais distantes bairros diferentes formas de organização, que resultaram na capacidade de articulação dos moradores na luta pelo direito à cidadania, questão significativa que se coloca para a prática política das classes populares. Colocam-se nesta perspectiva as lutas em torno da regularização dos loteamentos clandestinos, os movimentos por água e esgotos, transportes, creches, postos de saúde e mais recentemente dos favelados. (...) apresentando como característica básica a afirmação da sua autonomia e independência perante outros grupos sociais e o Estado, determinando a formulação de novos padrões organizatórios e uma ruptura com as práticas populistas do passado. (NUNES e JACOBI, 1982, p. 178)

Page 181: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

181

Singer (1980) ressaltava os aspectos de novidade desses movimentos e lutas

surgidos “em bairros periféricos”. Ao apresentar um contraste com o que era visto

em anos anteriores, colaborava com um processo que viria a constituir a noção de

“novos” movimentos sociais urbanos e que, ao mesmo tempo, constituía também os

“velhos” movimentos. Além de ressaltar a importância das CEBs, nota-se que para

Singer, uma característica fundamental que diferenciava os movimentos surgidos

nos anos 1970 era o que ele chamava de proposta “para dentro”, o que levaria a

uma menor dependência ou barganha com o Estado (que seria uma característica

típica dos “velhos” movimentos sociais urbanos e das práticas populistas do

passado, “sobretudo na década dos cinquenta”).

O que caracteriza o novo movimento de bairro, em São Paulo, em contraste com o antigo (das SABs), é que ele surge a partir de uma proposta para dentro: criar uma nova consciência, uma mentalidade de união para a auto-ajuda (...) A ação para fora decorre desta atitude e as reivindicações levantadas assumem o caráter de exigência de direitos e não de dádivas a serem obtidas mediante barganha com os representantes do Estado. Há forte tendência no sentido de preferir a auto-ajuda sempre que possível, só se apelando à intervenção do Poder Público quando o problema ultrapassa as possibilidades de solução pelos próprios moradores. Muitos destes casos ocorrem quando a comunidade é agredida, seja por ordens de despejo, seja pela proximidade de lixões ou córregos (SINGER, 1980, p. 104-105).

Karner (1987) buscava caracterizar os movimentos vistos nos anos 1979-80 a

partir do que considerava como novidades expressas na cultura política desses

movimentos:

Com uma nova concepção política, que não está apenas voltada para a conquista de um futuro melhor distante – mas que levanta como meta a realização de uma existência cotidiana digna de viver, e que se vai obtendo também a cada dia –, começa a luta pela eliminação da alienação cotidiana. Esse processo inclui a possibilidade de ensaio de formas de comportamento a longo prazo – e não apenas num sentido econômico – e de desenvolver níveis da existência, que embora não realizem ainda o ideal de uma sociedade horizontal, não-hierarquizada e igualitária, o tornem mais próximo (KARNER, 1987, p. 33).

Brant (1980) mostrava que, além das contradições e espoliações urbanas,

fatores da ordem da política e cultura da época também eram importantes para

entender as lutas e movimentos em questão:

Page 182: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

182

O bloqueio de canais institucionais de representação popular – como os partidos políticos, as câmaras legislativas, os sindicatos e associações de massas – estimulou o uso dos laços primários de solidariedade na sobrevivência diária da população. Relações de vizinhança, parentesco, compadrio ou amizade, permitiam a proteção imediata dos indivíduos diante de um clima social de medo. Foi em boa parte o desenvolvimento desses laços diretos entre pessoas, que confiavam umas nas outras, que deu origem a vários movimentos de base. Associações comunitárias, grupos políticos de crescimento molecular, comissões de fábrica, movimentos culturais, clubes de mães ou de jovens, grupos de oposição sindical, tendências estudantis, enfim uma variada gama de movimentos localizados e dispersos fundamentava-se na confiança direta entre seus membros e na consciência de seu desamparo diante das instituições mais vastas. (BRANT, 1980, p 13-14)

Singer, Karner e Brant apontavam novidades e características (autoajuda e

ação para dentro no caso de Singer; meta de mudanças imediatas nas formas de

vida e comportamento no caso de Karner; e organizações localizadas e “de base”

fundadas em laços de confiança direta no caso de Brant) que poderiam ser

consideradas respostas políticas construídas para lidar com a conjuntura da época.

Atentar aos caminhos percorridos na reelaboração das práticas ajudaria a evitar a

essencialização das características dos novos MSUs e que os “velhos” não fossem

estereotipados nem tivessem suas histórias reduzidas às barganhas e práticas

populistas166. O passado estaria sendo construído a partir de categorias (vistas como

positividades) associadas aos novos movimentos: “Através das noções de ação e

participação coletivas que se construía uma representação do passado, percebido

como experiência de impotência” (TELLES, 1988, p. 275).

Para Scherer-Warren a identidade dos novos movimentos baseava-se num

“fato estrutural”: o “reconhecimento do povo” ao invés da classe, e num “fato

cultural”: a internacionalização de uma cultura crítica baseada no anarquismo

(SCHERER-WARREN, 1987, p. 39-40). A noção de “novos” era construída em

oposição aos “tradicionais”, que seriam expressões da sociedade industrial dividida

em classes com formas de atuação marcadas pela cultura política “clientelista”,

“assistencialista” e “autoritária”. Ela percebia contradições nas práticas dos novos

movimentos, mas na sua caracterização (construção) dos velhos, os “tradicionais”,

166 É muito provável também que certo sentimento de “acerto de contas” com o passado influenciasse nessa construção. Afinal, estavam sendo analisados “novos” movimentos mobilizados em plena ditadura, enquanto foram poucos os (velhos) que se mobilizaram quando ocorreu o golpe em 1964, o

Page 183: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

183

esses apareciam sem contradições ou mediações, de forma quase estereotipada167.

Outras vezes, essas diferenças entre os novos e velhos movimentos apareciam

quase como consequências diretas das condições econômicas e políticas. A

reafirmação da autonomia e da superação das práticas populistas e clientelistas

aparece, sem maiores indicações de como, por que, ou em que bases estariam

sendo reelaboradas essas práticas. A passagem seguinte de Nunes e Jacobi é um

exemplo no qual a autonomia “de todos os movimentos populares” é explicada

quase exclusivamente por seus resultados (o não esvaziamento dos novos

movimentos, em oposição ao esvaziamento dos cooptados):

A autonomia está hoje no horizonte de todos os movimentos populares que conhecemos. Desde o movimento sindical aos movimentos de bairro, passando evidentemente pelo movimento estudantil. Pode-se dizer que a autonomia seja um traço vital para os movimentos sociais e um indicador disso seria o fato de que as organizações forjadas por estes movimentos, uma vez cooptadas pelo Estado, via de regra se veem esvaziadas. É o caso de um grande número de Sociedades de Amigos de Bairro que foram ocupadas por pessoas comprometidas com o partido governista e que se viram abandonadas pelo povo. (NUNES e JACOBI, 1982, p 192)

A atuação independente ou em oposição ao Estado, em plena ditadura militar,

foi vista pelos pesquisadores como uma das características mais importantes dos

MSUs que surgiam. Essa exterioridade permitiria formar movimentos autônomos,

combativos, organizados na esfera da sociedade civil, rompendo com a tradição

histórica de dependência e subordinação ao Estado, o espaço da dominação e

opressão. Telles afirmava que a ênfase nessa caracterização não se devia apenas

às práticas em si dos movimentos e suas diferenças para o passado. Devia-se, em

grande medida, também à forma como os autores percebiam, naquele momento, a

que sugeria uma grande impotência e falta de combatividade ou autonomia, além de gerar sentimentos de frustração e decepção. 167 Segundo a autora: “A pausa em termos de organização da sociedade civil, que ocorreu imediatamente após 1964, de forma mais geral, pode representar o marco de separação entre o que se denomina movimentos sociais tradicionais e o surgimento de novas formas de organização ou o novo caráter de algumas das antigas organizações populares, pois algumas destas organizações continuam presas a suas formas tradicionais de atuação (clientelísticas, assistenciais e autoritárias). (...) Os movimentos sociais concretos expressam de forma variada, e em maior ou menor grau, a continuidade ou descontinuidade em relação à cultura política tradicional. (...) muitos dentre esses lutam contra as formas tradicionais de se fazer política neste país e propõem novas formas de ação política, ainda que às vezes com uma dificuldade inicial em ultrapassar o nível do discurso. (SCHERER-WARREN, 1987, p. 41)

Page 184: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

184

sociedade civil, a existência de uma “classe atuante” fora e contra o Estado, e aos

significados assumidos por esses movimentos ainda nos anos 1970:

Estava em jogo algo mais que um simples inventário daquilo que era tomado como sua diferença em relação ao passado. (...) os autores construíram (ou ajudaram a construir) uma imagem na qual estes apareciam como reivindicantes, combativos e sobretudo capazes de autodeterminação. (...) É uma “descoberta” construída junto com (ou através da) a elaboração de uma nova percepção da assim chamada sociedade civil. (...) foi fora do Estado (e das instituições) e contra o Estado que estes autores perceberam a existência de uma classe atuante. Esse me parece ser o significado da ênfase tão grande dada às “novas formas de participação” coladas ao cotidiano da moradia. Não se tratava, portanto, de uma simples descrição muda de características objetivamente encontradas nos novos movimentos. (...) a novidade que muitos viram nos movimentos populares não vinha da constatação empírica de práticas de luta dos trabalhadores. Tampouco da existência de movimentos articulados em torno de reivindicações que incidem nas condições urbanas de luta e não no terreno “clássico” da contradição capital-trabalho. (...) A novidade parece estar nos significados que esses movimentos assumiram no momento de seu aparecimento (TELLES, 1987, p. 57-58-59-60).

Silva e Ribeiro (1984), de forma crítica, também afirmavam que as análises

sobre os novos MSUs reforçavam as novidades conforme as necessidades políticas

da época. Segundo eles, foi criado assim um paradigma baseado em “polarizações

que antecipam as conclusões” e uma perspectiva dual do processo político, que

favorecia uma visão opaca e empobrecida sobre o Estado e que limitava a reflexão

sobre as contradições dos movimentos sociais168.

Silva e Ribeiro definiam o que seria, de modo simplificado, o núcleo central do paradigma dominante dos movimentos sociais urbanos no Brasil da época: uma concepção analítica que aborda as manifestações coletivas como modos de expressão populares, alternativas, independentes, espontâneas, não-institucionais e autodirigidas; que considera específicos os movimentos sociais urbanos, em relação a outros movimentos populares, sempre por contraste: menos institucionalizado remete a mais popular no sentido não-fabril do termo; vê o Estado como seu interlocutor privilegiado e enfatiza a capacidade transformadora dos movimentos sociais. (...) “a fixação, pelo paradigma, de um determinado padrão de confronto” leva a serem “procurados na análise, sobretudo, possíveis vínculos entre o aparelho de Estado, frações definidas do capital e o surgimento de mobilizações urbanas”, desprivilegiando-se “as tentativas de reflexão sobre as contradições internas aos

168 Essa breve reflexão é baseada na análise de Silva e a partir da sistematização de Perruso (2009), se referindo ao artigo de Silva e Ribeiro, “Paradigma e Movimento Social – Por onde vão nossas ideias (mimeo)”, publicado em São Paulo pela ANPOCS em 1984.

Page 185: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

185

movimentos sociais e as avaliações de seus limites políticos”. (PERRUSO, 2009, p. 220-221)

A constituição desse paradigma, marcado pelas influências da época e pela

forma como essas eram sentidas, significadas e elaboradas pelos pesquisadores e

militantes, fala sobre esses pesquisadores, sobre essa época e sobre os

movimentos sociais. São o próprio paradigma e as críticas sobre ele, parte do

contexto e rica fonte para reflexão sobre as representações acerca dos novos MSUs,

representações que influenciavam nas formas de ação, organização, nos discursos,

em suma, no fazer-se desses movimentos169.

Essas representações também exerceram (e de certo modo ainda exercem)

influência sobre pesquisadores e militantes de movimentos sociais. Ainda nos anos

1980, em meio às relevantes mudanças na sociedade brasileira e na esfera política

em particular, essa influência seria percebida nas reações e análises marcadas pela

perplexidade, decepção ou euforia quanto às mudanças nas práticas dos MSUs,

especialmente no que diz respeito às relações com o Estado170.

Ainda sobre o paradigma e sobre a construção do “novo” como categoria

analítica (e também política), algumas questões devem figurar entre as reflexões

sobre os MSUs nos anos 2000, principalmente quando é abordado o surgimento dos

“novíssimos” MSUs. A primeira é a possibilidade ou tendência de se estereotipar

negativamente o “velho”, normalmente usando categorias de análise dos novos, fato

comum na luta política e simbólica, tendência com a qual é necessário se ter

vigilância constante. A segunda tendência é, ao ressaltar as novidades, se

secundarizar as contradições inerentes a elas. A terceira, que também merece

permanente cuidado, é de se essencializar as características e novidades

percebidas nos movimentos, como se essas não guardassem relações com o

contexto social e político da época (e com as representações sobre esse contexto).

Nem, por outro lado, se satisfazer com explicações determinadas pelo contexto,

169 “Se para muitos esses movimentos assumiam o significado de uma ruptura com o passado e de uma promessa de futuro, isso não deve ser tomado como sinais de uma mera projeção intelectual ou política que deveria ser descartada em nome de uma maior objetividade da análise. Pois indagar sobre os significados que esses movimentos assumiram e que construíram, naquilo que foi tomado (e vivido) como o seu real, é uma forma de elucidar a experiência de uma época.” (TELLES, 1987, p. 81) 170 No linguajar político, seria dizer que aquele paradigma, com toda sua ênfase na independência e distanciamento ao Estado, “desarmava” os movimentos, se não os próprios analistas, para lidar com as novas práticas e correspondentes contradições vistas na institucionalidade brasileira ainda e a partir dos anos 1980.

Page 186: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

186

normalmente estruturais, ditas objetivas, que minimizem as representações

construídas pelos atores sociais e as respostas políticas elaboradas por eles (entre

as várias possíveis) para agir. Uma quarta tendência é a dificuldade de se identificar,

de um lado, o que é representação, característica ou significado “atribuído” ao

movimento (por pesquisadores ou pelos próprios militantes) e, de outro, aqueles

significados, na expressão já citada de Telles (1987), “desvelados das condições

criadas pelos próprios movimentos ao fazerem-se”.

As experiências dos MSUs nos anos 2000 indicam que as relações com o

Estado dificilmente se dão uniformemente ou sem contradições. Duas questões

aparecem, implícita e recorrentemente, nas discussões políticas dos MSUs e seus

aliados nos momentos em que estão organizando lutas e manifestações: Lutar

contra o governo é lutar contra o Estado? Lutar contra o Estado é lutar contra o

capital? O Estado é considerado burguês em diferentes análises e também em

documentos e falas de dirigentes de MSUs (cf. Capítulo I). Porém, na hora de definir

o itinerário de uma passeata, o local da ocupação ou manifestação, repetidas vezes

ouve-se que é necessário se dirigir até a sede da FETRANSPOR, da Odebrecht, da

Rede Globo, da FIFA ou da OGX, entre outras empresas privadas, “para a

manifestação ser contra o capital, e não só contra o Estado” (ou o governo). E essas

falas são de militantes (de movimentos) que dizem considerar o Estado burguês,

mas que acreditariam que para o conjunto dos trabalhadores e da população, o

significado da manifestação só será percebido como contra o capital se o protesto

ocorre em frente a uma dessas empresas.

Esse exemplo mostra que, independente das concepções políticas e teóricas

adotadas, os movimentos, com exceção daqueles mais rigorosamente doutrinários,

fazem mediações buscando dotar suas ações de significados que possam ser

entendidos por um conjunto maior de pessoas. Assim, em suas relações com o

Estado, apresentam respostas políticas conjunturais conforme as representações

sobre o Estado nos diferentes momentos políticos, que dependem do funcionamento

do Estado, dos governos etc. As mudanças no funcionamento do Estado tenderiam

a gerar mudanças na ação dos MSUs.

Page 187: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

187

Se em fins dos anos 1970 os novos movimentos que surgiam mantinham um

grande distanciamento com relação ao Estado171, ao longo dos anos esse

distanciamento foi diminuindo. Mesmo fazendo oposição ou lutando contra o Estado,

os movimentos terminavam por não mais evitá-lo e passavam a viver novas

contradições172. Aos quebra-quebras, ações baseadas na autoajuda e organizações

fundadas na confiança (das quais falaram Moisés, Singer, Karner e Brant, entre

outros), foram se somando ações reivindicatórias de toda ordem e movimentos com

diferentes graus de organização surgiram e se desenvolviam. A partir dos anos

1980, também como resultado das lutas desses movimentos, o Estado no Brasil se

modificava, dando início à “lenta, gradual” e conservadora “transição democrática”.

3.3.2 Novos movimentos sociais urbanos e novas e velhas questões

Ainda nos anos 1980, as análises acerca dos novos movimentos sociais

urbanos começaram a refletir essas mudanças. Passava-se a explorar mais as

contradições nas relações com o Estado, a formulação de novas propostas de

políticas públicas (algumas envolvendo diretamente os movimentos, na formulação

ou mesmo na execução) e a participação eleitoral. Refletia-se mais sobre a relação

entre os diferentes movimentos e grupos (urbanos, sindicais, partidos173) e discutia-

se mais a questão da vinculação de classe desses movimentos. A periferia ganhava

destaque nas análises como fator explicativo para o desenvolvimento das lutas

171 É possível que o distanciamento e (principalmente) a oposição ao Estado, tão destacados nas análises dessa época, tivessem, como propunha Ruth Cardoso, um caráter mais limitado, anti-governo: “Por conta da já citada dualidade entre Estado e sociedade civil, grande parte dos cientistas sociais interpretavam equivocadamente o caráter anti-governo dos movimentos sociais como ‘crítica radical ao sistema político’ e ao Estado em si.” (CARDOSO, 1983, p.218 apud PERRUSO, 2009, p. 221) 172 No caso do movimento sindical, essa relação com o estado também era muito contraditória, já que o chamado “novo sindicalismo” ia cada vez mais ganhando eleições sindicais e assim se integrando à estrutura sindical oficial. Em 1983, foi fundada a CUT, uma central sindical - algo não previsto na legislação de então. Não obstante, essa central reunia diversos sindicatos oficiais e via diminuir em suas bases e espaços de decisão o peso das oposições sindicais, em favor dos sindicatos oficiais. Para mais informações sobre o tema, ver: MARQUES (2004); GIANNOTTI e LOPES NETO (1990; 1991; 1993) e; BOITO JR (1991). 173 Em 1980, foi fundado o Partido dos Trabalhadores (PT), que reunia diversos militantes do chamado novo sindicalismo, além de lideranças dos movimentos urbanos, dos trabalhadores rurais e dos sem-terra, dos novos intelectuais e muitos militantes ligados aos pequenos grupos de esquerda. Além do PT, fora fundado também o Partido Democrático Trabalhista, PDT, de Leonel Brizola, que também viria a ter muitos militantes ligados aos movimentos urbanos, especialmente aos de favela. E os partidos comunistas (PCB e PCdoB), que também tinham significativa atuação nas associações de bairro. Apesar de continuarem sendo considerados ilegais, passavam a ser menos perseguidos do que nos anos anteriores, no auge da ditadura.

Page 188: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

188

urbanas e mesmo sindicais, sendo vista como o local que concentrava as mais

gritantes contradições urbanas, lócus de moradia dos trabalhadores e espaço social

possível para o encontro de diversos atores políticos. A questão da autonomia ia

ganhando novos contornos, através da reflexão sobre o surgimento de novos

sujeitos sociais e políticos, sobre as experiências acumuladas por esses sujeitos,

sobre a forma como elaboravam e reelaboravam suas visões sobre o mundo, sobre

os espaços políticos por eles criados, sobre a formação de partidos da classe

trabalhadora como expressão/afirmação dessa autonomia etc.

Cabe agora ver um pouco mais sobre como essas diversas relações e

espaços dos MSUs eram analisadas e como a questão da autonomia e da relação

dos MSUs com o Estado ia adquirindo novos, e por vezes polêmicos, significados.

Caccia Bava (1988) era enfático em apontar a relação entre movimentos

sociais urbanos e movimento sindical e operário como um fator decisivo para o

entendimento das lutas e “dos novos atores políticos” que surgiram naquele período.

Segundo ele, o conflito na fábrica, ao ganhar as ruas, lançava “o germe da

organização popular nos bairros” e, assim, seria a partir da questão urbana que o

Estado se tornava foco das lutas da época:

O conflito na fábrica ganha as ruas, encontra a solidariedade popular e, ao generalizar-se, lança o germe da organização popular nos bairros, o germe de movimentos populares que irão surgir a partir de 1980 e questionar a prefeitura, os órgãos públicos, exigindo água, luz, esgoto, asfalto, transportes, escolas, enfim, tudo aquilo que a espoliação urbana retira dos trabalhadores em favor do processo de acumulação capitalista. A constituição destes novos atores políticos, os movimentos populares – que nascem e se mantêm em profunda relação com o movimento operário e sindical -, amplia a arena do conflito social envolvendo o Estado a partir da questão urbana, do poder local, das políticas públicas. (CACCIA BAVA, 1988, p. 288)

Kowarick (1988) reconhecia a importância da relação entre movimentos

urbanos e as lutas na fábrica. No entanto, ele ressalvava o fato de que essa poderia

ser parte de uma experiência mais restrita a determinados locais, como São

Bernardo e São Paulo. Segundo ele, em outros locais, notava-se a “tradicional

segmentação” e lutas mais localistas e parciais:

Os artigos que tratam das greves de São Bernardo e São Paulo apontam para trajetórias múltiplas e variadas que quebram a separação entre bairro e fábrica: os embates relativos aos transportes, loteamentos clandestinos, favelas, comunidades de

Page 189: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

189

base, clubes de mães, creches e outras reivindicações urbanas foram de importância na dinamização do movimento operário, inclusive no seu apoio nos momentos de conflito, generalizando práticas de resistência que inexistiriam se os bairros populares não se identificassem e envolvessem com a causa grevista, como também, a seu turno, o movimento operário e sindical teve inúmeros reflexos na dinamização das lutas urbanas em busca de melhorias para os bairros populares. Talvez estes sejam casos exemplares e sua generalização seria arriscada e falaciosa na medida em que, o que se nota, é a tradicional segmentação na qual os conflitos permanecem em âmbitos localistas e parciais, deixando de adicionar amplas e variadas esferas reivindicativas. (KOWARICK, 1988, p. 20)

Kowarick e Bonduki (1988)174 retomavam uma argumentação que buscava na

conjuntura política (período de intensa repressão a qualquer ação nas fábricas e

sindicatos) e nos problemas urbanos estruturais do capitalismo, a explicação para a

irrupção de lutas urbanas no fim dos anos 1970. Segundo eles, a periferia, local

onde se condessavam os problemas e carências urbanas e lócus de moradia dos

trabalhadores, tornava-se palco da resistência e organização popular, onde surgiam

iniciativas para retomar a luta nas fábricas. Portanto, segundo eles, e opostamente

ao que afirmava Caccia Bava, a resistência popular nascera fora das fábricas:

Nestes anos conhecidos como “de resistência” e que se estendem até 1978, a forte vigilância e repressão impediam qualquer ação de maior envergadura dentro das fábricas, enquanto os sindicatos, fortemente controlados e reprimidos, encontravam-se literalmente paralisados. Neste contexto a periferia, como lócus de moradia por excelência dos trabalhadores, tornou-se o espaço de articulação de núcleos de organização popular. Em bairros onde não faltavam problemas concretos em termos de carências urbanas que mobilizassem, passaram a surgir iniciativas que visavam retomar a luta nas fábricas: a resistência popular nasce, portanto, fora dos locais de trabalho. (...) Ao contrário, a luta em torno de reivindicações propriamente urbanas forjou um fluxo importante de mobilizações que aglutinava inúmeros e variados grupos excluídos dos benefícios do desenvolvimento econômico e urbano, denunciando ao mesmo tempo o caráter elitista do regime, que relegava a periferia a última das prioridades. (KOWARICK e BONDUKI, 1994, p 168)

O trecho citado de Kowarick e Bonduki sugere um duplo posicionamento

político e teórico: de construção/afirmação da questão urbana como central para a

174 O texto de Kowarick e Bonduki "Espaço urbano e espaço político: do populismo à redemocratização”, presente em: KOWARICK, L. (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo, Passado e Presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 147-177, é uma reedição bastante modificada do texto de mesmo nome publicado na primeira edição do livro (também de mesmo nome), em 1988.

Page 190: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

190

luta de classes no Brasil e de construção/afirmação da “questão da periferia” como

central à questão urbana175.

Telles, através de caminhos bastante distintos, também apresentava o espaço

da periferia como fundamental para a retomada das lutas populares dos anos 1970-

1980. Ela o descrevia como espaço de encontro de diversos atores políticos,

portadores de experiências diversas construídas em momentos e locais diferentes.

Nesse espaço dos bairros da periferia, estaria condensado muito mais do que

contradições urbanas, mas a história das lutas anteriores a 1964 e 1968, as críticas

e autocríticas da esquerda, experiências de lutas de bairro e operárias, de grupos da

igreja ou anteriormente ligados à luta armada etc. E tudo isso teria ajudado a dar um

significado de “ruptura” àquelas lutas e movimentos:

Nos relatos que se tem dos anos 70, há vários indícios da presença, nos bairros da periferia de São Paulo, de personagens diversos, portadores de experiências vividas em tempos e espaços diferenciados que se cruzavam e interagiam nos locais de moradia; militantes sindicais contemporâneos das grandes mobilizações do período pré-64 e que faziam a crítica do sindicalismo populista; operários católicos, vinculados à Ação Católica Operária (ACO) e à Juventude Operária Católica (JOC) que enfatizavam o trabalho de base e a organização de grupos operários em seus locais de trabalho e moradia; padres, freiras, agentes pastorais inspirados na Teologia da Libertação, articulando e organizando as comunidades eclesiais de base; operários que participaram da greve de 1968, que faziam oposição ao sindicalismo oficial defendendo a organização de comissões de fábrica como alternativa de uma prática operária independente do Estado; militantes com uma origem vinculada às organizações clandestinas de esquerda, que discutiam as razões de sua derrota nos anos que se seguiram a 1968, fazendo a crítica de suas práticas e orientações políticas; trabalhadores que passaram pelas experiências reivindicatórias dos bairros e pelas comunidades de base da Igreja, antes de se integrarem nos meios da militância fabril e sindical; moradores articulando movimentos em seus bairros e enfrentando um Estado muito pouco sensível às reivindicações populares. (...) Dessa forma, é preciso deslocar algumas das ênfases

175 Os autores se referem ao intenso processo de lutas por moradia durante os anos 1980 em São Paulo. Essas lutas (ocupações nas periferias da cidade) deram origem a diversos movimentos, entre os quais vários chamados de movimentos ou associações de “sem-terra” (não eram ligados ao MST, mas ainda não havia sido difundido o termo sem-teto) que formaram, juntos, em 1988, a UMM. Assim, ao construir/afirmar a “questão da periferia”, não estavam fazendo uma construção exclusivamente teórica, mas também apoiada nas vigorosas lutas sociais da época. Sobre essas lutas, eles diziam: “Este processo teve seu momento de maior intensidade em 1987, quando cerca de 50 mil famílias participaram da ocupação simultânea de dezenas de terrenos e glebas ociosas, públicas e privadas. Embora apenas pequeno contingente conseguisse nelas permanecer, esta mobilização levou ao fortalecimento do chamado Movimento dos Sem-Terra, que passou a existir em todas as regiões da cidade e a se articular, em nível municipal, na União de Movimentos de Moradia.” (KOWARICK e BONDUKI, 1994, p. 172)

Page 191: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

191

que têm sido dadas ao tratamento dos movimentos populares. Pois os bairros, enquanto espaço no qual surgiram, não podem ser vistos tão-somente como lócus de “contradições específicas” que determinariam a natureza desses movimentos, natureza que a Igreja iria potencializar por conta de alguma vocação redentora a ela atribuída. (...) A primeira questão que a presença desses vários personagens antes citados suscita é que os anos 70 não surgiram num vazio. Trazem as marcas dos acontecimentos de 1964 e 1968. Acontecimentos que foram vividos sob o signo de uma ruptura. (TELLES, 1988, p. 252-253-254)

A periferia era vista, então, como local por excelência de moradia dos

trabalhadores e espaço que condensou as condições objetivas e políticas que

possibilitaram o surgimento das lutas populares dos anos 1970 e, ao mesmo tempo,

como fundamental para a questão urbana que, principalmente através das lutas

relacionadas à moradia, continuavam mobilizando milhares de pessoas e dando vida

aos MSUs176. Por outro lado, as lutas por moradia (especialmente na experiência de

São Paulo, referência para a maioria desses autores) se voltavam cada vez mais

para a conquista de políticas habitacionais que previam a participação das

organizações populares em parcerias com o Estado, sobretudo com os mutirões em

terrenos na periferia. As diferenças nas análises sobre a intensificação e as

mudanças nas relações dos MSUs com o Estado, demonstram como essa é uma

questão polêmica e constantemente reposta.

Telles analisava a questão da autonomia e exterioridade frente ao Estado

como sendo parte de experiências datadas e localizadas, e relacionava o surgimento

do PT também como parte dessas experiências. Ela também percebia que, com o

desenrolar dos anos 1980, havia uma mudança tanto nas práticas dos movimentos

sociais urbanos quanto nas análises feitas sobre eles. A despeito disso, ela

reafirmava a importância que o tema da autonomia havia tido para a construção de

um enfoque analítico que passou a olhar para além do Estado, mesmo que essa

exterioridade da sociedade frente ao Estado não fosse sustentável política e

teoricamente.

176 A “questão da periferia”, como apresentada pelos autores citados, era mais marcante em São Paulo (onde os novos MSUs também foram mais marcantes) do que no Rio de Janeiro. No Rio, nesse período, talvez fosse mais marcante a “questão das favelas”, em função das lutas contra as remoções que ocorreram em grande número e da mudança na política governamental, praticamente cessando-se as remoções nas favelas que passavam a ser consideradas áreas de ocupação consolidada, a partir do início dos anos 1980. Nos anos 2000, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, a “questão do Centro” viria a atrair a atenção dos MSUs, intelectuais etc, substituindo parcialmente a questão da periferia, como será visto mais adiante.

Page 192: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

192

As noções de autonomia, de ação e participação coletivas, de democracia de base elaboravam a seu modo essa experiência. E se esse discurso interpelou a tantos, a ponto de ser incorporado no vocabulário político e intelectual, é porque falava a esse tempo, nomeando as condições e o lugar de uma ação possível e, sobretudo, construindo uma representação da sociedade no interior da qual se fazia possível pensar a possibilidade da constituição de um espaço político a partir da diversidade dos sujeitos emergentes, reconhecíveis pelo lugar de sua ação e pela legitimidade dos direitos exigidos. É essa uma das formas possíveis para se pensar o significado do Partido dos Trabalhadores, no momento de seu surgimento, logo após o término do ciclo grevista de 1978-80. (...) Os anos 80 abriram-se a uma outra configuração de experiência social e política. Se hoje a imagem de uma exterioridade da sociedade frente ao Estado não se sustenta teoricamente e se dilui politicamente, é importante lembrar que foi através dela que pudemos descobrir que havia, como diz Weffort, algo mais para além do Estado. (TELLES, 1988, p 279-280)

Jacobi (1987) também percebia essas mudanças nas análises sobre os

MSUs, mas diferentemente de Telles (1988), sua interpretação apontava para uma

correção de rumo no paradigma, a partir de questões muito próximas às que eram

levantadas por Silva e Ribeiro (1984) e por Cardoso (1983) sobre a “polarização”

entre Estado e sociedade civil. Ele também abordava a participação dos agentes

externos nesses movimentos, afirmando que as análises frequentemente

minimizavam suas influências sobre a dinâmica dos movimentos e supervalorizavam

o caráter espontâneo das mobilizações:

Observa-se que esses movimentos têm contado, em geral, com dois tipos básicos de suporte: por um lado, os grupos de profissionais que oferecem subsídios técnicos e, por outro lado, o apoio da Igreja, exercido basicamente através das CEBs e dos agentes pastorais e o trabalho de militantes de alguns partidos políticos, especialmente o PT. (...) Frequentemente, as análises têm minimizado o papel dos agentes externos que, orientados por motivações basicamente ideológicas, têm exercido influência significativa sobre a dinâmica dos movimentos. Em contraposição, existe uma tendência à sobrevalorização do caráter espontâneo da mobilização, que procura não subordinar seus fins aos das organizações políticas e torna muito difícil a institucionalização das relações com o Estado, comprometendo os próprios objetivos. (JACOBI, 1987, p. 262-263)

Interessante notar que Jacobi, ao falar sobre os agentes externos que por

motivações ideológicas influenciariam as dinâmicas dos movimentos - que não

seriam tão espontâneos ou autônomos como enfatizava a maior parte das análises

na época – citava os militantes do PT, das CEBs e os profissionais que prestavam

Page 193: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

193

apoio técnico. Interessante porque, nas análises de diversos autores, como o caso

de Perruso (2009), Singer (1980), Telles (1988), Kowarick (1988) e Kowarick e

Bonduki (1994) - seja porque seria expressão desses próprios movimentos, no caso

do PT, ou pela forma que se relacionavam com os movimentos, no caso das CEBs e

dos intelectuais - esses agentes teriam colaborado para a autonomia desses

movimentos.

Se para Jacobi essas mudanças (nas práticas e análises) carregavam um

sentido de positividade, em outras análises, sobretudo daqueles mais adeptos do

paradigma ou que viam maiores potencialidades transformadoras nesses

movimentos, essas mudanças foram percebidas como limitadoras ou mesmo

decepcionantes. Assim, se antes os movimentos eram vistos a partir dos seus

potenciais, em fins dos anos 1980 alguns autores já falavam mais dos seus limites.

Fragmentação, fragilidade organizativa, imediatismo, localismo das lutas, cultura

política basista e comunitarismo tornaram-se aspectos mais ressaltados. Mesmo

alguns destes aspectos anteriormente tidos como positivos, passavam a ser vistos

como contraditórios ou limitadores. Em pleno período da “redemocratização”,

análises que antes enfatizavam a autonomia, passavam a falar em cooptação ou

clientelismo. Rolnik (1988), por exemplo, falava dos limites de lutas específicas que

tinham dificuldade de se contrapor aos megaprojetos urbanos em São Paulo, sob a

prefeitura de Jânio Quadros (“renovação urbana”, mudanças de zoneamento,

remoção de favelas etc). Telles abordava essas mudanças nas análises sobre os

MSUs:

Ao contrário do otimismo dos primeiros tempos em que muitos viram neles uma promessa de futuro, hoje não são poucos os que apontam seus limites e, alguns, até mesmo sua inviabilidade política: o localismo de práticas que se esgotam numa rotina de pressão sobre os órgãos públicos para o atendimento de reivindicações específicas; a fragmentação de interesses e a primazia de uma noção corporativa de direitos; o seu isolamento num certo tipo de comunitarismo que não os impede de se abrirem às manipulações populistas do Estado; a afirmação de um basismo que tem como contrapartida a recusa das formas de representação política e uma visão instrumental das instituições. (TELLES, 1988, p 247)

Kowarick e Bonduki apresentavam análise diferente. Para esses dois autores,

a relação mais intensa com o Estado e com os partidos, especialmente com o PT,

não representava perda de autonomia ou combatividade, nem mesmo em revisões

Page 194: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

194

críticas no paradigma sobre os MSUs e suas principais categorias. Apontavam o

crescimento das lutas ligadas à moradia como mudança mais importante em relação

aos anos imediatamente anteriores. Diziam que as mudanças nas políticas urbanas

foram fundamentais para o crescimento dessas lutas e para os MSUs deixarem de

ter caráter meramente reivindicatório e passarem a formular propostas de políticas

públicas177.

A questão da autonomia dos movimentos é outro tema abordado por essa

dupla de autores, mas, como se pode perceber, o discurso sobre a autonomia dos

movimentos frente aos partidos e ao Estado - e sobre o Estado propriamente dito -

era bem diferente daqueles do início dos anos 1980 (fundado no distanciamento). A

perspectiva dos movimentos tornarem-se “instâncias de gestão coletiva não

estatais”, responsáveis pelo gerenciamento de programas habitacionais, era

apresentada como se não engendrasse novas e diversas contradições para os

movimentos. A ênfase dada pelos autores na fragilidade dos movimentos de luta por

moradia também chama atenção:

Com relação aos movimentos sociais, foi significativo o crescimento das aglutinações ligadas à moradia. Este foi estimulado pela política de habitação, que desenvolveu, num amplo processo de participação, programas com a regularização da posse da terra nas favelas, a construção de casas por mutirão e autogestão, a intervenção em cortiços e a suspensão das ações de reintegração de posse das áreas municipais ocupadas nas favelas já consolidadas. O empenho em manter permanente interlocução entre governo e sociedade contribui para ampliar a visão dos movimentos. Sem perder sua autonomia, eles ganharam maior realismo sobre as limitações da ação governamental (...) O movimento avançou, portanto, de um patamar de reivindicações imediatas, para a formulação de propostas mais amplas, que visavam alterar as políticas públicas. Por outro lado, o desenvolvimento de programas baseados na autogestão, em que as associações comunitárias são responsáveis pelo gerenciamento de empreendimentos habitacionais, também contribuiu para consolidar as organizações populares na perspectiva de tornarem-se, para além da ação reivindicatória, uma instância de gestão coletiva não-estatal. Os movimentos avançam, assim, na sua politização, mas ainda de modo

177 Cabe lembrar que em 1988, Luiza Erundina, do PT, venceu a eleição para prefeitura de São Paulo e, a partir de 1989, começou a pôr em prática uma política habitacional de cunho popular que, entre outras medidas, realizou uma série de convênios com movimentos de moradias (especialmente através da UMM) para a construção de moradias populares, através do sistema de mutirão, gerido pelos próprios movimentos nas regiões periféricas da cidade. Nesse período, os movimentos de moradia conseguiram encaminhar várias demandas que já motivavam mobilizações havia anos, com destaque para as de 1987, além de realizarem novas e massivas ocupações em terrenos que queriam ver desapropriados.

Page 195: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

195

bastante frágil, posto que ela em pouco transborda o estreito quadro de suas lideranças. Há que se frisar também que pouco se viabilizou no sentido da criação de canais institucionais de participação popular, o que demonstra a dificuldade de implementar uma das principais bandeiras do Partido dos Trabalhadores. (KOWARICK e BONDUKI, 1994, p 173-174)

As diferentes análises citadas indicam que noção de autonomia, apesar de

tão utilizada e de ter sido considerada definidora dos novos movimentos sociais

urbanos (era “a categoria teórica básica”, nas palavras de Gohn, 2007, p. 282), foi

desenvolvida e muito marcada por uma experiência específica daqueles anos 1970

e início dos anos 1980. Observando com mais atenção, se vê que, na maioria dos

textos, a noção de autonomia não aparecia bem definida teoricamente. Aparecia,

normalmente, associada a duas diferentes chaves de leitura.

A primeira chave de leitura é o distanciamento entre os novos MSUs e o

Estado (e em decorrência, das práticas populistas e cooptações que essa relação

proporcionaria). A comparação entre os novos (autônomos) MSUs e os velhos (não

autônomos) movimentos de bairro, porém, normalmente não era acompanhada de

uma comparação sobre o Estado nesses períodos (considerado populista até 1964 e

depois ditatorial). Ficava de fora da análise (e da comparação) uma condição

fundamental sobre o contexto no qual surgiram e se desenvolveram aquelas lutas: a

de um Estado ditatorial muito pouco aberto a qualquer diálogo sobre reivindicações

ou com qualquer movimento que não o apoiasse.

Ficava constatada a distância em relação ao Estado, mas isso só não

explicava a questão da autonomia como fundamento para se entender os novos

MSUs178. A exterioridade, ou mesmo oposição, em relação ao Estado, era, então,

explicada pelas contradições urbanas que favoreceriam manifestações tendo o

Estado como alvo. Ora, as lutas e conflitos urbanos realmente costumam ser

voltadas para o Estado, mas isso só não faz delas mais ou menos autônomas, além

do que, reivindicar do Estado não é o mesmo que ser contra o Estado.

178 As análises que se ancoravam mais diretamente no contexto político da ditadura sugeriam que, por conta da repressão e vigilância nas fábricas e sindicatos, a periferia se tornou o espaço de articulação de núcleos de organização popular (Kowarick e Bonduki, 1994, p. 168); ou que com o bloqueio dos canais institucionais de reivindicação e com o clima de medo, surgiram movimentos de base fundados na confiança direta de seus membros (Brant, 1980, p.13-14). Mas, também nesses casos, essa autonomia poderia não ser uma decisão política conscientemente elaborada e vista como fundamental pelos movimentos, mas essencialmente uma decorrência da conjuntura e do tipo de Estado com o qual lidavam.

Page 196: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

196

Quando Telles descrevia a periferia como espaço onde se encontravam

diversos personagens de tempos e lugares diferentes e quando dizia que os anos

1970 traziam as marcas dos acontecimentos de 1964 e 1968, vividos sob o signo da

ruptura, expunha uma interpretação para essa exterioridade e autonomia frente ao

Estado que se diferenciava e fugia da mera constatação e das explicações mais

estruturais ou deterministas. Ela apresentava o processo vivido nos anos 1980 a

partir da noção de um campo de conflito, de “permanente tensão entre duas

dinâmicas contraditórias”.

Já foi abordada a existência de uma tensão permanente entre a ação coletiva,

que produz experiências comuns e cria grupos contestatórios e, por outro lado, as

recorrentes possibilidades de retorno à desmobilização (IASI, 2006). Na análise de

Telles sobre a relação entre os MSUs e o Estado, essa questão aparece claramente

quando ela fala de um “campo de conflito” permeado pela tensão permanente entre

as armadilhas do Estado (o tempo da burocracia, os pareceres técnicos, os canais

competentes etc), e as alternativas políticas criadas pelos movimentos e

mobilizações coletivas. Essa noção permitiria examinar a história dos movimentos a

partir de suas contradições e não de alguns desdobramentos vistos anos depois.

Permitiria ver como cada luta e ação coletiva se contrapõem às formas de controle

impostas pelo Estado e pelo sistema capitalista. Permitiria também que não se visse

cada momento ou processo de acomodação e burocratização como irreversível ou

que se apagasse ou negasse toda a experiência comum de luta vivida por

movimentos sociais, seus participantes e por todos que se sensibilizaram com essas

lutas. Assim, Telles explica essa noção de “campo de conflito”:

Práticas de poder se revelam na imposição de um tempo burocrático para o encaminhamento e solução das reivindicações, de tal forma que o ritmo desses movimentos muitas vezes é condicionado pelos prazos impostos ou pelos procedimentos burocráticos (...) se explicitam, do ponto de vista dos sujeitos desses movimentos, enquanto acontecimentos vividos em suas andanças pelas burocracias do Estado, na reiterada procura dos “canais competentes”, na demora para as respostas exigidas, nas promessas não realizadas, nas armadilhas dos pareceres técnicos por onde se corporifica o discurso da competência, nas reivindicações não atendidas ou atendidas parcialmente, etc. (...) É isso o que transparece em escolhas e alternativas construídas para a imposição de um tempo político, via ação e mobilização coletivas, em contraposição ao tempo burocrático imposto pelo Estado, para a articulação entre bairros e movimentos contra práticas de

Page 197: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

197

individualização e particularização vindas do Estado (...) evidências que me fazem pensar ser o campo de conflito em torno do qual esses movimentos se estruturam algo que se configura numa relação de permanente conteúdo de tensão entre duas dinâmicas contraditórias. Uma que tende a disciplinar e burocratizar o conflito, ou que supõe a fragmentação e individualização dos trabalhadores, e outra que tende a repor e a reabrir o espaço político no qual o conflito aparece enquanto acontecimento e experiência comum (TELLES, 1987, p. 70-71-72-73).

Telles destaca também a força das tradições autoritárias na sociedade

brasileira (e não apenas no Estado). Falava ainda que as novidades percebidas nas

práticas desses movimentos depois teriam se cristalizado em discursos vazios.

Se é possível identificar nos movimentos populares hoje existentes traços do clientelismo político, de uma noção tutelar de Estado, de uma concepção de direitos como mera defesa de interesses privados, de uma visão instrumental da política que só alimenta a tendência à sua corporativização, tudo isso indica o quanto é forte e viva uma tradição de autoritarismo corporificada não apenas no Estado, mas também nas formas como as relações sociais são ordenadas e expressos os conflitos sociais que atravessam a sociedade. (...) as então chamadas novas formas de participação, identificadas em práticas e discursos que enfatizavam a ação e a participação coletivas, os procedimentos da “democracia de base”, a independência e autonomia frente a instituições e partidos. É certo que hoje essas características cristalizaram-se, em muitos dos movimentos recentes, numa retórica vazia e numa ritualização de procedimentos que pouco tem a ver com uma ação política significativa. (TELLES, 1988, p. 250 e 251)

O distanciamento com relação ao Estado e o posicionamento anti-governo ou

mesmo anti-Estado foram elementos importantíssimos nas análises e descrições

sobre os MSUs nos anos 1979-80. Mas, até que ponto seriam parte da elaboração

política autônoma dos movimentos e, em que medida era uma imposição da

conjuntura? O distanciamento frente ao Estado seria suficiente para interpelar sobre

a existência ou para descrever um sujeito coletivo autônomo, com práticas novas e

projeto político e societário próprio? Não obstante essas questões, perceber a

existência de um campo de conflitos no qual os MSUs estão inseridos permite

analisar a história dos MSUs, também nos anos 2000, a partir da disputa e influência

das dinâmicas que agem nesse campo.

O que seria então essa autonomia para ter sido sentida por tantos autores e

militantes como tão importante? No caso do Novo Sindicalismo, também portador de

um forte discurso sobre autonomia, a participação e adequação aos sindicatos

Page 198: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

198

oficiais se mostrou um processo contraditório entre teoria e prática. Os MSUs

participarem em processos de elaboração e implantação de políticas públicas era

uma contradição entre teoria e prática? Para além da distância com relação ao

Estado vista nos anos 1970 e início dos anos 1980, essa autonomia pressupunha

também o distanciamento aos partidos (como o PT) e a outras instituições (como a

Igreja e as universidades)? Ou a proximidade com o PT, a CUT e depois com o

MST, instrumentos políticos criados naquelas lutas, reforçaria a autonomia? Essa

autonomia era de classe? Em caso positivo, suporia também um distanciamento

com relação aos intelectuais e à classe média? Essas são algumas das questões

não respondidas a partir dessa primeira chave de leitura sobre a questão da

autonomia.

3.3.3 Movimentos sociais urbanos e classes populares

A segunda chave de leitura sobre a questão da autonomia é a da formação de

novos sujeitos políticos em articulação com as lutas e a organização autônoma das

classes populares. Nesta chave, a relação com o Estado (e aqui importaria menos o

distanciamento e mais uma elaboração própria sobre essa relação) é apenas uma

parte entre as diversas questões que compõem a noção de sujeito coletivo

autônomo.

Nessa chave, autonomia compreenderia sentimento de identidade e de

pertencimento à classe, experiências e valores compartilhados, formas organizativas

próprias, práticas classistas etc. Movimentos autônomos seriam então formas

organizativas que expressariam, através da autonomia, a constituição de sujeitos

coletivos capazes de reelaborar a partir de seus interesses e vontades as

determinações externas às quais são submetidos. Sujeitos que expressariam o

fazer-se de classe (populares e/ou dos trabalhadores), como afirmava Eder Sader

(1988):

Eu estava, sim, diante da emergência de uma nova configuração das classes populares no cenário público. Ou seja, não apenas em comparação com os padrões do início da década, mas também – e sobretudo – com os de períodos históricos anteriores, o fim dos anos 70 assistia à emergência de uma nova configuração de classe. Pelos lugares onde se constituíam como sujeitos coletivos; pela sua linguagem, seus temas e valores; pelas características das ações

Page 199: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

199

sociais em que se moviam, anunciava-se o aparecimento de um novo tipo de expressão dos trabalhadores (SADER, 1988, p. 36-37) Quando uso a noção de sujeito coletivo é no sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas. (...) Nessa concepção, sujeito autônomo não é aquele (pura criação voluntarista) que seria livre de todas as determinações externas, mas aquele que é capaz de reelaborá-las em função daquilo que define como sua vontade. Se a noção de sujeito está associada à possibilidade de autonomia, é pela dimensão do imaginário como capacidade de dar-se algo além daquilo que está dado. (SADER, 1988, p. 55-56)

Sader relacionava a entrada em cena desses “novos personagens” (sujeitos

coletivos e autônomos) a uma “nova configuração das classes populares” e a “um

novo tipo de expressão dos trabalhadores”, percebidos nos lugares onde se faziam

esses sujeitos, por sua linguagem, valores, formas de ação etc. Segundo seu

raciocínio, a capacidade de ação e elaboração autônomas eram aspectos

fundamentais na formação desses novos sujeitos e no fazer-se da classe e, por

outro lado, a formação desses novos sujeitos e essa nova configuração de classes

eram as bases que sustentavam sua autonomia179.

A heterogeneidade percebida nas formas de trabalho existentes entre aqueles

que compunham as bases sociais dos MSUs era um aspecto que chamava atenção

nas análises que relacionavam esses movimentos e classes sociais. Alguns autores

associavam as condições de trabalho das classes subalternas em países capitalistas

“dependentes” com a heterogeneidade das bases sociais dos MSUs e com a

formação de classes populares heterogêneas. Para Moisés (1982), a explicação

para a heterogeneidade (nos MSUs e nas classes populares) recaía sobre a

fragmentação do mundo do trabalho (o contexto) e não sobre as lutas sociais e seu

possível fracionamento e diversidade quanto aos objetos de luta, formas de ação,

organização, identidade, valores e experiências. Ressalta-se ainda que, para

Moisés, essa heterogeneidade não aparecia como sinônimo ou indicação de

incapacidade política:

179 Outros autores, nos anos 1970 e 1980, também relacionavam os MSUs às classes sociais e, segundo eles, isso se contrapunha a autores e teorias anteriormente muito influentes na ciência social brasileira: “Que a ciência social continue classificando de movimentos não-políticos, não-de-classe, os típicos movimentos de rebeldia urbana, as novas formas de associação política urbana, somente vem em desabono dessa ciência social”. (OLIVEIRA, 1977, p 75)

Page 200: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

200

Por um lado, são movimentos sociais que emergem no contexto socioeconômico de mercados de trabalho extremamente fragmentados, nos quais somente encontra-se lugar para a ocorrência de classes subalternas marcadas pela heterogeneidade. Quer dizer, ao contrário da situação “clássica” do desenvolvimento capitalista, não se está, por exemplo, diante de uma classe operária homogênea a partir da situação no mercado de trabalho, e cuja unidade nasce da sua coesão social. Ao contrário, o capitalismo “dependente”, que demandou investimento intensivo de capital e, ao mesmo tempo, técnica poupadora de mão-de-obra, foi responsável pela formação de classes populares heterogêneas, no interior das quais somam-se os operários industriais, os assalariados do setor de serviços e, mesmo, os setores dos assalariados do aparato burocrático e os profissionais liberais. (MOISÉS, 1982, p 25-26)

Interessante notar que Moisés falava em operários, assalariados do setor de

serviços, do Estado e em profissionais liberais, mas não citava os desempregados,

os trabalhadores informais (como os ambulantes ou biscateiros) ou os trabalhadores

domésticos. Tais grupos comporiam a base “nitidamente popular” da qual falavam

Kowarick (1988) e Jacobi (1987), também tão presentes nos MSUs nos anos 2000, o

que sugere ou uma invisibilidade desses grupos para Moisés ou uma visão mais

restrita sobre os trabalhadores (assalariados, estáveis, formais)180.

Para Telles, analisar “movimentos que não se davam no terreno clássico da

contradição capital-trabalho” era um desafio que punha em questão o conceito de

classe. Além da heterogeneidade das bases sociais, elemento que definiria a

“singularidade” desses movimentos, Telles percebia como significado político dos

MSUs a possibilidade de articularem interesses mais amplos do que os sindicais e,

assim, se constituírem em um “dos eixos” do fazer-se da classe, pois permitiriam

articular “setores do proletariado” sem acesso à organização sindical:

Era um desafio que punha em questão um conceito de classe que parecia estreito demais para dar conta de movimentos que não se davam no terreno clássico da contradição capital-trabalho (...) Em torno do tema dos movimentos sociais, essa questão foi recolocada. A heterogeneidade na sua base social foi posta não mais como negatividade, mas como elemento que definiria sua própria singularidade. (...) Nessa linha de interpretação, o significado político

180 Observa-se ainda na análise de Moisés que ele falava da falta de homogeneidade da classe operária brasileira. No entanto, ao se olhar para a classe operária (sem associar classe operária ao conjunto dos trabalhadores), suas lutas naquele período mostravam haver significativos traços de homogeneidade. Além do mais, a ideia de que a unidade da classe nasce de sua homogeneidade, de sua coesão social, secundariza (ou mesmo apaga) a importância do trabalho político, das lutas e experiências no fazer-se dessa classe e sua unidade

Page 201: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

201

desses movimentos estaria em poder articular um espectro de interesses mais amplo do que a luta estritamente sindical (...) Numa outra linha, os movimentos populares se constituiriam num dos eixos de construção de identidades de classe porque permitiriam articular setores do proletariado que, pela sua instabilidade no mercado de trabalho, não teriam acesso à organização sindical (TELLES, 1987, p. 68-69).

As reflexões de Moisés (1982) e Telles (1987) permitem um novo

questionamento: que heterogeneidade era essa existente nas bases sociais dos

MSUs? Se esses movimentos eram compostos por trabalhadores pobres de

empregos precários ou instáveis - como se vê nos anos 2000 - ou “setores do

proletariado que, pela sua instabilidade no mercado de trabalho não teriam acesso à

organização sindical” (como nas palavras de Telles), eles teriam como característica

a heterogeneidade ou até certa homogeneidade? Se organizavam de fato e

significativamente também outros setores (operários, servidores públicos,

trabalhadores de empregos estáveis etc), aí sim seria o caso de se ressaltar a

heterogeneidade.

A respeito dessa questão, uma primeira hipótese explicativa seria o uso do

termo heterogeneidade para descrever a diversidade de ocupações vista entre

aqueles que participam desses movimentos. Nesse caso seria uma heterogeneidade

ocupacional, não social. Outra hipótese, que não deve ser descartada, é do uso da

noção de heterogeneidade não como uma contraposição à homogeneidade, mas à

homogeneidade operária, que seria típica da classe operária. Nesse caso, a dita

heterogeneidade da base social dos MSUs significaria uma base social não operária

ou não exclusivamente operária.

Na hipótese de haver certa homogeneidade nas bases sociais dos MSUs

(composta por trabalhadores com vínculos mais instáveis no mercado de trabalho),

esses movimentos estariam organizando e pondo em movimento (o fazer-se) uma

fração de classe, constituindo o que Telles (1987) chamou de “um dos eixos da

construção de identidades de classes”. Essa fração de classe, então, ao produzir

experiências e lutas conjuntamente com outros setores, como os organizados no

movimento sindical (além dos partidos, movimentos rurais etc), comporia a classe

trabalhadora, essa sim, marcada pela hetereneidade (social).

Sader identificava nos novos padrões de ação coletiva dos movimentos

sociais o fazer-se de classe. Segundo ele, esse não era um fenômeno do conjunto

Page 202: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

202

da classe, mas apenas da “parcela” que constituía movimentos sociais e que, nesse

processo, emergia como novos sujeitos políticos. Assim, independentemente da

fragmentação e heterogeneidade no mundo do trabalho e do objeto de luta de cada

movimento, novos sujeitos políticos estariam emergindo como expressões das

experiências de ações coletivas vividas nos movimentos sociais:

Isso que estou chamando de “novas configurações dos trabalhadores” não consiste num fenômeno extensivo ao conjunto dessa classe, mas, antes, a uma parcela, que constituiu movimentos sociais, com novos padrões de ação coletiva, que nos permitem falar da emergência de novos sujeitos políticos. (SADER, 1988, p. 17)

Ser um sujeito político que organiza “apenas” uma parcela dos trabalhadores

que participa de movimentos sociais e que através da luta e organização contribui

diretamente com o fazer-se de uma fração de classe (no caso dos MSUs uma fração

ligada aos trabalhadores com vínculos mais instáveis no mercado de trabalho), não

quer dizer ser um sujeito político limitado à visões exclusivamente parciais da

sociedade. A ideia de fração de classe pressupõe, em alguma medida, um

sentimento de pertencimento à classe social (da qual é uma fração). Do mesmo

modo, a noção de sujeito político, diferentemente de um mero grupo com

determinados interesses comuns ou corporativos, também pressupõe uma

perspectiva mais universal da política e da sociedade, como afirma Miagusko:

A política é um assunto de sujeitos e um movimento social faz política não no processo de identificação coletiva para daí reivindicar uma parcela. O sujeito político não é aquele que reclama apenas sua parcela, mas quem questiona a distribuição hierárquica dos lugares e das partes nesta reclamação singular. Só há sujeito político neste movimento de particularização e universalização. (MIAGUSKO, 2012, p.75)

A heterogeneidade no mundo do trabalho, segundo Sader, foi um elemento

percebido e acionado teórica e politicamente ao longo da história nas ciências

sociais no Brasil. Era explicado como fator resultante da estrutura social e gerador

da (imagem de) incapacidade política da classe trabalhadora brasileira para fazer-se

e agir autonomamente181. Sader e Paoli, no clássico artigo “Sobre ‘Classes

181 Para Sader: “Desde Oliveira Vianna, a heterogeneidade interna, a dispersão e um comportamento atomizado por parte dos trabalhadores, expressando uma incapacidade de universalização de seus objetivos, seriam determinadas pelas próprias características da formação histórica da sociedade brasileira, do seu Estado e sua industrialização. Os resultados de experiências históricas foram vistos

Page 203: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

203

populares’ no pensamento sociológico brasileiro”, afirmavam ainda que fora

construída, nas ciências sociais brasileiras, uma imagem de classe trabalhadora que

se tornou paradigmática e “cujo traço distintivo” era sua “negatividade”:

Juarez Rubens Brandão Lopes, Alain Touraine, Fernando Henrique Cardoso, Leôncio Martins Rodrigues, José Albertino Rodrigues e Azis Simão foram os autores que construíram a imagem sociológica e política dos trabalhadores brasileiros urbanos e fabris como classe social. (...) estes autores montaram uma imagem de classe trabalhadora que se tornou paradigmática como representação de um sujeito, cujo traço distintivo é a sua negatividade – isto é, a falta de uma identidade social e política coletiva, a falta de uma coerência e racionalidade a partir de sua posição objetiva no processo de produção, a falta de uma consciência adequada de classe, a falta de uma autonomia mínima de movimentação coletiva solidária. A diversidade interna destes trabalhadores aparece novamente como obstáculo ao reconhecimento de uma classe real (SADER e PAOLI, 1986, p 48-49).

As lutas e movimentos sociais dos anos 1970-80, assim como muitas análises

produzidas sobre essas lutas e movimentos, confrontaram essa imagem de

incapacidade (e de falta de identidade, consciência, autonomia, solidariedade etc). A

heterogeneidade no mercado de trabalho podia ser um dos fatores que estimulava a

formação de uma ampla diversidade de movimentos, objetos e formas de luta. Mas,

muitos desses movimentos, com bases sociais e objetos de luta diferentes,

apresentavam padrões de ação coletiva e projetos políticos e societários comuns,

permitindo então a emergência de sujeitos políticos capazes de agir e se unificar em

torno de projetos de classes. Esses movimentos e análises estariam assim

demonstrando que fragmentação e dispersão política não eram atributos ou

condições insuperáveis impostas pela estrutura social, pela heterogeneidade do

mercado de trabalho ou pela diversidade de lutas e sujeitos sociais, mas questões

do mundo da política.

Outros autores, não obstante a pluralidade de movimentos, reivindicações e

dinâmicas específicas, viam na proximidade dos movimentos urbanos com as lutas

sindicais e operárias o argumento central para relacionar MSUs e classe. Caccia

Bava falava da “íntima relação”, percebida através de “práticas classistas” com

características novas, que estariam presentes nesses dois movimentos. Nota-se

como atributos determinados pela própria estrutura social. E aí se cristaliza uma imagem da classe incapaz de ação autônoma.” (SADER, 1988, p. 31-32)

Page 204: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

204

ainda que ele falava dos movimentos sindical e urbano como “manifestações de um

mesmo sujeito político: as classes trabalhadoras”:

E nesta íntima relação entre o movimento operário sindical e os movimentos de bairro vai se perfilando uma prática classista que reúne características novas tais como a importância da organização de base, o exercício da democracia direta, o poder das mobilizações de massa. (...) Se é verdade que, em sua pluralidade, estes movimentos articulam reivindicações específicas, diferenciadas, e possuem uma dinâmica particular, cumpre agora desvendar o fato de que são manifestações de um mesmo sujeito político: as classes trabalhadoras. (CACCIA BAVA, 1988, p 310- 312)

Mesmo lembrada, a já citada ressalva de Kowarick (1988) de que as ações

conjuntas entre lutas e movimentos urbanos e sindicais seriam uma experiência

mais marcante apenas em alguns locais, parecem significativas as descrições e

análises que apontavam padrões e similaridades quanto às formas de organização e

ação entre distintos movimentos, possibilitando assim a construção de laços de

solidariedade e o acúmulo de experiências comuns em meio à diversidade de

experiências. Ainda sobre a questão da relação entre os movimentos urbanos e

sindicais como fundamento para a constituição de classes sociais, Telles (1988)

também apontava as características comuns na forma da ação política como uma

questão central. Segundo ela, esses grupos defendiam a noção do homem como

“ser total” e viam o espaço fora da fábrica também como um espaço possível para a

emergência de uma consciência de classe.

Se isso vale para o espaço fabril, vale também para o espaço do bairro. Esses grupos defendiam a noção do homem como “ser total”, de tal forma que a ideia tradicional da centralidade do espaço fabril, sindical ou partidário como lugares exclusivos da formação da “consciência de classe” ou da estruturação de uma ação dotada de sentido histórico era questionada (TELLES, 1988, p. 265).

A insistência de alguns autores em confrontar os velhos paradigmas (tanto o

de classe incapaz quanto o que vê a classe somente no espaço da produção) e

conferir também às lutas urbanas o potencial de fazer-se da classe ou em associa-

las às lutas sindicais e operárias parece condizente com aquele momento político,

no qual se via a classe trabalhadora mobilizada, apresentando seguidas

demonstrações de solidariedade entre distintas lutas e criando seus instrumentos

Page 205: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

205

próprios de organização, como o PT, a CUT, o MST e as entidades representativas

das lutas urbanas, como a UNMP, o MNLM e a CMP.

Essa perspectiva, que via cada movimento como partícipe de um amplo

processo de fazer-se da classe, não é contraditória com a perspectiva do surgimento

de diferentes sujeitos políticos representando diferentes parcelas dos trabalhadores

que “fazem” frações de classe que não “reclamam apenas suas parcelas”, mas

questionam a ordem vigente como um todo. E, dada a conjuntura da época, na qual

um inimigo comum era facilmente identificado e as lutas de massa geravam fortes

sentimentos de solidariedade mútua, os distintos movimentos e frações de classe

encontravam as condições propícias a se unificarem fazendo-se classe social.

Não obstante esse momento político e o processo em curso de fazer-se da

classe, ao refletir sobre a relação entre os movimentos em luta e classes sociais,

Sader criticava as explicações que estabeleciam relações simplificadas (e

simplificadoras) sobre essa questão e indicava a necessidade de novos estudos e

conceitos sobre o tema. Segundo ele, as explicações simplificadas, baseadas em

classes sociais, muitas vezes serviram para encobrir os estudos sobre as formas

originais de práticas coletivas vistasentão.

Logo se colocou a questão de se elucidar a relação entre tais agrupamentos, empiricamente dados, e a conceituação das classes sociais. Se os estudos concretos desvendaram formas originais de práticas coletivas, frequentemente encobertas por uma simplificada explicação através das “classes sociais”, por outro lado os conceitos que permitiriam fundamentar tais estudos ficaram por ser feitos. (...) movimentos sociais operam cortes e combinações de classe, configurações e cruzamentos que não estavam dados previamente. (SADER, 1988, p. 46-47-48)

Essa reflexão de Eder Sader é muito significativa para essa tese. Em primeiro

lugar, por indicar que, mesmo em momentos onde impere uma ampla mobilização e

haja vista uma classe social em pleno movimento, isso não explica cada movimento

social, cada sujeito político. Em segundo lugar, se “classe e consciência de classe

são sempre o último degrau” de um processo histórico, ao se analisar apenas esse

(último) degrau deixa-se no escuro todo o resto da escada, impedindo de se

perceber, por exemplo, o trabalho de “toupeira” do qual falava Vainer, que precede

as grandes eclosões sociais. Em terceiro lugar, a afirmação de que “movimentos

sociais operam cortes e combinações de classe” que “não estavam dados

Page 206: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

206

previamente”, reforça a perspectiva aqui adotada de tentar descrever e compreender

os movimentos sociais urbanos dos anos 2000 através de seus participantes, suas

ações, relações políticas, formas de organização e objetos de luta, ao invés de se

contentar com explicações baseadas em um objeto ou lugar pré-determinado para

esses movimentos.

Sader e Paoli (1986) apresentavam também uma análise reveladora sobre os

usos do conceito de classes sociais naquele período histórico dos anos 1970-80:

Não é, pois, por acaso, que o termo “classes populares”, com toda a sua imprecisão, venha se insinuando no lugar do antigo rigor com que se pretendia delimitar as fronteiras de cada classe (...) É que em boa parte dos movimentos sociais, o que seria sua “composição de classe” (referida a uma posição dada na estrutura produtiva) não aparece homogênea ou nítida. A noção de classes populares está aí portanto indicando um problema não resolvido. Mas indica mais que isso: que o esforço de rigor do analista desloca-se do campo da delimitação das fronteiras entre classes, frações, categoriais sociais, para o campo da compreensão específica da prática dos atores sociais em movimento. (SADER e PAOLI, 1986, p. 59)

Mais uma questão muito relevante para essa tese: Sader e Paoli mostravam

ser possível o uso de um conceito menos preciso - classes populares - para lidar

com um problema teórico não resolvido. Assim, ao invés de tentarem “resolver” esse

problema através de análises marcadamente estruturais, os autores estariam

apontando para o estudo das práticas desses sujeitos sociais em movimento como

condição para avançar nessa conceituação e problemática teórica. Era como se eles

estivessem se negando a tentar superar o problema teórico com o qual se

defrontavam apenas olhando para a “classe no papel”. Ou, em outras palavras,

tentavam não ver a classe como “uma coisa”, mas como “um acontecimento”. E,

esse acontecimento era os movimentos sociais:

É que, não mais identificados a partir de um lugar na estrutura, passam a ser identificados em suas práticas. Mas nestas, mais do que classes sociais, o que podemos ver são movimentos sociais. (...) Rechaçando os paradigmas existentes sobre classes sociais, eles pretendiam ver como as classes populares emergiram concretamente enquanto movimentos sociais. (...) A diversidade aqui não é sinal de uma carência ou obstáculo, mas expressão da forma fragmentária de constituição desses sujeitos. (SADER e PAOLI, 1986, p. 58)

Page 207: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

207

O uso do termo “classes populares” não era uma solução teórica definitiva

para a relação entre MSUs e classes sociais. Jacobi (1987) reconhecia existir um

problema teórico não resolvido e de uma base social composta por setores

populares articulados em torno das lutas por moradia. No entanto, para ele, a

“amplitude” dessa definição “quase metafórica” permitiria sua utilização para

“qualquer fenômeno que ocorre na cidade”182. Sugeria que, desta forma, se perdia a

singularidade desses movimentos e/ou a precisão dos estudos. Já Perruso, ao

examinar as mudanças que ocorreram nas ciências sociais brasileiras e,

particularmente, nas análises sobre os movimentos sociais durante aqueles anos,

afirma que o uso do termo classes populares foi importante, pois expressava as

rupturas então em andamento. Segundo Perruso, Sader e Paoli perceberam que

estava havendo uma ruptura com a tradição sociológica brasileira sobre classes

sociais e que, nesse processo, a “discussão epistemológica e metodológica não

ficava devidamente explicitada” porque se privilegiava as narrativas mais empíricas,

o que ainda segundo ele, estava relacionado “à recusa em priorizar” o uso do

arsenal conceitual que estava sendo criticado: “Era como se preferissem ‘dar um

passo atrás’ no trabalho intelectual, utilizando terminologias provisórias”.

(PERRUSO, 2009, p. 57-58)

É nesse debate que se contextualiza a presente tese. É a busca por perceber

as singularidades dos movimentos sociais urbanos no Brasil e, ao mesmo tempo,

tentar entender a relação desses movimentos com o fazer-se de um sujeito social

mais amplo, a classe social (classe trabalhadora). É a busca por entender o

particular em meio ao universal, sem o qual a própria noção de particularidade não

faria sentido. Esse movimento analítico, no entanto, não pode deixar que certo

incômodo pela falta de definições mais precisas leve a se aceitar e reproduzir

acriticamente as explicações simplificadoras (e supostamente mais precisas) das

quais falava Sader (1986). Portanto, além de problematizar e entender as

explicações existentes sobre a relação entre MSUs e classes sociais, o intuito aqui é

182 Jacobi afirmava que: “Uma análise da literatura existente mostra a existência de diversos cortes analíticos em face de questões provocadas, principalmente, pela quase metafórica noção de classes populares. Indicando a existência de um problema teórico não resolvido (...) A maioria dos estudos confirmam que a base social envolve fundamentalmente os setores populares e componentes da classe operária, aglutinados basicamente em torno de reivindicações vinculadas ao espaço de moradia. Para alguns autores, a amplitude da definição permite sua utilização para o estudo de qualquer fenômeno que ocorre na cidade” (JACOBI, 1987, p. 259-260).

Page 208: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

208

tentar avançar, na medida do possível e somente nessa medida, no entendimento

dessa relação.

As análises sobre os novos movimentos sociais urbanos nos anos 1970 e

1980 foram muito ricas. Desde a procura pelo entendimento do espaço urbano como

espaço de contradições próprias e das “espoliações urbanas” como motivos para a

mobilização, passando pelo reconhecimento político e teórico da importância das

lutas fora da fábrica e da apreciação da periferia como local que condenssava os

problemas urbanos e onde se encontraram diversos personagens de diferentes

tempos e locais que ajudaram a fazer e significar as lutas urbanas da época. O

distanciamento dos movimentos sociais frente ao Estado, a prioridade conferida às

organizações de base, as massivas mobilizações coletivas, as práticas de

solidariedade e a diversidade de movimentos e focos de luta vistos então

embasaram novas discussões sobre questões como autonomia, heterogeneidade e

o surgimento de novos sujeitos políticos. Novas formas de analisar as lutas e as

classes populares, privilegiando examinar as práticas, falas e experiências dos e nos

movimentos sociais, se desenvolveram em meio ao fazer-se de classe visto naquele

período e às mudanças pelas quais a sociedade brasileira passava.

Como buscou-se demonstrar, algumas análises ainda eram um tanto

deterministas e outras, talvez por motivações políticas, superestimavam (ou não

problematizavam devidamente) características como a autonomia. Porém,

percepções como a da existência de um “campo de conflito” com duas dinâmicas

opostas em disputa, no qual estão inseridos os MSUs, bem como e a perspectiva de

“ver como as classes populares emergiam concretamente enquanto movimentos

sociais” são significativos indicadores das possibilidades perseguidas nesse trabalho

de tese. Por tudo isso, os anos 1970-80 conformam o período mais marcante sobre

a produção intelectual e política a respeito dos movimentos sociais urbanos no Brasil

e para o diálogo aqui realizado.

Apesar disso, algumas análises ainda um tanto deterministas e outras que,

talvez por motivações políticas, superestimavam (ou não problematizavam

devidamente) características como a autonomia ou percepções como a da existência

de um “campo de conflito” como duas dinâmicas opostas, em disputa, no qual estão

inseridos os MSUs, bem como a perspectiva de “ver como as classes populares

emergiam concretamente enquanto movimentos sociais” são significativos

Page 209: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

209

indicadores das possibilidades perseguidas nesse trabalho de tese. Por tudo isso, os

anos 1970-80 conformam o período mais marcante sobre a produção intelectual e

política a respeito dos movimentos sociais urbanos no Brasil e para o diálogo aqui

realizado.

3.3.4 Década de 1990: anos de transição para os MSUs

Nos anos 1990 mudanças significativas ocorreram na sociedade brasileira,

nos MSUs e na produção teórica a respeito deles. Em primeiro lugar, destaca-se que

as lutas e movimentos urbanos passaram a despertar menos interesse, acarretando

na diminuição da produção intelectual sobre os movimentos sociais:

Um dos dados mais significativos que estes balanços nos apontam é o de que a maioria dos estudos foi realizada nos anos 80; nos anos 90 houve um declínio do interesse pelo estudo dos movimentos em geral, e pelos populares em especial. (GOHN, 2007, p. 274)

Além do “declínio do interesse” pelo tema,183 grande parte do debate acerca

dos movimentos sociais urbanos tomava novos rumos, e conceitos como autonomia

perdiam importância frente à discussão sobre políticas públicas, a reflexão sobre

classes sociais perdia terreno para a discussão de cidadania dos setores excluídos

ou marginalizados e os movimentos sociais passavam a concorrer com as ONGs

como atores privilegiados nessas análises184:

O campo de estudos dos movimentos sociais urbanos, surgido dos anos 70 e consolidado nos anos 80, foi em boa parte sucedido, nas ciências sociais brasileiras, na década de 90, pelo campo de estudos sobre políticas públicas – o que refletia, em parte, a democratização do Estado projetada na Constituição Federal de 1988. (PERRUSO, 2009, p. 104)

183 O “declínio do interesse” notado por Gohn foi profundo e duradouro, impactando até os anos 2000: “Uma análise dos grupos de trabalho e das sessões temáticas da ANPOCS, que congrega os principais trabalhos nas áreas das Ciências Sociais, compreendendo um período de dez anos, de 1998 a 2007, revela a migração do interesse dos cientistas sociais das diferentes áreas e suas preocupações teóricas: não houve nenhum grupo de trabalho ou sessão temática que contivesse o nome ‘movimentos sociais’. (...) Sobre os movimentos sociais urbanos não houve nenhum grupo que se deteve especificamente sobre o tema que, se tratado, está diluído em grupos ou sessões com outras temáticas principais” (MIAGUSKO, 2012, p. 99). 184 No caso do movimento sindical, a migração foi para os estudos sobre a reestruturação produtiva e as novas configurações do mundo do trabalho.

Page 210: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

210

O cenário dos movimentos sociais se altera no Brasil nesta década e com ele o quadro de pesquisadores. Entre estes últimos, alguns passam a se preocupar com os problemas da violência, da exclusão social, ou com novas práticas civis e deixam a temática dos movimentos de lado. A centralidade da maioria dos estudos passa a ser as redes de ONGs e os mecanismos institucionais da democracia participativa. (GOHN, 2007, p. 280)

Gohn, em seu balanço da produção teórica sobre os MSUs nos anos 1990,

analisa essas mudanças de rumo também a partir das novas elaborações de

Castells, segundo ela o mais influente pensador dessa temática185. Ela destaca que

“Castells passou a denominá-los citadinos ou de cidadãos, por trazerem em seu bojo

a problemática da cidadania”. (GOHN, 2007, p.190) Ela afirma também que “a

autonomia dos novos sujeitos históricos” não se realizou:

Em 1985, Castells reafirmou as alterações em sua proposta inicial: “Os movimentos sociais não são agentes de transformação social. Eles possuem limites políticos e técnicos. Estão sujeitos ao jogo do clientelismo político, em troca de demandas imediatas. Estão mais sob o fluxo da lógica política. São tolerados pelas instituições. Eles possuem também limites profundos em termos de sua capacidade de transformação urbana.” Entretanto, prossegue Castells, os movimentos são fundamentais para uma gestão democrática da cidade, porque são os verdadeiros diagnosticadores das necessidades coletivas. (...) Castells apontou também para uma interdependência entre movimentos e Estado. Se não há mudança sem a pressão dos movimentos, não há também possibilidade de sobrevivência dos movimentos sem os instrumentos técnicos institucionais. (...) A autonomia dos novos sujeitos históricos – como chegaram a ser exaltados – não se realizou. Não existem indicações neste sentido. Elas não ocorreram porque no capitalismo deste final de século a sociedade civil e a sociedade política estão indissoluvelmente entrelaçadas. Qualquer mudança em um dos lados reflete-se, de imediato, no outro. (GOHN, 2007, p. 192-193)

Mudavam os interesses dos pesquisadores, as influências teóricas e os

significados atribuídos aos movimentos sociais. E as mudanças não se davam

apenas no campo intelectual. Os contextos políticos mundial e brasileiro também

sofriam profundas transformações. Os MSUs, frente a tudo que acontecia no Brasil e

no mundo, também mudavam (o que, como visto, já era percebido em diversas

análises feitas ainda nos anos 1980).

185 Segundo a autora: “pode-se dizer que na questão dos movimentos sociais a elaboração de Castells foi o paradigma dominante nos estudos sobre os movimentos sociais na Europa e na América Latina.” (GOHN, 2007, p.192)

Page 211: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

211

Não custa lembrar que a década de 1990, no Brasil, se iniciara sob o signo do

fim da ditadura. Uma nova Constituição, dita “cidadã”, fora promulgada e eleições

diretas para presidente realizadas novamente em 1989. Lula, o mais notório

representante do novo sindicalismo, foi candidato por uma frente de esquerda e

chegou ao segundo turno perdendo para Collor de Mello por uma pequena margem

de votos. Collor, depois de muita pressão popular e gigantescas mobilizações de

rua, sobretudo estudantis, foi deposto pelo Congresso Nacional devido às denúncias

de corrupção186. Antes, porém, seu governo dera início à implantação no Brasil do

receituário neoliberal, seguindo uma tendência mundial que se acentuou com a

desarticulação do bloco socialista.

Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, na eleição

presidencial de 1994, ganhou impulso a aplicação do receituário neoliberal no Brasil.

Era um governo comandado por um intelectual renomado internacionalmente, que

havia sido perseguido pela ditadura, e que articulava um bloco político mais amplo e

fortalecido pela derrubada da inflação através do Plano Real. Corte de gastos

públicos, juros altos, redução de direitos trabalhistas e previdenciários, arrocho

salarial, demissões, privatizações e terceirizações compunham a agenda política e

econômica governamental, fundada no discurso contra o Estado interventor,

ineficiente e corrupto.

A deterioração das condições de vida e de trabalho estimulava a ocorrência

de lutas de caráter mais reativo ou defensivo, além de mais fragmentadas e focadas

na busca por evitar demissões anunciadas em uma categoria, cortes salariais em

outra ou privatização de determinada empresa. E, não obstante a redução numérica,

as greves, ocupações de terra e manifestações de rua eram duramente reprimidas e

os movimentos sociais criminalizados. Os massacres no campo, as seguidas prisões

186 O impacto da eleição de 1989 entre os militantes do PT e da esquerda brasileira como um todo foi profundo. Ajudou a consolidar uma visão política que priorizava a luta institucional e um imaginário de que, em breve, chegando ao Governo Federal, seria colocado em prática o “programa democrático e popular”, o qual incluía também a reforma urbana. O processo de luta que levou à destituição do Presidente Collor em 1992 já foi influenciado pela crescente institucionalização por que passavam as lutas e movimentos sociais. Enquanto os grupos mais independentes e do campo mais à esquerda dos movimentos defendiam a palavra de ordem “Fora Collor, eleições gerais já”, os grupos mais adaptados à estratégia institucional defendiam apenas a aprovação pelo Congresso Nacional do impeachment do presidente, sem qualquer outra palavra de ordem que pudesse indicar uma vontade de maiores mudanças ou que abalassem a ordem institucional. O contínuo crescimento eleitoral do PT durante os anos 1990 – conquistando prefeituras, governos estaduais e aumentando as bancadas de parlamentares – colaborou para que a perspectiva institucional/eleitoral ganhasse força mesmo

Page 212: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

212

de integrantes do MST e, principalmente, a reação estatal à greve dos petroleiros de

1995, com intervenção do exército nas refinarias, prisão de lideranças e a aplicação

de vultosas multas que levaram ao fechamento dos sindicatos, visando quebrar a

espinha dorsal do sindicalismo brasileiro, serviram como exemplo do tratamento que

o governo dispensaria àqueles que se opunham às reformas neoliberais.

Entre os movimentos sociais urbanos essas mudanças tiveram grande

impacto. Em meio às seguidas privatizações e ao discurso que conferia papel

decisório central ao mercado na sociedade, a defesa da esfera pública, do Estado,

tornava-se a principal bandeira de luta da esquerda. Para movimentos fundados na

distância ao Estado, essas eram mudanças difíceis de serem assimiladas e

reelaboradas sem que causassem confusão e desmobilização. Ao mesmo tempo, os

novos direitos inscritos na Constituição e as possibilidades de participação na

elaboração ou execução de políticas públicas (muitas dessas focalizadas apenas em

grupos sociais muito específicos), abertas especialmente nas prefeituras petistas,

estimulava os MSUs a se voltarem para ações mais localizadas, em parceria com as

ONGs e ligadas à esfera institucional. Viam, assim, diminuírem suas ações de maior

envergadura e visibilidade (as mobilizações de massa), enquanto recuava sua

referência política no cenário nacional.

A nova conjuntura dos anos 1990 e a dificuldade de militantes e movimentos

urbanos em reagirem a ela, fizeram desses anos um período de transição para os

MSUs. Somente em fins dos anos 1990 foram retomadas algumas manifestações

urbanas de maior visibilidade, como as ocupações. E essas apresentavam novas

características, privilegiavam novos espaços e eram organizadas, principalmente,

por novíssimos movimentos que surgiam. Durante esses anos de transição, algumas

tendências foram se consolidando entre os novos MSUs surgidos na década

anterior. Algumas características desses movimentos que tanto chamaram atenção

dos pesquisadores em anos anteriores se reconfiguravam ou deixavam de existir,

como registra Gohn:

O aprofundamento do processo de transição democrática, com a ascensão de líderes da oposição, de vários matizes, a cargos no parlamento e na administração de postos governamentais, levou progressivamente ao desaparecimento da questão da autonomia dos

com as seguidas derrotas nas eleições presidenciais. E devido à histórica relação que tinham, o processo de institucionalização do PT influenciava também os movimentos sociais.

Page 213: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

213

discursos dos movimentos e das análises dos pesquisadores. O Estado, nessa conjuntura, não era simplesmente o adversário dos movimentos, mas seu principal interlocutor. (GOHN, 2007, p. 287)

A questão da autonomia não foi a única mudança relevante. A autora indica

que houve também uma profunda mudança na visão dos movimentos sociais a

respeito do Estado gerando, inclusive, divisões entre os movimentos. E, segundo

Gohn, o Estado também criava novas estratégias para lidar com os movimentos e

conflitos:

Ser contra o Estado foi uma estratégia dos movimentos nos anos do regime militar. (...) Depois a relação mudou e ocorreu uma divisão entre os movimentos: alguns apoiando e outros continuando a luta contra o governo constituído, articulados às redes que fazem oposição ao novo status quo. Isto não significa que estes últimos não interajam com o mesmo, ao contrário. (...) A institucionalização dos conflitos sociais tem sido a principal estratégia da sociedade política para responder aos movimentos sociais. A cada onda de movimentos surgem uma série de leis e novos órgãos públicos para cuidar da problemática. (...) Muitos movimentos que tiveram muito vigor nos anos 70 e 80, quando clamavam por direitos, passaram a encontrar dificuldades para manter a mobilização após terem conquistado alguns daqueles direitos em lei. (GOHN, 2007, p. 232-234)

A “institucionalização dos conflitos sociais” foi uma das mais relevantes

mudanças ocorridas nos anos 1990. Suas consequências não eram apenas a

diminuição de um sentimento de autonomia. Para muito além de uma abstração,

essa mudança levaria os MSUs a se adaptarem cada vez mais àquele “tempo

burocrático” imposto pelo Estado, em uma dinâmica que “tende a disciplinar e

burocratizar o conflito, o que supõe a fragmentação e individualização dos

trabalhadores”, da qual falava Telles (1987).

A institucionalização também impunha aos MSUs uma maior dependência

das assessorias, das articulações parlamentares, das negociações com técnicos dos

governos. Após esses longos processos, quando vislumbradas soluções para as

demandas dos movimentos, essas “soluções” seriam na forma de um programa

governamental, para o qual seria necessária a apresentação de um projeto que

possibilitaria ter acesso àquela solução. Para elaborar esses projetos os MSUs

precisavam de recursos, de mais apoio técnico e, dessa forma, precisavam também

elaborar um projeto para obtenção desses recursos, apoio etc. Precisavam ainda

formar uma base social que tivesse as características necessárias (tanto em sua

Page 214: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

214

composição quanto nas formas de organização) para serem inseridos no tal

programa. Assim, ia se constituindo um ciclo de despolitização, no qual as

mobilizações de massa perdiam relevância e os movimentos perdiam protagonismo,

transformando-se apenas no público-alvo de ações governamentais que eram

mediadas, fundamentalmente, por atores especializados nessas mediações, como

as ONGs187.

Gohn ressalta também que, como parte desse processo de institucionalização

dos conflitos que marcou os anos 1990, os movimentos sociais viram surgir novos

concorrentes. Segundo a autora, “as elites políticas”, buscando disputar a sociedade

civil, “estimularam o surgimento de movimentos sociais a seu favor”188. Como

exemplos, ela cita desde a criação de uma central sindical (a Força Sindical) até o

desenvolvimento de redes de ONGs articuladas em torno de programas

governamentais. Ela diz ainda que alguns antigos movimentos foram convertidos

para esse campo que expressava os interesses das elites, citando, entre outros

exemplos, a CONAM.

Como os conflitos sociais, via de regra, não são mais resolvidos pelo uso da força, mas nas mesas de negociação, pautados por mecanismos jurisdicionais de controle, as elites políticas estimularam o surgimento de movimentos sociais a seu favor, não voltados contra o Estado, mas expressão de seus interesses e das políticas que buscam implementar. (...) Exemplos destes são: a Força Sindical (...); e a rede de movimentos que se construiu ao redor do programa Comunidade Solidária, (...) várias dessas ações e movimentos já estavam presentes nos anos 80, como a CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores; a CGT – Confederação Geral dos Trabalhadores (GOHN, 2007, p. 311).

Outros trabalhos também destacam o crescente processo de fragmentação

entre os movimentos e entre esses e seus antigos apoiadores. Não obstante as

187 “Antes os movimentos utilizavam sedes de sindicatos e a própria infraestrutura dos partidos políticos. Nos anos 90 – por meio das ONGs – passaram a ter infraestruturas próprias, a se utilizar mais de recursos tecnológicos (...) As ações sendo menos de pressão e mais de organização da população, voltadas para algum programa efetivo, necessitam de suportes materiais. Estes suportes são obtidos pelas ONGs por meio de projetos. Estes projetos são financiados por outras ONGs ou por programas governamentais, ou pela própria comunidade. Para que tenham continuidade, precisam de eficiência. Arma-se portanto um ciclo onde não há tempo a se gastar com mobilizações por demandas não atendidas.” (GOHN, 2007, p. 315) 188 Além dos movimentos consagrados como a favor das elites, Gohn destaca ainda o surgimento de uma série de movimentos e articulações de movimentos (ONGs à frente, hegemonizadas pela classe média e em certos casos com apoio empresarial), que se expressavam na forma de campanhas e que tinham como eixos a defesa do atendimento mínimo dos excluídos, a problemática da segurança

Page 215: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

215

explicações mais ou menos elaboradas e as motivações políticas e ideológicas que

podem perpassar essas explicações, a fragmentação das lutas sociais ganhava

destaque nas análises:

Com o fim do regime militar, os movimentos populares passaram a encontrar outro tipo de dificuldade: as diferenças ideológicas explicitaram-se e demarcaram também as diferentes propostas e estratégias para o encaminhamento das lutas. A tensão permanente entre movimentos e partidos e a perda da unidade de objetivos levaram à fragmentação do movimento popular. (BEGA DOS SANTOS, 2008, p 79)189

Entre os MSUs, mudanças relacionadas com o próprio desenrolar de suas

dinâmicas políticas e ao desdobramento de lutas realizadas anteriormente também

favoreciam a diminuição das lutas mais gerais e politizadas. Como foi visto no

Capítulo I, é comum que após uma ação direta de ocupação se iniciem

manifestações e negociações com o Estado para regularização, reforma ou

construção das moradias no prédio ou terreno ocupado. Mas, e depois de

conquistada essa reforma ou construção? Os passos seguintes dependem das

experiências acumuladas pelo grupo e do caráter e formas de luta praticadas pelo

movimento social ao qual esse grupo e luta se vinculam. Um exemplo desse tipo de

desdobramento de uma típica luta dos anos 1980, ligada à Igreja Católica e às

ocupações na periferia, é examinada por Miagusko (2012): o caso da União da Juta,

grupo/associação nascida de uma das ocupações realizadas em São Paulo na

virada da década de 1980 para 1990, ligada à experiência das CEBs e da Igreja

Católica, que depois construiu em regime de mutirão suas 160 moradias. Miagusko

percebe que, conquistados os objetivos iniciais do grupo e com o passar dos anos e

a mudança no contexto político, pouco restava de caráter de luta nessa experiência.

Da “ideologia comunitária” havia restado apenas seus efeitos segmentadores:

Esse tipo de organização, influenciada pela “ideologia comunitária” da Igreja Católica, se via em posição autônoma em face ao Estado e aos partidos políticos, alternativa à democracia representativa e ao jogo de interesses manifesto no jogo político. (...) Contudo, a

pública ou as lutas contra a corrupção e por ética na política. Seriam exemplos desses: o Movimento Ética na Política e, sobretudo o Viva Rio. (GOHN, 2007, p. 306-307-308) 189 A autora diz também: “sobretudo a partir da década de 1990, os vínculos entre os movimentos populares e a Igreja começaram a se esgarçar, e muitos desses movimentos romperam com a Igreja por causa do excesso de controle exercido por esta”. (BEGA DOS SANTOS, 2008, p 73-75)

Page 216: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

216

ideologia comunitária teve outro desdobramento. A prioridade dada à identidade da comunidade, do pertencimento ao grupo de origem ou que se unia para finalidade comum fez diminuir nesses grupos os compromissos gerais e as demandas públicas. Apesar de diferente em relação ao clientelismo, a ideologia comunitária seguiu padrão dessa forma de fazer política, no que diz respeito aos efeitos segmentadores (ZALUAR, 2006: 210-211). Aquilo que dava o amálgama e a dimensão pública a essas iniciativas das associações não eram as ações em si, por mais virtuosas que fossem. O que lhes conferia a dimensão pública era o contexto de publicização do conflito, em que antigas e novas demandas estavam inseridas e alargavam o espaço mais amplo de possibilidades do avanço da experiência democrática. Quando o contexto desapareceu, o conjunto dessas experiências sofreu forte questionamento. (MIAGUSKO, 2012, p. 156)

Outra mudança nas formas de organização dos MSUs nos anos 1990 foi que

“os movimentos populares mais combativos criaram estruturas nacionais próprias,

como a CMP” (GOHN, 2007, 238) Ela cita ainda a articulação nacional das ONGs:

Outras novidades devem ser assinaladas no cenário das ações coletivas dos anos 90. Primeira: o fortalecimento de redes e estruturas nacionais de movimentos sociais, coordenadas por ONGs – como a ABONG, Associação Brasileira de ONGs – ou a criação de estruturas macrocentralizadoras de vários movimentos sociais – como a CMP, Central dos Movimentos Populares, que após mais de dez anos de discussões e ensaios preliminares passou a aglutinar todos os movimentos sociais que já gravitavam ao redor da CUT. (GOHN, 2007, p. 308-309)

Movimentos sociais de base, autônomos, combativos, massivos, os novos

sujeitos políticos que expressavam o fazer-se das classes populares passaram

então, pouco a pouco, com o desenrolar dos anos 1990, a apresentar características

comunitaristas, bases fragmentadas e dependência com as ONGs e com as

relações com o Estado. Ao mesmo tempo, conseguiram se organizar na escala

nacional, abrindo assim novas perspectivas e contradições. Afinal, organizar-se em

escalas mais amplas pode ser uma forma de contribuir para a superação dos

comunitarismo e dos localismos, além de facilitar uma maior articulação com outros

movimentos e entidades representativas da classe ou de frações da classe

trabalhadora. Por outro lado, era uma conjuntura em que diminuíam as mobilizações

de massa, na qual as bases dos MSUs se mostravam fragmentadas em práticas

comunitaristas e os esforços dos principais militantes e dirigentes dos movimentos

eram sugados pelo “tempo burocrático” do Estado. Portanto, era grande o risco

Page 217: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

217

dessas estruturas nacionais reproduzirem o “cupulismo” antes tão criticado por

militantes e pesquisadores dos novos MSUs, e de ficarem, em grande medida,

burocratizadas e afastadas das bases sociais que, em tese, deveriam representar,

organizar e pôr em movimento.

A década de 1990 apresentou um mar de contradições para os movimentos

sociais urbanos. Ao mesmo tempo em que se viam fortalecidos em suas estruturas

burocráticas e em sua organização nacional, os MSUs viam suas bases dispersas e

desmobilizadas depois de tantos anos de vigorosas lutas. Viam também uma nova

conjuntura, na qual a esquerda defendia o Estado, contra as privatizações e os

cortes de gastos públicos, e na qual os governos criavam novos conselhos e

projetos de lei a cada conflito, induzindo à institucionalização das lutas e

movimentos. E viram ainda surgir novos atores, as ONGs, que ao construírem uma

imagem de articuladoras e representantes dos trabalhadores pobres, passavam a

concorrer com os MSUs por recursos e apoio político. Como resultado, esses

movimentos viviam uma crise e não conseguiam apresentar respostas políticas para

fazer frente à nova realidade a qual estavam submetidos190.

A elaboração de respostas políticas para essa nova realidade demorou e

essas só começaram a aparecer em fins dos anos 1990. Foram longos anos de

transição. Em fins dos anos 1990, começaram então a surgir novíssimos

movimentos urbanos e, com eles, novas questões e novas práticas passaram a se

impor. São essas questões e práticas que marcarão os MSUs nos anos 2000,

influenciando o surgimento de uma onda de novíssimos MSUs e a reformulação das

práticas de movimentos surgidos das lutas dos anos 1980 que, a partir dos anos

1990, viveram uma profunda crise.

Observa-se então, sobretudo a partir de 1997 em São Paulo, após a marcha

nacional pela reforma agrária organizada pelo MST, o surgimento do Movimento dos

Trabalhadores Sem Teto (MTST), o maior e mais importante entre os diversos

movimentos de sem-teto que surgiam. Com os novíssimos movimentos surgem, se

avolumam ou se tornam mais visíveis críticas aos antigos “novos” movimentos

urbanos, principalmente com relação à paralisia das ações diretas e das

190 Segundo a análise de Gohn: “Os anos 90 redefiniram novamente o cenário das lutas sociais no Brasil (...) Os movimentos sociais populares urbanos dos anos 70-80 alteraram-se substancialmente. Alguns entraram em crise interna: de militância, de mobilização, de participação cotidiana em

Page 218: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

218

mobilizações de massa e ao processo de institucionalização desses movimentos.

Surgem também novas prioridades e formas de ação que, nesses anos, podem ser

consideradas ainda como tendências que iriam (algumas delas) se consolidar

durante os anos 2000, sob um novo contexto político muito distinto daquele no qual,

anos antes, surgiram e se desenvolveram os “novos” MSUs. A notável influência do

MST sobre outros movimentos sociais também deve ser registrada:

O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) surge na segunda metade da década de 1990, mesmo período que os demais movimentos de sem-teto no Centro de São Paulo. No entanto, as práticas políticas, discursos, o tipo de articulação, as iniciativas e suas origens estão inseridas num campo gravitacional de experiências próximas ao MST. (...) Desse momento inicial de construção, o MTST readéqua práticas e amplia sua autonomia. Contudo, a forma de organização do movimento, o esforço em perseguir dimensão mais generalizada de participação nas lutas urbanas, o caráter da formação política e a noção de “latifúndios urbanos improdutivos” se referem ao MST. A nomeação do movimento também procura refletir esse esforço de diferenciação de outros movimentos de moradia. Assim, o MTST não se define como movimento de moradia e, sim, como movimento popular urbano que enfrenta questões relativas à vida dos moradores das periferias urbanas (MIAGUSKO, 2012, p. 255 e 259).

Outros trabalhos sobre movimentos sociais urbanos no Brasil também

destacam o processo de “renovação” visto em fins dos anos 1990 e o aparecimento

do MTST:

Vamos destacar aqui duas dessas experiências, que consideramos as mais representativas da “renovação” dos ativismos sociais: o MTST e o hip hop.191 (...) O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) não é a única organização que, no Brasil atual, congrega ocupantes de imóveis vazios e abandonados. Há outras, como o MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro) de São Paulo. Contudo, o MTST é a organização mais importante. (...) Ele surgiu no final da década de 90 – contando com a participação decisiva de militantes do MST – trazendo a proposta de mobilizar e organizar pessoas para a luta pela moradia no Brasil. Hoje o MTST tem núcleos em várias cidades do Brasil, mas não apresenta uma articulação nacional forte

atividades organizadas, de credibilidade nas políticas públicas e de confiabilidade e legitimidade junto à própria população.” (GOHN, 2007, p. 304) 191 Mesmo não sendo o foco dessa tese, registra-se que movimentos de cunho cultural, como os ligados ao Hip Hop, compõem o quadro de relações políticas estabelecidas pelos MSUs aqui estudados. Sobre o surgimento do movimento hip hop, Lopes de Souza e Rodrigues dizem: “Dos EUA, o hip hop espalhou-se pelo mundo, mas sempre sendo cultivado em bairros pobres e espaços segregados das cidades. (...) um movimento político-cultural produzido por pessoas que moram em espaços pobres e segregados, e que, por meio da arte e da cultura, criam formas variadas de fazer política.” (LOPES DE SOUZA e RODRIGUES, 2004, p. 101)

Page 219: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

219

(...) o MTST não denuncia apenas a falta de moradia e de políticas habitacionais consistentes, mas faz uma crítica mais ampla ao próprio sistema político e econômico brasileiro. O movimento não luta apenas por moradias dignas, mas se coloca contra uma série de processos políticos e econômicos que perpetuam as desigualdades observadas nas cidades. (LOPES DE SOUZA e RODRIGUES, 2004, p. 96-97)

Além do MTST, outros movimentos de sem-teto surgem e se desenvolvem a

partir dos últimos anos da década de 1990. Eram, na maioria das vezes, movimentos

com bases sociais ainda numericamente pequenas e localizadas, sem uma

articulação nacional estabelecida, mas que começavam a desenvolver seus campos

de alianças e afirmar as novidades que traziam:

No decorrer dos anos 1990 surgiram vários movimentos de sem-teto em São Paulo, sobretudo a partir de 1997 com o deslocamento tanto quantitativo como qualitativo das ações com maior visibilidade política para o Centro de São Paulo. A maioria dos movimentos de sem-teto participa da UMM, mas nos últimos anos suas ações adquiriram maior independência e delimitaram novas articulações políticas, como a Frente de Luta pela Moradia (FLM), que reuniu diversos movimentos de moradia e sem-teto do Centro e de outras regiões.192 (MIAGUSKO, 2012, p. 101)

Miagusko discute ainda duas questões relacionadas aos novíssimos

movimentos de sem-teto que surgiam em São Paulo e que se tornariam marcas ou

tendências que influenciariam a formação de diversos MSUs em todo o Brasil nos

anos 2000: as lutas e ocupações nas regiões centrais das cidades e a mudança de

nomenclatura de movimentos de moradia para movimentos de sem-teto. Ele busca

relacionar o surgimento desses novíssimos movimentos e essas novas

características por eles apresentadas às mudanças na conjuntura política e nas

formas de ação do Estado. Aspectos relacionados à construção de identidades, ao

alargamento das esferas de participação no Estado e a criminalização dessas lutas e

movimentos adquirem lugar relevante na análise desse autor. Sobre a questão da

mudança de nomenclatura, ele diz:

A categoria “sem-teto” foi acionada substituindo a definição “movimento de moradia”, enunciando a nomeação a partir da palavra

192 Miagusko relata ainda uma situação parecida com a encontrada no Rio de Janeiro nos anos 2000 e que compõe o quadro de fragmentação de lutas e movimentos sociais urbanos: “Apesar dessa diversidade de entidades gerais é necessário ressaltar que parcela significativa das associações de moradores e dos movimentos de moradia na capital não se organiza em nenhuma entidade nacional ou regional.” (MIAGUSKO, 2012, p. 102)

Page 220: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

220

“sem”, o que significava um movimento que definia sua identidade pela ausência de um direito ou bem. A assimilação da nomeação sem-teto assinala como os anos 1990 foram marcados pela retração das políticas públicas de caráter universalizante e pelo encolhimento do campo dos direitos ou sua flexibilização. (MIAGUSKO, 2012, p. 22)

Miagusko prossegue então apresentando as características consideradas por

ele como fundamentais no novo contexto político dos anos 1990, e que levaram os

movimentos de moradia e sem-teto a oscilarem num pêndulo entre criminalização e

gestão (da pobreza):

Dois movimentos simultâneos ganharam força como “consenso” sobre os movimentos sociais. Primeiro, o deslocamento da legitimidade das ações que pode ser localizado no processo de criminalização da greve dos petroleiros de 1995 através do discurso de defesa do Estado de direito democrático e de processos contra lideranças dos movimentos de sem-terra e de sem-teto. Segundo, o campo em que os próprios movimentos sociais passaram a participar dos mecanismos de gestão das políticas públicas ou se organizarem a partir destas políticas (...) Portanto, há uma novidade no tratamento dos movimentos sociais a partir dos anos 1990: a criminalização se dava na medida mesma em que se recorria à defesa do Estado de direito democrático (...) O consenso se construía a partir do alargamento do campo de intervenção dos movimentos sociais na conformação das políticas de gestão e pela criminalização dos que procurassem operar por fora desse campo gravitacional. (...) Assim, os movimentos de moradia e sem-teto, apesar de uma efetiva ampliação de participação política, a partir da presença em fóruns públicos, conselhos e em espaços institucionais, na capacidade de negociação política com os poderes públicos, oscilam num pêndulo entre a criminalização e gestão. (MIAGUSKO, 2012, p. 22-23)

A participação quase coercitiva nas esferas estatais é tema de recorrentes

debates também entre os MSUs e seus aliados nos anos 2000 no Rio de Janeiro. Do

mesmo modo, a criminalização dos movimentos sociais era repetidas vezes

discutida e motivou diversas manifestações (cf. Capítulo I). Nessas discussões que

ocorreram, por exemplo, em reuniões e seminários da PMS-RJ, chama atenção a

reflexão que questionava a interpretação corrente sobre hegemonia, baseada numa

combinação entre o uso do consentimento e o uso da força. Nessa combinação, ter-

se-ia: mais consentimento, menor uso da força, e menos consentimento, maior uso

da força. Nas referidas discussões, afirmava-se que, naqueles anos (fins dos 2000 e

início dos anos 2010) vivia-se sob uma combinação diferente e mais perversa de

hegemonia: mais consentimento e maior o uso da força. Pois quanto maior o

Page 221: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

221

consentimento (com respeito a qualquer questão como, por exemplo, os

megaeventos ou as UPPs), seria maior a permissão ou a aceitação por parte da

sociedade para o maior uso da força contra aqueles que criticam ou se opõem

àquela questão.

Voltando à análise de Miagusko, ele diz que aquele consenso limitava o lugar

e as possibilidades de ação dos MSUs, pois era construída uma imagem dos sem-

teto que visava associá-los à “pauta” policial e, assim, deslegitimá-los como atores

políticos:

Duas imagens são comuns na figuração dos sem-teto nos tempos atuais: o aparecimento como a ameaça à propriedade privada, como provocadores da desordem, o que exigiria a contrapartida do Estado para garantir segurança aos proprietários através da criminalização de movimentos de sem-teto que ultrapassassem as fronteiras da ação política tolerável. Por outro lado, o aparecimento como “curiosidade” por uma vida desviante que se passa em prédios precários, vidas em suspenso, em batalhas contra a polícia. (...) O deslizamento que aproxima os sem-teto à pauta policial, no sentido comum que é empregado ao termo, é uma das lógicas pela qual esse consenso se processa. A utilização larga de imagens de prédios ocupados, famílias desajustadas, crianças em condições precárias, colocam os sem-teto em lugar fora da política. A constância da utilização violenta da força é determinante para figurar o lugar policial em que essa parcela dos sem-parcela deve estar.193 (MIAGUSKO, 2012, p. 90-91)

A prioridade conferida por vários movimentos de sem-teto às ocupações nas

áreas centrais das cidades é outra característica das lutas que despontavam em fins

dos anos 1990, que se tornaria muito disseminada a partir dos anos 2000. Se a

“questão da periferia” havia sido percebida como fundamental para a questão

urbana nos anos 1970 e 1980 - e olhando-se para as práticas de ocupações de

“latifúndios urbanos” pelo MTST continuava sendo - por outro lado, a “questão do

Centro” começava a ser construída e se afirmava também como importante.194 Ao

193 Bastante perspicaz a observação contida nessa última frase da passagem de Miagusko. Afinal, é comum que um movimento vitimado pela violência policial (do Estado) obtenha certa visibilidade, receba diferentes formas de solidariedade e que sejam constatadas e divulgadas violações dos direitos humanos etc. No entanto, esse “fato político” que desnudaria a face repressora do Estado, quando repetido constantemente, pode (ou tende a) se tornar um caso de polícia, noticiado nas páginas policiais dos jornais, perdendo assim seu lugar na política. 194 Ao dizer que a “questão do Centro começava a ser construída”, não se está negando que em períodos históricos anteriores (como no início do século XX no Rio de Janeiro) a região do Centro tenha sido a prioridade das políticas urbanas (com expulsão dos pobres e processo de embelezamento e abertura de vias para circulação de mercadorias) e, em consequência, também de muitos e importantes conflitos sociais. Do mesmo modo, e isso serve também para a “questão da

Page 222: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

222

priorizarem ações de ocupação de prédios vazios na região central, diversos

pequenos grupos e movimentos de sem-teto se organizavam, colaboravam com o

processo político de retomada das ações diretas pelos MSUs e colocavam em

debate as possibilidades de uso do Centro195.

Ao mesmo tempo, e também como consequência das ocupações dos sem-

teto, crescia o debate sobre o esvaziamento populacional da região central. Se

instaurava assim a “questão do centro”, espaço que passava a ser disputado por

diferentes atores e discursos. De um lado, os MSUs com suas ocupações e

propostas de habitação para os mais pobres, de outro, associações de inspiração

empresarial defendendo a requalificação urbana e visando a valorização imobiliária

e a capacitação de São Paulo como cidade global:

O debate em torno do “esvaziamento populacional” da região foi tomado, de outro lado, pelos movimentos de sem-teto cujo marco de surgimento é a metade final dos anos 1990. E o discurso é a possibilidade de habitação popular no Centro. Assim, se constrói a proposta de políticas habitacionais como elemento de disputa pelos movimentos de sem-teto ressaltando a diversidade da ocupação na região, ou seja, um espaço urbano de múltiplas funções que pudesse combinar empregos, serviços e também moradia. (MIAGUSKO, 2012, p. 180) O debate da requalificação urbana adquire força com a criação da Viva o Centro, cuja inspiração inicial era a Baltimore, matriz do Banco de Boston, um de seus principais indutores. (...) No final dos anos 1990 as questões relativas ao Centro apareciam em primeiro plano. Dois discursos se entrelaçaram: o primeiro, o combate à “degradação” do Centro, procurando deter a retirada de empresas e instituições financeiras, valorizar e retomar empreendimentos imobiliários na região; o segundo, que se afirmou no decorrer da década de 1990, do discurso de capacitar São Paulo para assumir o papel de “cidade global emergente”. Quem assumia o protagonismo desses discursos era a Associação Viva o Centro (AVC). (MIAGUSKO, 2012, p. 195-196)

A tendência à realização de ocupações em áreas centrais se disseminaria. No

Rio de Janeiro, o mais importante ciclo de ocupações na cidade, entre 2004 e 2008,

periferia”, não se está negando que esses já fossem temas e questões de conflitos e formulações políticas, teóricas e urbanísticas em diversas cidades do mundo. O objetivo é identificar como se construíram essas questões (tornadas prioritárias) pelos e para os MSUs brasileiros nos últimos anos. 195 Em levantamento realizado na “grande imprensa”, Miagusko registrou 112 ocupações por movimentos de moradia e sem-teto em São Paulo entre 1997 e 2007. Desse total, 83 ou 74,1% foram realizadas nos treze distritos da região central da cidade. Ele diz que, até então, o Centro era visto como espaço de riqueza e sua população pobre “associada ao mau pobre, dos cortiços ou ao

Page 223: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

223

teve o Centro como palco principal. No Centro, mesmo as ocupações que não

reuniam um número muito expressivo de famílias tinham grande visibilidade política.

Além do mais, serviam para publicizar dois aspectos importantes e costumeiramente

denunciados pelos MSUs: a falta de infraestrutura e serviços urbanos em grande

parte da cidade (o que justificava a luta pela moradia em uma área assistida por

infraestrutura e serviços) e a existência e ociosidade de prédios vazios ou

abandonados que, por não estarem cumprindo qualquer função social, poderiam ser

convertidos em espaços de moradia. Além de dar visibilidade para essas duas

questões, as ocupações no Centro ainda punham em debate o sistema de

transportes e a concentração de ofertas de trabalho em poucas regiões da cidade. E

essas ocupações, por tudo isso, deram visibilidade também para os movimentos

sociais urbanos que as organizavam, fossem eles novíssimos movimentos, como a

FLP ou a FIST, ou movimentos de longa história, como a CMP e o MNLM.

A década de 1990 fez a transição entre dois tempos diferentes. Esteve no

meio do caminho entre um período marcado pelo fim da ditadura e pelo fazer-se da

classe trabalhadora através da luta de diferentes movimentos sociais, e o período

posterior, marcado pelo pleno funcionamento da democracia representativa, pelas

reformas neoliberais e pelo refluxo das grandes mobilizações de massa e a

fragmentação das lutas e movimentos sociais. E é justo esse segundo período - e

toda essa história - que compõe o contexto no qual os MSUs dos anos 2000 atuam e

são estudados nessa tese.

O diálogo histórico apresentado nessas páginas aponta para grandes

mudanças na conjuntura e no contexto político visto no fim dos anos 1970 e 1980,

para os dias atuais. Algumas questões, como a visão a respeito do Estado, que nos

anos 1980 serviam de base para unificação de variadas lutas, hoje, muitas vezes, as

separam. Mudou o Estado, que por um lado se abriu para a participação (ou

legitimação) popular e, por outro, criminaliza os movimentos e suas lutas quando

essas não são realizadas pela via exclusiva da institucionalidade. Mudaram também

os MSUs e seus aliados.

Novíssimos movimentos surgidos a partir dos últimos anos da década de

1990 e os (velhos) novos movimentos organizados nos anos 1980 - muitos dos quais

morador de rua”, difícil de ser organizada e, assim, “vista com desconfiança” pelos movimentos sociais. (MIAGUSKO, 2012, p. 174)

Page 224: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

224

com atuações que nada lembram as de 30 anos atrás - coexistem hoje. A

fragmentação entre eles é tão visível quanto também as novas tentativas de forjar

alianças e espaços de articulação de lutas, algumas com considerável êxito. Muitos

antigos aliados hoje são adversários, mas lutas e experiências vêm sendo

construídas e novos campos de aliança desenhados e redesenhados.

As análises teóricas e históricas dos anos 1980, hoje, devem ser lidas como

clássicos e contextualizadas como produções de uma época determinada. Falam

sobre aquelas lutas e movimentos sociais, sobre seus autores e pesquisadores.

Proporcionam reflexões sobre a diversidade e heterogeneidade entre os setores

populares e os trabalhadores, sobre a questão da autonomia dos movimentos

sociais, sobre diferentes táticas e formas de luta e organização. E permitem também

identificar desafios a serem enfrentados, como o problema não resolvido expresso

pelo uso do impreciso conceito de classes populares.

Revisitar essa história, tão rica em lutas e análises, e puxar os fios que ligam

aquelas experiências às vividas nos anos 2000, é também uma forma de recontar

toda essa história, de acrescentar novas questões e pontos de vista, a partir de

tempos e lugares diversos. Afinal, o surgimento dos novíssimos movimentos urbanos

ilumina a história dos novos movimentos surgidos nos anos 1970-80. Do mesmo

modo que a questão do centro pode iluminar a questão da periferia.

Nos anos 1990 houve certo abandono da temática dos movimentos sociais.

Hoje, novas análises, de novos pesquisadores, parecem novamente voltar seus

olhos para as lutas e para os movimentos urbanos, especialmente para aqueles que

têm recuperado as ações diretas de ocupação e as manifestações de rua como

práticas prioritárias e, assim, conquistado ou retomado uma maior centralidade

política.

Por fim, destaca-se que com esse diálogo buscou-se contextualizar a

presente tese e diagnosticar melhor os desafios enfrentados nesse trabalho. Tentou-

se, para tal, perceber rupturas e permanências nas histórias dos movimentos sociais

urbanos e suas lutas. Rupturas que, como foi visto no Capítulo I, tantas vezes

ocorrem nos (velhos) novos MSUs, a partir das respostas (em alguns casos até

surpreendentes) que esses encontram para enfrentar a nova conjuntura. Assim

como são vistas também permanências nos novíssimos movimentos surgidos já no

século XXI e motivados por romper com velhas práticas. Rupturas ou permanências

Page 225: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

225

que influenciam nas identidades construídas por e nos movimentos sociais, nas

experiências comuns produzidas e compartilhadas entre esses e seus aliados e nas

formas como a solidariedade e a consciência se criam e recriam através da ação

coletiva nesses e desses movimentos. Enfim, rupturas e permanências que ajudam

a iluminar a história na qual foi e é construída a relação entre movimentos sociais

urbanos e o fazer-se da classe trabalhadora no Brasil.

Page 226: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

226

4 CAPÍTULO III - MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E O FAZER-SE DA CLASSE TRABALHADORA NO BRASIL DOS ANOS 2000

Desafios

Já nos anos 1970 e 1980, boa parte dos autores que escreveram sobre os

movimentos sociais urbanos no Brasil buscavam uma referência teórica e

metodológica em Thompson196. Esses movimentos e suas lutas, em muitos casos,

eram vistos como determinados estruturalmente pelo acirramento das contradições

urbanas e como expressões das lutas relativas à reprodução da força de trabalho.

Outros autores, ao perseguirem explicações menos estruturais que refletissem as

formas de ação e organização desses movimentos, buscaram compreendê-los a

partir do processo de constituição de novos sujeitos sociais e políticos, mas

assumiram os limites de suas análises e do uso do termo “classes populares” (cf.

Capítulo II).

O primeiro desafio apresentado para a confecção do Capítulo III dessa tese é,

portanto, trilhar um caminho que, baseado nos intensos acúmulos vistos nessa

literatura - examinados no diálogo histórico apresentado no Capítulo II - e na

vivência entre os movimentos sociais urbanos durante a pesquisa de campo,

colabore para tentar superar as dicotomias e imprecisões reconhecidas e entender

os MSUs e suas ações como parte do fazer-se da classe trabalhadora.

O segundo grande desafio é buscar um conceito de movimentos sociais

urbanos que ajude a descrever com mais precisão a complexidade de ações e

formas de organização que são foco desse trabalho e foram inicialmente tratadas no

Capítulo I. A partir da problematização a respeito desse conceito realizada no Cap. II

e da identificação de algumas insuficiências das explicações que o descrevem como

lutas relativas ao local de viver, adota-se agora a perspectiva de construção de um

conceito que tem como núcleo não tanto as causas ou motivações, as

determinações estruturais ou não, os objetos de luta, mas o sujeito social que o

constitui e nele se constrói. Os movimentos sociais urbanos seriam, pois, uma forma

de organização própria de uma parcela específica dos trabalhadores – os

trabalhadores pobres e com vínculos instáveis no mercado de trabalho -, que

Page 227: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

227

operam um repertório de formas de organização e de ação também próprias e que

têm a cidade (inclusive sua estruturação, utilização e seu “papel” na produção e

circulação de mercadorias) como objeto de suas lutas.

O terceiro grande desafio é tentar entender a dinâmica das lutas desses

movimentos sob diferentes conjunturas, sem reproduzir as explicações que remetem

essas dinâmicas apenas às questões econômicas estruturais ou aquelas que negam

a relação entre essas lutas e as lutas de classes. Para isso, é necessário analisar as

diferentes respostas praticadas por esses movimentos quando desafiados por

questões como o desemprego, a crise habitacional, o refluxo das lutas sindicais e

operárias, a fragmentação, a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais, a

institucionalização e a cooptação do Estado etc. Busca-se, assim, compreender essa

dinâmica como uma dinâmica possível, determinada pelos significados que os

movimentos atribuem a essas questões e pela ação efetivamente empreendida por

essa parcela organizada dos trabalhadores e dos aliados por eles mobilizados.

Por fim, é também um desafio apresentar uma reflexão sobre como essas

lutas e formas organizativas de uma parcela dos trabalhadores - lutas inseridas em

um campo de conflito com dinâmicas contraditórias - incidem sobre a consciência

dos participantes dessas lutas e movimentos e que experiências e

identidades/alteridades comuns elas favorecem. Do mesmo modo, é necessário

apresentar algumas formas pelas quais essas lutas e movimentos impactam e são

impactadas por outras formas de organização dos trabalhadores (como sindicatos e

partidos) e como influenciam e são influenciadas por outros grupos sociais, como os

intelectuais, estudantes, ONGs ou movimentos como os de direitos humanos.

Caminhos

No primeiro capítulo dessa tese, foi apresentada uma descrição geral sobre

os movimentos sociais urbanos cariocas e sobre os fóruns de articulação de lutas

que esses movimentos participavam. O grande número de movimentos, e dentre

esses especificamente daqueles de luta por moradia, evidenciava a fragmentação

das lutas e movimentos urbanos nos anos 2000. Por outro lado, evidenciava também

que existiam muitas lutas que tinham a cidade como objeto, indicando haver um

196 Ver, entre outros: Gohn, (2007, p. 175 e 287) e Perruso (2012, p. 64, 149, 152, 160, 169 e 260).

Page 228: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

228

profundo mal-estar com as contradições e desigualdades urbanas e com as políticas

governamentais, o que, aliás, ficou visível com as manifestações de 2013. Tais

manifestações mostraram também que, mesmo dispersas, elencando problemas

particulares e numericamente pouco significativas, as seguidas lutas urbanas que

vinham sendo travadas em anos anteriores tinham o potencial de influenciar milhões

de pessoas.

No Capítulo II, foram apresentados diálogos entre as características relatadas

no primeiro capítulo e algumas das principais teorias e análises históricas que se

propõem a explicar os movimentos sociais urbanos e a relação desses com a luta de

classes. Foram questionadas explicações de cunho mais estrutural, que definem os

MSUs apenas como expressões das lutas no local de viver e relacionadas à

reprodução da força de trabalho, atribuindo aos movimentos características que só

podem ser reveladas a partir de suas práticas, seus participantes e os valores,

disposições e identidades que os tornam sujeitos políticos. Foram examinadas

também diferentes concepções sobre classes sociais, com destaque para aquelas

que enfatizam o processo de fazer-se de classe, fundado na luta e em experiências

comuns sobre as relações de produção e a política. E foi visto também que as

classes se fazem em diferentes lugares e podem apresentar características

diferentes conforme suas histórias. História que no Brasil viu acontecer a classe

trabalhadora nas fábricas, mas também nos bairros, periferias e que suscitou

intensas reflexões e debates sobre questões como heterogeneidade, autonomia,

diversidade de formas de organização e luta etc.

A partir dessas reflexões acumuladas nos capítulos anteriores e na tentativa

de enfrentar os desafios elencados, é apresentado agora um reexame de dois

processos históricos vistos no Capítulo I, tendo também como base as questões e

reflexões expostas no Capítulo II.

Primeiro: A apresentação de uma releitura do processo de fundação (ou

refundação) e funcionamento dos movimentos sociais urbanos a partir do caso do

MNLM-RJ e da Manoel Congo. Grupo que depois luta com o Estado para regularizar

sua ocupação, cria políticas de geração de trabalho e renda, de educação,

formação, auxilia novas ocupações, participa de articulações e lutas com outros

movimentos, apoiadores etc. Nessa releitura, são apresentadas também algumas

Page 229: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

229

falas de dirigentes do MNLM-RJ e de moradores da Ocupação, em busca de

compreender e refletir sobre como esses interpretam as questões aqui propostas197.

A experiência do MNLM e da Manoel Congo é reinterpretada principalmente a

partir das seguintes questões: a) O contexto dos anos 2000, de crise e

questionamento de suas práticas, vivido por movimentos como o MNLM, que surgira

das lutas e ocupações nos anos 1980 e havia anos que não realizava uma ação

como a que deu origem à Ocupação Manoel Congo; b) Heterogeneidade e

homogeneidade da base social da ocupação, a gestão como opção do MNLM para

transformação social, a organização interna e as políticas de geração de trabalho e

renda, educação e formação política como meios para mudar vidas e para interação

com os “apoios”; c) O processo analisado por Iasi (2006), de ação coletiva que gera

a fusão de um grupo, que vive experiências comuns que propiciam que seus

participantes se vejam como seres coletivos e sociais e a inserção do Movimento no

campo de conflitos descrito por Telles (1987), com a disputa entre as duas

dinâmicas contraditórias (a do tempo burocrático do Estado, que tende a disciplinar,

fragmentar e individualizar; e a do tempo político, que busca repor e reabrir o espaço

político e produzir experiências comuns).

Segundo: A apresentação de uma releitura das relações entre os movimentos

sociais urbanos e desses com os seus aliados (intelectuais e outros movimentos de

trabalhadores) a partir do caso da Plenária de Movimentos Sociais (PMS-RJ). Serão

examinados seu processo de constituição em 2007, suas ações, funcionamento, as

experiências comuns acumuladas pelos atores envolvidos nesse fórum de

articulação e as potencialidades e limites desse tipo de experiência para o fazer-se

de classe.

Para essa releitura sobre a PMS-RJ, são utilizadas como bases: a) noções de

experiências comuns (sobre as relações de produção e sobre a luta política) e de

“fazer-se” da classe trabalhadora, como apresentadas por Thompson (1997 e 2001);

b) A conjuntura de refluxo das grandes mobilizações de massa e fragmentação das

lutas e movimentos sociais, que oscilam entre criminalização e gestão, enquanto

fazem seu trabalho de toupeira em meio a um mal estar sentido em cidades

197 Com a exceção das figuras públicas dos movimentos, caso de dirigentes como Lurdinha do MNLM-RJ e Marcelo da CMP-RJ, nos outros depoimentos, para evitar problemas, sobretudo de segurança, não é apresentado o nome das pessoas, mas apenas uma letra que serve para diferenciá-los.

Page 230: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

230

administradas como empresas ávidas por fazer negócios; c) Análises como a de

Bourdieu (2005 e 2007b), sobre a relação entre os de baixo e os detentores de

capital simbólico, para problematizar a influência dos intelectuais nesses espaços de

articulação e; d) A experiência do surgimento de sujeitos políticos vista nos anos

1980, a partir da articulação de lutas (e movimentos) diferentes, realizadas

conjuntamente ou com características e significados comuns.

Destaca-se ainda que, em meio à análise desses dois casos, é apresentada

uma releitura do processo de rupturas e permanências observado na década de

2000 entre os movimentos sociais urbanos brasileiros que lutam por moradia,

atentando para a convivência entre os antigos (novos) movimentos sociais e os

novíssimos movimentos que surgiram, e como as práticas de uns influenciam e são

influenciadas pelas dos outros. Com o reexame desse processo contraditório e

tantas vezes conflituoso, de criação e recriação de práticas, discursos e grupos

políticos, são rediscutidas questões reconhecidas no diálogo histórico apresentado

no Capítulo II como de grande importância para e entre os MSUs e como essas

questões são por eles ressignificadas nos anos 2000. É o caso, por exemplo, da

visão sobre autonomia, sobre o Estado, sobre a sociedade civil, os partidos políticos

e sobre a classe trabalhadora e suas frações, alianças e potencialidades. Também

com base nos Diálogos teóricos e histórico, é apresentada uma reflexão sobre temas

como: a composição social dos MSUs, o papel conferido por eles à formação política

e teórica, e como diferentes movimentos de luta por moradia se definem e nomeiam

a si próprios, seus aliados e inimigos. Rupturas e permanências, novas e antigas

questões e significados que ajudam a entender a relação entre os MSUs e o fazer-se

da classe trabalhadora nos anos 2000.

4.1 A ocupação Manoel Congo e a “refundação” do MNLM-RJ

A importância da Ocupação Manoel Congo para o MNLM não pode ser

medida pelo tamanho do prédio conquistado. Tampouco pode ser explicada pela

vontade de algumas dezenas de famílias obterem um lugar para morar em meio ao

problema da habitação e às contradições urbanas cariocas. A Manoel Congo

significou muito mais do que apenas uma vitória na luta por moradia. Significou o

ressurgimento do MNLM no Rio de Janeiro em 2007 e a consolidação do ciclo de

Page 231: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

231

ocupações iniciado alguns anos antes por outros MSUs. Conferiu visibilidade à luta

por moradia popular no Centro, impulsionou a articulação de movimentos na PMS-

RJ e colaborou para que as lutas urbanas reconquistassem lugar de destaque entre

as lutas sociais cariocas e entre diversos movimentos de trabalhadores e setores da

esquerda.

Para muitos dos envolvidos com a Ocupação (moradores, militantes do

MNLM, apoiadores) se iniciou, a partir daquela ação e da constituição daquele

grupo, um processo de mudanças, o que é revelado através dos depoimentos

colhidos e agora apresentados. Para alguns, teria sido uma mudança profunda,

capaz de conferir novos significados e objetivos às suas vidas. Para outros,

mudanças nas prioridades políticas e na forma de entender a cidade e as lutas

urbanas. E para os pesquisadores que procuram entender os MSUs, abriu a

possibilidade de examinar e refletir sobre um caso que condensa diversas das

questões vistas nos Capítulos I e II e consideradas importantes para a compreensão

sobre os MSUs e o fazer-se da classe trabalhadora no Brasil dos anos 2000.

4.1.1 O contexto e a resposta política do movimento

Beleza e desigualdade são características fundamentais do Rio de Janeiro.

Ao longo da história, essas desigualdades marcaram a estrutura urbana carioca e a

vida dos seus moradores. Os investimentos públicos e privados sempre privilegiaram

os locais que asseguravam maior retorno financeiro ao capital, o que resultou no

desenvolvimento de um “núcleo hipertrofiado e rico” (em torno do Centro e da Zona

Sul) “cercado por periferias cada vez mais pobres e carentes de serviços”. Com a

escassez e a concentração de recursos investidos em serviços e equipamentos

urbanos e a pouca renovação da infraestrutura, “a solução foi amontoar os ricos em

torno desses bens para que pudessem desfrutá-los ao máximo, e impedir a entrada

dos pobres no núcleo, ou expulsá-los para fora dele”. (ABREU, 1988, p. 11 e 17-18).

A concentração de equipamentos e serviços urbanos no núcleo e a

proximidade das ofertas de emprego levaram os trabalhadores, ao longo de todo o

século XX, sempre que possível, a ocupar os morros da Zona Sul, Centro e Tijuca

para a construção de moradias – as favelas. As políticas governamentais de

Page 232: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

232

remoção desses moradores para as periferias foram acompanhadas pela ocorrência

de diversos conflitos e resultaram na parcial expulsão dos pobres em parte dessas

áreas198. Por outro lado, desde os anos 1930, quando se configurou a questão da

habitação enquanto questão de Estado, as principais experiências de produção de

moradia tiveram como característica primordial a incapacidade de atender aos mais

pobres199.

A crise econômica e as políticas neoliberais nos anos 1980 e 1990 reduziram

drasticamente a produção imobiliária e os investimentos em infraestrutura urbana no

país200. Estimava-se, então, que o déficit habitacional no país correspondia a

aproximadamente 6 milhões de domicílios (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2010). No

Estado do Rio de Janeiro, este número chegava a quase 430 mil, dos quais 75%

concentravam-se na Região Metropolitana. Mais de 80% desse déficit era composto

por famílias com renda de até três Salários Mínimos. À falta de moradias, somavam-

se os problemas de infraestrutura: em 2009, o IBGE (2010) estimava a existência de

827 mil domicílios sem rede coletora de esgoto ou fossa séptica no Estado (e

198As remoções dos pobres para longe das áreas mais valorizadas ou em vias de valorização da cidade se sucederam como ondas, expulsando os pobres do Centro, no início do século XX, depois das favelas da Zona Sul nos anos 1950, 1960 e 1970. Os conflitos e revoltas resultantes foram sempre duramente reprimidos. A partir dos anos 1980, depois de muita pressão social, as remoções diminuíram e foram substituídas por políticas de urbanização de favelas. Essas políticas, porém, não atacaram os graves problemas de infraestrutura urbana, configurando-se em pouco mais do que obras de “maquiagens”. Na segunda metade da década de 2000, intensa campanha em favor das remoções vinha sendo realizada pela mídia e por setores governamentais. Alguns anos depois, as administrações estadual e municipal, com apoio federal, projetariam a remoção de cerca de 130 favelas através do Programa Morar Carioca. Além das áreas do núcleo, a região da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá tornaram-se os principais alvos da especulação imobiliária e, por consequência, das políticas de remoções. 199 Através dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) foi efetivada a primeira grande experiência de política habitacional no Brasil, com uma significativa produção de moradias nos anos 1930 e 1940. As necessidades contábeis forçavam que essa produção fosse vista como investimento, e, em busca do lucro, acabava-se atendendo principalmente os setores médios e ricos da população. A Fundação Casa Popular (FCP) criada em 1946, objetivava ser um grande impulso na urbanização e produção de moradias. Sem fontes permanentes de financiamento, praticamente não saiu do papel. Em 1964, logo após o golpe militar, visando expandir a ideologia da casa própria para reduzir tensões sociais, foi fundado o Banco Nacional da Habitação (BNH) e criado o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com fontes permanentes de recursos advindas das contribuições trabalhistas, especialmente do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS. “Em 17 anos de BNH foram financiadas pouco mais de um milhão de casas populares”. Ou ainda: “o que interessa resgatar é o fato do BNH não inverter a curva descendente do agravamento da situação domiciliar no Brasil. (...) Das unidades financiadas com recursos do SFH até dezembro de 1980, 65% destinaram-se às camadas de renda média e alta da população”. Como o investimento por unidade habitacional é menor na faixa popular, “os mutuários com renda mensal de até 5,85 salários mínimos captaram apenas 23,68% dos recursos do SFH. (...) Os estratos mais pobres, com renda de até 3,10 salários mínimos, não chegaram a usufruir de 10% das aplicações”. (AZEVEDO, 1982, p. 119-120-121) 200 No Rio, a exceção foi a Barra da Tijuca, onde a expansão atendia à classe média e os ricos. Ver: Azevedo e Ribeiro (1996).

Page 233: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

233

apenas 30% do esgoto coletado era tratado); 640 mil casas sem rede de

abastecimento de água; e 72 mil sem coleta de lixo201. As despesas das famílias

com habitação, no entanto, vinham crescendo naquele período final da primeira

década do século XXI. Segundo o IBGE (2010a), do total das despesas de consumo

mensais de uma família brasileira, eram gastos, em média, 35,9% com habitação.

No Rio de Janeiro/RJ, esta despesa chegava a 41,3%, gasto que era,

proporcionalmente, ainda maior para as famílias com menores rendimentos (45,7%).

A precariedade do sistema de transportes também agravava as condições de

vida. O tempo gasto apenas no trajeto casa-trabalho por quem trabalhava no Rio de

Janeiro vinha aumentando substancialmente: em 1992 eram 36,4 minutos, em 2013

eram 41,7 minutos, chegando, em 2014, a 49 minutos – o maior do país. As tarifas

de trens, barcas e metrô, depois dos processos de privatização, aumentaram muito

acima da inflação: desde 1994, nas grandes capitais brasileiras, as tarifas de

transporte coletivo subiram 685%, com destaque para a tarifa dos ônibus, que

representavam 86,6 do transporte coletivo urbano e subiram 711,29%, enquanto a

inflação no país foi de 365,58% nesses 20 anos (O GLOBO, 02 e 03/11/2014)202. A

quantidade e qualidade de vagões, embarcações, estações, com o baixo

investimento, não cresciam no ritmo do número de usuários, acarretando

superlotações, atrasos, falhas de segurança e protestos.

A candidatura do Rio à sede da Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de

2016 vinha sendo tratada na imprensa carioca e pelos diferentes níveis de governo

como “o” passo para solucionar todos esses problemas203. A experiência dos Jogos

201 Ressalta-se que nas favelas a coleta de lixo era parcial e não era feita diretamente pela Prefeitura, mas através de “garis comunitários”, com contratos precários de trabalho. 202 Matérias dos jornalistas Cássia Almeida, Henrique Gomes Batista e Danilo Fariello, utilizando dados do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE. Eles destacam também que a frota de carros e motos cresceu 175% entre 1998 e 2014 e que, desde 1994, os preços da gasolina e álcool (423%) e dos carros (158,36%) subiram bem menos do que as tarifas dos transportes coletivos. Ainda segundo eles, os incentivos fiscais para indústria automobilística teriam sido de 56,4 bilhões de reais desde 2009, período no qual os investimentos em mobilidade urbana somariam 32,6 bilhões, e que o BNDES desembolsou, de 2008 a 2013, 32 bilhões para a indústria automotiva e apenas 9 bilhões para projetos de mobilidade urbana. Eles relatam também estudo de Rafael Pereira e Carlos Henrique Carvalho, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que, com dados da POF de 2009, afirmam que as famílias brasileiras consumiriam, em média, 16% da renda familiar com transporte, sendo que os 10% mais ricos comprometeriam 13,83% e os 10% mais pobres 21,83%. (O GLOBO, 02 e 03/11/2014) 203 A realização de megaeventos como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas é parte de um modelo de planejamento urbano que vê as cidades como empresas competindo pela atração de capitais. Parcerias público-privadas, intervenções pontuais em áreas valorizáveis, patriotismo da cidade e repressão de conflitos são alguns elementos desse receituário, que já vinha sendo aplicado

Page 234: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

234

Pan-Americanos realizados no Rio de Janeiro em 2007, três meses antes da

realização da ação que deu origem à Ocupação Manoel Congo, entretanto, sugeria

que os legados para a população da cidade poderiam não ser como os

propagandeados. E muitas lutas e conflitos associados ao PAN ocorreram com a

participação do MNLM. Sobre moradia, a perspectiva de realização dos

megaeventos previa apenas que as Vilas dos atletas, dos juízes e de mídia, após o

evento, seriam transformadas em empreendimentos residenciais e vendidas pelas

empresas responsáveis pela construção. E, segundo a experiência do PAN,

atenderiam às classes médias e altas e aos especuladores.

Foi nesse contexto, que se poderia qualificar de objetivo, que o MNLM e as

pessoas que buscavam alternativas de habitação organizadas pelo Movimento, se

mobilizaram para ocupar. Diante da ociosidade de milhares de imóveis públicos e

privados, em áreas com infraestrutura urbana e próximas aos postos de trabalho, o

MNLM (e outros MSUs) encontravam nas ocupações de prédios abandonados,

particularmente nas áreas centrais, uma potente forma de denúncia do problema da

habitação, possibilidades reais de acesso à moradia e, segundo a reflexão aqui

proposta, de profundas mudanças nas suas vidas.

Esse contexto, porém, não pode ser devidamente entendido se não se

considera o ciclo de ocupações que o Rio vivia desde 2004, a partir da ação que

dera origem à Ocupação Chiquinha Gonzaga. Nesse período foram realizadas

diversas ocupações no Centro do Rio de Janeiro204 (cf. Capítulo I). Em São Paulo,

desde 1997, (cf. Capítulo II) o Centro se tornara local prioritário da luta por moradia,

e as ocupações de prédios vazios, a forma de luta mais adotada, resultando na

formação de diversos novíssimos movimentos de sem-tetos. No Rio, além da

novidade que era ocupar no Centro, algumas das ocupações do ciclo de 2004 a

2008 foram realizadas ou apoiadas por novíssimos movimentos que também se

constituíam nesse processo, como a FIST. Outras, por exemplo a Chiquinha e a

Zumbi, mais visíveis e importantes, foram organizadas por movimentos já mais

no Rio de Janeiro naquela época. Sobre o assunto, ver: Harvey (1996); Compans (1997); Arantes, Maricato e Vainer (2000); Marques e Benedicto (2009). 204 O Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) estimava, ao fim do ciclo de ocupações, a existência de aproximadamente 30 ocupações no Centro do Rio, considerando apenas aquelas que se cadastraram no Instituto em busca da regularização dos imóveis. No entanto, nem todas essas ocupações eram organizadas por (ou mantinham relações com) movimentos sociais organizados.

Page 235: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

235

consolidados e reconhecidos politicamente, como a FLP (também um novíssimo

movimento, mas que reunia alguns militantes experientes e bem articulados e que

atuava também em outras frentes, como a luta contra a violência nas favelas) e a

CMP205.

Para a CMP-RJ, que na época costumava participar de atividades conjuntas

com o MST, a FLP, a UNMP, o MTST e a CUT, entre outros movimentos (na

organização de manifestações como o Grito dos Excluídos, em lutas ligadas às

minorias, aos problemas da violência e à questão da habitação), e atuava nos

espaços institucionais com ONGs e movimentos ligados ao FNRU, essas ocupações

também foram muito importantes. Se não significaram uma refundação,

representaram uma inserção maior nas lutas por moradia e a consolidação de uma

base social mais ligada ao movimento, ao invés da relação mais indireta por meio de

movimentos filiados à Central, mesmo que essa base nas ocupações também fosse

influenciada por outros movimentos.

Além do ciclo de ocupações, outra característica importante daquele momento

político foi a realização dos Jogos Pan-americanos no Rio e a organização da

Plenária de Movimentos Sociais. A realização daquele megaevento esportivo havia

criado um cenário que facilitou serem postos em evidência os problemas da cidade e

as lutas urbanas, como visto, por exemplo, no caso da resistência à remoção da

comunidade do Canal do Anil.

A então recente constituição da PMS-RJ, da qual o MNLM vinha participando

ativamente, favoreceu a articulação de uma ampla rede de apoio e solidariedade

muito forte à Ocupação. Recursos materiais, contatos políticos ou com a mídia e a

presença constante de militantes de diferentes movimentos sociais, ONGs e partidos

de esquerda, ajudavam a tornar menos duros aqueles dias tão tensos para os

ocupantes. Aumentava também a visibilidade da Ocupação e a pressão política por

uma solução que atendesse aos ocupantes, evitasse o despejo e o uso da violência

e garantisse a conquista do prédio ocupado.

O MNLM, reconhecendo a importância desse apoio, estimulava a presença

dos seus aliados, chamando-os para reuniões diárias, nas quais eram discutidas

205 A maior importância dessas ocupações se devia ao tamanho dos prédios ocupados e o maior número de famílias participantes, a localização mais visível dessas ocupações e, sobretudo, a participação de movimentos como a CMP e a FLP, o que conferia maior capacidade de organização e

Page 236: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

236

questões como a evolução dos acontecimentos, as alternativas e desdobramentos

possíveis e outras. Ao mesmo tempo em que envolvia militantes de diversos

movimentos nas discussões sobre a Ocupação, os rumos da ação eram deliberados

em assembleias dos ocupantes e membros do MNLM.

Além do contexto político carioca, do ciclo de ocupações em curso e da

intensa articulação entre movimentos, é preciso se contemplar na análise o

momento histórico do MNLM-RJ206. O MNLM fora fundado em 1990, como resultado

da articulação das intensas lutas por moradia dos anos 1980. No Estado do Rio de

Janeiro, após um período de desmobilização, o Encontro Estadual de 2002, em

Caxias, retomou a articulação do Movimento, que estava voltado

preponderantemente à construção de espaços na institucionalidade, seja na busca

por regularizações fundiárias, na participação nas conferências das cidades, ou na

regulamentação do estatuto das cidades. Decidiu-se, então, por mudanças de rumo,

procurando retomar sua história de intensa participação nas lutas populares e de

organização de ocupações. Essa mudança de rumos, porém, só se concretizou

prática e publicamente com a Ocupação Manoel Congo207.

Até então, é verdade, o MNLM já vinha procurando se inserir em diversas

frentes de luta. Atuava em algumas favelas e comunidades pobres cariocas, se fazia

presente em determinadas manifestações de rua e participava de lutas localizadas

contra as remoções. Alguns militantes acompanhavam as reuniões do Conselho

Popular e, desde as primeiras reuniões que dariam origem a PMS-RJ, o MNLM

sempre esteve presente e muito participativo, assim como nas manifestações

organizadas nesse fórum (a própria vitória da Manoel Congo foi um dos fatores que

deu impulso à PMS). O MNLM mantinha também um trabalho em um assentamento

no Município de Duque de Caxias e participava, em Volta Redonda, de lutas pela

articulação política das ocupações, aumentando assim a repercussão dessas lutas e experiências, que recebiam também maior apoio político e exposição em jornais sindicais e na imprensa alternativa. 206 Nessa apresentação do contexto no qual surgiu a Ocupação Manoel Congo, buscou-se evitar uma análise que, como visto no diálogo histórico do Capítulo II, por vezes superestima as contradições urbanas como fator explicativo para as lutas sociais, reproduzindo os determinismos estruturais. Ao problematizar o contexto político, tanto o mais geral como o das lutas sociais e, particularmente o do próprio movimento envolvido na ação, buscou-se evitar atribuir características que possam ser lidas como inerentes ou essenciais a esse movimento. Ao tentar perceber os diversos aspectos que conformam esse contexto, buscou-se entender os significados possíveis daquela ação para os diversos atores envolvidos e, em particular, para o MNLM-RJ. 207 Manoel Congo foi líder de uma revolta de escravos que envolveu cerca de quinhentos negros, em 1838, na cidade de Vassouras, interior do Rio de Janeiro. Após o fim da revolta, Manoel Congo foi preso e enforcado.

Page 237: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

237

regularização fundiária em favelas. Mas a resposta política mais contundente que o

Movimento poderia dar àqueles anos de paralisia era a retomada das ações diretas

de ocupação. E, de fato, a Ocupação Manoel Congo foi essa resposta política. Vinha

sendo pensada e discutida havia anos, e sua preparação efetiva - a organização das

famílias que participariam da ocupação e a escolha do espaço para ocupar - levou

cerca de um ano.

A vitória de Lula em 2002, a promessa de mudanças no país e a criação do

Ministério das Cidades, comandado pelo petista Olívio Dutra e assessorado por

intelectuais de reconhecidas relações com a esquerda e os movimentos urbanos -

como as urbanistas Ermínia Maricato e Raquel Rolnik, as duas que compuseram a

mesa de abertura do FSU - havia criado a expectativa de que a reforma urbana seria

realizada em breve. Movimentos como o MNLM, com históricas relações com esse

projeto de reforma, com o PT e com esses intelectuais, apostaram (após a

desmobilização e fragmentação vista nos anos 1990) todas as suas já reduzidas

fichas nessa possibilidade.

A adoção pelo Governo Lula de uma política econômica parecida com a de

seu predecessor e a falta de disposição para enfrentar as resistências dos setores

mais conservadores (no Congresso, na sociedade e no próprio governo) passaram,

porém, a corroer aquele sonho. Movimentos como o MNLM tinham apostado alto,

girado quadros para Brasília, e essa prioridade na luta institucional tivera como

contrapartida uma diminuição ainda maior das lutas de base. Assim, reverter essa

situação, deixar a aposta institucional em segundo plano e criar as condições para,

de fato, retomar o processo de luta popular, não era uma tarefa simples ou de

pequeno significado.

Por todo esse histórico, não bastava ao MNLM realizar uma ocupação. Era

necessário fazer “a” ocupação, que alcançasse o máximo de visibilidade possível e

angariasse o máximo de apoio político. Não por acaso, a ocupação foi realizada

durante a semana mundial do Habitat, na madrugada do mesmo dia em que, horas

depois, foi realizada uma manifestação, também no Centro da Cidade, organizada

pelo conjunto dos MSUs cariocas208.

208 Essa manifestação, por moradia popular e pelo direito à cidade, contou com a participação de militantes da Pastoral das Favelas, CMP, UNMP, CP, MUP, FAM-Rio, além de representantes de ocupações e ONGs.

Page 238: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

238

Quanto ao local escolhido, não se destacava apenas pelo fato de ser na

capital e representativo das lutas e debates urbanos daquele momento, mas também

espetacular para publicizar aquelas lutas e debates. Ocupar o prédio que abrigara o

antigo e outrora luxuoso Cine Vitória, com a proposta de colocar aquele espaço do

cinema novamente em funcionamento, significava dizer que a revitalização cultural

do Centro seria realizada por um grupo de trabalhadores pobres através de uma

ocupação. O prédio do INSS, onde depois a Ocupação viria a se consolidar, é

contíguo à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro e localizado em plena

Cinelândia, lugar de históricas lutas populares brasileiras. Mais simbolismo do que

sem-tetos morando ao lado dos Vereadores e tendo a Cinelândia como palco dessa

luta seria quase impossível! Foi, portanto, uma ação realmente capaz de significar a

volta de um histórico movimento nacional, o MNLM, às lutas urbanas do Rio de

Janeiro.

Todo esse significado, mesmo advindo de uma ação que reunia um número

relativamente pequeno de pessoas (se comparada, por exemplo, às ocupações com

milhares realizadas pelo MTST), criou as condições para a desinstitucionalização do

Movimento, para que o MNLM fosse refundado, e não somente em termos de

imagem. Para aquele grupo de pessoas, realizar uma ação tão ousada era também

superar, apoiados no sentimento de pertencer a um coletivo, os medos e receios que

envolvem esse tipo de ação. Para os que permaneceram na Ocupação (e mesmo

para alguns que se juntaram posteriormente) aquele foi o início de uma série de

novas experiências: experiências de constituição de um grupo, um sujeito coletivo

organizado que, não obstante todos os seus limites, aos olhos de muitos dos seus

participantes, parece carregar o signo da mudança.

Grupo, experiência, movimento social...Em outras palavras, oportunidade

para coisas inimagináveis. Na fala simples de W, que aos 15 anos acompanhou de

longe a participação do pai, a quem se juntou um ano depois, a ocupação

representou: “uma oportunidade que nós temos de lutar por um direito nosso. Todo

mundo se junta pra fazer aquela mesma coisa. Porque, como se diz: ‘uma andorinha

só não faz verão’”. Já nas palavras empolgadas de J, que mesmo morando na

Manoel Congo esperava cumprir a tarefa de coordenar a próxima ocupação do

MNLM: “fazer parte da ocupação mudou totalmente minha visão de vida em relação

à militância popular. Eu consegui ver o mundo por um outro ângulo, totalmente

Page 239: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

239

diferente. Coisas assim inimagináveis pra mim, que eu nem esperava estar

vivendo”209.

Da ação de ocupação da Manoel Congo nasceu um grupo “em fusão” que

permitiria a “livre práxis” por pessoas que passaram a se verem como seres sociais,

capazes de, através da luta, mudar as suas próprias vidas e muito mais (IASI, 2006).

Desse grupo renasceu o MNLM-RJ.

4.1.2 Gestão, experiências e movimento

Durante mais de um ano, através de núcleos de base em algumas

comunidades, o MNLM-RJ organizou o grupo de famílias que participaria da

ocupação. Eram cerca de cem famílias, das quais perto de setenta participaram da

ação inicial de ocupação no prédio do Cine Vitória. Depois, um número pouco

superior a quarenta famílias veio a se instalar em definitivo no antigo prédio do INSS,

onde se consolidou a ocupação. Essa forma de organização era condizente com a

estratégia do MNLM-RJ de ocupar um prédio vazio no Centro, conquistar o espaço

para moradia e, depois, gerir a ocupação.

Durante o ano anterior à realização da ocupação, o MNLM-RJ foi integrando

essas pessoas às suas lutas. Promoveu debates, reuniões e cursos de formação210.

Discutiu-se desde a história e as prioridades do movimento, passando pelos critérios

de composição do grupo (evitando assim, por exemplo, a participação de famílias

que já eram proprietárias de casas) e até mesmo quem deveria ser atendido

prioritariamente em caso do espaço ocupado não atender a todos (priorizar-se-ia,

por exemplo, os mais pobres, em piores condições de moradia, famílias maiores

etc). Também foram estabelecidos os princípios que norteariam a ocupação, como

se daria a divisão do espaço que viria a ser ocupado e os deveres e direitos que

todos teriam. Formaram-se também as “brigadas” de segurança, reparos,

209 As entrevistas com W. e com J. foram realizadas em 10 de outubro de 2010, na Ocupação Manoel Congo. 210 Convidado pelo movimento, participei de algumas dessas atividades com as pessoas que fariam parte do grupo de ocupantes da Manoel Congo. Fui a uma reunião e debate na comunidade do Cantagalo, visitei o grupo durante o curso de formação dado por um dos coordenadores estaduais do MNLM e participei do debate realizado na véspera da ocupação, com todas as famílias que, horas depois, realizariam aquela ação.

Page 240: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

240

infraestrutura e, dessa forma, antes mesmo da ocupação, essas já se reuniam para

planejar suas ações, garantir que fossem levados os mantimentos, ferramentas e

utensílios necessários para o trabalho e outras necessidades.

Essa forma de ocupação e organização, no entanto, não é a única vista entre

os MSUs que lutam por moradia. Outros movimentos agem de forma diferente. A

estratégia do MTST, por exemplo, era ocupar os “latifúndios urbanos” em regiões

periféricas. Sua prioridade, então, era mobilizar o maior número possível de famílias:

iniciava a ocupação com uma quantidade de pessoas suficiente para viabilizar a

ação e, depois, continuava mobilizando moradores do entorno ao terreno ocupado

para se juntarem à ocupação. São duas estratégias distintas, que enfatizam

características diferentes: uma ação mais massiva, no caso do MTST, e uma ação

mais organizada, vista no caso do MNLM.

Miagusko (2012) aborda essa questão à luz da experiência do MTST-SP que,

com base no argumento de que realizaria mobilizações sem critérios, era chamado

de “movimento importado” pelo poder público.211 Ele lembra que uma das principais

críticas feitas à ocupação de São Bernardo (por outros movimentos e até por

apoiadores do MTST) foi à forma como foi mobilizada “a demanda não preparada e

engajada previamente”. O autor, então, expõe a visão de um dirigente do MTST

sobre o assunto:

Muita gente diz que o MTST é movimento que faz ocupação com carro de som, né? (...) É uma tática do movimento. É uma opção. (...) O processo de ocupação é extremamente formativo. (...) não existe uma diferença tão grande entre aquela base que nós organizamos e discutimos em comunidade e que é vítima do déficit habitacional e a base que é aqui do lado (...) não existe nenhuma diferença fundamental para que a gente exclua essa outra base. É claro que isso abre espaço pra problemas. Muita gente vem pra ocupação sem muita necessidade. Pessoas que vêm por oportunismo. Pessoas que vêm tendo casas (...) O movimento tem os mecanismos para combater essa lógica no interior do acampamento212 (Virgílio, 10/12/2005). (MIAGUSKO, 2012, p. 274-275)

211 Segundo Miagusko: “A estratégia de uma ocupação que nos seus primeiros dias ‘incha’ e atrai aqueles que se cadastram no acampamento, mesmo que não necessitem de casa, é questionada pelos demais movimentos e pelo Poder Público, que, usando esse argumento, costuma tachar o MTST de ‘movimento importado’ (...) e ‘movimento estrangeiro’’. (MIAGUSKO, 2012, p. 271) 212 Com respeito aos mecanismos próprios dos acampamentos para combater os “problemas” citados, Miagusko observa que: “As características de uma mobilização permanente e de ações quase diárias da ação política procuram também constituir um coletivo e separar o joio do trigo”. (MIAGUSKO, 2012, p. 276)

Page 241: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

241

Ainda segundo Miagusko, essa opção estava associada à prioridade de

ocupar terrenos para construção de casas a partir da demarcação de lotes, além de

ser uma forma de ação que “procura romper com os limites do discurso comunitário”.

Ele diz também que essa forma de ação era condizente com os objetivos do MTST:

O objetivo principal de uma ocupação, portanto, deixa de ser a conquista imediata, mesmo que o movimento faça ações diárias e negocie com os poderes públicos em vários níveis para conseguir o atendimento da demanda que se agrega nas ocupações. O maior saldo da ocupação é o que se agrega em termos de “consciência” que brota da intensidade das relações políticas na ocupação. Portanto, o tempo de permanência em área é a maior vitória que o movimento pode conquistar. Quanto maior esse tempo, maior a possibilidade de “criar o poder popular” e deixar os saldos futuros nos bairros. Essa é a lógica da “Periferia Ativa”, nome que o MTST vem dando aos grupos locais formados pelo movimento que atuam nos bairros em que o movimento se implantou. (MIAGUSKO, 2012, p. 276)

A estratégia do MNLM-RJ, diferentemente, através da formação de um grupo

bem selecionado e organizado, tinha por foco conquistar o prédio e dar início à

gestão da ocupação213. Gestão que deveria também ser marcante, proporcionando

uma experiência de solidariedade e o envolvimento dos ocupantes com as lutas do

movimento, e assim fazer da Manoel Congo exemplo e suporte para a realização de

novas ocupações pelo MNLM no Rio.

A gestão de ocupações, para movimentos como o MNLM-RJ, faz parte da

estratégia de organização do movimento e da constituição de um grupo de militantes

envolvidos com a luta pela reforma urbana. Logo nos primeiros dias de ocupação, já

era possível perceber algumas características que marcariam a gestão da Manoel

Congo. Assim que adentraram o prédio do INSS, as brigadas começaram a

funcionar. As assembleias eram diárias, decidiam sobre os desdobramentos da luta,

as manifestações que seriam realizadas e as negociações com os governos, como

também sobre a utilização do espaço e as ações necessárias para tornar o prédio

habitável e seguro.

213 É impossível medir com exatidão até que ponto essa estratégia de selecionar os participantes da ocupação obedece a um sentido de justiça social, a alguma forma de perspectiva de classe e às estratégias do movimento, e/ou o quanto haveria, também, de influência das políticas habitacionais governamentais, mais focadas, às quais os movimentos buscariam se adaptar e, assim, mais legitimados, facilitar as negociações para a conquista do espaço e outros recursos.

Page 242: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

242

Limpar e remover a enorme quantidade de lixo acumulada no prédio era uma

condição básica para a permanência no local. Os primeiros andares, onde todos

dormiram juntos por mais de um mês, foi imediatamente limpo. No segundo andar foi

instalada a estrutura de cozinha, onde era preparada a comida e onde eram feitas

também as refeições coletivas, em cadeiras e mesas levadas pelos ocupantes.

Rapidamente a luz foi religada, mas os elevadores, muito danificados, só terão

condições de uso após uma ampla, e esperada, reforma do prédio. O abastecimento

de água também foi rapidamente normalizado, mas apenas os dois banheiros do

térreo puderam ser postos imediatamente em funcionamento, já que o encanamento

ligado à rede de esgoto, que percorria os demais dez andares, estava totalmente

entupido214.

A segurança era outra prioridade. A portaria era permanentemente vigiada,

com a porta permanecendo sempre fechada. Estranhos eram barrados, evitando-se

assim que pessoas ou grupos desconhecidos, ligados à atividades ilícitas ou

interesses escusos adentrassem o prédio em busca de abrigo ou negócios.215 Além

disso, havia também o receio de uma ação policial. Apesar do rápido avanço das

negociações com diferentes níveis e esferas do governo216 e da promessa de

recursos financeiros para a compra do prédio e sua destinação à habitação das

famílias, as pressões pelo despejo foram intensas, principalmente até o final de

2008217.

214 Essa situação dos banheiros gerava muito incômodo. Mas, somente após as atividades promovidas pelo movimento no andar térreo do prédio, durante o carnaval de 2008, foi possível juntar os recursos para recolocar em funcionamento uma coluna de banheiros, um em cada andar. Essas atividades culturais foram as primeiras realizadas no espaço que, a partir de então, seria reservado para a instalação da Casa de Samba Mariana Crioula. 215 É recorrente a história de ocupações que, a exemplo do que ocorre nas favelas ou em conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida, foram “tomadas” por grupos criminosos movidos por interesses particulares. Nessas ocupações, esses grupos passaram a controlar o local, vender lotes, e acabaram por expulsar os militantes do movimento social que havia dado início à ocupação. Ocupações maiores ou menos rigidamente organizadas, acabam ficando mais sujeitas à essas situações e conflitos, que ocorreram, por exemplo, nas ocupações do MTST em São Bernardo e no Rio de Janeiro, na Serra do Sol. 216 O avanço nas negociações não se deu sem pressão. Alguns meses após a ocupação (e de muitas manifestações e ocupações em frente às sedes da Caixa Econômica e do Governo Estadual), o MNLM-RJ realizou uma manifestação no Morro do Cantagalo, onde estava ocorrendo uma atividade de lançamento do PAC na comunidade, com a presença do então Presidente Lula. Com muito barulho, faixas e a entrega de uma carta ao Presidente, o MNLM conseguiu que Lula se comprometesse, publicamente, com a cessão do prédio vazio do INSS aos ocupantes, fato que ajudou a destravar as negociações com os governos federal e estadual. 217 Ameaças e despejos são práticas constantes para quem ocupa prédios abandonados para moradia. Naqueles anos, vários despejos, alguns violentos, foram realizados pelas forças policiais no Centro do Rio de Janeiro. Um desses foi no mesmo prédio da Manoel Congo, onde uma ocupação

Page 243: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

243

Durante mais de um ano perdurou essa vida intensamente coletiva. Em todo

esse período, por exemplo, a cozinha coletiva garantiu alimentação para todos os

ocupantes, mesmo àqueles sem qualquer recurso financeiro. Aos poucos, conforme

os andares iam sendo limpos e os banheiros postos em funcionamento, as famílias

se instalavam e ocupavam o prédio todo (como o prédio não era residencial, não há

banheiro nos “apartamentos”, apenas uma pia típica de escritórios, e em cada andar

há apenas banheiros coletivos). Após esse período, mesmo com o fim das refeições

coletivas e com cada família instalada em sua “casa”, muitas atividades diárias

continuaram a ser realizadas coletivamente.

A gestão das ocupações é uma prioridade para o MNLM-RJ, mas envolve os

riscos inerentes à relação com o Estado, necessária para a conquista, regularização

e reforma do imóvel. Existe também a possibilidade, com o passar dos anos, da luta

tomar características exclusivas ou exageradamente comunitaristas e corporativas.

Mais à frente essas questões serão retomadas. Agora, faz-se necessário explorar

um pouco mais as diferentes posições e estratégias dos MSUs a respeito da gestão

de ocupações.

Uma das características que diferencia a Manoel Congo de outras ocupações

é sua vinculação direta a um movimento social (cf. Capítulo I). Outras ocupações

cariocas, mesmo quando nascidas por iniciativa de movimentos organizados e/ou

posteriormente ainda animadas por esses movimentos, não estabeleciam esse

vínculo218. Para os movimentos sociais que realizam ocupações como forma de luta,

nem sempre a gestão da ocupação é uma prioridade. Afinal, uma ocupação serve

para denunciar o problema da habitação, põe em movimento um grupo de pessoas,

servindo como uma “pedagogia da luta” e, por vezes, gera conquistas no que diz

respeito às políticas habitacionais. Dessa forma, nem todas as ocupações

precisariam, necessariamente, conquistar o local ocupado para que os movimentos

realizada cerca de um ano antes foi despejada menos de 24 horas depois de realizada (parte dos despejados, depois, participou da Ocupação Quilombo das Guerreiras). Em São Paulo, os despejos também se tornaram regra: “a repressão a esses movimentos de sem-teto tem sido bastante intensa o que levou a que praticamente todas as ocupações mais importantes desaparecessem do Centro de São Paulo nos últimos anos”. (MIAGUSKO, 2012, p. 228) 218 Registra-se que a Manoel Congo não é única ocupação carioca com essa característica e nem o MNLM o único movimento a criar vínculos mais orgânicos com as ocupações. UNMP e FIST são exemplos de outros movimentos que estabelecem esses laços. Registra-se também que algumas ocupações surgiram de iniciativas conjuntas entre mais de um movimento e, dessa forma, sua vinculação mais orgânica a um movimento provavelmente geraria atritos e disputas entre movimentos e entre moradores.

Page 244: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

244

sociais as considerem experiências vitoriosas. Somando-se ainda todas as

dificuldades para a gestão de uma ocupação (relação com o Estado, precariedade

dos imóveis, falta de recursos, tendência comunitarista, brigas internas, além da

costumeira acomodação diante da conquista do objetivo inicial – a moradia), alguns

movimentos não adotam a gestão das ocupações como parte de suas estratégias.

Alguns buscam apenas atuar nas ocupações, e não geri-las. Outros, preferem fazer

ocupações, mas não priorizam permanecer muito tempo no local ocupado.

Em São Paulo, segundo o relato de Miagusko, os movimentos de sem-teto

com atuação no Centro viveram diferentes momentos (ou fases) com relação a essa

questão da gestão. Primeiramente, apostavam na conquista do espaço ocupado

para moradia, que era estabelecida imediatamente com a ocupação devido,

sobretudo, à precariedade das condições de vida dos ocupantes219:

Um traço que diferencia a ação dos sem-teto no Centro em relação ao período anterior é uma maior precariedade das condições de vida, vínculos de emprego mais instáveis, situações de habitação mais liminares e menor experiência associativa. Trata-se de uma demanda mais empobrecida que já no ato da ocupação estabelece a moradia. (...) O objetivo principal da maioria dos movimentos de sem-teto no Centro é a permanência das famílias nos imóveis ocupados numa região com serviços constituídos, infraestrutura urbana estabelecida e proximidade do trabalho. Essa situação gerou inúmeras ocupações que se transformaram em espaços de moradia precários que cumpriam dupla finalidade: continuavam pressionando os poderes públicos a ampliar a demanda de financiamento habitacional, mas o ato político de ocupar inseria-se no ato de morar e na gestão das ocupações pelos movimentos de sem-teto. Até meados de 2000, havia um conjunto significativo de edifícios ocupados que permitiu uma visibilização maior da questão da habitação no Centro. (MIAGUSKO, 2012, p. 224)

Depois de alguns anos, dadas as dificuldades de gerir ocupações em imóveis

precários, para os quais dificilmente conseguiam conquistar recursos que

viabilizassem melhorias significativas, os movimentos se dividiram quanto à

estratégia de permanência prolongada nas ocupações. Alguns, preferindo evitar a

219 Comparando os movimentos de sem-teto do Centro de São Paulo nos anos 2000 (marcados pelas precárias condições de vida e trabalho dos participantes), com movimentos por moradia das décadas anteriores, Miagusko diz: “Mesmo o referencial principal dos movimentos de moradia em São Paulo, o mutirão autogestionário, não figura como reivindicação plausível e horizonte a ser garantido, pois é identificado como um ‘sacrifício adicional’ do povo na conquista da casa própria, além da associação com o deslocamento populacional para regiões periféricas da cidade sem infraestrutura ou de difícil acesso.” (MIAGUSKO, 2012, p. 224)

Page 245: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

245

gestão desses espaços e ocupações, mudaram suas estratégias e organizaram uma

nova entidade para reunir os movimentos que adotaram essa nova postura:

Todos os movimentos de sem-teto do Centro ocuparam imóveis e, em dado período, chegaram a disputar em número de ocupações sua influência política. A partir de 2002, esse tipo de ação começou a ser avaliada e acabou dividindo o movimento em duas posições: a primeira, de ocupar os imóveis como forma de pressão política, mas sem permanecer por muito tempo no local, assim evitando a necessidade de gerir a ocupação; a segunda, mantendo a permanência na ocupação como forma privilegiada de ação dos sem-teto. Essa diferença levou a um novo agrupamento de movimentos de sem-teto no diagrama dos movimentos de sem-teto do Centro. Os movimentos mais próximos da primeira posição se mantiveram próximos à União dos Movimentos de Moradia. Aqueles que defendiam a segunda posição, aglutinaram-se em torno da Frente de Luta pela Moradia (FLM). (MIAGUSKO, 2012, p. 225)

A exposição de Miagusko sobre a experiência dos movimentos de sem-teto

do Centro de São Paulo mostra que a opção do MNLM-RJ de gerir a Manoel Congo

não era tão óbvia ou natural como poderia parecer à primeira vista.

A opção por gerir as ocupações extrapola a questão mais específica da luta

por moradia. É uma opção que se vincula ao ideal de transformação da sociedade.

Ideal de conquista e construção de experiências de gestão (ou autogestão), pelos

trabalhadores, dos seus próprios espaços. Por essa razão, para o MNLM-RJ, a

gestão é tão importante, como é também a luta pela concessão do direito de uso

(titulação da posse e não da propriedade) para os moradores da Ocupação, porque

o objetivo é dizer que “moradia não é mercadoria”. Seria a tentativa de construir e

gerir uma sociabilidade que não fosse marcada pela propriedade, na qual a

diferença de renda não gere deveres e direitos diferentes nem reproduza as cisões e

hierarquias típicas da sociedade capitalista220. É uma opção fundada na expectativa

do MNLM-RJ de proporcionar o desenvolvimento de uma consciência de classe, de

se ver e atuar como classe. As palavras de Lurdinha, sobre as perspectivas para a

juventude da Manoel Congo, dão um claro exemplo dessa expectativa:

Consigam entender além da luta por moradia, e da transversalidade da luta por moradia. Que eles também consigam interferir no mundo como um todo e na discussão, nos problemas da juventude. A

220 Por isso, o MNLM-RJ se recusa a estabelecer qualquer tipo de taxa condominial ou contratar trabalhadores para serviços, por exemplo, de portaria ou limpeza na Manoel Congo. Esses e outros serviços são realizados, obrigatoriamente, pelos próprios moradores da Ocupação, divididos em escalas com números de horas iguais para todos.

Page 246: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

246

maioria dos problemas que a juventude tá enfrentando é a juventude da classe deles, do povo. (...) Se você pegar os principais problemas que estão sendo enfrentados em questões como drogas e violência, é nos lugares onde eles e os iguais a eles moram. Onde a educação é mais precária? Nos lugares onde eles e os iguais a eles moram... Saúde? O mesmo. Precisa se entender enquanto juventude contextualizada na classe, no território.221

A associação da gestão das ocupações à emergência de uma consciência de

classe, com a construção do poder popular e, de maneira geral, com a luta pela

transformação da sociedade, não é uma exclusividade do MNLM-RJ. Militantes de

vários movimentos cariocas, como da FARJ, da FIST, do MTD, MTST, também

expressam essa expectativa, cada um enfatizando tal ou qual aspecto ou

característica dessas experiências222.

Outra questão importante é a “maior precariedade das condições de vida e

vínculos mais instáveis de emprego” entre os sem-teto do Centro de São Paulo,

descrita por Miagusko. Ele relaciona essa situação às mudanças vistas no mundo do

trabalho no Brasil a partir dos anos 1990, com o crescimento do desemprego, da

flexibilização das relações de trabalho etc. Sem dúvida, esse é um dos principais

fatores que explicam essa situação. Não obstante, duas outras formas de se

apreciar essa situação podem ser acionadas para uma reflexão sobre esse quadro.

A primeira é a particularidade das regiões centrais, costumeiramente

habitadas por ambulantes, biscateiros, e moradores de rua etc. Em suma,

trabalhadores com vínculos muito precários e instáveis de emprego, para os quais o

Centro representa oportunidade de trabalho e obtenção de renda. No Rio, muitos

desses trabalhadores moram em casarões abandonados ou parcialmente

abandonados, nos quais ocupam ou alugam quartos, enquanto em São Paulo é

maior a presença dos cortiços. Não foi à toa que os movimentos de moradores de

221 Entrevista realizada com Lurdinha, coordenadora do MNLM e moradora da Manoel Congo, em 10/10/2010. 222 Diversas razões são elencadas para justificar a decisão e a importância de gerir as ocupações, mas, como nos exemplos seguintes, costumam estar associadas às expectativas de transformação social e ao desenvolvimento de novas práticas e identidades coletivas. A posição do MTST com respeito à “gestão das ocupações”: “é visto pelos integrantes do movimento como a essência do trabalho político, uma pedagogia da construção do ‘poder popular’”. (MIAGUSKO, 2012, p. 274) Nas palavras de um pesquisador que também participa de um grupo que assessora ocupações cariocas, outro exemplo: “Torna-se possível questionar a ocorrência da construção de uma cultura nas ocupações dos sem-teto. A partir de novas experiências, contatos e descobertas, todo um conjunto de práticas sociais e simbólicas se refaz, e uma nova forma de vida é ensaiada. Nela, encontra-se um forte caráter político por afirmar diferenciações, possibilitar integrações e ser uma ferramenta de auto-afirmação e auto-determinação de populações excluídas”. (MAMARI, 2008, p. 23)

Page 247: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

247

cortiços (destaque para a ULC - Unificação das Lutas do Cortiço) foram tão

importantes na constituição dos movimentos de sem-teto do Centro de São Paulo,

enquanto no Rio, o MUCA, dos camelôs, esteve à frente, com outros movimentos,

da organização de ocupações no Centro. Assim, pode-se supor que, pelo próprio

fato de essas ocupações serem no Centro, elas acabem reunindo um grupo

caracterizado por condições de vida mais precárias223.

A segunda questão diz respeito aos relatos vistos no capítulo anterior sobre a

composição heterogênea da base social dos MSUs. Vera Telles, quando dizia que

“os movimentos populares se constituiriam num dos eixos de construção de

identidades de classe porque permitiriam articular setores do proletariado que, pela

sua instabilidade no mercado de trabalho, não teriam acesso à organização sindical”

(TELLES, 1987, p. 69), descrevia uma situação muito parecida com a encontrada em

movimentos que realizavam ocupações no Centro do Rio de Janeiro nos anos 2000.

Vale relembrar as resoluções do Encontro Nacional do MTST (cf. Capítulo I),

segundo as quais: “a organização sindical, no espaço de trabalho, tem tido enormes

dificuldades em organizar um segmento crescente de trabalhadores

(desempregados, temporários, terceirizados, trabalhadores por conta própria, etc)”.

Eles dizem ainda que, consequentemente, “o espaço em que milhões de

trabalhadores no Brasil e em outros países têm se organizado e lutado é o território.

Somos um movimento territorial dos trabalhadores”. É uma descrição muito

semelhante à de Telles, mesmo tratando de movimentos diferentes e separados por

vinte ou trinta anos na história.

A essas descrições, podemos somar outras. Mamari (2008) narra situação

muito parecida no Rio de Janeiro, encontrada entre os moradores da Ocupação

Chiquinha Gonzaga, enquanto Miagusko (2012) relata o depoimento de uma

moradora de uma ocupação em São Paulo sobre o tema:

Sobre a ocupação atual, a maioria dos entrevistados respondeu atuar em atividades irregulares (diaristas, camelôs, biscates, etc.), estarem efetivamente desempregados ou sem trabalho. (...) Sobre a renda dos moradores, a grande maioria afirma adquiri-la através de seu

223 Isso, caso a ocupação tenha sido realizada por movimentos sociais com atuação prioritária nas regiões centrais, caso dos movimentos de sem-teto do Centro de São Paulo, ou tenham priorizado, de alguma forma, envolver os moradores do Centro, como no já relatado caso da Ocupação Chiquinha Gonzaga, no Rio de Janeiro. Não foi esse o caso da Ocupação Manoel Congo, cuja maioria dos participantes veio de outras áreas pobres da cidade e da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Page 248: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

248

trabalho, seja ele fixo ou irregular (76,6%). Uma quantidade considerável de entrevistados não obtém renda (12%) e outras, ainda, a recebem através de aposentadoria e/ou programas do governo (8,5%) ou do próprio cônjuge (2,1%). (MAMARI, 2008, p. 87-88)

A experiência do emprego para amplos contingentes já é do vínculo precário, o que não significa desocupação. Uma de nossas entrevistadas, indagada sobre a quantidade de desempregados no conjunto habitacional em que vivia, dizia que não havia desempregados, desde que não considerássemos carteira assinada como sinônimo de empregados. (MIAGUSKO, 2012, p. 305-306)

Mudanças na economia, no mercado de trabalho e na legislação trabalhista,

em alguns momentos, agravam as condições de vida, o desemprego e a pobreza.

Essa variação pode ser percebida, por exemplo, quando se comparam os anos

iniciais, de alto desemprego, e os anos finais da década de 2000, quando houve

uma significativa melhoria na possibilidade de obter um emprego. No entanto, essa

variação não parece suficiente para transformar de forma mais profunda a “típica”

composição (quanto à ocupação no mercado de trabalho) dos participantes de

MSUs ao longo desses anos todos. Entre os moradores da Manoel Congo, por

exemplo, de 2007 para 2013, em conformidade com as mudanças no mercado de

trabalho no Brasil, diminuiu o número de desempregados e cresceu o número de

trabalhadores com emprego e, dentre esses, aqueles com carteira assinada. Mesmo

assim, a grande maioria continuava sendo de trabalhadores pobres, com empregos

de alta rotatividade e sem acesso à organização sindical.

Em uma fotografia, quando se capta a imagem de um momento específico,

um trabalhador pobre (e mesmo um grupo) pode aparecer como desempregado,

enquanto outro está empregado. Um pode estar em um emprego formal, outro em

um informal. Um deles pode ter, naquele momento, um salário relativamente mais

baixo, o outro mais alto. E todas essas condições fazem diferença na vida desses

trabalhadores. Porém, quando ao invés de olhar a fotografia de um momento

específico, observa-se esses mesmos trabalhadores pobres ao longo de um período

maior, percebe-se que muitas daquelas condições mudaram ou se inverteram, mas

tudo permanece quase igual para ambos. E o mesmo trabalhador pobre, ao longo de

alguns anos, foi um desempregado, um trabalhador com carteira assinada em um

emprego de alta rotatividade, teve um emprego informal, trabalhou por conta própria

etc.

Page 249: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

249

Ilustrativo o exemplo de P, típico trabalhador pobre, que foi morador da

Manoel Congo desde as primeiras horas até que, por motivos particulares, deixou a

Ocupação em 2013 e foi morar em um quartinho alugado perto da Central do Brasil.

Nesses seis anos, P trabalhou sem carteira, como ambulante vendendo cerveja na

Lapa e fez biscates, como mudanças. Trabalhou também em um açougue, com

carteira assinada, em uma firma de vigilância como diarista, e foi também ajudante

em um bar. Passou períodos desempregado, fazendo bicos, alguns na própria

ocupação. Por fim, em nosso último contato, estava trabalhando em um

supermercado, no setor de estoque. P é um exemplo daqueles trabalhadores aos

quais se referia Vera Telles, dos quais falava o MTST, que aparecem nos números

de Mamari ou no depoimento transcrito por Miagusko224. É um trabalhador pobre,

com baixa escolaridade225, submetido à precariedade e instabilidade que

caracterizam os empregos dessa parcela de trabalhadores e sem acesso (ou com

dificuldades de acesso) à organização sindical 226.

Pessoas como P, isto é, trabalhadores pobres, cuja relação com o mercado

de trabalho é marcada pela instabilidade e precariedade, conformam a composição

“típica” dos MSUs. Uma composição que comporta uma grande heterogeneidade de

formas de ocupação e, ao mesmo tempo, é profundamente homogênea quanto às

condições de vida e trabalho.227 Composição que comporta uma margem de

variação sim, dependendo de onde e como é realizada determinada ocupação, do

224 Claro que nem todos os moradores da Manoel Congo (ou de qualquer outra ocupação ou MSU) vivem situação idêntica a de P. Há trabalhadores pobres que se mantêm por longos anos no mesmo emprego, com ou sem carteira assinada, por exemplo, em serviços domésticos. Mesmo entre os camelôs ou os que trabalham por conta própria, há também os que permanecem no mesmo ponto ou ramo por muitos anos. Não deixam, por isso, de serem trabalhadores pobres, com vínculos precários ou instáveis de trabalho e sem acesso à organização sindical. Os seguintes dados, baseados em pesquisa de Gustavo Gonzaga, da PUC-Rio, são ilustrativos dessa rotatividade no Brasil: “Na década de 1990, 45% dos trabalhadores com carteira assinada trocavam de emprego em um ano. A taxa acelerou para 53,9% em 2002, e atualmente chega a 64%”. (O GLOBO, 23/07/2014) 225 Vale registrar que P, enquanto morava na Manoel Congo, voltou a estudar, cursando, na época, o supletivo. 226 Sempre é possível haver algum tipo de mobilidade social entre os de baixo. O próprio fato de morar em uma ocupação, em uma região central, de deixar o aluguel e de ter acesso a determinadas políticas educacionais, pode facilitar essa mobilidade. No entanto, segundo a vivência nesse meio, a tendência é que, acontecendo, essa mobilidade atinja os filhos daqueles que ocuparam (no caso de ocupações mais antigas). Esses, vivendo num ambiente mais propício, adquirem uma maior escolaridade e, por vezes, conseguem ascender socialmente. Em consequência, passam a ter maior poder de escolha: podem deixar a ocupação ou continuar morando nela, nesse caso por motivos mais políticos ou de preservação de relações sociais do que econômicos. 227 Apesar da diversidade (heterogeneidade) de ocupações, seus ocupantes, no geral, pertencem ao mesmo segmento de trabalhadores (pobres, de empregos precários e instáveis e sem acesso à

Page 250: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

250

processo mais ou menos seletivo e organizado de mobilização, ou das condições

momentâneas da economia e do mercado de trabalho. Mas é uma composição que,

a despeito dessas variações, continua muito parecida ao longo dos anos e em

diferentes lugares, o que permite concluir que essa homogeneidade é uma

característica marcante dos MSUs no Brasil e, particularmente, entre os de luta por

moradia.

A influência dessa composição da base social dos MSUs já foi objeto de

reflexão anterior nessa tese. Segundo essa reflexão, MSUs como o MNLM-RJ e a

CMP-RJ, ao atuarem em fóruns como a PMS-RJ, costumavam ser porta-vozes de

problemas e propostas voltadas para essa parcela dos trabalhadores, em contraste,

por exemplo, com as posições políticas de sindicatos, centrais sindicais ou ONGs

(cf. Capítulos I e II). Ao colocarem em ação esse segmento dos trabalhadores, não

estariam esses movimentos colaborando para o fazer-se de uma fração da classe

trabalhadora? A luz lançada sobre a experiência da Ocupação Manoel Congo

permite retomar essa questão, buscando registrar e refletir sobre se e como as

ações desses e nesses movimentos produzem novas experiências comuns para

seus participantes e apoiadores e, se e como influenciam na transformação e

emergência de novas consciências, de consciências de classe.

Em conformidade com suas condições de vida e trabalho, os moradores da

Manoel Congo reservaram o salão existente no primeiro andar do prédio como

espaço dedicado à política de geração de trabalho e renda. Durante o carnaval de

2008, ainda nos primeiros meses da ocupação, a abertura daquele espaço atraiu a

atenção de militantes de diversos movimentos sociais cariocas, possibilitou a

obtenção dos recursos para resolver parcialmente o problema dos banheiros e

consolidou a ideia de criação, ali, da Casa de Samba Mariana Crioula228. A partir de

então, foram muitas as atividades realizadas naquele espaço, ajudando a gerar

renda para os moradores. E foram muitas também as que proporcionaram aos

moradores participar de debates políticos, atividades culturais e uma profunda

interação com outros movimentos e setores da esquerda carioca, fazendo da

organização sindical), demonstrando a homogeneidade quanto aos segmentos de trabalhadores que participam dos MSUs que lutam por moradia. 228 Mariana Crioula foi companheira de Manoel Congo na liderança de revoltas de escravos no Estado do Rio de Janeiro no século XIX.

Page 251: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

251

Ocupação e, particularmente da Casa de Samba, um espaço de encontro e

sociabilidade para diversos movimentos sociais229.

O espaço da Casa de Samba e a vontade de realizar políticas de geração de

trabalho e renda levou a Ocupação a apresentar e aprovar um projeto junto à

Petrobrás, para reforma, aquisição de materiais e treinamento para o funcionamento

da Casa de Samba Mariana Crioula e do restaurante popular, que funcionariam sob

regime do cooperativismo. Esse projeto foi iniciado, mas a demora do Governo

Estadual em regularizar e reformar o prédio se tornou um empecilho que corria o

risco de inviabilizar esse e outros projetos.230 O “tempo burocrático do Estado” e as

demandas que são “apenas parcialmente atendidas” (TELLES,1987) têm profundo

impacto na vida dos moradores da Manoel Congo.

A utilização dos espaços do prédio que abriga a Manoel Congo foi e é objeto

de ampla reflexão e discussão entre os moradores, submetida a decisões em

assembleias, e está enquadrada na Carta de Princípios da comunidade. Além dos

espaços reservados para geração de trabalho e renda (o salão no térreo e mais uma

sala no segundo andar, também destinada à administração da Casa de Samba), há

locais destinados ao lazer e à cultura, o Espaço Criarte, onde funciona a “escolinha”

da ocupação e um salão utilizado para assembleias, cursos de formação, reuniões

do MNLM e de outros movimentos.

Nos andares mais baixos do prédio, os apartamentos são ocupados,

prioritariamente, por famílias com crianças pequenas, idosos ou pessoas doentes

(são dez andares e nenhum elevador em funcionamento). Os apartamentos maiores

foram destinados às famílias mais numerosas, conforme decisão coletiva expressa

na Carta de Princípios da Ocupação. Além da organização geral, os moradores se

organizam também por andar. Dividem assim o trabalho de manter limpos os

corredores e, principalmente, os banheiros coletivos. Em cada andar há também

uma máquina de lavar roupas, que é ligada à água do banheiro e usada

coletivamente por todos do andar.

229 Como exemplo, foram realizados bailes de carnaval, rodas de samba e de funk, apresentações de hip hop, encontros e seminários do MNLM-RJ e de diversos outros movimentos e reuniões de fóruns como a PMS, o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, bem como a comemoração dos 40 anos do Maio de 1968, dentre outras atividades. 230 De qualquer forma, mesmo antes (e também depois) da apresentação do projeto à Petrobrás, diversos movimentos têm utilizado aquele espaço para alimentação quando realizam suas atividades no Centro, e o grupo de moradores interessados nesse projeto já vinha produzindo refeições, que eram servidas na Casa de Samba ou entregues nos lugares determinados.

Page 252: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

252

Em levantamento realizado na virada de 2010 para 2011,231 havia 42 famílias,

num total de 120 pessoas, morando na Manoel Congo. A metade dos moradores

tinha menos de 30 anos, e mais de um quarto encontrava-se na faixa etária entre 0 e

18 anos. A existência de muitas crianças e jovens na Ocupação exigiu de suas

lideranças o atendimento de necessidades específicas destes grupos232.

Além da coordenação nacional de juventude e de núcleos de juventude nos

estados, o MNLM adotou algumas orientações no sentido de priorizar espaços e

políticas voltadas tanto à educação e formação em caráter mais geral, quanto às

crianças e adolescentes, em específico. No caso da Manoel Congo, reservou-se,

desde o início da Ocupação, um espaço destinado à formação e interação da

juventude, o Espaço Criarte Mariana Crioula233, uma sala onde funciona o que os

moradores chamam de “creche” ou “escolinha”. No 2° andar do prédio, a sala possui

uma pequena biblioteca e disponibiliza materiais escolares, brinquedos e jogos.

Afixados nas paredes do Espaço, alguns cartazes reproduzem artigos do Estatuto

da Criança e do Adolescente - ECA234.

Em 2008, quando foram indicados alguns militantes moradores da ocupação

para assumirem a educação e acompanhamento das crianças e adolescentes, essas

políticas tomaram maior impulso na Manoel Congo. Além desses militantes, o

movimento também conta com o apoio de estudantes universitários. Nas palavras de

S235, uma das responsáveis pela política de educação na Ocupação, o Espaço

Criarte não é uma forma de substituir a educação formal, mas de estimulá-la.

231 Tive acesso, na época, a esse levantamento, feito pelo próprio MNLM-RJ, para escrever, em parceria com Ana Carla Magni, o artigo “Luta por moradia e direitos humanos: Crianças e adolescentes em uma ocupação urbana no Rio de Janeiro”. Foi realizada também uma série de entrevistas com moradores da Ocupação, algumas das quais, com a devida autorização de Magni, a quem sou muito grato por isso, utilizo nessa tese. 232 Mais precisamente, havia na Ocupação: 12 crianças de 0 a 6 anos; 14 crianças de 7 a 12 anos; 9 adolescentes de 13 a 18 anos; e 27 jovens de 18 a 30 anos, dos quais 14 eram mães e pais. Registra-se ainda que 71% dos moradores da Manoel Congo se autodeclaravam negros. 233 A criação desse tipo de espaço é uma política recorrente do MNLM. Na Ocupação Nove de Novembro, organizada pelo MNLM/RJ na cidade de Volta Redonda, por exemplo, também existe um espaço reservado para essa finalidade. 234 Estimulados pelo MNLM a se envolverem nas lutas relativas aos direitos de crianças e adolescentes, moradores da Manoel Congo têm participado das manifestações do dia 23 de julho, aniversário da Chacina da Candelária, nas quais defendem o ECA e a resistência à redução da maioridade penal. 235 S cursou Letras e também Teologia e, no fim de 2010, estava terminando o mestrado na UERJ. Sua primeira entrevista, em agosto de 2010, a qual acompanhei e participei, foi realizada por iniciativa do professor Razack Karriem, da Cornell University (Department of City and Regional Planning, Ithaca, New York, Cornell, EUA), que gentilmente cedeu o material gravado, pelo que sou muito grato. A segunda foi em outubro de 2010.

Page 253: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

253

Que ela [a criança] venha da escola, e que ela tenha aqui uma outra atividade. Não aquela atividade massacrante da escola formal, mas que ela tenha um momento de lazer, que ela possa discutir suas dificuldades. Pra ela poder se sentir também parte dessa ocupação. (...) Um lugar onde pode realizar a partir da arte, mas arte educação. Um lugar onde ela pode estar falando do papel dela na Ocupação (...) Chamei mais uma amiga daqui do prédio pra poder vir contribuir. Ela era uma pessoa muito calma, mas não achava que tinha dom pra trabalhar com crianças. E o que aconteceu? Ela vai fazer agora vestibular para pedagogia, porque ela se descobriu, trabalhando com as crianças. (...) Tem ela, tem dois alunos de pedagogia da UFF, voluntários. Tem dois alunos da UERJ, também, do último ano de geografia. (...) Todas as crianças aqui hoje estão na creche municipal, na escola. No ano passado, eu fui a todas as escolas das crianças, conversar com os professores. Falar pra eles que a gente era de uma ocupação urbana. O tratamento foi totalmente diferente com as crianças.

Além de brincadeiras, jogos, desenhos, rodas de leitura, a escolinha

proporcionava o acompanhamento dos exercícios e tarefas de casa que são

ministrados na escola formal, bem como aulas de reforço para as crianças.

Segundo J e R, mães de duas crianças cada, a “escolinha” vinha cumprindo um

papel fundamental na educação das crianças da Ocupação:

Tem crianças que chegaram aqui sem saber ler. Não querendo menosprezar o trabalho das escolas, mas aqui ficou bem mais fácil, porque tinha aqui o reforço. Aqui funciona esse reforço. Estimula que estude, mas vê as dificuldades. Eles acompanham as crianças na sua necessidade individual. 236 Todas as crianças que fazem parte dessa comunidade descem pra escolinha. Minha filha estava com dificuldade, e agora ela já está lendo tudo que ela vê (...) Os meus filhos ainda são pequenininhos, mas tem crianças aqui, como no caso dos filhos da N, que já tem 13, 14 anos. Muitos viviam na Central, trabalhando de alguma forma na rua, vendendo cerveja. Mas na rua, não era legal pra eles! Aqui termina tendo facilidades de estar no meio de uma creche. Depois que eles vieram morar aqui, essa creche fez com que a cabeça deles melhorasse muito. 237

Os responsáveis pelo espaço buscavam proporcionar às crianças uma

educação menos punitiva, mais consciente e transformadora também com relação

236 J tinha 24 anos quando concedeu essa entrevista, realizada em outubro de 2010. 237 R tinha 28 anos quando concedeu essa entrevista, realizada em outubro de 2010.

Page 254: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

254

aos diferentes aspectos da vida cotidiana, como o cuidado com os livros e com a

alimentação. S exemplificava:

As crianças chegavam aqui e pegavam as estantes de livros, e rasgavam tudo! Os pais olhavam assim e falavam: “meu Deus, que loucura!”. Hoje você pode deixar, eles não rasgam. (...) Quando a gente vê que rasga, sem aquela coisa de “por que você rasgou?” Falo: “gente, isso acontece”, e aí vou explicando. Porque é uma coisa muito ruim tratar a criança como se fosse uma punição. Educação não é punitiva. Nós temos uma educação punitiva, por causa do regime militar, por causa desse colonialismo. (...) Eu trabalho muito a questão do conceito da comida, do comer, do comer de tudo, tento trabalhar a merenda escolar, não essa merenda do refrigerante, mas assim: vamos comer hoje tomate, a gente leva pra merenda cenoura, pepino. A criança não come essas coisas em casa. E as mães falam que eles não gostam. Mas quando chega na escola, corta o pepino em rodelinhas, pega a cenoura... (...) A gente contando as histórias, vai tentando mudar um pouco essa pedagogia, essa educação deformada...238

Ainda sobre educação, cabe registrar que além do trabalho com as crianças

no Espaço Criarte, a nova vida na Ocupação acabou estimulando vários adultos a

retomarem os estudos, entre os quais a pessoa citada por S que ajudava na

“escolinha”.239

A proximidade da Ocupação a diversos equipamentos culturais, inclusive

vários públicos e de acesso gratuito, facilita o trabalho de estimular as crianças no

que tange ao acesso à cultura: “A gente pôs um trabalho muito forte na área de

leitura, mas também de sair desse espaço, de ir à praia, de ir à Quinta da Boa Vista,

de ir a alguns cinemas, no museu”. S, em entrevista realizada em 10 de outubro de

2010, conta que isso era possível por conta da localização da Ocupação, no Centro:

“A gente vai, vai de graça. Porque é tudo aqui, na região (...) essa região é uma área

238 Entrevista concedida por S em agosto de 2010. 239 R está com o grupo desde a ação no Cine Vitória e foi uma das moradoras da Manoel Congo que voltou a estudar. Ela contou que outras mães e avós também seguiram esse caminho: “Eu voltei a estudar porque, na realidade, eu tinha parado de estudar com 14 anos de idade, quando eu morava no Piauí. Aí eu saí de lá fugida, porque a pobreza era enorme, e eu sempre tive um sonho de crescer mesmo, de melhorar de vida. E quando eu vim de lá, eu fugi mesmo de casa - e levei 15 dias pra chegar nesse Rio de Janeiro – e não trouxe transferência da minha escola. Então, por isso que eu parei de estudar. Eu vim morar na casa do meu tio, e ele também nunca estudou. Ele se deu bem na vida com o comércio e tinha umas casas alugadas, as coisas dele lá, e não estudou. Aí ele falava: ‘eu tenho minhas coisas aqui e nunca precisei estudar, porque você precisa?’ Aí parei mesmo de estudar, passou o interesse. Depois que eu vim pra cá, que eu estou morando aqui, a maioria das pessoas, não só eu e a L, mas a maioria das mulheres que são casadas, das jovens que tinham parado de estudar, voltou a estudar. Hoje a gente tem mais objetivo na vida, a gente tem interesse em que tudo aqui dê certo!” (R, 10/10/2010)

Page 255: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

255

cultural, então dá pra criança sair, conhecer também o próprio espaço onde ela

mora, onde ela vive. Isso pra gente é muito importante”.

Além da proximidade, os responsáveis pelas crianças enfatizam que a

organização é essencial para o acesso aos equipamentos e eventos culturais e de

lazer: “Hoje, por exemplo, eles até saíram, foram (se não me engano) para a

biblioteca ou o Centro Cultural Banco do Brasil”, relata J, enaltecendo o trabalho

feito no Espaço Criarte. R contou que no Dia das Crianças, dois dias depois da

entrevista, ia “ter um passeio no Aterro do Flamengo”, organizado pela “escolinha”.

A proximidade entre o local de moradia e os bens culturais existentes na

cidade também foi citada pelo jovem W como uma importante mudança na sua vida:

“Aqui tem mais acesso à cultura. A gente não sai muito à noite. Mas aqui tem a

Caixa Cultural, aqui tem museu, tem tudo aqui no Centro”. No entanto, a dificuldade

de construção de uma política específica para a juventude da Ocupação ainda era

vista com preocupação. Para Lurdinha, era difícil ter alguém que fosse jovem e,

portanto, com afinidade com as aspirações deste grupo e, ao mesmo tempo, com

formação e experiência política para dar conta das tarefas dessa articulação: “O que

eles mais reclamam é a falta de uma metodologia que articule a questão da luta com

os interesses deles como juventude” (LURDINHA, 10/10/2010). W sentia essa

dificuldade: “A gente começa a fazer alguma coisa e aí vai parando. Aí acaba não

conseguindo fazer muita coisa! (...) Já teve uma peça. Mesmo com a juventude

sendo fraca, a gente conseguiu fazer uma peça que a gente apresentou no Canal do

Anil e tudo” (W, 10/10/2010).

Nas iniciativas direcionadas aos jovens e adolescentes predomina a

preocupação cultural. Peças teatrais, quadrilhas, o hip-hop e as rodas de funk são

tentativas de promover a integração do grupo e estimular os jovens a participarem

dos processos de elaboração e decisão coletiva. As iniciativas, porém, careciam de

continuidade. Apesar dessa situação, Lurdinha acreditava que a participação e

organização da juventude estavam aumentando:

Eles tinham uma coisa aqui, equivocada, que era achar que pra reunião da juventude do MNLM tinham que vir todos os jovens e adolescentes, de todas as ocupações do MNLM, inclusive da Manoel

Page 256: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

256

Congo.240 Aí agora eles já conseguiram compreender que não tem. Que tem aqueles que querem se organizar e, quando eles estiverem encaminhando, os outros vão vir! Então, agora, estão entendendo isso. Agora começa a andar, começa a deslanchar. Hoje, por exemplo, tem quatro jovens no curso. Se fosse em outros tempos, eles diriam: “não vai descer ninguém!” Mas você não tá descendo? Você não é jovem?241

Interessante notar que Lurdinha se referia a um curso de formação (Como

Funciona a Sociedade I, com metodologia do grupo 13 de Maio) que estava

acontecendo na Ocupação. A formação política também é uma preocupação

constante do MNLM-RJ. Na Manoel Congo foram realizados vários cursos,

seminários, debates e os moradores da Ocupação são estimulados a também

participarem de cursos organizados por outros movimentos e entidades242. R, que

estava participando do curso citado por Lurdinha, mostra o potencial de atração que

essas atividades tinham:

Esse curso de formação que a gente tá fazendo agora é legal, porque a gente tá aprendendo. Antes eu não tinha noção de nada, nada vezes nada. (...) Hoje em dia não. Eu gosto desses cursos que fazem a gente ficar mais preparado pra estar nos lugares, ter resposta pras coisas. A gente tá aprendendo bastante. Ainda falta muita coisa pra gente aprender. Mas eu acredito que, como a nossa luta é uma luta importante, faz com que a gente esteja participando de mais cursos pra estar mais preparado.243

A recorrente preocupação com a “formação” entre os movimentos sociais

brasileiros dos anos 2000 baseava-se na ideia de que através da formação seria

possível relacionar as lutas do dia a dia com os problemas mais gerais da

sociedade, e que a educação poderia ser uma importante arma para transformação.

Por outro lado, relacionava-se também com a ideia de que períodos de refluxo das

mobilizações deveriam ser aproveitados para fazer formação e que essas atividades

e cursos poderiam servir a múltiplos objetivos. Essa segunda chave de entendimento

sobre a formação diz muito sobre a conjuntura da época e sobre como os

240 Percebe-se nessa parte da fala de Lurdinha, que mesmo sem intenção, ela descreveu um sentimento, presente entre os jovens, de pertencimento a um grupo mais amplo que o da Ocupação, de pertencimento ao MNLM. 241 Entrevista realizada com Lurdinha em 10 de outubro de 2010. 242 Como exemplo, lembro que fui orientador de M, moradora da Manoel Congo, no curso Energia e Sociedade, uma parceria entre o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e o IPPUR/UFRJ, realizado no Fundão. Dei aula também para D, morador da ocupação, no curso de Comunicação Popular do NPC. 243 Entrevista realizada com R em 10 de outubro de 2010.

Page 257: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

257

movimentos respondiam a essa conjuntura. Portanto, merece ser mais detidamente

examinada.

Desde os anos 1990, o MST foi um dos primeiros movimentos a organizar

cursos em todo o país, investindo na publicação de livros, na construção de sua

própria escola de formação (Escola Florestan Fernandes244) e em outros recursos.

Aos poucos, essa avaliação passou a ser também incorporada pelos movimentos

sociais urbanos. No seminário nacional de formação do MNLM realizado em 2011,

por exemplo, logo no primeiro dia esse debate apareceu. Ao final do dia, o

Movimento já discutia e anunciava que outros cursos viriam pois, naquele momento,

seria prioritário trabalhar formação/organização. O momento (desfavorável para

grandes lutas) deveria ser aproveitado para fazer formação, aumentar a consistência

política, teórica e ideológica dos militantes e movimentos. Deveriam ser estimulados

cursos, seminários e outras atividades de formação, vistas como espaços e

momentos capazes de articular uma série de objetivos.

As atividades de formação, segundo essa perspectiva, possibilitariam criar

espaços e momentos propícios para o fortalecimento da identidade do movimento,

favorecendo o sentimento de pertencimento. Eram espaços e momentos em que se

aproveitava para discutir as formas organizativas, a participação nos núcleos de

base, o funcionamento das instâncias, dentre outras questões, contribuindo para

conferir maior unidade e “organicidade” ao movimento.

Além de ajudar na organização interna, os cursos e atividades de formação

eram vistos também como suportes para “atividades de massa”, oportunidades para

aproximar ou organizar pessoas novas, com quem o movimento vinha se

relacionando, e para ampliar a influência política do movimento245. Serviam também

como oportunidade para estabelecer ou fortalecer relações e alianças políticas. Em

primeiro lugar, com os intelectuais (de universidades, ONGs, partidos de esquerda,

244 Visitei algumas vezes a Florestan Fernandes (em Guararema, SP). Durante dois anos, orientei um grupo de militantes/estudantes em um curso do MST, em parceria com a UFRRJ, lá realizado, voltado especificamente para membros das CPPs (Comissões Político Pedagógicas) do Movimento de todo o país. 245 Um exemplo, presenciado várias vezes, era a seguinte fala de dirigentes e militantes de diferentes movimentos: “o pessoal lá está muito desorganizado, têm que fazer um curso de formação política lá”; ou: “a luta está muito fraca por aqui, vamos fazer um curso, ou um seminário e ver se juntamos e animamos uma galera boa”; outras vezes: “vamos ver se com esse curso a gente forma um time bom pra encarar a luta lá”. A formação era vista como parte da luta, como parte da organização. Era o curso ou processo de formação sendo pensado também como resposta às dificuldades da luta cotidiana, ao trabalho de massa e necessidades organizativas.

Page 258: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

258

estudantes ou ligados ao Estado246) convidados a colaborar com os processos de

formação, além de servirem também para fazer ou fortalecer alianças com outros

movimentos sociais.247 Por fim, alguns cursos de formação possibilitavam estimular

o estudo formal e até mesmo a obtenção de diplomas.

Olhando especificamente para os MSUs, percebe-se que esses quase nunca

organizavam cursos de longa e média duração. A maioria dos cursos era realizada

nos finais de semana e raramente havia cursos nacionais.248 Também eram poucos

os cursos de educação formal. Entre as atividades de formação promovidas pelos

MSUs, muitas eram organizadas conjuntamente aos fóruns e campanhas que esses

movimentos participavam. No Rio, muitos cursos foram organizados a partir da

Assembleia Popular, depois pela PMS-RJ, pelo Comitê da Copa e Olimpíadas ou por

campanhas como a da ALCA, da VALE e contra o Caveirão. Isto talvez fosse

expressão da dificuldade organizativa e da conjuntura de fragmentação das lutas e

movimentos sociais que, ao que parece, eram mais marcantes para os movimentos

urbanos do que para os rurais.

Outra característica da formação entre os movimentos urbanos era a

realização desses processos juntamente com plenárias e/ou encontros políticos dos

movimentos. Quando ocorria, por exemplo, um Encontro Estadual ou Municipal do

MNLM-RJ, eles organizam esse encontro em um fim de semana prolongado, e

utilizavam dois dias para atividades de formação e outros dois para realizar o

Encontro. Outra característica era a realização de atividades conforme as

oportunidades materiais existentes e/ou conforme eram propostas por ONGS ou por

grupos universitários, o que, à primeira vista, indicaria uma menor autonomia desses

movimentos na hora de elaborar seus trabalhos de formação. Ações programadas e

consideradas importantes, como uma manifestação ou uma ocupação, também

246 Intelectuais com atuação nas diferentes esferas e níveis do Estado eram eventualmente chamados para colaborar em atividades de formação. Dessa forma, os movimentos buscavam estender suas relações políticas e construir laços que pudessem facilitar certas negociações, interlocuções, obtenção de apoio político, técnico ou financeiro para suas causas (ou para aquela própria atividade), além de influenciar pessoas que poderiam ser importantes ao tomarem decisões que interferem na política local, nacional ou em temas importantes para os movimentos e suas lutas. 247 Havia desde cursos de um determinado movimento, no qual militantes de outros movimentos eram chamados a participar, cursos de um movimento no qual outros movimentos se incorporavam, até cursos elaborados conjuntamente entre diversos movimentos. No Rio de Janeiro, nos últimos anos da década de 2000, na maioria das vezes por iniciativa do MST, vários cursos de média duração envolvendo diversos movimentos foram realizados simultaneamente.

Page 259: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

259

eram motivos para os movimentos urbanos organizarem atividades de formação

política, como foi o debate organizado pelo MNLM na véspera da ação que deu

origem a Manoel Congo. Essas atividades cumpriam, nesses casos, papel de ajuda

na mobilização, no fortalecimento de identidades comuns e na organização interna.

A escolha dos intelectuais (de universidades, ONGs etc) como facilitadores,

professores, monitores nos cursos e atividades de formação dos movimentos

urbanos tinha como critério principal a relação pré-estabelecida com essas pessoas,

fundadas na confiança construída na ação conjunta em fóruns ou campanhas. A

identidade e o compromisso político com determinadas lutas seriam mais

importantes nessas escolhas do que o posicionamento teórico e as filiações às

diferentes correntes de pensamento.

Destaque-se, por comparação com o que fazem, por exemplo, os movimentos

ligados à Via Campesina, que os MSUs organizavam poucos cursos com temáticas

mais gerais, história das lutas, marxismo, socialismo etc.249 A maioria discutia temas

mais ligados às lutas do dia a dia, à política urbana, habitacional, direitos humanos,

justiça ambiental.250 Para temas considerados “mais políticos”, os movimentos

escolhiam, para professores ou monitores, pessoas com quem já tinham maior

relação de confiança, com muitos anos de militância e maior afinidade política e

ideológica. Já as temáticas vistas como “mais técnicas”, que abordam os processos

de urbanização, as políticas habitacionais, ambientais, leis e projetos urbanos,

permitiam aos MSUs construir relações com intelectuais com os quais não tinham

uma relação mais próxima e pré-estabelecida. Esses debates serviam também para

justificar a obtenção de recursos e/ou o uso de espaços públicos ou de outras

entidades para as atividades. Serviam ainda para convidar pessoas novas, militantes

de outros movimentos e os “amigos” que atuavam juntos em fóruns e campanhas,

248 As diferenças nas relações de trabalho entre acampados e assentados rurais de um lado, e trabalhadores pobres das cidades de outro, é uma possível explicação para tal situação. Outra explicação possível é uma maior fragilidade organizativa dos movimentos urbanos. 249 O curso que estava sendo realizado na Manoel Congo quando foram feitas as entrevistas com Lurdinha e com W e R (que estavam participando do curso) era de um desses temas que chamei de “gerais”, os quais, mesmo com menor frequência, também são realizados pelos MSUs. 250 Essa característica do trabalho de formação facilitava a relação com intelectuais que participavam de fóruns comuns (por exemplo, da PMS-RJ ou do Comitê Popular da Copa), de ONGs e sindicatos que também atuavam nesses fóruns e de intelectuais que ocupavam espaços no Estado, especialmente aqueles que atuavam em órgãos como o Instituto de Terras e Cartografia do Rio de Janeiro - ITERJ, no Ministério e Defensoria Pública etc.

Page 260: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

260

pois propiciavam atividades “mais abertas” do que outras consideradas “mais

internas” ou “mais estratégicas” 251.

Estas considerações sobre as estratégias e práticas de formação abre o

caminho para um importante tema: a relação entre os MSUs e os intelectuais. Em

primeiro lugar, cabe esclarecer que são considerados intelectuais aqueles que, em

relação aos “de baixo”, podem ser considerados detentores de capital simbólico sob

a forma de capital cultural. Isso inclui estudantes universitários, técnicos de nível

superior, professores, jornalistas, advogados, alguns desses vinculados a ONGs,

partidos políticos etc. Em segundo lugar, é preciso entender que os trabalhos de

formação e educação constituem uma das formas privilegiadas de estabelecimento

de vínculos com os intelectuais252.

É possível reconhecer três formas principais e não excludentes pelas quais se

davam ou se dá essa relação. A primeira delas é a interação através de fóruns,

como o FNRU, o Comitê da Copa e Olimpíadas e a PMS-RJ. Essa forma de relação,

que envolve outros atores além dos intelectuais e dos MSUs, será objeto de análise

no próximo tópico desse capítulo, a partir do caso da PMS-RJ. A segunda é a

relação constituída entre movimentos e intelectuais, principalmente, a partir das

atividades de formação, e que está em exame agora, sobretudo a partir da

experiência do MNLM-RJ e da Ocupação Manoel Congo. Finalmente, a terceira,

mais presente no MTST e outros novíssimos MSUs, é a que passa pela

incorporação orgânica de estudantes e outros intelectuais às estruturas mesmas dos

movimentos. Nesse caso, os integrantes assumem, mesmo quando originários de

outros grupos sociais e econômicos, a identidade do movimento, se dizem do

251 Também por esse motivo, nas atividades com temáticas “mais técnicas”, a posição do intelectual no campo intelectual podia ser um fator importante, pois justificava a obtenção de recursos, espaço e divulgação. Já para os debates considerados “mais políticos” ou de caráter “mais interno”, a posição dos intelectuais no campo intelectual parecia ter menos importância, valendo mais a relação política pré-existente. Como exemplo, cito minha experiência pessoal: quando participava dessas atividades, nos debates com temas mais ligados à questão urbana, eu era apresentado como o estudante/pesquisador do IPPUR/UFRJ; já nos debates sobre conjuntura, estratégias de luta etc., era apresentado como militante e amigo do(s) movimento(s). 252 Ressalta-se que o objetivo é compreender como se dão essas interações nos anos 2000, afinal, a relação entre os MSUs e os intelectuais não é uma novidade: “Na América Latina não é possível entender a problemática dos movimentos sociais se não incluirmos a categoria dos intelectuais no cenário. Eles não são necessariamente bacharéis; são pessoas de grupos sociais distintos dos demandatários e têm se constituído em interlocutores básicos dos movimentos junto à agências governamentais e à mídia em geral. Este fato, entretanto, não obscurece o dado da presença majoritária dos estratos populares nos movimentos sociais, ao contrário da Europa, onde predominaram as classes médias nos movimentos sociais em geral”. (GOHN, 2007, p. 236)

Page 261: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

261

movimento e podem falar em nome do movimento. É Ilustrativo desta forma de

incorporação dos intelectuais o relato de Miagusko sobre sua visita a uma ocupação

do MTST-SP:

Estava ocorrendo o final da conversa entre estudantes de jornalismo e as duas lideranças do MTST. O inusitado da cena não era a visita de estudantes, pois a prática é comum em outros movimentos de moradia e sem-teto com a finalidade de conquistar apoio externo para suas ações. O aspecto diferencial é que aqueles que verbalizavam a voz do movimento eram estudantes com repertório e preocupações próximas dos visitantes. Contudo, este trânsito entre “classes” não ocorre nos moldes do que aconteceu nos anos 1980, de interface entre sindicatos e Universidades ou movimentos de moradia e assessorias técnicas. Apesar de terem acesso aos meios acadêmicos, as trajetórias desses estudantes os aproximam de uma classe média empobrecida. (MIAGUSKO, 2012, p. 268)

A forma de interação vista na experiência do MNLM-RJ é bastante

semelhante àquelas descritas na literatura sobre os anos 1980, e talvez possa ser

entendida como a forma padrão dos movimentos surgidos naquela época, os

“novos” movimentos sociais urbanos. Nesse formato, MSUs como o MNLM-RJ

interagem (e criam vínculos políticos e de confiança) com detentores de capital

simbólico/cultural, mas, tanto uns quanto outros, mantêm-se em campos

formalmente autônomos podendo, eventualmente, atuarem juntos em espaços como

a PMS-RJ e em atividades voltadas para a formação e educação253.

O caso descrito por Miagusko é diferente. Nele, a forma de interação se dá,

também pela incorporação desses detentores de capital simbólico/cultural

(profissionais e estudantes próximos de “uma classe média empobrecida”) ao

Movimento. Essa forma de interação, que se percebe também em alguns novíssimos

MSUs cariocas (como na FLP, no MTD, MTD pela Base) e em outros de fora do Rio

de Janeiro (como no MCP ou nas Brigadas Populares), pode ser vista como uma

novidade.

O surgimento do MST pareceu embaralhar estas relações. Os técnicos têm novo perfil e estão por dentro das estruturas do movimento e não conformam necessariamente um campo autônomo através das ONGs. No caso do MTST isso parece ser levado às

253 Nos anos 1970-80 (cf. Capítulo II), existiu uma intensa interação entre intelectuais (da Igreja, universidades e das então poucas ONGs) com os movimentos sociais. Em meio às polêmicas sobre a questão da autonomia, essa interação, que de alguma maneira mantinha movimentos e intelectuais em campos distintos, era interpretada tanto como demonstração de maior ou menor influência externa sobre os MSUs, quanto de maior ou menor autonomia dos movimentos.

Page 262: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

262

últimas consequências, com a integração de “técnicos” ou “agentes de mediação” diretamente na estrutura do movimento. A presença de estudantes e de profissionais recém-formados em universidades públicas lembra o trânsito dos estudantes que conformaram as assessorias técnicas e a disputa por legitimidade de uma prática profissional comprometida com uma ação política vinculada aos movimentos de moradia em São Paulo. (...) O que impressiona é encontrá-los como agentes e sujeitos desta ação política. Alguns poderiam vê-los operando a substituição dos verdadeiros sujeitos políticos populares que deveriam estar à frente. Mas é possível perceber que se busca operar o encontro entre a classe de despossuídos, ou seja, os pobres urbanos, com a “classe simbólica”, nos termos de Zizek (2005). (MIAGUSKO, 2012, p. 282-283)

O que parece interessante destacar é que com os novíssimos MSUs

emergem (ou se tornam mais recorrentes e visíveis) novas concepções e práticas de

interação entre movimentos e intelectuais254. E a forma de organização dos MSUs

de luta por moradia, fundada exclusivamente na adesão à causa, facilita mais essa

integração dos intelectuais do que a forma organizativa dos movimentos de

moradores (e também dos sindicatos), baseada na ideia de representação de uma

base pré-determinada (cf. Capítulo I).

Até que ponto é pertinente ver nessa forma de interação uma “substituição

dos verdadeiros sujeitos políticos populares”? Até que ponto essa crítica é refém de

conceitos de “classe” e de “sujeito popular” ancorados nos conceitos de massa e

vanguarda consagrados pela III Internacional? Seja qual for a opinião que se possa

emitir e o partido (intelectual, ideológico) adotado, esse fenômeno pode ser visto em

diversos movimentos com filiações ideológicas muito distintas, o que sugere a

existência de um processo de reconfiguração da questão da autonomia e seus

significados nos anos 2000.

254 A referência feita por Miagusko ao MST, que teria dado início, ou quem sabe inspirado, esse novo padrão de relação com os intelectuais, pode ter seu significado relativizado, com base na longa história e na escala desse movimento. Afinal, incorporar estudantes ou técnicos a um movimento com os anos e o tamanho do MST é diferente de incorporá-los em um pequeno movimento que está surgindo a partir de uma ocupação. Isso para não falar das diferenças das lutas pelas reformas agrária e urbana e dos objetivos e condições de acesso à terra e à moradia urbana, que afetam e colocam em situações diferentes um agrônomo sem-terra e um professor sem casa. Cabe destacar ainda, tanto no MST como também no MAB, a participação de filhos de camponeses que cursaram universidade e mantiveram ou retomaram os laços com o movimento, o que também é parte dessa experiência e novidade na interação entre movimentos e intelectuais. Além de tudo, o MST também pode ser considerado uma referência, se não pioneiro, em estimular a criação e o desenvolvimento de uma série de organizações próprias de “apoios”, como as redes de advogados populares, de educadores populares, núcleos de estudantes em apoio à reforma agrária etc. Isso, não obstante a experiência do MST e de outros movimentos da Via Campesina, pode ser visto como pioneirismo e parte da transição dessa reconfiguração nas formas de interação entre movimentos e intelectuais, que aparecem claramente através do MTST e de outros novíssimos MSUs.

Page 263: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

263

Nos anos 1970-80, a autonomia dos movimentos sociais era percebida,

sobretudo, pelo distanciamento ao Estado - espaço da dominação- e a partir da

dualidade entre Estado e sociedade civil - esta vista como espaço que permitia essa

organização autônoma (cf. Capítulo 2). Ao longo dos anos 1980-90, essa visão foi

sendo relativizada, porém, o enfoque enfatizado era a mudança da percepção com

relação ao Estado (que também se transformava). Essa nova forma de relação com

os intelectuais, vista principalmente na prática dos novíssimos movimentos dos anos

2000, e as recorrentes críticas aos partidos políticos (inclusive aos de esquerda), às

ONGs e instituições como a Igreja e as universidades, sugere uma significativa

mudança também na percepção sobre a sociedade civil, e particularmente sobre as

instituições organizadas dessa. Essa mudança seria o fundamento para a recusa em

se relacionar com essas instituições e base para a aposta em integrar aos

movimentos pessoas ou grupos de pessoas não organizadas em outros campos.

Segundo essa hipótese, a autonomia de um movimento estaria sendo mais

preservada quando estudantes ou técnicos (intelectuais) são incorporados a sua

estrutura, do que quando esse movimento estabelece relações e alianças com

partidos ou ONGs255.

Tanto a primeira forma de relação, baseada na experiência do MNLM, quanto

a segunda, na do MTST256, representam estratégias que, longe de negar a

autonomia, buscariam a construção de movimentos autônomos e um fazer-se

autônomo de classe.257 A própria importância conferida ao trabalho de formação

pelos e nos movimentos é um indício dessa busca. Pode-se, ainda, interrogar: a

255 Em alguns casos, a vinculação a um partido político pode ser motivo para a recusa em se ser aceito por determinados movimentos, mesmo que esse motivo não seja explicitado nem totalmente consciente. Basta um olhar sobre os movimentos para se perceber aqueles que, como o MNLM ou a CMP, têm militantes de diversos partidos (e, em consequência, as disputas e diversidades que essa participação proporciona) e outros movimentos nos quais não existe essa participação, disputas e diversidade. 256 As experiências dos “novos” MSUs influenciavam os novíssimos e as experiências dos novíssimos influenciavam os novos MSUs (cf. Capítulo I). Nesse caso das formas de interação com os intelectuais, também se percebe essa influência recíproca. Tanto os novíssimos MSUs mantinham relações com intelectuais organizados em seus campos próprios (universidades e ONGs), como também históricos movimentos, como o MNLM, incorporavam em suas estruturas estudantes ou técnicos. Caso, por exemplo, de C, que a partir do contato estabelecido com o MNLM quando era estagiária da Defensoria Pública, terminou por se incorporar ao Movimento e tornou-se uma das principais militantes do MNLM no Rio. 257 Mesmo que os intelectuais que se relacionam com os MSUs fossem considerados de uma outra classe, poder-se-ia argumentar que classes sociais só existem em relação a outras classes, com as quais interagem, se aliam ou lutam. Classe autônoma, então, seria a que se relaciona com as outras

Page 264: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

264

expectativa de maior protagonismo no trabalho de formação e a busca por formas de

se relacionar com os intelectuais que sejam menos dependentes de outros

mediadores, não expressaria e reforçaria a hipótese dos MSUs serem/tornarem-se

“a” forma de organização de um segmento específico dos trabalhadores, que fazem

dos MSUs seu movimento social, sindicato, ONG e partido político?

Todas essas são experiências que expressam a reconfiguração da questão

da autonomia entre os movimentos sociais (e também da percepção sobre o Estado

e a sociedade civil). Nessa nova configuração, a origem de classe e a posição que

determinada pessoa (detentora de capital simbólico/cultural) ocupa no mercado de

trabalho e no campo intelectual, parecem menos importantes do que as relações

políticas e os vínculos sociais ou institucionais dessa pessoa258. Além do mais, em

muitos dos casos nos quais pessoas detentoras de capital simbólico/cultural são

incorporadas aos movimentos sociais, essas pessoas seriam de outra classe? Ou

seriam de outro segmento dos trabalhadores (Miagusko fala em uma “classe média

empobrecida”, Gohn em “pessoas de grupos sociais distintos dos demandatários”)?

Segundo esses autores e conforme o que foi visto nesta pesquisa de campo, na

maioria dos casos seriam, sim, de outra fração mais intelectualizada da classe

trabalhadora, fração que estaria realizando, também através dessas práticas e

relações, o seu fazer-se.

A partir da tentativa de entender as diferentes estratégias dos MSUs em suas

relações com os intelectuais e como esses movimentos aproveitam a formação para

diversos objetivos, pode-se questionar a visão que costuma ver os movimentos

sociais sendo “usados” por ONGs ou por intelectuais e seus grupos políticos. Os “de

baixo” seriam sempre “massa de manobra”, influenciados e dirigidos por agentes

externos? Mesmo que, por vezes, isso de fato aconteça, compreender as estratégias

dos movimentos e as formas através das quais eles “usam” as ONGs, os grupos

universitários e os intelectuais é uma maneira de reconhecê-los como sujeitos

políticos e, ao mesmo tempo, iluminar como esses movimentos percebem e

a partir de uma elaboração própria sobre a sociedade, conforme seus próprios interesses e experiência, e não uma classe em isolamento. (cf. Capítulo II) 258 Se militantes e analistas dos anos 1980, ao enfatizarem noções como de autonomia frente ao Estado, estavam indagando “os significados que esses movimentos assumiram e que construíram, naquilo que foi tomado (e vivido) como o seu real”, e se essa seria “uma forma de elucidar a experiência de uma época” (TELLES, 1987, p. 81), agora, para iluminar esses movimentos em uma nova época, também cabe indagar sobre os significados que os MSUs nos anos 2000 conferem à questão da autonomia e da relação com os intelectuais.

Page 265: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

265

significam, nos anos 2000, a questão da autonomia e o processo de fazer-se da

classe.

Voltando a Manoel Congo, percebe-se que além das políticas de geração de

trabalho e renda, de educação e formação, questões relativas ao sentimento de

segurança proporcionado pela organização da ocupação também eram

consideradas muito importantes pelos ocupantes. Esse tema apareceu em diversas

falas. Segundo N:

Mudou muita coisa. Até a saúde do meu marido, que ele não tinha. Ele hoje conversa comigo, ele diz que lá ele pensava muito nas crianças, que eles estavam soltos na rua. Aqui, ele fica despreocupado, eles vivem aqui dentro, estão estudando, não tem perigo. (...) todo mundo se organiza. Tem os porteiros, que não deixam os de menor sair, tem regras, né, pros de menor não saírem

pra rua. Então, não tem perigo nenhum.259

N conta que sofria com a violência: “Eu tinha meus filhos lá, e eles iam à

escola. Mas eu tinha medo, né, porque tem as milícias lá”. R também citava a

questão da segurança como uma das mais importantes mudanças que a vida na

Manoel Congo proporcionou:

A gente morava de aluguel. Eu morava num quartinho que era só o quartinho e o banheiro, e o tráfico era na porta da minha casa. Então, muitas vezes eu tinha que ficar com a porta fechada mesmo, porque se a porta ficasse só encostada... Duas ou três vezes, chegou a cair traficante com arma na mão pra dentro da minha casa, entrando pela porta. Era uma situação muito difícil, com as duas crianças (...) as crianças vão crescendo e vão vendo aquela movimentação, e eles não acham feia! A realidade é essa, é dura e crua, mas eles não acham essa realidade feia. Eles se acostumam com aquilo, e eles acham bonito. (...) Então, hoje, eu me vejo aliviada em ter saído de lá. Não pelas pessoas que moram lá, porque são pessoas normais, como eu, como muitas outras pessoas.260

Conforme o que foi visto, a Ocupação Manoel Congo é uma experiência

efetivada por trabalhadores pobres, de conquista de um espaço de moradia, mas

também de geração de trabalho e renda, de educação, de formação política. Espaço

no qual se encontram e interagem diversos movimentos representativos de

diferentes lutas e segmentos dos trabalhadores. Espaço onde há regras e divisão de

259 N é mãe de dez filhos, seis dos quais moram com ela na Manoel Congo desde a ocupação e despejo do Cine Vitória. Ela concedeu essa entrevista em 10 de outubro de 2010. 260 R é mãe de dois filhos e com o marido integra a Ocupação desde a ação no Cine Vitória. Entrevista também concedida em 10 de outubro de 2010.

Page 266: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

266

tarefas, que foram decididas por todos e que garantem segurança, uma divisão

considerada pelos moradores como justa e democrática do espaço e boas condições

de moradia e de uso das muitas partes comuns para todos. Um prédio coberto de

bandeiras do MNLM no Centro do Rio de Janeiro, como que lembrando a todos que

por ali passam sobre a desigualdade social e sobre o problema da habitação. E

lembrando também que existem pessoas e movimentos dispostos a, com a luta

coletiva, enfrentar esse problema e construir novas experiências comuns nas quais

os trabalhadores pobres são protagonistas.

4.1.3 Dinâmicas contraditórias em disputa na vida do grupo e do movimento

A partir de 2007, após ocuparem o antigo prédio do INSS, o MNLM-RJ e os

moradores da Manoel Congo deram início a intensas e recorrentes batalhas pela

conquista, regularização e reforma do prédio. A primeira batalha, para evitar o

despejo e garantir a conquista do prédio para moradia, foi ganha após cerca de três

anos de muitas manifestações, reuniões, pressões e articulações no Rio e em

Brasília, em gabinetes, conferências etc. Mas as teias burocráticas do Estado são

complexas. A cessão do prédio para moradia não significava ainda sua

regularização, condição essencial para que pudessem ser liberadas as verbas para

a reforma. Isso, por sua vez era essencial para o andamento do convênio com a

Petrobras para colocar em pleno funcionamento a Casa de Samba Mariana Crioula,

convênio esse que demandava também uma série de negociações, estudos,

documentações.

Então, para que o processo de compra e venda do prédio entre diferentes

órgãos e níveis do governo fosse efetivado, e assim se pudesse encaminhar a

regularização e o início da reforma, foram cerca de mais três anos de muitas

manifestações em frente às sedes de secretarias do Governo Estadual, ocupações e

manifestações na Caixa Econômica Federal, pressão sobre diversos governantes no

Rio e em Brasília. Foram necessárias também novas negociações com técnicos e

políticos de diferentes níveis e órgãos de governo, além da elaboração de

minuciosos projetos de reforma, que dependiam da negociação com os apoiadores

do movimento e necessitavam de plantas que precisavam ser registradas para,

posteriormente, serem feitas novas negociações e adaptações para a

Page 267: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

267

reapresentação em novos prazos. Era necessário também a apresentação de todo o

tipo de documentos do MNLM e de cada morador da ocupação e, para isso, eram

feitas diversas solicitações, confecção de registros etc. Enfim, quando essa longa

batalha também parecia vencida, foram descobertos erros na publicação no Diário

Oficial sobre a licitação das obras, erros que não poderiam ser simplesmente

ignorados ou corrigidos porque os prazos foram vencidos e novos processos e

licitações deveriam ser reiniciados e refeitos, havendo ainda a necessidade do

devido encerramento dos anteriores, e da realização de novos relatórios técnicos, o

que poderia gerar disputas judiciais. Em consequência, encerravam-se também

alguns prazos previstos no convênio com a Petrobras para geração de trabalho e

renda, podendo acarretar na sua suspensão ou extinção, o que para ser evitado

precisaria de muitas novas negociações, readaptações etc. Manifestações,

pressões, andanças e negociações em todo tipo de gabinete, órgão e conselho de

todos os níveis e esferas do poder, com projetos e documentos em mãos e, após

voltas e voltas, mais voltas eram necessárias, mesmo que não se estivesse voltando

exatamente à estaca zero.

Essa descrição, longa, mas absolutamente sucinta se comparada a todo o

ocorrido, fala de anos e anos seguidos nos quais o MNLM-RJ e os moradores da

Manoel Congo vêm atuando, se submetendo, enfrentando ou transgredindo, aquelas

“práticas de poder” que “se revelam na imposição de um tempo burocrático para o

encaminhamento e solução das reivindicações” do qual falava Vera Telles. Tempo

ao qual o movimento se opunha com suas manifestações, mas que nem por isso

evitava as “andanças pelas burocracias do Estado, na reiterada procura por canais

competentes”, nem impedia “a demora para as respostas exigidas” e as “armadilhas

dos pareceres técnicos” ou se satisfazia com as “reivindicações não atendidas ou

atendidas parcialmente, etc”. (TELLES, 1987, p. 70-71)

A mesma autora, porém, fala também de escolhas e alternativas construídas

para imposição de um tempo político, através de ação e mobilização coletiva.

Segundo ela, essas ações e esse tempo político poderiam conformar uma dinâmica

contrária àquela do tempo burocrático e às “práticas de individualização e

particularização vindas do Estado”. Assim, se configuraria um “campo de conflito” no

qual os MSUs se estruturam “numa relação de permanente conteúdo de tensão

entre duas dinâmicas contraditórias”. (TELLES, 1987, p. 71-72) Na tentativa de

Page 268: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

268

compreender o processo de luta do MNLM-RJ e dos moradores da Manoel Congo a

partir dessa contribuição de Telles, algumas observações devem ser feitas.

A primeira é que as ações e manifestações coletivas, quando ligadas

especificamente à luta pela regularização e reforma da Manoel Congo, se inseriam

dentro daquele campo de conflito. Por isso, tendiam a se adaptar aos problemas e

questões impostas pelo Estado - por mais que servissem para se contrapor àquela

dinâmica burocrática do Estado, e assim impedissem uma maior individualização e

particularização nos desdobramentos de todo o processo e na busca por soluções.

Como consequência, essas lutas e mobilizações específicas não pareciam

suficientes para que o movimento não se tornasse presa de uma lógica que não é a

sua, mesmo que conseguissem evitar alguns efeitos mais perversos dessa lógica.

Além disso, para que o MNLM-RJ e os moradores da ocupação não viessem a

estabelecer uma prática meramente comunitária, reproduzindo uma visão

corporativista da luta por moradia, seria necessário que suas ações e manifestações

coletivas expressassem uma luta maior do que aquela mais exclusiva (mesmo que

muito representativa e carregada de significados mais amplos) em favor de questões

específicas dessa ocupação e das imposições do Estado sobre ela.

A segunda observação é que, durante os anos que se seguiram à Ocupação,

o MNLM-RJ e os moradores da Manoel Congo tiveram uma experiência política que

não pode ser resumida às lutas e andanças pela burocracia do Estado para

conquistar a regularização e reforma do prédio ocupado. Decisões coletivas sobre o

funcionamento do prédio e regras de convivência aprovadas em assembleias,

formas alternativas de geração de trabalho e renda, mudanças na educação e no

tratamento com as crianças e adolescentes, cursos de formação, atividades culturais

e o permanente contato com diversos movimentos, grupos e pessoas ligadas à

diferentes tradições de luta e da esquerda fizeram parte dessa experiência que, sem

dúvida, é mais rica e qualitativamente diferente do que a mera luta corporativa pela

moradia.

Não obstante essa constatação sobre as experiências proporcionadas pelas

políticas “mais internas” desenvolvidas na Manoel Congo, a participação do

Movimento e dos moradores da Ocupação em outras lutas, que não digam respeito

apenas aos interesses daquele grupo específico, parece ser um elemento

importante para o desenvolvimento de uma experiência e consciência que superem

Page 269: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

269

o comunitarismo corporativo e favoreçam uma identidade de classe. De forma mais

ou menos elaborada, essa percepção aparece implicitamente quando R dizia “eu

acredito que, como a nossa luta é uma luta importante, faz com que a gente esteja

participando de mais cursos pra estar mais preparado”.261 E aparece sob outra forma

na análise de Iasi (2006), quando afirma que:

O que segue depende da natureza do grupo em que as pessoas estão inseridas e da qualidade da contradição (...) Quando esta ameaça é apenas aquela que fere e se confronta com um interesse particularizado (...) produz-se um grupo cuja consciência corresponde ao limite de sua própria abrangência” (IASI, 2006, p. 305).

Quando R falava em “uma luta importante”, ela se referia à luta pela moradia,

pela reforma urbana. Portanto, uma luta que se insere em uma contradição maior do

que um mero interesse particularizado daquele grupo específico de moradores da

Ocupação. E a fala de R não expressava apenas a repetição de um discurso do

MNLM, mas também sua efetiva participação em outras lutas que não se restringiam

às demandas específicas da ocupação. Registra-se que R é uma das mais ativas

moradoras da Manoel Congo, que mesmo sem nenhuma experiência política

anterior, se envolveu com o movimento e tornou-se de fato uma militante. Mas é

verdade também que essa não é uma condição exclusiva de R, e que muitos outros

moradores da Manoel Congo, em maior ou menor grau, passaram a participar de

diferentes atividades e lutas do MNLM ou apoiadas pelo Movimento e seus aliados.

Para efeito de análise, essas lutas de que R e tantos outros moradores da

Manoel Congo vinham participando podem ser divididas, conforme o grau de

especificidade que expressam, em quatro grandes grupos: a) Lutas relacionadas à

realização de novas ocupações pelo próprio MNLM-RJ; b) Lutas contra as remoções

e por políticas populares de moradia; c) Outras lutas ligadas à cidade e ao ideal da

reforma urbana (incluindo desde a melhoria nos transportes, ao direito ao trabalho

na rua de camelôs e ambulantes até a não privatização de bens e serviços urbanos

e o enfrentamento aos megaeventos) d) Lutas gerais (contra a criminalização dos

pobres, contra a redução da maioridade penal, por reforma agrária, contra a

privatização do petróleo, contra a guerra no Oriente Médio, manifestações do Grito

261 Entrevista realizada com R em 10 de outubro de 2010.

Page 270: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

270

dos Excluídos, do Dia Internacional dos Trabalhadores, das Mulheres, dos Direitos

Humanos etc).

O MNLM-RJ e boa parte dos moradores da Manoel Congo, entre 2007 e

2013, participaram, regularmente, desses quatro tipos de lutas e manifestações.

Poder-se-ia dizer que a participação nas lutas mais gerais, em conjunto com outros

segmentos dos trabalhadores, seria um indício de uma consciência mais ampla,

talvez de classe (ou, ao menos, indício da busca por parte do Movimento de ver

desenvolver essa consciência). Por sua recorrência, a participação nessas lutas

ajudava a criar laços de solidariedade entre os participantes do Movimento e

moradores da ocupação com outros movimentos e lutas dos trabalhadores. Ajudava

também a desenvolver um sentimento de identidade com outras lutas e movimentos,

além de possibilitar que se vivessem e acumulassem experiências comuns, por

exemplo, quanto ao processo de criminalização dos movimentos sociais ou sobre as

diferentes formas e táticas de luta de grupos e movimentos de tradições diversas.

Mas, nessas manifestações, costumava ser mais esporádico e menor (não apenas

numericamente, mas também qualitativamente) o envolvimento do Movimento e

seus militantes. Assim, mesmo reconhecendo a importância das experiências

acumuladas nessas lutas, ao compará-las com as lutas mais ligadas às temáticas

urbanas, se percebe que as lutas gerais, por mais que influenciassem, não

estruturavam o dia a dia dessas pessoas ou do MNLM-RJ.

Deve ser ressaltado que a participação do movimento em fóruns que

articulam lutas gerais, como a PMS-RJ, demonstrou potencial de influenciar o

MNLM-RJ e os moradores da Manoel Congo, o que se difere qualitativamente da

mera participação em manifestações gerais. Em primeiro lugar, há que se considerar

que o movimento também influenciava esses fóruns, e que muitas vezes as lutas

tidas como gerais pela PMS eram lutas urbanas. Em segundo lugar, deve-se lembrar

que através desses fóruns o movimento estabelecia relações políticas e de

confiança com outros movimentos e pessoas, e que essas relações eram acionadas

tanto para a organização de atividades mais internas da ocupação (ações culturais,

formação etc), quanto para a obtenção de apoio técnico, material ou político para as

lutas mais específicas da Ocupação e do MNLM. Por fim, ressalta-se que essas

relações criaram as condições para que a Manoel Congo se tornasse o lugar de

encontro e sociabilidade de diversos movimentos e grupos, favorecendo uma ampla

Page 271: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

271

troca e acúmulo de experiências e um significativo processo de politização para boa

parte dos moradores da Ocupação.

Novas ocupações do MNLM e lutas contra remoções, entre outras lutas

urbanas, por sua vez, tinham um profundo impacto em todos os aspectos políticos e

organizativos do movimento e para os moradores da Ocupação. Eram essas as lutas

e manifestações que estruturavam o dia a dia do movimento. Lutas que eram

discutidas por todos em assembleias, para as quais eram feitas reuniões dentro da

ocupação e diferentes ações de preparação por um longo tempo. Eram lutas que

modificavam a dinâmica do movimento e geravam aprendizados e experiências mais

duradouras e marcantes para os envolvidos. E essas lutas urbanas podem estar

inseridas e expressar o descontentamento com profundas contradições urbanas e

do próprio capitalismo (cf. Capítulo II), pois envolvem a questão do Estado, do fundo

público, da propriedade privada, o problema da habitação, a prestação de serviços

públicos e diferentes questões relacionadas à produção e ao uso da cidade,

algumas ligadas também ao direito ao trabalho. São lutas que mobilizam pessoas de

uma parcela determinada dos trabalhadores pobres, mas que se inserem em

contradições amplas, que atingem generalizadamente os trabalhadores e, como

visto nos atos do 1º de Maio ou nas manifestações de 2013, por vezes motivam

mobilizações gerais.

São essas lutas que permitem a um MSU como o MNLM-RJ se refundar ou

se reoxigenar. Permitem, por exemplo, que um grupo de militantes de determinado

movimento dobre ou triplique de tamanho (e aumente também sua experiência

política), a partir de uma nova ação, de uma nova ocupação. Ou que a luta pela

regularização e reforma de uma ocupação, com todas as marcas deixadas pela

imposição da dinâmica do tempo burocrático, seja contraposta por outra dinâmica,

própria do movimento e da luta coletiva. Afinal, realizada uma nova ocupação,

aquele documento ou projeto para reforma e o atraso por parte do Estado em

resolver essa ou aquela demanda, deixam de ser a contradição, problema ou

ameaça principal ao movimento e seus militantes.

Do mesmo modo, são essas lutas que interferem, e por vezes subvertem,

aquela dinâmica do grupo, como analisada por Iasi. Segundo ele: “Somente em

situações nas quais é possível a permanência mais prolongada da ação grupal,

mediante a transformação do grupo em fusão para o grupo jurado e daí até a

Page 272: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

272

organização passando pela fraternidade-terror, é que se produz na consciência um

salto de qualidade”. (IASI, 2006, p. 306) Pode-se dizer que essas características

eram percebidas na experiência da Manoel Congo e do MNLM-RJ e, até mesmo,

que esse seria um processo relativamente comum entre os MSUs que lutam por

moradia, promovem ações diretas de ocupação e depois se dedicam à gestão

dessas.

No caso do MNLM-RJ e do grupo que se formou com a Ocupação Manoel

Congo, foi visto um processo de “fusão”, resultado da “ação” que originou o grupo.

Surgiram entre os participantes os sentimentos de pertencimento a esse grupo e de

afetividade perante o coletivo, o MNLM e a algumas lideranças, estas constituídas

em porta-vozes do grupo - favorecendo tanto o processo de “se abrir” para novas

formas de ver a sociedade e de reelaborar suas próprias experiências, quanto

possibilitando ao grupo falar através de uma única voz. E foi desenvolvido também

entre aquelas pessoas, em algum grau, o sentimento de tornarem-se sujeitos sociais

que coletivamente poderiam mudar (ao menos em alguns aspectos) a realidade

social.

Esse grupo fez seu “juramento”, ao constituir uma carta de princípios para

nortear suas ações e ao estabelecer uma forma de organização e de decisão

coletiva para seu contínuo funcionamento. Também se uniu e reagiu às ameaças

externas, sobretudo nos primeiros anos da ocupação, quando o espectro do despejo

ainda era muito presente. Reagiu também às ameaças internas e à instalação de

processos semelhantes aos descritos por Iasi como de “fraternidade-terror” aos

“dissidentes”, contra moradores que se negavam a respeitar decisões coletivas, que

não aceitavam as regras e divisão de tarefas, ou que não se submetiam ao conjunto

de valores e práticas do Movimento e cometiam atos considerados inaceitáveis – por

exemplo, atos de violência doméstica, tentativas de uso indevido do espaço ou o

desrespeito às normas de convivência.262 E foi visto ainda que o grupo se tornou

262 A necessidade de se adequar às regras e participar dos espaços de decisões coletivas de uma ocupação organizada costuma gerar tensões. No geral, quanto mais organizada a ocupação, mais regras e espaços coletivos de decisão existem, e maior é a cobrança pela aplicação dessas regras e participação nesses espaços. Miagusko relata, por exemplo, o caso de uma família em São Paulo que participara de uma ocupação organizada pela qual estava conquistando sua casa, mas que preferia morar em uma ocupação não organizada (“local dos ‘acomodados’”) nas proximidades, mesmo vivendo sob uma profunda insegurança, para não ter que se submeter às “normas rígidas que havia na ‘gestão’ da outra ocupação”. (MIAGUSKO, 2012, p. 247) Na Manoel Congo, a necessidade, por exemplo, de se submeter às regras de horários (da portaria, de barulho etc), diversas vezes gerou

Page 273: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

273

uma “organização”, através da adesão de seus participantes (e da própria Ocupação

como expressão do coletivo que se formou) ao MNLM e, consequentemente, às

suas linhas políticas, palavras de ordem, objetivos e às suas estruturas organizativas

locais e nacionais.

A relação entre ocupações e movimentos sociais organizados é um tema que

desperta polêmicas. Alguns pesquisadores e militantes, partidários de uma

perspectiva mais “autonomista” ou de influência anarquista, consideram que essa

relação poderia gerar tensões ou mesmo inibir ou dificultar o desenvolvimento de

práticas mais democráticas e decisões mais horizontalizadas e autônomas nas

ocupações263. Mamari apresenta assim essa preocupação:

Ocupações articuladas a movimentos sociais podem ter regras ou emitir direcionamentos de maneira verticalizada, estando assim o comando da ocupação diretamente atrelado ao comando do movimento. Posições do movimento podem entrar em conflito com as práticas cotidianas dos grupos, o que pode ser positivo ou prejudicial ao próprio grupo”. (MAMARI, 2008, p. 51)

No caso da Ocupação Manoel Congo, a pesquisa de campo realizada aponta

mais no sentido inverso, da influência da Ocupação na construção de práticas mais

democráticas e menos verticalizadas no movimento social a ela ligado. Afinal,

constituída uma base social mais participativa e orgânica ao movimento, a política do

pequenas desavenças, que a não ser em casos extremos, normalmente nem eram levadas para as reuniões e discussões coletivas, mas se tornavam motivos de reclamações, fofocas, gerando implicâncias pessoalizadas, problemas políticos etc. Quando ouvidas essas histórias, tantas vezes em conversas informais na mesa de um bar, elas ganham contornos de indignação, misturam-se aos problemas políticos, se apoiam em críticas às hierarquias nas falas de uns, ou na falta de compromisso e participação na fala de outros. Percebe-se, refletindo sobre essa questão, que uma vida tão intensamente coletiva (encontrada em ocupações organizadas como a Manoel Congo) não é algo comum à cultura e forma de vida individualista do capitalismo, e que a transformação em direção a uma vida mais coletiva é complicada e gera reações. Percebe-se também que essa forma de vida mais coletiva, sempre que imposta, mesmo que pela decisão da maioria, gera desavenças e às vezes até dissidências. Negociação, generosidade, compreensão, compromisso, participação, fraternidade, igualdade, liberdade se tornam, então, temas de discussão em um processo de aprendizagem riquíssimo sobre “o que é” e “como é” a democracia direta, ou “democracia dos trabalhadores”, como falam alguns militantes dos MSUs. 263 Mamari expressa uma perspectiva política e teórica adotada, de forma mais ou menos rígida e com certa frequência por militantes, pesquisadores e “apoiadores” de MSUs, e que pode ser percebida quando ele diz: “Ocupações assumem uma perspectiva de movimentos sociais. Essas associam a luta pela moradia a outras lutas, tendo como meta a transformação da sociedade como um todo e o fim das desigualdades sociais. Tais movimentos, quando imbuídos de tendências autonomistas, chegam a pôr em xeque a própria estrutura democrática representativa da sociedade, acreditando fielmente que uma verdadeira emancipação perpassa a construção de sistemas de democracia direta. Pregam o voto nulo e negam-se, de modo geral, à articulação com partidos políticos. São defensores do poder popular como única alternativa viável à revolução”. (MAMARI, 2008, p. 49-50)

Page 274: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

274

MNLM passava a ser regularmente discutida em assembleias por essa base e,

assim, favoreciam-se processos decisórios mais horizontalizados. Por outro lado,

foram constatadas também tensões ou decisões que causavam desconforto àqueles

que não concordavam com a maioria, ou que eram vistas como impostas. No

entanto, não eram decisões do movimento social em contradição com decisões da

ocupação. Eram decisões coletivas, tomadas em assembleias, que se inscreviam

dentro das dificuldades daquele rico - mas nem por isso fácil - processo de

aprendizado sobre a vida coletiva e a democracia direta.

Registra-se ainda, que contradições entre instâncias nacionais e locais dos

movimentos sociais, por vezes, geram profundos atritos que podem envolver

também as ocupações e seus moradores. No Capítulo I, foi abordado o exemplo do

MTD-RJ e a cisão que deu origem ao MTD pela Base. No caso da Manoel Congo e

do MNLM-RJ, também existiam atritos que eram expressos, sobretudo, nas críticas

do MNLM-RJ ao “institucionalismo” da instância nacional do movimento. Toda

organização que atua em diferentes escalas corre o risco de ver se desenvolverem

contradições que expressam as diferentes experiências acumuladas entre os atores

que atuam nessas diferentes escalas. A realização da Ocupação Manoel Congo,

naquele período de paralisia do MNLM, parece ter contribuído para aumentar essa

contradição e diferença de experiências entre a organização estadual e a

nacional.264 A contradição percebida não era, então, entre ocupação e movimento

social. Era, principalmente, entre movimento local e ocupação de um lado, e

movimento social nacional de outro265.

Voltando à questão posta por Iasi, o salto de qualidade na consciência dos

participantes de um grupo se apresentaria “principalmente, na capacidade de

estabelecer vínculos de identificação não mais apenas presenciais, mas com

aqueles que se colocam em movimento contra uma ameaça maior e mais geral”

(IASI, 2006, p. 306). O estabelecimento de vínculos que extrapolavam aquele grupo

mais restrito de moradores da Ocupação também podia ser percebido entre os

264 A participação do MNLM-RJ na Plenária de Movimentos Sociais foi outra experiência que pode ter favorecido essa contradição entre instâncias local e nacional. Mais à frente esse tema será retomado, na reflexão sobre a PMS-RJ. 265 Essas contradições, no entanto, não chegaram a ameaçar com cisões o MNLM, o que se deve, provavelmente, à sua longa história, por ter militantes acostumados a enfrentar esses problemas, e por ser um movimento que aceita relativamente bem a diversidade e a disputa interna, organizando, por exemplo, militantes de diferentes grupos e partidos políticos.

Page 275: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

275

moradores da Manoel Congo: tanto no caso da juventude que queria se reunir

sempre com a presença de jovens de todas as ocupações e bases do MNLM-RJ,

quanto através da participação nas lutas e manifestações nacionais do MNLM.

Essas manifestações nacionais, normalmente realizadas em Brasília, demandavam

longos processos de preparação nos estados, necessidade de arrecadação de

recursos, divisão de tarefas entre os que viajam e os que ficam, e outras funções.

Suas pautas normalmente não respondiam especificamente a uma ou outra

ocupação, mas às questões gerais da política habitacional do Governo Federal,

projetos de lei ou medidas governamentais com impactos nas políticas urbanas ou

nas lutas dos MSUs, ou envolviam demandas, reclamações e negociações do

MNLM e/ou de outros MSUs em nível nacional.

A participação do MNLM-RJ e dos moradores da Manoel Congo nas lutas

contra as remoções no Rio de Janeiro é outra experiência que merece destaque

nesse processo de se “estabelecer vínculos de identificação” que extrapolariam o

grupo inicial surgido da ocupação. Foi visto no Capítulo I o destaque que a questão

das remoções teve entre as lutas urbanas cariocas a partir do fim do ciclo de

ocupações no Centro entre 2004 e 2008. Nesse período, o MNLM-RJ participou de

diversas lutas contra as remoções, se empenhando profundamente em algumas

dessas. Esse efetivo envolvimento em algumas lutas contra as remoções gerou uma

significativa experiência política para muitos moradores da Manoel Congo. Eles

participaram, por exemplo, de diversas reuniões e atividades (como a peça de teatro

feita pela juventude) no Canal do Anil e estiveram presentes em assembleias e nas

manifestações da Comunidade da Vila Autódromo. No Horto, assumiram a luta dos

moradores que compõem aquela comunidade residente dentro dos novos limites do

Parque do Jardim Botânico e que tem sido alvo de disputas judiciais e de duros

ataques na mídia empresarial, da Associação de Moradores do rico bairro vizinho e

de setores governamentais. Lá, os militantes do MNLM assumiram a frente da luta

em apoio à Associação dos Moradores do Horto, participando da resistência às

remoções, das manifestações, buscando apoios e a reabertura das negociações

com o Estado, também ajudando a dar publicidade a essa luta.

Não cabe aqui analisar os resultados dessas lutas nem a força emprestada

pelo MNLM a cada uma delas. Apenas registra-se que, em alguns casos, essa

participação e apoio foram decisivos para publicizar e atrair solidariedade para lutas

Page 276: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

276

que sofriam com o isolamento e a falta de compreensão, inclusive por parte de

outros movimentos e militantes da esquerda carioca.

Para a reflexão proposta nessa tese, interessa, principalmente, perceber que

a participação nessas lutas favorecia a politização daquele grupo de ocupantes (e do

próprio MNLM-RJ) e evitava a acomodação, tão comum após a conquista dos

objetivos iniciais e imediatos: a moradia. Propiciava também a atuação em lutas sem

qualquer relação com as demandas da Manoel Congo, atenuando o corporativismo

e o comunitarismo que a participação exclusiva nas lutas por interesses mais

específicos poderiam gerar. Dessa forma, reforçava aquela dinâmica política e

coletiva que se contrapõe à dinâmica do Estado, produzindo e partilhando

experiências que, de baixo para cima, influenciavam e conferiam sentido à militância

das pessoas daquele grupo. E colaborava também para a constituição de “vínculos

de identificação” mais gerais e para o reconhecimento de “ameaças” ou inimigos

também mais gerais, que incidiam sobre outros movimentos e lutas e que também

ameaçam ou podem vir a ameaçar o próprio Movimento e a Ocupação.

Se a participação nas lutas gerais e nas lutas urbanas poderiam ser indícios

da construção de uma consciência e identidade mais ampla; e se as lutas contra as

remoções propiciavam a constituição de marcantes experiências políticas,

resultando na mobilização do grupo por demandas que não eram as suas mais

específicas, a organização de novas ocupações pelo próprio movimento parece ser,

entre todas essas, a ação com maior potencial de mobilização e oxigenação do

Movimento.

No período de existência da Manoel Congo, o MNLM-RJ realizou uma nova

ocupação em um terreno vazio em Volta Redonda e incorporou ao movimento uma

antiga ocupação na Zona Norte carioca, que vivia ameaçada de despejo (cf.

Capítulo I). Essas duas novas ocupações fortaleceram o Movimento no âmbito

estadual, ajudaram para que novos militantes fossem formados e se incorporassem

à luta e às estruturas organizativas do MNLM e trouxeram novos problemas e

questões para o debate do Movimento. Assim, novas experiências foram produzidas

e partilhadas por um grupo maior de pessoas. Mas, nesse período, o investimento

político mais significativo do MNLM, e particularmente dos moradores da Manoel

Congo, foi na organização de um novo grupo de pessoas para realizar uma nova

ocupação no Centro do Rio de Janeiro: a Ocupação Mariana Crioula.

Page 277: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

277

A preparação para essa nova ocupação teve início logo após a ação que

originou a Manoel Congo. Já em 2008, um grupo de pessoas passou a se reunir

semanalmente na Manoel Congo, observando e discutindo aquela experiência com

os moradores da Ocupação e com o MNLM-RJ. O grupo cresceu e eles decidiram

que fariam uma nova ocupação, também no Centro. Passaram, aos poucos, a

participar do MNLM e das atividades e ações que o Movimento organizava ou se

fazia presente. Começaram também a discutir sua carta de princípios, que nortearia

a nova ocupação, a qual resolveram chamar de Mariana Crioula, na busca por

estabelecer laços de identidade com a Manoel Congo. Alguns se integraram ainda

aos cursos de formação junto com moradores da Manoel Congo e com militantes do

MNLM e de outros movimentos sociais cariocas. Quando, por alguma razão, foram

abertas “vagas” na Manoel Congo,266 essas foram, conforme decisão dos

moradores, ocupadas por famílias que estavam se organizando nesse grupo que

faria a nova ocupação do MNLM267.

Aqui, é preciso registrar a diferença da formação desse (novo) grupo para

aquele formado através da ação que deu origem à Manoel Congo. Nesse caso,

mesmo sem uma ação inicial que gerasse a fusão do grupo, ele se formava no seu

processo próprio de organização, mas também como resultado da experiência de

estar se reunindo constantemente dentro de uma ocupação, conhecendo de perto o

processo de organização daquele espaço, interagindo com pessoas que viviam o

sentimento de transformação de suas vidas e da realidade social, participando de

manifestações em defesa da Manoel Congo e de suas demandas. Além disso, o

grupo que se formou para realizar a nova ocupação (Mariana Crioula) estava se

juntando às lutas de um movimento já bastante ativo, que participava regularmente

de uma série de lutas e manifestações, que convivia com uma significativa rede de

266 Foram poucas as vagas “abertas” na Manoel Congo, provavelmente em função da sua rígida organização prévia. As que surgiram se deveram, normalmente, à desistência dos ocupantes (que arrumaram emprego em outro Estado, retornaram a sua terra natal etc) ou em função das desavenças políticas e a insatisfação com as regras e valores presentes na gestão da Ocupação. Nesses casos, alguns foram “convidados a se retirar”, e outros, desgastados ou contrariados, desistiram daquela vida coletiva tão rica em experiências e contradições. 267 Esse foi o caso, por exemplo, de J, que participava do grupo da nova ocupação quando tornou-se moradora da Manoel Congo, cerca de um ano depois de realizada a ocupação, em 2008. Ela ainda se sentia comprometida com a “nova ocupação” do Movimento: “Eu fiquei até hoje só que ainda tem as reuniões discutindo outra ocupação. Deu uma parada, mas agora retomou. E a ideia é fazer a transição. Quando for pra outra ocupação, ajuda a organizar lá. Junta gente com experiência num espaço com outros que estão começando”. (J, 10/10/2010)

Page 278: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

278

aliados e que coordenava um espaço político (a Manoel Congo) que possibilitava

uma integração que não era possível anteriormente.

Segundo essa experiência, a relação entre a formação de um grupo

contestatório e a ação é fundamental, mas não necessariamente segue aquela

ordem descrita por Iasi (uma ação que gera a fusão do grupo) e que foi observada

no caso do grupo que se formou com a Manoel Congo. No caso do grupo da

Mariana Crioula, esse foi se formando, vivenciando diversas experiências e, aos

poucos, se integrando em ações e lutas do MNLM-RJ e de seus aliados, indicando

que a constituição de um grupo ligado a um movimento social organizado (o que

poderia ser visto também como o crescimento de um grupo em parte já formado)

pode ser um processo mais complexo, com diferentes variáveis e que não segue

necessariamente aquela ordem (ou etapas) descrita por Iasi.

A data para a realização da ação que daria origem à Ocupação Mariana

Crioula por algumas vezes chegou a ser marcada e desmarcada. No entanto, em

meio a esse processo, o Governo Federal atendeu reinvindicação dos MSUs e criou

o Minha Casa Minha Vida Entidades – MCMVE (faceta específica do programa

federal MCMV, voltada a financiar a construção de moradias populares para a baixa

renda através de entidades como os MSUs, e não de empresas e prefeituras, como

é a regra geral do MCMV). Em negociação dos MSUs com o Governo, ficou

estabelecido, então, um número de empreendimentos e vagas que, através do

MCMVE, os movimentos poderiam realizar e preencher em diferentes estados da

federação. Entre essas vagas, algumas caberiam ao MNLM no Rio de Janeiro, que

por uma questão de “justiça e merecimento”, ofereceu-as para aquele grupo que

vinha se formando para a nova ocupação 268.

Isso gerou uma curiosa e contraditória experiência vivida pelo MNLM-RJ, que

pode dizer muito sobre a dinâmica da luta dos MSUs e sua relação com as ações do

Estado: Um grupo formado para realizar uma ação direta de ocupação que, incluído

em um programa governamental de habitação, conquistou (a promessa de) sua

268 No primeiro momento, esses empreendimentos atenderam principalmente aos quatro grandes e históricos movimentos nacionais: CONAM, UNMP, CMP e MNLM. Posteriormente, o MTST e outros movimentos articulados na Resistência Urbana, que como já foi visto realizaram uma campanha chamada “Minha Casa Minha Luta”, também começaram a conseguir incluir suas demandas (e ocupações) entre as que seriam atendidas pelo MCMV – Entidades. No Rio, na mesma época, a CMP-RJ e a UNMP-RJ também foram beneficiadas e, através desse programa, estão construindo conjuntamente o Quilombo Gamboa (cf. Capítulo I).

Page 279: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

279

moradia sem precisar realizar aquela ação direta. Grupo que depois ocupou o

espaço cedido ao Movimento para a construção das moradias populares (um grande

galpão abandonado e bastante danificado na Zona Portuária carioca), no qual

algumas famílias, de tão necessitadas, começaram a morar antes de o projeto

imobiliário sair do papel.269 Mesmo tendo realizado uma ocupação de caráter mais

simbólico do que de enfrentamento, tal grupo precisou começar a fazer seguidas

manifestações visando o andamento do projeto, que vivia parando ou atrasando em

função de obstáculos burocráticos e técnicos. Manifestações que se insurgiam

contra o próprio formato e regras do programa que os beneficiaria e que, apesar de

voltado para entidades, exigia, segundo o Movimento, condições típicas de projetos

empresariais.

Essa experiência demonstra como a ação do Estado pode influenciar nas

práticas dos MSUs. Demonstra também algumas respostas, entre as possíveis, que

os movimentos apresentam às ações do Estado. Nesse caso, um programa

governamental que poderia ser considerado uma conquista dos MSUs desmobilizou

uma ação direta que um dos movimentos beneficiados pelo programa estava

organizando. Essa desmobilização, porém, foi parcial, já que o MNLM e aquele

grupo formado para ocupar, acabaram por realizar, mesmo que de maneira um tanto

simbólica, aquela ocupação. Além disso, como que pulando uma “etapa” (a ação de

ocupação, ameaça de despejo etc), esse grupo foi obrigado a começar a se

manifestar para regularizar e reformar o espaço “cedido e ocupado”, sofrendo com o

“tempo burocrático do Estado” e com as “andanças” em busca dos “canais

competentes” entre as “armadilhas” dos documentos necessários, pareceres

técnicos e outros. A resposta do MNLM-RJ, tentando conferir um maior caráter de

luta à conquista desse espaço e os desdobramentos do processo da Ocupação

Mariana Crioula, evidenciam as contradições dessa luta e do campo de conflitos no

qual atuam os MSUs.

269 Eu participei de um debate com o MNLM na atividade comemorativa de Um Ano da “Ocupação” Mariana Crioula, realizado no galpão destinado ao empreendimento imobiliário do MCMVE (que prevê também a construção de um auditório, espaço para educação e lazer para os moradores e um restaurante popular para gerar trabalho e renda). Nesse dia de festa, vivi a curiosa situação de estar em uma ocupação de um espaço cedido, onde moravam apenas algumas poucas famílias entre as muitas que “ocuparam” o espaço, e de estar comemorando um ano de uma ocupação para a qual ainda faltavam muitos anos para ser efetivamente concretizada.

Page 280: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

280

Quanto aos moradores da Manoel Congo, se pode dizer que todas essas

diferentes ações, lutas mais específicas ou gerais, atividades, encontros e os

sentimentos gerados por todo esse processo de organização e luta coletiva

produziram, em maior ou menor grau, experiências que mudaram a vida daquelas

pessoas. “Mudou muita coisa”, “mudou totalmente minha vida”, “mudou tudo” ou

“mudou muito, muito mesmo”, foram expressões ouvidas corriqueiramente nas

conversas com os moradores da ocupação e nas entrevistas realizadas:

A nossa vida é totalmente diferente aqui. Mudou muito, muito mesmo. E não mudou só porque eu consegui sair de lá, não, ou porque consegui sair do aluguel. Hoje a minha forma de pensar é totalmente diferente. Aqui eu aprendi outros valores.270 As casas do PAC o governo faz, mas ele não quer saber daí pra frente. (...) Eles vêm, botam num lugar, mas ali não tem organização, não tem uma conduta, não tem um princípio. E cada um vive do jeito que quer viver. Aqui não, a gente tem uma carta de princípios, a gente procura estar enquadrado dentro da carta de princípios, que é o que rege o Movimento Nacional de Luta por Moradia. (...) Aqui a gente está pronto pra levar pra rua, pra denunciar as especulações, tudo. Também essa parte, porque o nosso intuito não é só morar. É fazer também as denúncias de tudo que está mal. Não é só ter uma casa melhor, é uma vida melhor.271

Os moradores relatam mudanças pontuais, relacionadas diretamente com a

conquista da moradia e a sua localização, embora as falas dos moradores apontem

a organização da Ocupação como fundamental também nesses casos, por exemplo,

ligados à segurança e educação. Mas, o mais constante nessas falas era a

afirmação da mudança de si mesmo, de sua visão do mundo. “Aprendi outros

valores”, “fazer as denúncias de tudo que está mal” são exemplos de falas que

expressavam essa percepção de mudança e que indicam que a luta coletiva passou

a ser vista como o caminho para essas mudanças.

A reflexão sobre a experiência da Manoel Congo mostra como aquela análise

de Telles (1987) sobre o campo de conflitos no qual estão inseridos os MSUs é

muito útil para o entendimento dessas lutas. A diversidade e complexidade das

experiências vividas pelos moradores da Ocupação e pelos militantes do MNLM-RJ

indicam, porém, que essa chave de leitura não é suficiente, e que reduzir a reflexão

270 Entrevista concedida por R, em 10 de outubro de 2010. 271 Entrevista concedida por J, em 10 de outubro de 2010.

Page 281: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

281

àquele embate com o Estado não dá conta da multiplicidade de fatores presentes

nas experiências dos MSUs que ocupam e gerem as ocupações. A gestão da

ocupação, a participação em outras lutas e a relação com outros movimentos são

fatores também fundamentais para se entender o funcionamento dos MSUs e suas

respostas às contradições do campo de conflito no qual estão inseridos e à

conjuntura na qual os movimentos agem e se desenvolvem.

A experiência da Manoel Congo reforça também a hipótese de que os MSUs

se tornam “a” forma de organização dos seus participantes. Segundo essa hipótese,

a maioria dos participantes dos MSUs (trabalhadores pobres com empregos

precários e instáveis que não participam de sindicatos nem de outras formas de

organização política), fazia do MSU mais do que um movimento urbano, mas

também o seu sindicato, ONG e partido político.

A primeira consequência dos MSUs serem entendidos como “a” forma de

organização dos seus participantes é reforçar os questionamentos sobre a tese da

funcionalidade para o capital da divisão dos trabalhadores em duas lutas

independentes, uma no local de trabalho e outra no de viver (HARVEY, 1982), uma

organizada em sindicatos e outra em MSUs. As experiências examinadas sugerem

que os trabalhadores pobres, mobilizados inicialmente para lutar por moradia, fazem

do MSU o espaço no qual discutem também os seus problemas no trabalho, as

opressões e discriminações que sentem, sofrem etc. Consequentemente, através

desses movimentos, suas experiências e lutas, uma parcela dos trabalhadores se

constituiria como sujeito político. Nesse caso, os MSUs e as lutas urbanas estariam

colaborando, como nenhum outro movimento ou luta, para o fazer-se de uma fração

de classe representativa desse segmento dos trabalhadores.

A segunda consequência é relativa aos MSUs passarem a discutir problemas

políticos e sociais mais gerais, abrangendo inclusive questões eleitorais e a defesa

do socialismo. Isso indica estar ocorrendo uma ressignificação das fronteiras que os

militantes políticos costumavam ver entre movimentos sociais e partidos políticos -

fronteiras entre organizações de massa e organizações de vanguarda, entre lutas

econômicas e lutas políticas, entre lutas específicas e lutas gerais. Como

decorrência, militantes e movimentos tendem a conferir um protagonismo cada vez

maior aos movimentos sociais, tanto nas relações com os partidos políticos, quanto

na atuação em espaços de articulação como a PMS-RJ. Também em decorrência

Page 282: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

282

dessa ressignificação, muitos militantes dos MSUs, inclusive aqueles filiados a

partidos, estariam associando os partidos políticos exclusivamente (ou quase) às

disputas institucionais e eleitorais. Referências e decisões políticas, sobre quaisquer

temas ou lutas, exceto os institucionais e eleitorais, se apoiariam, então, unicamente

(ou quase exclusivamente) nas experiências, práticas e discussões travadas nos

MSUs.

A reconfiguração da questão da autonomia também impulsionaria e seria

impulsionada por essa ressignificação das fronteiras entre movimentos e partidos.

Nos anos 1970-1980, o debate sobre autonomia era focado na relação entre

movimentos e Estado (cf. Capítulo II). Para muitos militantes e apoiadores dos

MSUs, e com mais intensidade ainda entre os dos novíssimos movimentos, esse

foco se ampliou nos anos 2000, envolvendo a relação com os partidos políticos,

ONGs e outras formas de organização da sociedade civil.

As experiências e a dinâmica de funcionamento de um MSU e do coletivo

formado através de uma ocupação, como no caso do MNLM-RJ e da Manoel Congo,

mostra também a presença de muitos elementos daquela análise feita por Iasi sobre

a importância do grupo no processo de transformação da consciência. Porém, indica

que os diferentes momentos descritos por Iasi (ação, fusão, juramento, organização,

institucionalização, fusão em classe...) são meras possibilidades. Não são etapas

que se sucedem no tempo, mas processos que, quando ocorrem, se sobrepõem,

como dinâmicas que atuam constante e permanentemente, às vezes exercendo

influências contraditórias.

Esse entendimento se contrapõe à circularidade que estabelece a

institucionalização e o retorno à “serialidade” (alienação) como ciclo obrigatório de

um grupo contestatório.272 E permite evitar também que a contraposição a essa

circularidade seja uma forma de linearidade (etapas indispensáveis ao

272 Lopes de Souza analisa essa questão a partir da dicotomia entre mobilização e desmobilização e conforme o atendimento pelo Estado de determinadas reivindicações, chamando de “pessimista” as interpretações que apontam um “ciclo de vida” para as lutas e movimentos urbanos. Ele diz: “Essa interpretação pessimista vem sendo contestada, e há provas empíricas de que nem sempre é ou precisa ser assim”. Segundo esse autor: “A literatura especializada registra casos de movimentos sociais urbanos (por exemplo, dos sem-teto), em várias partes do mundo, que têm conseguido, ao longo de muitos anos, não sucumbir aos ‘momentos de sucesso’ (ou seja, de atendimento, ainda que parcial, de suas reivindicações por parte do Estado). Estes movimentos também têm conseguido resistir à cooptação e à ‘domesticação’, às vezes sabendo combinar estratégias mais institucionais (diálogo com o Estado) com práticas de luta e ‘ação direta’ (ocupações, protestos etc).” (LOPES DE SOUZA, 2004, p. 94 e 95)

Page 283: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

283

desenvolvimento do grupo que permitiriam um novo salto de qualidade da

consciência e a fusão do grupo em classe).273 Afinal, experiências e dinâmicas que

parecem favorecer a institucionalização convivem, nos MSUs, com outras que

favorecem as práticas e identidades de classe. E se classes são “grupos sempre em

ascensão ou declínio, sua consciência de identidade de classe é incandescente ou

escassamente visível” e, assim, “a linha de classe é constantemente desenhada e

redesenhada, nesta ou naquela direção”. (THOMPSON, 2001, p. 170-171) O fazer-

se da classe trabalhadora é um processo cheio de contradições, com idas e voltas,

tensões e influências opostas e contraditórias que se insurgem tanto contra as

circularidades como contra as linearidades.

Por fim, cabe lembrar que a experiência da Manoel Congo e do MNLM-RJ é

marcada por uma série de particularidades: uma ocupação com alto nível de

organização, ligada a um histórico movimento nacional, realizada em um contexto

político que contribuiu para sua grande repercussão, para obtenção de apoios e para

outros aspectos. Se essas são singularidades que, por um lado, ajudam a

compreender um sujeito e um processo histórico determinado, por outro lado

indicam o quanto há também de universal nessa experiência: uma ocupação ligada

a um movimento social organizado, composta por trabalhadores pobres com

vínculos instáveis de emprego e sem acesso à organização sindical, e que fazem

desse movimento “a” sua forma de organização. Uma ocupação realizada no Centro

da cidade, marcada pelas opções políticas de ocupar para morar e de gerir a

ocupação, e por uma gestão coletiva que objetiva transformar a vida e a consciência

das pessoas, através da luta, da organização interna, das políticas culturais, de

trabalho e renda, educação, formação, experiências de democracia direta etc.

Todas essas características, mais particulares ou mais universais, podem ser

encontradas, em diferentes medidas e combinações, entre os MSUs que lutam por

moradia nos anos 2000. São características que se desenvolveram e se

disseminaram a partir de experiências diversas e que, de alguma maneira,

273 No entanto, como já visto, Iasi afirma também que: “O grupo vive permanentemente uma tensão entre o caminho aberto pelo grupo em fusão no sentido da totalização e a ameaça de se dissolver novamente na serialidade” (p. 288-289). No entanto, ele afirma também que: “Somente em situações nas quais é possível a permanência mais prolongada da ação grupal, mediante a transformação do grupo em fusão para o grupo jurado e daí até a organização passando pela fraternidade-terror, é que se produz na consciência um salto de qualidade”. (IASI, 2006, p. 306)

Page 284: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

284

influenciam os MSUs. No caso examinado, foi vista a influência das experiências dos

novos movimentos sociais nascidos nos anos 1980, mas também a grande influência

dos novíssimos movimentos dos anos 2000 e, até mesmo, traços ligados à

experiência do MST.

Algumas novas questões foram postas para análise, como a “questão” do

Centro e a afirmação (através da autoproclamação, de propostas ou com as

tentativas de distinção) dos MSUs serem movimentos que organizam os

trabalhadores pobres, aqueles que mais precisam lutar. Surgiram novas formas de

nomeação (como sem-tetos), novas formas de se relacionar com os intelectuais,

além de novos olhares sobre formas tradicionais de luta (como ocupações que não

visam prioritariamente à moradia e à gestão). E tudo isso em meio à reconfiguração

de uma série de práticas e questões tidas como importantes na literatura sobre os

MSUs, como a relação com o Estado, a visão sobre a sociedade civil e a questão da

autonomia dos movimentos.

Reconfiguração de antigas questões e novas experiências em um contexto

muito diferente do vivido em décadas anteriores, em suma, as respostas políticas

encontradas pelos MSUs (novos e novíssimos) para atuarem como verdadeiras

toupeiras em busca de fissuras que ameacem o equilíbrio e as bases do modelo

neoliberal de cidade e o status-quo. Respostas que, como no caso da Manoel Congo

e do MNLM-RJ, mobilizam e organizam um número relativamente pequeno de

pessoas de uma parcela específica dos trabalhadores, mas que mantêm constante

troca de experiências e influências com outros movimentos e que incidem sobre

temas que atingem milhões, como comprovaram as manifestações de 2013.

São, todas essas, experiências que merecem registro e reflexão. São

experiências que ajudam a constituir um sujeito político e para o fazer-se de uma

fração da classe trabalhadora, aquela que participa das lutas urbanas e dos MSUs.

Ao mesmo tempo, segundo o que foi observado, pautavam temas centrais nas

articulações entre movimentos e manifestações gerais, influenciando e contribuindo

para mobilizações unitárias e, em alguma medida, para o fazer-se da classe

trabalhadora no Brasil nos anos 2000.

Page 285: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

285

4.2 PMS-RJ: experiências comuns, frações e classe

No primeiro Capítulo dessa tese foi visto que a Plenária de Movimentos

Sociais do Rio de Janeiro (PMS-RJ) era um espaço de encontro e articulação entre

diferentes movimentos sociais, entidades e grupos que atuavam no Rio de Janeiro.

Sem uma periodicidade determinada, a Plenária se reunia, normalmente, uma ou

duas vezes por mês. Nessas reuniões os participantes eram, em sua maioria,

representantes de: movimentos sociais rurais e urbanos; sindicatos; entidades

estudantis; partidos de esquerda e ONGs. A pauta das reuniões comportava sempre

um ponto de informes dos movimentos e entidades e das lutas sociais em curso. As

lutas que agregavam mais entidades e movimentos eram discutidas

pormenorizadamente e, muitas vezes, passavam a ser organizadas na própria

Plenária.

O objetivo desse fórum, conforme foi discutido em diversas oportunidades por

seus participantes, era potencializar e, quando possível, unificar as lutas sociais que

ocorriam no Rio de Janeiro. A organização de uma ampla rede de solidariedade

entre diversos movimentos e seus apoiadores e a realização de manifestações

conjuntas eram as formas mais relevantes de atuação dos movimentos a partir da

Plenária. Atividades como a organização do Fórum Social Urbano, em 2010, no Rio

de Janeiro e as manifestações de 1º de Maio nesses anos não poderiam ser

devidamente explicadas sem se conhecer a experiência da PMS274.

A PMS-RJ existe há cerca de sete anos (as primeiras reuniões foram em

junho de 2007). Nasceu como uma reunião para organizar uma manifestação (na

abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007). Como e por que razões essas

reuniões se tornaram permanentes? Como a conjuntura no Rio de Janeiro e dos

movimentos sociais influenciou nesse processo? Quem eram os principais atores

políticos e sujeitos sociais impulsionadores desse fórum? Qual a importância que a

forma de organização e funcionamento da Plenária teve para sua constituição e

desenvolvimento? Quais segmentos sociais estavam representados na PMS e quais

274 No Capítulo I foi realizada uma descrição geral da PMS, do seu funcionamento, dos seus participantes e lutas. Apresenta-se agora uma releitura menos descritiva, centrada em interrogar essa experiência a partir de questões que contribuam para iluminar as relações dos MSUs com outros movimentos e setores sociais e se essas relações e experiências seriam indícios ou influenciariam o processo de fazer-se da classe trabalhadora.

Page 286: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

286

não estavam? Essas são algumas das questões examinadas agora. Questões que

podem ajudar a iluminar os motivos que teriam levado tantos movimentos, entidades

e grupos a participarem intensamente desse fórum275.

O objetivo é registrar e refletir sobre essa experiência de articulação de

movimentos sociais e, ao mesmo tempo, tentar entender os significados e

consequências das ações dos MSUs nesse espaço. Seriam ações para conferir mais

visibilidade e centralidade às lutas urbanas e assim enfrentar a conjuntura de

fragmentação das lutas e movimentos sociais, potencializando o trabalho de toupeira

realizado nesses anos de refluxo das grandes mobilizações de massa? Essas ações

pretendiam fortalecer o conjunto das lutas sociais e tornar a correlação de forças na

sociedade mais favorável às lutas dos trabalhadores? Eram ações voltadas a

construir alianças e estimular identidades comuns e laços de solidariedade entre

diferentes movimentos e segmentos dos trabalhadores?

Para entender melhor essas ações e relações é preciso refletir sobre as

experiências acumuladas e partilhadas pelos participantes da PMS-RJ. Afinal, se

esse fórum teve tanta importância no desenrolar de várias lutas cariocas e

influenciou diversas atividades realizadas no Rio de Janeiro, se foi uma resposta

política coletiva para enfrentar a fragmentação e o refluxo das grandes mobilizações

de massa, caberia interrogar se essa experiência não foi também constitutiva de um

processo que indicaria caminhos possíveis para o fazer-se da classe trabalhadora

nos anos 2000.

4.2.1 Formação e funcionamento da PMS-RJ

O processo de construção da Plenária de Movimentos Sociais RJ teve início

em junho de 2007, como forma de organizar um ato unificado na abertura dos Jogos

Pan-americanos no Rio de Janeiro. Alguns movimentos e entidades lutavam contra

275 Como militante e, na época, pesquisador do Observatório dos Conflitos Urbanos ETTERN/IPPUR/UFRJ, acompanhei os primórdios da história da PMS, desde as primeiras reuniões para organização do “ato do PAN”. Posteriormente, sobretudo até 2011, acompanhei a maioria das reuniões e ações como parte da pesquisa de campo para essa tese. Examino aqui de maneira mais profunda, pois, o funcionamento da PMS-RJ entre 2007 e 2011, e por isso me refiro a essa experiência usando, normalmente, o tempo verbal no passado. Entre 2012 e 2014, a PMS continuou se reunindo e promovendo atividades e manifestações, mas viveu certo declínio de importância política, as reuniões passaram a ser menos frequentes e a reunir, na maioria das vezes, um número menor de movimentos e entidades.

Page 287: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

287

políticas governamentais implantadas em função dos jogos, outros buscavam o olhar

da mídia nacional e estrangeira voltado para o Rio como oportunidade para se

manifestar pelas mais diversas causas. Para realizar a manifestação no dia 13 de

julho, dia da abertura dos Jogos, foram realizadas algumas reuniões de organização.

Essas plenárias tiveram início em junho e ajudaram na organização de

manifestações que precederam o megaevento e de outras marcadas para depois do

encerramento. Uma lista com e-mails de todos os participantes daquelas reuniões foi

criada e, cada nova informação, reunião ou manifestação era prontamente divulgada

para todos.

Dezenas de movimentos e entidades participaram dessas reuniões. Muitas

foram também as divergências, por exemplo, sobre o panfleto do ato, sobre quem

falaria no carro de som etc. Uma comissão política foi formada para elaborar uma

proposta de panfleto e de programação de falas no ato.276 Nessas reuniões de

negociação, algumas questões que, em maior ou menor medida e conforme os

diferentes momentos políticos marcariam a história da PMS, já eram percebidas:

Quem deveria discursar nos momentos mais privilegiados da manifestação,

movimentos e entidades nacionais ou locais? O panfleto devia começar falando

sobre as consequências dos Jogos no Rio de Janeiro ou sobre a conjuntura nacional

e internacional? Parlamentares e representantes de ONGs falariam ou apenas os

movimentos sociais e os “atingidos pelo PAN” teriam direito à fala no carro de som?

Para escrever um texto crítico à organização dos jogos seria necessário criticar os

governos? Como criticar governos quando vários movimentos eram dirigidos por

militantes que apoiavam os governos, especialmente o Governo Lula?

276 O panfleto de convocação do ato era assinado pelos seguintes movimentos, entidades e grupos: ADUFF, ANDES-SN/RJ, AP, ASSIBGE-SN, Associação Nossa América, CEDAPS, CBLB, CMI-RJ, CMP, CONLUTAS, CP, CUT-RJ, FASE-RIO, FELRU, FLP, Fundação Bento Rubião, GTNM, IBASE, Frente Contra Remoção e Pela Moradia Digna, INTERSINDICAL, Justiça Global, LS/Nós não vamos pagar nada, Coletivo de Hip-Hop Lutarmada, Mandato Chico Alencar/PSOL, Mandato Eliomar Coelho/PSOL, Mandato Marcelo Freixo/PSOL, MNLM, Mov. Juventude Trabalhadora, Movimento Tamoio, MPL, MST, MUCA, NAJUP-RJ, NPC, Núcleo de Trabalhadores em Universidades/PSOL, PCB, PCdoB, PSTU, Rede Contra a Violência, RENAJORP, RENAP, SEPE, SINDSPREV-RJ, SINTRASEF, SINTUFF, SINTUFRJ, SINTUPERJ, União da Juventude Rebelião (UJR), UNMP e FOE-UNE. Registra-se que houve outros movimentos e grupos que também participaram daquelas plenárias, se envolveram na organização e estiveram presentes no ato e que não assinaram aquele panfleto.

Page 288: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

288

Foram muitas horas de reuniões nos dias que precederam o ato para que

fosse “fechado” um panfleto unitário e uma programação de falas. De alguma forma,

quase todos tiveram que abrir mão de algumas das suas formulações e propostas

para se chegar a um denominador mais comum. Mesmo assim, novas divergências

e discordâncias surgiram durante a manifestação que, como já visto, terminou

dividida (cf. Capítulo I).

Na reunião de avaliação do ato compareceu a maioria das entidades,

movimentos e grupos que participaram da organização. Aqueles que caminharam

em direção ao Maracanã criticaram muito a decisão do “comando” do ato de ir em

direção a Cinelândia. Alguns dos que foram em direção a Cinelândia criticavam os

que foram para o Maracanã pela divisão do ato. Mesmo em meio à tensão, a maioria

dos participantes da reunião avaliou que a divisão não foi um problema grave, mas

uma circunstância relativamente normal em uma manifestação organizada por

diferentes movimentos e que, como o trajeto não havia sido prévia e coletivamente

decidido, ninguém deveria ser culpado pelo ocorrido. Além disso, praticamente todos

os participantes da reunião avaliaram positivamente o processo de organização do

ato e disseram que aquelas plenárias foram uma boa experiência, e que deveriam

continuar ocorrendo reuniões daquele tipo. Uma nova plenária foi então marcada,

tendo como pauta, entre outras coisas, o ato contra a redução da maioridade penal

no dia 23 de julho de 2007. A experiência de organização desse novo ato começou,

então, a moldar as formas de funcionamento da Plenária.

O ato contra a redução da maioridade penal, no aniversário da Chacina da

Candelária, já vinha sendo organizado por entidades de luta por direitos humanos,

mas com a existência da Plenária, os organizadores levaram o assunto para

discussão nesse fórum. Foi uma experiência paradigmática de uma das formas

como a Plenária poderia colaborar com as lutas no Rio de Janeiro: os organizadores

passavam um “informe qualificado”277 (mais demorado e detalhado que os informes

gerais) sobre a atividade, depois a discussão era aberta para que todos pudessem

opinar, porém, nada era votado. A Plenária não era o fórum de decisão sobre aquela

manifestação, mas um espaço de divulgação ampliada e acúmulo da discussão. As

sugestões e propostas surgidas na Plenária eram levadas para as reuniões

específicas de organização desse ato, para as quais eram convidadas todas as

Page 289: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

289

entidades e movimentos presentes à PMS. Esse modelo de funcionamento tinha

como pressuposto que a Plenária era um espaço de articulação de lutas e

movimentos sociais, e não um espaço de decisão sobre as lutas ou uma nova

entidade geral em processo de criação.

O apoio dos diversos movimentos e militantes que participavam da PMS à

luta contra a remoção dos moradores do Canal do Anil (ao lado da Vila do PAN),

enfrentando a Guarda Municipal e a PM por três dias seguidos até que as

demolições fossem suspensas, foi muito importante para a resistência contra as

remoções e para fortalecer e disseminar a crítica ao modelo de cidade de negócios

que vinha sendo implantado no Rio de Janeiro. Todas as pessoas que participaram

ao menos uma vez das plenárias receberam o informe do ocorrido, com fotos, textos

etc. Essa vitória, em um período no qual a regra eram as derrotas, deu grande ânimo

à ideia de manter a Plenária de Movimentos Sociais como um fórum permanente. O

apoio articulado através da PMS ao MNLM e à Ocupação Manoel Congo também foi

fundamental para a vitória dessa ação direta e, ao mesmo tempo, reforçou a

centralidade das lutas urbanas naquela articulação e a visão de que aquela

experiência da PMS-RJ poderia ser exitosa e tinha significativo potencial político

para os movimentos e entidades envolvidas e para as lutas sociais cariocas.

A jornada pela educação, proposta pelo MST e encampada por diversos

movimentos, contribuiu para que parte do movimento estudantil também passasse a

participar regularmente das plenárias. A organização dessa jornada seguiu os

moldes da experiência do ato contra a redução da maioridade penal. A organização

do Grito dos Excluídos no dia 7 de setembro e o Plebiscito Popular sobre a anulação

da privatização da Vale entraram também na pauta da Plenária, ainda em 2007.

Principalmente no caso do Plebiscito da Vale, as formas de organização e ação

eram diferentes daquelas vistas, por exemplo, na manifestação de 23 de maio ou na

campanha pela educação, já que era na própria Plenária, e não em reuniões

específicas e paralelas, que se tomavam as decisões sobre essas atividades no Rio

de Janeiro.

Como fora no caso da manifestação na abertura do PAN, o Plebiscito da Vale

no Rio de Janeiro também foi todo organizado na PMS. Essa experiência ajudou a

consolidar uma segunda forma que viria a ser típica das ações a partir da PMS:

277 “Informe qualificado” foi o termo usado na Plenária para caracterizar essas situações.

Page 290: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

290

atividades e manifestações que tinham na PMS mais do que um espaço de

ampliação da divulgação e discussão, mas seu fórum de decisão. Nesses casos,

também respeitando aquela lógica de um espaço de articulação de lutas, as

entidades e movimentos que não quisessem aderir àquela iniciativa, não aderiam,

sem que isso implicasse em problemas para a PMS ou para o movimento. Evitava-

se a realização de votações e, quando ocorriam divergências mais significativas, a

PMS e seus instrumentos de divulgação expunham as diferentes propostas ou

atividades.278 Essa experiência viria a ser repetir, entre tantas outras vezes, na

organização das manifestações de 1º de Maio, na organização dos seminários e em

outros momentos. E essa experiência foi marcante também por estabelecer uma

forma de relação entre as escalas nacional e local dos movimentos e entre

movimentos locais e movimentos nacionais, que era diferente do que geralmente era

visto.

Com a PMS sendo o espaço no Rio de Janeiro no qual se articulavam as

campanhas ou manifestações nacionais que os movimentos participantes desse

fórum promoviam ou estavam envolvidos, essas campanhas e manifestações

passavam a ser decididas e encaminhadas também por um grupo maior de

movimentos e entidades. Essa diferença proporcionava que alguns pequenos

grupos e movimentos, de base local e/ou voltados para temáticas específicas, que

normalmente não estariam envolvidos diretamente na organização dessas

manifestações e campanhas, passassem a ter voz ativa nesses processos. Em

outros casos, grupos que não tinham uma maior afinidade política ou ideológica com

os movimentos proponentes de determinada iniciativa, também acabavam por se

envolver e participar.

Além da oportunidade de envolvimento maior dos pequenos grupos, o fato

dessas ações serem organizadas através da PMS-RJ favorecia que decisões locais

se contrapusessem a indicações nacionais, levando a que, às vezes, alguns

278 Um exemplo dessa forma de funcionamento foi a convocação de duas manifestações diferentes no 1º de Maio de 2009. Enquanto a grande maioria dos movimentos e entidades atuantes na Plenária organizou um protesto em Santa Cruz, contra a TKCSA, algumas entidades, ligadas principalmente à CONLUTAS, marcaram outra manifestação, no Centro da Cidade. As duas manifestações foram divulgadas no sítio virtual da PMS-RJ e no jornal impresso para o Dia Internacional dos Trabalhadores. Essa busca por soluções consensuais, mesmo em meio às divergências, por vezes gerou polêmicas, pois ao mesmo tempo em que a maioria elogiava essa disposição para trabalhar em unidade, também reconhecia que esse processo gerava demora nas decisões e dificuldades nos

Page 291: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

291

movimentos nacionais vivessem a contradição de suas instâncias no Rio de Janeiro

estarem comprometidas com propostas elaboradas na PMS-RJ, que eram diferentes

de suas posições nacionais. Outras vezes, as instâncias nacionais de alguns

movimentos promoviam atividades com parceiros que compunham arcos de alianças

diferentes daqueles construídos no Rio através da PMS, gerando contradições entre

as políticas nacional e local desses movimentos.279 O respeito e a vontade política

de levar à frente aquela experiência fazia com que esses movimentos assumissem,

na grande maioria das vezes, as formulações locais, ecoando, assim, a voz dos

movimentos do Rio de Janeiro nas articulações nacionais. A Plenária de Movimentos

Sociais começava, então, a se consolidar e a demarcar seu caráter de espaço de

articulação local de lutas e movimentos. Caráter polêmico, contraditório, mas que

serviu para aglutinar e articular ações tão importantes para os MSUs cariocas e suas

lutas.

Formalmente, a decisão de manter a Plenária de Movimentos Sociais como

um fórum permanente foi tomada em outubro de 2007. Uma plenária de avaliação

do ano de 2007 foi marcada (foi a 1ª reunião que teve como pauta a própria

Plenária). Essa reunião começou com a apresentação de um trabalho analítico sobre

a Plenária280. A receptividade dos participantes da Plenária ao trabalho foi muito

boa, todos concordando que aquelas reuniões, que começaram para a organização

do ato do PAN, tinham se transformado em um importante fórum para os

movimentos sociais no Rio Janeiro.

Após a apresentação do trabalho foi aberto aos cerca de 70 participantes o

debate sobre a avaliação do ano de 2007. As falas se seguiram elogiando a

experiência de organização daquela Plenária, ressaltando que a existência daquele

encaminhamentos. Mas, em consonância com a vontade política de construir aquele fórum de articulação de lutas e movimentos, essas formas de funcionamento se mantinham. 279 Essa contradição podia ser percebida, por exemplo, na participação do MST e da CMP na Coordenação de Movimentos Sociais (CMS) com a CUT a UNE e a UBES, em nível nacional, enquanto no Rio de Janeiro esses movimentos priorizavam a participação na PMS, compondo um arco de alianças bem diferente, mais amplo e, às vezes até mesmo concorrente. Em outros casos, eram os movimentos que participavam da Assembleia Popular (AP) ou do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) que viviam essa contradição. 280 “A Resistência que existe e resiste”. Trabalho de autoria de Bruno Lopes, Danielle Benedicto e Guilherme Marques, apresentado à XIII Semana de Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ, de 01 a 05 de outubro de 2007. No trabalho, os autores associavam a organização da PMS à resistência aos megaeventos e às políticas urbanas a esses relacionadas, que de diferentes maneiras atingiram vários segmentos sociais e diversos locais da cidade, sugerindo que lutas unitárias e a formação de redes de articulação entre movimentos seriam consequências possíveis e prováveis dessas lutas.

Page 292: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

292

fórum potencializou as lutas de todos os movimentos. Diziam que, para enfrentar os

desafios da conjuntura da época e frente ao inimigo comum representado pelo

modelo de cidade que vinha sendo implantado, aquela unidade era fundamental e

deveria ser mantida. Diversas falas resgataram a história recente dos movimentos

sociais no Rio e avaliaram que a divisão entre os movimentos prejudicava as lutas,

que várias tentativas de criação de fóruns para articulação de lutas já tinham sido

feitas, mas aquela (a PMS) era a que vinha conseguindo mais êxito. Como resultado

dessa avaliação, foi decidido que era necessário não só manter aquele fórum como

qualificá-lo. Com esse objetivo foi marcado um seminário da Plenária para março de

2008. Foi montada uma comissão organizadora para o seminário (de dois dias) e

definido que a pauta seria avaliação e construção da PMS e análise da conjuntura e

preparação para as lutas em 2008281.

Cabe destacar que, mesmo tendo havido concordância geral sobre o

processo de constituição da PMS a partir das reuniões de organização do ato do

PAN - quando foram apresentados os fatores antecedentes a essas reuniões que

mais teriam contribuído para o processo - o tema se tornava polêmico. Alguns

movimentos (especialmente os movimentos urbanos de base local) identificavam a

atividade comemorativa do 1º de Maio de 2007 na Vila do Pan como a experiência

antecedente mais significativa.282 Outros apresentavam o ato nacional realizado em

23 de maio de 2007 como o mais importante. Entre esses, alguns (especialmente as

centrais sindicais e partidos de esquerda) identificavam o Encontro Contra as

Reformas Neoliberais, ocorrido em 25 de março de 2007 em SP, como fundamental,

inclusive por ter marcado o ato de 23 de maio. Um terceiro grupo conferia mais

importância à experiência da Assembleia Popular (grupo composto principalmente

pelos movimentos que participavam mais ativamente da AP)283. Na verdade, por trás

281 Nos anos seguintes, outros seminários como esse de 2008 foram organizados pela PMS-RJ. 282 Esse grupo lembrava e se referia também ao fato de que, em abril de 2007, dias antes na manifestação de 1º de Maio, foi realizado o seminário “Cidade um Direito de Todas as Pessoas”, promovido por quase vinte movimentos e entidades, entre as quais o MST, a OAB, FAFERJ e a Frente Contra as Remoções, e do qual participaram representantes da CMP, do CP etc Durante o seminário, foi realizado um ato pelo direito à cidade, que envolveu temas e lutas relacionadas ao PAN, e houve também uma mesa de discussão exclusiva sobre o PAN e seus possíveis legados. A organização de um amplo ato crítico à organização do megaevento foi uma das deliberações do seminário, que identificou os legados como perversos para os setores mais pobres da população e apontou para a articulação de um grande número de movimentos em torno do debate sobre a cidade, como um entre os poucos possíveis legados positivos do PAN para os trabalhadores. 283 A AP ainda realizava reuniões naquele período quando a PMS estava se formando, porém, já vivia certo declínio, reunindo relativamente poucos movimentos e entidades.

Page 293: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

293

da identificação dos antecedentes que mais teriam contribuído para a formação da

PMS, estava uma disputa simbólica, uma disputa pela memória, pela história: estava

em disputa o “mito de origem” da Plenária284.

Ainda sobre a reunião de avaliação da Plenária, várias falas chamavam

atenção para o que foi denominado de “vontade de unidade”. Essas falas

ressaltavam que algumas das lutas ou campanhas realizadas no período não eram

ou não seriam consideradas prioritárias por suas entidades ou movimentos, se não

fosse pela vontade de construir aquela articulação285. O exemplo mais citado foi o

plebiscito popular sobre a anulação da privatização da Vale. Para muitos, esse tema

não seria central na conjuntura ou não era uma prioridade para o seu movimento,

mas, como unificava a grande maioria dos participantes da Plenária, resolveram

investir nessa campanha. Essas falas são uma importante pista para se entender a

construção da PMS-RJ e a aposta que os movimentos e grupos fizeram naquele

fórum.

A “aposta” na construção da PMS, compartilhada por muitos movimentos e

grupos, adquiria, para cada um, formas próprias, que se expressavam nas diferentes

estratégias para construção “da” PMS e para a atuação “na” Planária. Nem todas

essa diferenças, porém, eram transformadas em disputas políticas acirradas. Havia

diferenças, por exemplo, entre movimentos e grupos que defendiam ações mais

vanguardistas e os que defendiam ações mais massivas, entre aqueles que

defendiam um discurso mais oposicionista e, outros, menos oposicionista. Havia

também alguns que defendiam que a Plenária fosse mais “orgânica”, com comissões

funcionando regularmente e alguma forma de coordenação, enquanto outros

defendiam manter o caráter mais aberto, de espaço de articulação de movimentos.

Entre todas as percepções e estratégias em disputa sobre a forma de

construção da PMS, a questão que parecia mais marcante era aquela que

expressava as diferenças entre “grandes” e “pequenos” movimentos, e que, desde

as primeiras reuniões para organizar o ato na abertura do PAN 2007, já estavam

284 Para cada antecedente considerado mais importante, correspondiam também lutas, movimentos e grupos mais importantes (aqueles que estiveram à frente da organização de cada uma das citadas atividades). 285 Além das diversas experiências de articulação entre movimentos sociais vistas no Rio de Janeiro, anteriores e posteriores a PMS-RJ, a participação do MTST na CSP-CONLUTAS também pode ser considerada expressiva dessa “vontade de unidade” manifestada pelos movimentos sociais urbanos brasileiros.

Page 294: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

294

presentes.286 A distinção entre o que se poderia chamar de “grandes” e “pequenos”

movimentos se dava na PMS através das diferenças entre: movimentos nacionais e

locais; entre movimentos sindicais e os movimentos urbanos e estudantis; entre

movimentos e militantes “do morro” ou “da periferia” e militantes e movimentos “do

asfalto” e do núcleo central da cidade, dentre outras. Essas diferenças expressariam

a maior ou menor quantidade de capital econômico, cultural, político e simbólico

entre os movimentos e entidades que participavam da Plenária.

Uma observação atenta sugere que essa disputa na PMS adquiriu formas

próprias e complexas, afinal, o que estava em jogo era quem dirigiria quem, o que

pressuporia também, em alguma medida, o consentimento por parte daqueles que

viessem a ser dirigidos.287 Sendo assim, a contradição apareceria na intenção dos

pequenos de não serem dirigidos pelos grandes e dos grandes em dirigir os

pequenos.288 E, consequentemente, se os grandes fossem dirigir os pequenos, a

questão seria se o fariam em aliança ou disputando quem daria essa direção. A

observação sobre a experiência da PMS parece apontar, porém, para a costura de

uma aliança que subverteu a lógica da direção dos pequenos pelos grandes.

Dado que desde as primeiras reuniões a questão entre grandes e pequenos

ficou explícita e que os grandes movimentos, especialmente os nacionais, já se

reuniam com alguma constância em outros espaços, alguns atores importantes na

PMS perceberam que a novidade da experiência então em curso era exatamente a

participação de movimentos e entidades menores e, assim, a articulação entre lutas

locais e nacionais, específicas e gerais. Representantes da INTERSINDICAL, do

286 Essas diferenças apareciam, por exemplo, na relatada disputa por quem falaria nos momentos mais privilegiados da manifestação do PAN, se seriam os movimentos e entidades nacionais ou locais, se seriam os movimentos que organizavam os diretamente “atingidos pelo PAN” ou os partidos políticos e sindicatos, se o panfleto do ato começaria abordando a conjuntura nacional e internacional ou tratando das remoções e da política de segurança associadas ao megaevento etc. Posteriormente, a adesão (ou a forma de adesão) da PMS a lutas ou campanhas nacionais, tanto no caso citado do plebiscito da Vale, como de lutas contra a redução dos direitos trabalhistas, campanhas contra o pagamento das dívidas interna e externa, também costumavam ser questionadas. Pelo fato de essas lutas serem, normalmente, organizadas em reuniões nacionais e, segundo os movimentos com menor articulação nacional, “chegarem prontas” no Rio, ou por serem relativas a temas que diriam respeito apenas a segmentos específicos dos trabalhadores, alguns militantes achavam que não deveriam ser prioridades na PMS. 287 A PMS não tinha autonomia, dinheiro ou recursos próprios, nem uma representação própria. Não era, pois, um espaço com poder próprio, que pudesse disputar ou ser disputado. Seu poder emanava dos que dela participavam e, assim, eram esses que eram disputados nesse espaço. 288 Para alguns participantes da PMS, o que estava em jogo era mais do que uma mera questão de quem dirigia quem, era a busca por evitar uma forma de reprodução da dominação e da hierarquia

Page 295: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

295

MST, da CMP, do MNLM, do ANDES-SN, MTD, do PSOL entre outros, diziam que o

Rio de Janeiro era palco de muitas lutas, mas que essas, fragmentadas e sem

maiores condições de divulgação e articulação política, tendiam a não obter grande

repercussão e a angariar pouca solidariedade. Isso, segundo eles, dificultava a

obtenção de conquistas e vitórias e o desenvolvimento de uma consciência de

classe e de uma perspectiva anticapitalista. Acreditando que para transformar aquela

situação a existência da Plenária era fundamental, e que essa existência estava

condicionada a uma solução para a questão entre grandes e pequenos, passaram a

tratar desse assunto em reuniões, atividades políticas e conversas informais289.

Como resultado dessa preocupação política e das propostas daquele grupo

de militantes, movimentos e entidades, foi decidido que a PMS-RJ não seria parte de

nenhum fórum nacional, como chegou a ser aventado, mas uma articulação estadual

que respeitava todas as articulações nacionais de lutas e movimentos. A forma de

organização da PMS, como espaço de articulação entre movimentos onde nada era

votado, também foi reafirmada com o objetivo de respeitar as diferentes visões

políticas. Os materiais de propaganda das lutas e atividades organizadas na

Plenária permaneceriam trazendo a assinatura de todos os movimentos, entidades e

grupos participantes da PMS que quisessem assinar, sem qualquer discriminação ou

exigências quanto à forma de organização ou objeto de luta desses.290 Quando

havia divergências mais significativas e, sobretudo quando essas resultavam em

políticas distintas ou conflitantes, buscava-se apoiar ambas as propostas ou

atividades, como aconteceu, de fato, na manifestação de 1º de Maio de 2009291.

Nem todos os participantes da Plenária tinham essa preocupação nem

compartilhavam essa estratégia. Era comum haver - principalmente em meio à

social entre movimentos, a partir daqueles que detinham maior volume de capital – especialmente político. 289 Uma das consequências desse processo foi passarem a se encontrar para articular mais constantemente, com o objetivo de defender que essas preocupações (e depois outras) se transformassem, de fato, em política na PMS. 290 A assinatura dos materiais elaborados na PMS por grupos que não eram considerados movimentos sociais, como os partidos políticos, núcleos e juventudes de partidos políticos, mandatos parlamentares, ONGs, grupos de pesquisa, coletivos estudantis, entre outros, foi motivo de críticas e polêmicas que depois, com o passar do tempo, diminuíram e praticamente deixaram de existir ou serem manifestadas entre 2008 e 2012. 291 Essa decisão só foi alcançada após muita discussão. Alguns, como o representante do PCB e militantes do Fórum dos Trabalhadores pelo Meio Ambiente de Campo Grande, chegaram a dizer que não concordavam com a convocação do ato na Cinelândia. Deve ser ressaltado, porém, que o PCB estava sendo representado nessa reunião por um de seus dirigentes que não costuma comparecer a Plenária e que o partido mudou de posição posteriormente.

Page 296: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

296

impaciência gerada pelas divergências e por diferenças de métodos de atuação dos

movimentos - críticas, reclamações e, até mesmo, tentativas de cisões. Alguns

movimentos e grupos que participavam da PMS, por distintas razões, não

demonstravam tanto interesse na sua efetiva construção.

Para alguns movimentos que tinham mais estrutura e uma articulação maior,

como a CSP-CONLUTAS ou a CUT, a Plenária, por vezes, era vista como uma

concorrente, já que ali se articulavam movimentos que, em tese, poderiam fazer isso

na CSP-CONLUTAS ou na CMS.292 Também para alguns movimentos e grupos

menores que, por exemplo, não acreditavam em fóruns com participação de ONGs,

partidos políticos ou representantes de parlamentares, a PMS-RJ não era um

espaço visto como prioritário nem estratégico, mas obrigatório para a disputa

política, devido ao grande número de participantes e a importância que adquiriu.

Havia ainda pequenos grupos, alguns com lutas bem localizadas ou específicas, que

eram quase indiferentes àquela articulação e participavam da PMS irregularmente,

exclusivamente conforme as necessidades próprias de divulgação de alguma

atividade ou luta. A PMS, no entanto, se destacava entre outras experiências de

articulação de movimentos exatamente por ter a participação de todos esses

movimentos e grupos.

4.2.2 Atores, sujeitos, frações e classes sociais na PMS-RJ

Pode-se considerar a PMS-RJ uma arena política na qual atuavam diversos

atores políticos. Esses atores podem ser identificados e relacionados aos sujeitos

sociais que representavam. Desta forma, se pode interpelar esses sujeitos sobre

seus projetos societários e analisar a relação desses projetos com as classes ou

frações de classe em seus processos de fazer-se através dos ou com os

movimentos sociais.293 Deve-se, também, entender essa “vontade de unidade”,

expressa pelos atores que atuavam na PMS-RJ, e refletir sobre o significado dessa

292 Essa posição chegou a ser explicitada por representantes da CONLUTAS e da CUT algumas vezes, inclusive durante reuniões da PMS. 293 Ana Clara Torres Ribeiro, com quem tive a oportunidade de conversar algumas vezes sobre essa parte do trabalho, diferenciava sujeitos sociais (sujeitos coletivos portadores de um projeto social relacionado a algum segmento social) de atores políticos (aqueles que representam os sujeitos sociais em determinada arena política). Usar agora essa diferenciação é um recurso interessante para se entender melhor o funcionamento da PMS.

Page 297: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

297

vontade e suas consequências para os movimentos urbanos naquele contexto

político de trabalho de toupeira e para o fazer-se de classe. Mesmo sem apresentar

um “mapa” completo dos participantes da Plenária, é possível identificar os atores e

sujeitos sociais que tinham participação mais constante ou ativa nesse fórum,

começando pelos atores políticos e sujeitos sociais conforme suas relações com os

segmentos sociais e classes ou frações de classe que representariam, segundo a

forma que esses próprios movimentos e grupos se autonomeavam ou se

apresentavam.

Entre os movimentos que representariam diretamente os trabalhadores,

identificam-se, em primeiro lugar, os representantes do movimento sindical. No

Brasil havia milhares de sindicatos e uma dezena de centrais sindicais. Na PMS, no

entanto, apenas três centrais sindicais tiveram participação direta: a CUT, a

CONLUTAS e a INTERSINDICAL, sendo que apenas as duas últimas participavam

regularmente294. Entre os sindicatos também foram poucos os mais assíduos (cf.

Capítulo I) e, entre esses, destacavam-se aqueles que, como o SEPE, embora

influenciados pela INTERSINDICAL e pela CONLUTAS, não eram filiados a elas ou

eram divididos quanto a essa representação295.

Não é possível afirmar com absoluta segurança porque somente essas

centrais priorizavam esse fórum. De qualquer forma, por serem menores que outras

como a CUT, pode-se sugerir que a INTERSINDICAL e a CONLUTAS tivessem mais

interesse em tentar aumentar suas redes de influência e suas alianças. O fato de

serem menores sugere também que essas centrais pudessem ser menos

burocratizadas e adaptadas à estrutura sindical corporativa brasileira (de fato, da

CSP-CONLUTAS participavam também estudantes, movimentos sociais não

sindicais e foi durante esse período que esta passou a se chamar Central Sindical e

294 A INTERSINDICAL era aquela central que mais “apostava” na PMS. A partir de 2009 a INTERSINDICAL se dividiu e, no Rio de Janeiro, deixou de ter uma organização mais ativa e, consequentemente, de participar da PMS, o que não impediu que alguns sindicalistas ligados à central continuassem participando. Uma das consequências políticas da INTERSINDICAL deixar de participar da PMS foi o aumento relativo da importância política da CSP-CONLUTAS para a Plenária, já que essa passou a ser a única central sindical relativamente mais comprometida com aquele espaço. A CUT também teve participação ativa nos momentos iniciais da PMS, mas aparentemente nunca “apostou” nesse fórum; posteriormente, foi se afastando, apontando que a PMS se posicionava de forma muito “oposicionista” aos governos, mesmo aos que seriam do campo da esquerda. Outras centrais, como a CTB, participaram apenas de algumas atividades e manifestações organizadas pela PMS-RJ. 295 Os sindicatos filiados à CONLUTAS, com exceção do ANDES-SN, na maioria das vezes, eram representados pela central.

Page 298: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

298

Popular). Outra explicação possível está no campo da política dessas centrais, mais

oposicionistas do que a CUT e a CTB, entre outras que, mais identificadas com os

governos de então, tornar-se-iam menos propensas a participar de fóruns e lutas

que criticavam os governos e estimulavam os conflitos. Entre os movimentos que se

nomeavam como de trabalhadores, via-se ainda o MTD, o Fórum do Trabalhador

pelo Meio Ambiente, além do MST, sempre muito ativo na PMS-RJ.

Participavam também diversos movimentos, entidades e grupos organizados

a partir de questões como gênero, raça, religião, direitos humanos, defesa do meio

ambiente, além de movimentos culturais, de educação ou comunicação popular,

redes de apoiadores, organizações de populações tradicionais e coletivos formados

a partir de posições ideológicas e/ou proximidades territoriais etc. Havia grande

diversidade de formas organizativas (cf Capítulo I). Parte desses movimentos e

entidades tinha como características uma composição social bastante heterogênea

(ou policlassista) e algum grau de desvinculação com a esquerda tradicional,

especialmente a partidária. Essas não eram características, no entanto, tão

relevantes na maioria desses movimentos e entidades cariocas. Muitos desses

eram, por exemplo, compostos exclusiva ou majoritariamente por moradores de

favelas e/ou por trabalhadores informais e de empregos precários e instáveis. Outros

tinham participação expressiva ou eram coordenados por militantes ligados aos

partidos de esquerda.

Os MSUs com foco na habitação, especialmente os de luta por moradia,

tinham participação destacada na PMS e, mesmo sendo caracterizados também por

uma luta mais temática, organizavam fundamentalmente trabalhadores pobres e de

empregos mais instáveis. Entre 2007 e 2013, a participação dos MSUs na PMS-RJ

sempre foi constante, porém, variava a intensidade com a qual se dedicavam ou

apostavam nesse fórum. FLP e FIST, por exemplo, participaram mais em alguns

períodos e menos em outros, e sempre apresentando muitas críticas. O MUP e o

Conselho Popular, muito ligados às lutas contra as remoções, normalmente só

participavam da PMS em momentos de maior relevância dessa temática ou quando

eram organizadas manifestações com esse tema. A UNMP nunca teve uma

participação mais assídua na PMS, sendo representada, normalmente, pela CMP. A

CMP e o MNLM eram, entre os MSUs que lutam por moradia, os que mais

participavam e influenciavam a PMS-RJ. Além desses movimentos, a PMS sempre

Page 299: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

299

contou com a participação de representantes de algumas ocupações, vinculadas

diretamente aos movimentos sociais organizados ou não, e com representações de

comunidades em luta, principalmente daquelas que enfrentavam processos de

remoções (essas comunidades, no entanto, tinham uma participação menos ativa e

constante do que as ocupações, principalmente as do Centro da cidade).

Os MSUs sempre tiveram forte influência na PMS e a temática urbana tinha

grande centralidade nas ações organizadas nesse fórum (cf. Capítulo I). E os MSUs

não colaboravam apenas para pautar as questões urbanas, mas também para

defender políticas voltadas especificamente para os trabalhadores mais pobres (cf.

Capítulo II). Diversas vezes foram realizadas manifestações com temáticas urbanas

e que expressavam reinvindicações dos trabalhadores mais pobres, unificando um

conjunto relativamente amplo de entidades e movimentos.

Merecem menção as manifestações de 1º de Maio organizadas na PMS.

Expressavam claramente a centralidade que as lutas urbanas adquiriram nessa

articulação. Com o objetivo de relacionar o Dia Internacional dos Trabalhadores às

lutas em curso e de unificar diversos movimentos, essas manifestações abordaram

temas fundamentais nas lutas urbanas cariocas: remoções, impactos ambientais de

grandes projetos empresariais, ausência de políticas habitacionais e de prevenção

aos “desastres naturais”, aburguesamento de regiões populares, megaeventos e

privatização da cidade etc (cf. capítulo I). Além do mais, a prioridade conferida a

essas lutas por movimentos e entidades que não têm por objeto as lutas urbanas e a

clara associação entre essas lutas e os trabalhadores não seriam indícios do

significado de classe que os movimentos que atuavam na PMS identificavam nessas

lutas urbanas?

Ressalte-se que todo esse processo de articulação de movimentos e lutas

parece ter tido um significado ainda mais especial, já que se dava em meio a uma

conjuntura de extrema fragmentação das lutas sociais. Fragmentação que, se

expressava a existência de uma ampla diversidade de lutas em curso, expressava

também a dispersão dessas lutas. Fragmentação que parecia ainda mais acentuada

quando comparada ao processo (de unidade) vivido pelo conjunto dos movimentos

sociais brasileiros nos anos 1980 e 1990 e ainda muito presente no imaginário de

muitos militantes mais antigos. Fragmentação que além de atingir as lutas e

Page 300: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

300

movimentos urbanos, era vista mais particularmente entre a fração da classe

mobilizada e organizada em MSUs e a fração organizada pelo movimento sindical.

Essa fragmentação, que aparentemente acontecia em todo o país, também

era vista no seio das lutas e movimentos sociais urbanos de luta por moradia em

São Paulo, local que essas lutas tinham obtido mais destaque no passado.

Conforme o exame de Miagusko (2012) sobre a luta dos sem-teto em São Paulo, o

que se via nos anos 2000 era quase um exemplo perfeito (se não extremo) de

fragmentação com potencial de prejudicar as lutas e a formação de identidades

coletivas. Miagusko aborda as lutas por moradia (ocupações) ocorridas em julho de

2007 no Centro de São Paulo e em São Bernardo do Campo, na região

metropolitana. Foram ações organizadas por movimentos sociais distintos: MTST em

São Bernardo, em um terreno abandonado da Volkswagen, e movimentos de sem-

teto e de moradia do Centro, em quatro prédios vazios na região central da capital:

Na mesma semana da ocupação no terreno da Volkswagen e do anúncio das demissões no interior da empresa, 3.100 sem-teto ocupavam quatro imóveis no Centro de São Paulo. As ocupações eram lideradas pelo Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Região Central (MTSTRC) com a participação de outros dez movimentos de moradia, sem-teto e associações de moradores do Centro e outras regiões de São Paulo. Apesar da filiação da maioria desses movimentos à União dos Movimentos de Moradia, as ações no Centro não eram endossadas por completo pela entidade e as associações que organizaram as ocupações representariam, com o passar do tempo, uma outra articulação política que se organizaria em torno da Frente de Luta pela Moradia (FLM). (MIAGUSKO, 2012, p. 43)

O relato de Miagusko, além de indicar um quadro de extrema fragmentação

entre os movimentos organizados de luta por moradia em São Paulo, sugere que

estava em curso um processo de rearranjo entre as formas de articulação dos MSUs

paulistas, com divergências entre os movimentos que participavam da UMM que

levariam à formação da FLM.296 Destaca-se ainda que, segundo o mesmo relato,

não teria havido qualquer forma de articulação entre as ações em São Bernardo e

no Centro de São Paulo. Pode-se supor que, pela envergadura das ações, essas

foram planejadas com antecedência e que seus desdobramentos demandariam forte

296 Como já foi visto, a opção por gerir ou não as ocupações era um dos elementos de dissenso entre os movimentos de moradia e de sem-teto articulados então na UMM e, depois, tornou-se um dos elementos distintivos entre a UMM e a FLM.

Page 301: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

301

apoio material e político, o que torna ainda mais significativa e espantosa a falta de

articulação relatada:

Apesar de ocorrerem quase simultaneamente, não havia articulação conjunta entre a ocupação de São Bernardo e as ocupações de São Paulo. A relação óbvia era a questão dos sem-teto e o problema social, e nada além. (MIAGUSKO, 2012, p. 44)

Miagusko também analisou a relação – ou mais precisamente a ausência de

qualquer relação - entre a luta por moradia e a luta sindical. De um lado a ocupação

organizada pelo MTST, que contou com milhares de pessoas no terreno

abandonado da Volkswagen e, de outro, os metalúrgicos da Volkswagen e seu

sindicato, que naquele momento sofriam com cerca de 4 mil demissões de operários

e faziam suas assembleias e manifestações ao lado do terreno ocupado. A

separação das notícias sobre essas duas lutas em diferentes cadernos de jornais e

revistas foi notada por Miagusko, mas o que chamava mais a atenção era o fato

dessa separação acontecer também no jornal do Sindicato dos Metalúrgicos:

No momento mesmo que se clamava por “demonstrações objetivas que a lei valia para todos”, a Volkswagen anunciava a possibilidade de demissão de quase quatro mil operários, afrontando acordo previamente selado com a direção da matriz alemã da companhia. Esse fato aparece separado nos jornais e revistas, em cadernos e editorias diferentes. Enquanto a ocupação dos sem-teto é noticiada nos cadernos de “Cotidiano” ou “Cidades”, as demissões da Volkswagen são referidas nos cadernos “Dinheiro” ou “Economia”. Em pouquíssimas matérias e artigos os fatos aparecem relacionados. Até mesmo na Tribuna Metalúrgica a relação entre as duas situações é afastada. (...) O espantoso é que nem a representação política dos operários procurava associar os fatos, pois a Tribuna Metalúrgica (30/07/2007) só noticiou a ocupação do terreno da Volkswagen cinco dias depois. (MIAGUSKO, 2012, p. 51-52)

O relato de Miagusko, no entanto, sugere mais do que uma mera falta de

articulação entre essas duas lutas, mas também uma impressionante falta de

solidariedade e de qualquer perspectiva de unidade de classe, especialmente por

parte do poderoso Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, sindicato que fora

presidido por Lula e que, em fins dos anos 1970 e nos anos 1980, era considerado a

principal expressão do “novo sindicalismo”, do sindicalismo “combativo” e “autêntico”

que esteve na origem da CUT e do PT e no ascenso das lutas de classe no Brasil

vistas naquele período.

Page 302: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

302

Sugere também que as mudanças ocorridas entre o conjunto de movimentos

sociais nos vinte e poucos anos que separavam essas lutas em 2007 e aquelas

analisadas na literatura acadêmica dos anos 1980 (que relatavam uma grande

unidade de ação entre os MSUs e os sindicatos, especialmente nessa região) (cf.

Capítulo II), foram muito profundas e tiveram grande impacto na unidade e

identidade da classe trabalhadora no Brasil:

No mesmo momento da reintegração de posse do terreno em frente, os metalúrgicos faziam sua maior passeata interna, incorporando ainda mais trabalhadores ao ato, caminhando dentro da Volks em direção à Anchieta. Lideranças da comissão de fábrica ainda tentaram convencer os trabalhadores e o Sindicato a emprestarem solidariedade aos sem-teto, a partir de possível paralisação da Rodovia por alguns minutos. Mas, a possibilidade não pôde nem ser cogitada. A assembleia foi realizada no local onde costumeiramente aconteciam as assembleias dos trabalhadores da Volks, enquanto a reintegração de posse ocorria do outro lado da pista. Era como se entre os trabalhadores da Volks e os sem-teto não houvesse apenas a Rodovia Anchieta (MIAGUSKO, 2012, p. 54-55).

Essa profunda fragmentação entre as lutas e movimentos urbanos e sindicais

não era uma característica vista exclusivamente em São Paulo. À luz desses

acontecimentos e dessa conjuntura, parece ainda mais significativa a formação da

PMS-RJ em junho/julho de 2007 - no mesmo mês e ano que ocorriam aquelas lutas

tão expressivas da fragmentação entre os movimentos urbanos e entre MSUs e

sindicatos em São Paulo. Mesmo que em uma escala reduzida e restrita a alguns

MSUs e a um número relativamente pequeno de entidades sindicais, principalmente

daquelas de um campo mais oposicionista, as experiências de lutas unitárias no Rio

de Janeiro ganharam vigor e constância através da PMS.

A baixa participação de sindicatos operários e de trabalhadores do setor

privado na PMS-RJ, porém, é um fato que não pode ser simplesmente desprezado.

Obriga a se relativizar, de alguma maneira, a amplitude e a contundência dessa

experiência, mas não muda o significado nem a validade dessa resposta política à

conjuntura da época.

Outro aspecto que merece reflexão é que, mesmo ressaltada a participação

sindical e dos MSUs, assim como da composição por trabalhadores pobres de

muitos movimentos e entidades que participavam rotineiramente da PMS, existia

uma forte presença e influência dos intelectuais na Plenária. E, para muitos

Page 303: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

303

militantes dos MSUs esses intelectuais seriam militantes de “classe média”. Essa

percepção se baseava no que viam nas ONGs, grupos de pesquisa, partidos

políticos e mesmo em sindicatos, como o ANDES-SN.

As ONGs, mesmo aquelas mais comprometidas com as lutas sociais, eram

representadas, sobretudo, por militantes jovens que aparentavam usufruíam de

condição econômica e social superior à dos participantes de MSUs. Eram moradores

do “asfalto”, muitos da zona sul, com altos níveis de escolaridade. Apesar disso, nas

ONGs, muitos conviviam com vínculos precários e instáveis de emprego, sempre

dependentes de um novo projeto ou recurso, por exemplo. Militantes ligados aos

grupos de pesquisa ou às redes e coletivos de profissionais que prestavam apoio

aos movimentos e atuavam na PMS também tinham o mesmo perfil. Realizavam

trabalhos que exigiam e expressavam o significativo volume de capital

simbólico/cultural que detinham, mas dependiam de bolsas ou de instáveis contratos

de pesquisa.

Entre os partidos políticos, seus representantes na PMS eram, sobretudo,

militantes profissionalizados por gabinetes de deputados e vereadores ou por

sindicatos, ONGs ou diretamente pelos partidos. Esse fato sugere que esses

representantes estavam (ao menos temporariamente) inseridos de forma bastante

particular no mundo do trabalho. Exerciam funções que exigiam significativo volume

de capital cultural e político e tinham relativa disponibilidade de tempo e recursos

materiais para militância. Como militantes de ONGs e de grupos de pesquisa, a

maioria também tinha vínculos precários e instáveis de emprego.

Não obstante todas essas considerações, dado que os MSUs organizam uma

parcela muito pobre dos trabalhadores, provavelmente a grande maioria desses

intelectuais tinha remuneração superior aos militantes dos MSUs. Seriam

pertencentes a um segmento diferente dos trabalhadores ou aliados de outra classe

social?

A presença dos intelectuais na PMS por vezes gerava tensões ou críticas dos

militantes dos MSUs (cf. Capítulo I). Essa presença era interpretada de diversas

formas que expressavam as diferentes concepções políticas presentes naquela

experiência, e poderiam ser assim sistematizadas: a) Como aliança entre os de

baixo (dominados) e intelectuais detentores de capital simbólico/cultural (dominados

entre os dominantes), o que favoreceria a produção de representações sociais dos

Page 304: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

304

dominados; b) Como mera decorrência da relativamente alta participação dos

intelectuais na política brasileira e também entre os militantes da esquerda, o que

expressaria, de forma geral, as desigualdades sociais e as dificuldades de

organização e emancipação dos subalternos; c) Como expressão da falta de

autonomia dos movimentos sociais que organizavam os de baixo, o que os levaria a

serem dependentes ou a se submeterem às representações e estratégias dos

sujeitos sociais representativos de outras classes ou frações de classes e; d) Como

uma apropriação pelos dominantes dos espaços políticos que, apenas na aparência,

seriam dos dominados e serviriam, portanto, para reproduzir as relações sociais de

dominação.

De qualquer maneira, e não obstante todas essas interpretações, essa forma

de relação entre os movimentos dos trabalhadores e, particularmente dos

trabalhadores pobres, com os intelectuais, preservava algumas das características

vistas nessa relação durante os anos 1980. Permitia aos MSUs estabelecerem

relações constantes com pessoas ou grupos que detinham significativo volume de

capital simbólico/cultural através da PMS e, ao mesmo tempo, que mantivessem

certo distanciamento e a autonomia de suas organizações próprias. Permitia, por

exemplo, que os militantes dos MSUs participassem de reuniões e cursos de

formação organizados na PMS com diversos intelectuais e, depois, conforme suas

análises próprias sobre esses cursos e intelectuais, passassem a convidá-los (ou

não) para as atividades internas dos movimentos (atividades de formação, para

apoio técnico de projetos etc). Enfim, favorecia que essas relações existissem, mas

que movimentos e intelectuais fossem mantidos em campos distintos297.

A proximidade entre movimentos de trabalhadores pobres e intelectuais e as

experiências comuns produzidas e partilhadas na PMS tiveram como efeito,

também, converter alguns desses intelectuais em apoiadores costumazes dos

MSUs, mesmo que esses não se integrassem às estruturas próprias de nenhum

movimento298. E, para além das polêmicas quanto às formas e significados dessa

297 Essa forma de integração entre movimentos e intelectuais, facilitada pela experiência da PMS, favorecia que alguns intelectuais estabelecessem relações de proximidade e confiança com vários movimentos e que alguns movimentos estabelecessem relações com vários intelectuais. Por comparação, se poderia dizer que essa forma de relação não exige tanta fidelidade de cada movimento por cada intelectual e de cada intelectual por cada movimento, como no caso da integração dos intelectuais às estruturas próprias dos movimentos sociais. 298 Era fato muito mais comum a conversão desses militantes em apoiadores dos MSUs do que em apoiadores dos sindicatos, o que talvez se explique pela maior flexibilidade organizativa dos MSUs e

Page 305: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

305

relação e das possíveis consequências para a autonomia dos movimentos dos

trabalhadores, esses militantes, detentores de capital simbólico/cultural,

colaboravam de forma relevante na organização da PMS e para a elaboração e

disseminação das críticas sobre as contradições e desigualdades urbanas, que eram

objeto de tantos conflitos, e sobre o modelo de cidade que vinha sendo implantado

no Rio de Janeiro.

A PMS-RJ era um espaço de encontro e articulação entre diversos sujeitos

sociais, com formas de organização e objetos de luta distintos e que eram

compostos por segmentos diferentes dos trabalhadores e (ou entre os quais) por

detentores de capital simbólico/cultural. Na experiência da PMS, os problemas e

lutas urbanas tinham significativa centralidade, o que poderia ser explicado pelo

momento que o Rio de Janeiro passava (cf. Capítulo I) e pela temática que

abordavam. Por não atingirem exclusivamente o segmento que se organiza em

MSUs, mas os trabalhadores generalizadamente, esses temas teriam maior

potencial para motivar lutas unitárias do que, por exemplo, a maioria das lutas

sindicais. Também fundamental era o significado que essas lutas adquiriram desde a

formação da PMS: de lutas que enfrentariam os principais projetos e interesses do

capital no Rio de Janeiro e que expressariam insatisfações e anseios de diferentes

frações da classe trabalhadora.

Há ainda outra questão importante para a reflexão sobre a composição e as

relações estabelecidas na PMS-RJ, e que muitas vezes passa despercebida ou

invisível em análises acadêmicas e em relatos de militantes: a participação e a

influência dos partidos políticos entre os movimentos sociais e em experiências

como a PMS.

Ao se observar a participação partidária na PMS, contemplando, além das

representações formais, também a filiação ou identificação dos militantes dos

movimentos e entidades, se percebe que havia significativa presença político-

partidária. Em primeiro lugar, cabe registrar que a maioria dos participantes da PMS

não era filiada aos partidos, embora muitos fossem simpatizantes da esquerda. A

participação mais ativa e recorrente era de militantes do PSOL, do PSTU, do PT, da

Consulta Popular, do PCB e, em número menor e com menos constância, do

pelo tema de suas lutas serem menos específicos e coorporativos e atingirem de forma geral os trabalhadores.

Page 306: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

306

PCdoB, PDT, PCR, além de militantes de grupos políticos com inspirações

autonomistas e de anarquistas, como a FARJ.

As formas de participação dos militantes de partidos políticos variavam muito.

Variavam conforme o partido político que representavam e, principalmente, conforme

a posição desses militantes nos partidos e suas atuações nos movimentos sociais ou

em outras entidades. Os militantes que falavam em nome dos partidos eram,

normalmente, dirigentes partidários – principalmente do PSTU e do PCB. Havia

também militantes, sobretudo do PSOL, que representavam núcleos de base ou

mandatos parlamentares299.

A maioria dos filiados aos partidos era composta por militantes de

movimentos ou entidades que, costumeiramente, falavam em nome dessas.

Significativos eram os casos em que esses militantes expressavam

fundamentalmente suas relações com esses movimentos e entidades, em práticas

que nada lembravam as antigas concepções que viam e faziam dos movimentos

sociais correias de transmissão ou meras frentes de massa dos partidos. Os

militantes dos MSUs, particularmente, expressavam muito mais a identidade que

tinham com os movimentos, e os movimentos a identidade com os trabalhadores

pobres, do que qualquer vínculo partidário. A velha hierarquia entre partidos e

movimentos, nesses casos, parecia ter se invertido300. A hipótese de estar em curso

uma ressignificação das fronteiras entre movimentos e partidos também parece ter

apoio nas práticas observadas na PMS.

Registra-se que havia um entendimento geral de que os partidos políticos,

quase sempre, usariam os movimentos sociais para sua autoconstrução e conforme

seus interesses políticos e eleitorais, em detrimento da autonomia dos movimentos.

Esse entendimento era partilhado também por muitos militantes dos partidos.

A representação parlamentar era a que gerava mais polêmica. Os principais

argumentos acionados para essa rejeição eram: Que seriam representações

institucionais, comprometidas com o Estado burguês e com a democracia

299 Nesse período, entre os partidos com participação mais constante na Plenária, o PCB e o PSTU não tinham parlamentares no Rio. Além do PSOL, apenas o PT, mas com menor frequência, costumava ter representantes de mandatos parlamentares na PMS. Os parlamentares que tiveram representantes na PMS foram: 1) Do PSOL - Deputado Estadual Marcelo Freixo; Deputado Federal Chico Alencar; Vereador Eliomar Coelho; e, após 2013, Vereador Renato Cinco. 2) Do PT - Deputado Estadual –depois federal- Alessandro Molon; e Vereador Reimont. 300 A exceção era os militantes dos partidos com rígido centralismo democrático, caso do PSTU e, em menor medida, do PCB.

Page 307: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

307

representativa, gerando contradições com o projeto de construção do poder popular;

ou que mandatos parlamentares seriam movidos por interesses puramente

eleitorais, aos quais submeteriam as lutas sociais. Mesmo para alguns militantes que

não concordavam com essas críticas, havia certo desconforto com a representação

dos parlamentares, pois geraria uma sobrerrepresentação dos partidos, distorcendo

a imagem e a representatividade da Plenária, ficando os movimentos sociais com

um peso relativamente menor. Havia ainda aqueles que associavam os militantes

dos mandatos parlamentares à classe média, o que, juntamente com a participação

de ONGs e grupos universitários, levaria a PMS a ter um perfil de classe indesejado:

pequeno burguês.

Havia ainda outro tipo de crítica, que advogava a necessidade de equilíbrio

entre os partidos atuantes na PMS, para que essa não fosse identificada mais com

alguns partidos do que com outros. Essa crítica, comum entre militantes sem partido,

também era apresentada por militantes dos partidos que costumavam ter poucos

militantes na PMS, ou por militantes de partidos que não enviavam representação

parlamentar ou partidária formal.

A rejeição e as críticas à participação dos partidos e mandatos parlamentares

na PMS diminuíram logo após os primeiros meses de seu funcionamento. No

entanto, ao longo dos anos, essas críticas reapareciam, principalmente nas

proximidades dos períodos eleitorais. Parece que a atuação conjunta na PMS, as

relações de amizade entre os atores que representavam os movimentos e partidos

nessa arena, os laços de solidariedade que surgiram e as experiências comuns que

foram produzidas e partilhadas nesse período, favoreceram para que essa rejeição

diminuísse. A dedicação dos militantes de alguns mandatos parlamentares muito

atuantes na PMS também pode ter colaborado para diminuir essas resistências.

Registra-se que as ONGs e os grupos de pesquisadores que atuavam na PMS

também passaram a ser menos rejeitados ou criticados, como parte desse mesmo

processo301.

301 Em 2013, com o desenrolar das gigantescas manifestações de rua, parece que os ânimos voltaram a se acirrar no que se refere à relação entre movimentos sociais, partidos políticos e ONGs. Mesmo fora do período examinado nesta tese, supõe-se que esse acirramento indicaria a permanência, com diferentes intensidades no tempo e conforme as experiências em curso em cada momento, dessas tensões, que seriam, portanto, uma marca dessa relação.

Page 308: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

308

Duas chaves de interpretação explicariam essa mudança e eram sustentadas

por diferentes militantes. A primeira era que a boa relação entre os atores políticos

nessa arena teria levado a um arrefecimento das críticas. A consequência seria a

diminuição da autonomia e da perspectiva de transformação mais profunda e radical

da sociedade pelos representantes dos movimentos nesse fórum. A segunda chave,

que tinha maior aceitação, era fundada na conjuntura de extrema fragmentação

entre as lutas e movimentos sociais, o que teria levado os militantes da esquerda a

se organizarem das mais diferentes formas. Para enfrentar aquele momento político

seria necessária, então, uma resposta política “generosa”, que evitasse restrições e

que não inviabilizasse ou dificultasse a participação de qualquer militante ou grupo,

envolvendo todos em torno de algumas lutas e espaços comuns, como a PMS. Essa

interpretação era similar ou associada àquela aposta na aliança entre “grandes” e

“pequenos” movimentos.

A participação dos partidos políticos na PMS sempre guardou alguma tensão.

Nunca houve, porém, qualquer tentativa explícita de impedir essa participação –

como também com relação às ONGs ou aos grupos universitários. Apesar disso, a

ausência e o relativo afastamento de alguns movimentos e grupos da PMS poderiam

ser parcialmente explicados pela participação de pesquisadores, ONGs, partidos

políticos e representações de parlamentares302.

A PMS reunia, em suma, um conjunto de sujeitos sociais que representava,

fundamentalmente, os trabalhadores ou segmentos específicos dos trabalhadores.

Alguns desses segmentos eram relativamente mais representados, como os

trabalhadores pobres com empregos precários e instáveis (que se organizavam nos

MSUs) e os trabalhadores mais qualificados (como petroleiros e professores), que

detinham níveis mais elevados de escolaridade e se organizavam em sindicatos.

Destacava-se também a representação dos trabalhadores do serviço público, com

302 De alguma forma, essa tensão poderia influenciar o processo de pesquisa e os resultados aqui apresentados. A opção de pesquisar movimentos como o MNLM e a CMP, fóruns como a PMS e atividades como o FSU, poderia ser explicada pela menor resistência desses movimentos e fórum aos militantes (e consequentemente pesquisadores) ligados aos partidos políticos. Por outro lado, em função do período no qual começou a ser realizada essa pesquisa, parece claro que essas opções foram diretamente influenciadas pela ocorrência de ações como a formação da PMS e a ocupação que deu origem a Manoel Congo, ambas em 2007. De qualquer forma, por ser identificado como pesquisador de classe média, por ter atuado no NPC e por ser ligado ao PSOL, é possível que eu nunca tenha sido visto por muitos militantes desses movimentos e fóruns exatamente como um “igual”, o que de fato é verdade, embora isso não tenha me impedido de desfrutar de uma profunda

Page 309: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

309

variados níveis salariais e de escolaridade, a pequena participação de sindicatos de

trabalhadores de empresas privadas, e que alguns segmentos dos trabalhadores

costumavam estar pouco representados, como os operários.303 Havia também uma

representação relevante de trabalhadores rurais, sobretudo através do MST. Os

intelectuais também tinham expressiva representação, através das ONGs, partidos

políticos, grupos estudantis e de pesquisa e das redes de apoiadores.

Quanto aos atores políticos que atuavam nessa arena, tinha-se uma

representação composta por trabalhadores e jovens com bom nível de

escolarização. Na maioria dos casos, eram militantes relativamente experientes e

que se destacavam dentre seus próprios movimentos pelo capital político que

detinham. Mesmo entre aqueles mais jovens, mais pobres e de baixa escolarização,

que eram muitos na PMS, havia militantes com vasta experiência política. Essa

condição dos atores políticos que atuavam na Plenária sugere que esse fórum

reunia significativa condição de disputa política e simbólica.

Conforme o entendimento adotado sobre as classes sociais (cf. capítulo II), o

vínculo de pessoas ou grupos com uma classe não é um mero reflexo do local

ocupado na produção nem uma determinação baseada na origem social. Classe,

segundo essa perspectiva, não existe sem luta de classes, sem o acúmulo de

experiências comuns (sobre as relações de produção, sobre a luta, sobre diferentes

esferas da vida), ou sem os sentimentos de pertencimento a esse grupo social, de

solidariedade, de identidade e alteridade. O fazer-se de classe passaria, portanto,

pela capacidade de produzir conjuntamente e de partilhar sentimentos e

experiências de luta e pela aprendizagem legada por essas experiências:

É importante registrar a preocupação de Thompson com a unidade das lutas, com unificação das experiências. Unificação que projeta a luta num cenário mais amplo, dando visibilidade aos demandatários, construindo uma cultura política a partir da aprendizagem que a experiência legou. (GOHN, 2007, p. 206)

relação de amizade com vários desses militantes e de ter participado de algumas reuniões e ações dos movimentos que sugerem ter existido também muita confiança política e pessoal. 303 Mesmo com a reduzida representação direta dos sindicatos tradicionalmente identificados como de operários – químicos metalúrgicos, de laticínios etc – as centrais sindicais que participavam da PMS-RJ expressavam a militância, algumas vezes através de oposições sindicais em algumas dessas categorias e em outras como de trabalhadores da construção civil, eletricitários etc. Registra-se ainda que essas centrais dirigiam importantes sindicatos operários em outras partes do país e, portanto, de alguma forma, expressavam também as lutas desse segmento dos trabalhadores.

Page 310: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

310

As principais experiências que eram produzidas e partilhadas através da PMS

estavam ligadas às manifestações realizadas e às lutas que eram priorizadas e que

uniam os movimentos e entidades que participavam daquele fórum. Eram as

manifestações, por exemplo, no Dia Internacional dos Trabalhadores, no Dia

Internacional dos Direitos Humanos e o Grito dos Excluídos. Eram as lutas por

moradia, contra as remoções e despejos, por preservação ambiental, por melhores

serviços públicos de educação, saúde, transportes e por melhores salários e

condições de trabalho nessas áreas, contra a violência policial nas áreas de

habitação popular, contra a criminalização dos pobres, dos negros, dos jovens,

contra a criminalização dos movimentos sociais, contra as privatizações, pela

reforma agrária etc. E essas lutas eram priorizadas por causa da conjuntura do Rio

de Janeiro naquele período, mas também pela capacidade que tinham de unificar os

sujeitos sociais que mais participavam da Plenária, que eram ligados à luta pela

terra, às lutas urbanas - especialmente por moradia e as lutas dos servidores

públicos - principalmente de serviços urbanos, e às lutas em defesa da educação e

dos direitos humanos.

A PMS era uma articulação que proporcionava a realização de lutas unitárias,

mas, além disso, também favorecia que as experiências acumuladas nessas lutas

fossem compartilhadas, transformadas em aprendizagens comuns, através de uma

intensa e constante integração e da troca de conhecimentos e sentimentos. Tais

trocas eram facilitadas pela relação de companheirismo e solidariedade construída

entre os atores sociais que participavam daquela arena e pela vontade de unidade

que apresentavam, possibilitando o que Boaventura de Sousa Santos chama de

“tradução das práticas”:

Tal como sucede com o trabalho de tradução de saberes, o trabalho de tradução das práticas é particularmente importante entre práticas não-hegemônicas, uma vez que a inteligibilidade entre elas é uma condição da sua articulação recíproca. Esta é, por sua vez, uma condição da conversão das práticas não-hegemônicas em práticas contra-hegemônicas. O potencial anti-sistêmico ou contra-hegemônico de qualquer movimento social reside na sua capacidade de articulação com outros movimentos, com as suas formas de organização e os seus objetivos. (SANTOS, 2003, p 806)

A tradução das práticas, fundamental para a capacidade de articulação

recíproca entre movimentos sociais e que, segundo Boaventura Santos, seria “uma

Page 311: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

311

condição para a conversão de práticas não hegemônicas em contra-hegemônicas”,

parece ser fundamental também para o fazer-se de uma classe.

A troca permanente de experiências, as lutas comuns, atividades culturais e

de formação conjuntas, seminários, entre outras atividades que a existência da

PMS-RJ propiciava e estimulava, interferiam na “capacidade de articulação” entre

movimentos sociais no Rio de Janeiro. Favorecia que se conhecessem melhor as

diferentes formas de organização de cada movimento, seus objetivos e táticas de

luta, suas palavras de ordem e seus inimigos. E permitia também que movimentos

que organizavam lutas localizadas ou específicas, a partir da relação que

estabeleciam com outras lutas e da solidariedade que angariavam de outros

movimentos, ganhassem novas características. Se não se tornavam movimentos

“anti-sistêmicos”, poder-se-ia dizer, no mínimo, que se abriam para novas questões

e que confrontavam, deliberadamente, o modelo de cidade implementado no Rio de

Janeiro, questionando a supremacia da propriedade privada em diversas relações

sociais e o Estado, que tanto criminalizava a tantos outros movimentos.

Para os movimentos sociais urbanos particularmente, as possibilidades

oferecidas pela existência da PMS pareciam ainda mais acentuadas. Afinal, esses

movimentos, além de serem alvos constantes das políticas de repressão e

cooptação por parte do Estado e de grupos privados, costumavam apresentar mais

dificuldades materiais e financeiras, menores condições para divulgação de suas

lutas e propostas e, consequentemente, de tradução de suas práticas. Um breve

exemplo de como as possibilidades oferecidas pela existência da PMS atingiam e

eram tratadas de formas diferenciadas pelos distintos movimentos e pelos MSUs em

particular, podia ser percebido nas manifestações de 1º de Maio. Para esses atos, a

PMS sempre preparava um jornal e algumas faixas. Apesar da confecção desses

instrumentos de divulgação unitários, algumas centrais sindicais, partidos políticos e

sindicatos faziam também os seus materiais próprios, e seus militantes carregavam

e distribuíam esses materiais. Enquanto isso, os militantes dos MSUs, entre outros

também desprovidos de maiores recursos, carregavam as faixas da PMS e

utilizavam aquele jornal unitário para panfletarem e, assim, conversavam com a

população sobre suas lutas e sobre o ato do Dia Internacional dos Trabalhadores.

A PMS, com todas as experiências que proporcionava, ajudava a dar

“visibilidade aos demandatários” e facilitava a “tradução das práticas” e a articulação

Page 312: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

312

de movimentos. Não seria, pois, coerente, afirmar que para os diferentes atores

políticos e sujeitos sociais com raízes em distintos segmentos dos trabalhadores, a

PMS favorecia e expressava um processo de fazer-se de frações de classe, no qual

o aprendizado mútuo e as experiências comuns colaboravam também para o

desenvolvimento de uma identidade comum e para o fazer-se da classe

trabalhadora?

Muitas outras tentativas de criação de espaços de articulação entre

movimentos foram empreendidas recentemente no Rio de Janeiro e em outros locais

pelo Brasil. Na maioria das vezes, porém, eram mais restritas. Já a PMS reunia

sujeitos sociais bastante distintos, com linhas ideológicas e filiações partidárias

diversas, com métodos de ação, formas de organização, objetivos de luta e bases

sociais muito diferentes. A constituição dessa experiência não pode ser explicada

somente por sua forma de organização nem pela conjuntura do Rio de Janeiro e dos

movimentos sociais em particular. Não há explicação organizacional, estrutural ou

conjuntural que, isolada, possa dar conta dessa experiência. A manifestação do PAN

reuniu uma série de diferentes sujeitos sociais, muitos dos quais, nas práticas e/ou

discursos, teriam em comum certa visão de mundo (crítica ao capitalismo) e alguma

identidade de classe. Isso, porém, não seria suficiente para explicar essa

experiência, afinal, a PMS não foi planejada por nenhum desses sujeitos sociais.

Sua forma de organização também não foi uma elaboração de ninguém

especificamente, e parte daquele grupo de atores políticos nem se conhecia quando

esse processo teve início.

A hipótese aparentemente mais consistente para explicar a experiência da

PMS é que: a realização do PAN 2007 e a implantação das políticas urbanas

associadas ao modelo de cidade de negócios foi percebida pelos movimentos como

uma grande ameaça geral. A reação a essa ameaça se deu através de uma ação

coletiva que gerou uma forma de organização coletiva, e que foi se ajustando

conforme o acúmulo de experiências. Essas experiências comuns, com destaque

para as “vitórias” no Canal do Anil e da Manoel Congo e o sucesso das

manifestações de 1º de Maio, do Plebiscito da Vale e outras, imediatamente

influenciaram um grupo de atores políticos (representantes de diversos sujeitos

sociais, oriundos de distintas frações de classe e organizados em diferentes

movimentos, entidades, partidos, ONGs). Esses atores políticos passaram a atuar de

Page 313: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

313

forma relativamente articulada nessa arena, desenvolvendo laços de solidariedade e

uma identidade baseada na ação conjunta nesse espaço. Aos poucos, aquela

experiência ainda embrionária de articulação de movimentos foi se transformando

em uma resposta política coletiva e mais duradoura àquela conjuntura de refluxo das

grandes mobilizações de massa e fragmentação das lutas e movimentos sociais.

O desenvolvimento de algum grau de identidade entre esses atores sociais e

também do sentimento que foi chamado de “vontade de unidade” teriam tido, então,

papel decisivo nos desdobramentos dessa experiência. A identidade entre esses

atores não significa que houvesse, no mesmo grau, uma identidade entre os sujeitos

sociais e seus projetos de sociedade. A construção de uma identidade comum, mais

ampla, potencialmente de classe, entre os sujeitos sociais representados por esses

atores, estaria relacionada à ação e às experiências comuns desses sujeitos, o que

não aconteceria apenas em uma arena política determinada, da qual participava um

número restrito de atores304.

A PMS não é considerada por essa tese como o espaço de articulação de

movimentos no qual foram, estão sendo, ou serão construídas e partilhadas as

experiências e identidade que sustentariam um processo de fazer-se da classe

trabalhadora no Brasil. A experiência da PMS, com todas as suas limitações, é

considerada, sim, e somente, um exemplo do trabalho de toupeira feito pelos

movimentos sociais durante esses anos e uma resposta política possível para

enfrentar uma conjuntura desfavorável para os trabalhadores e os movimentos

sociais.

Essa resposta, porém, parecia criar ou melhorar as condições para a

emergência de experiências e lutas unitárias e favorecer o florescimento de uma

identidade comum entre diversos sujeitos sociais e frações de classe, processo

304 Diversas atividades e lutas promovidas a partir da Plenária possibilitaram experiências comuns entre distintos sujeitos sociais. Cenas, por exemplo, como um grupo de sem terras, com suas camisas e bonés vermelhos, dentro de uma favela na zona oeste carioca conversando com os moradores locais e, após alguns minutos de conversa, chegando à conclusão comum que o medo que sentiam uns dos outros era fruto do preconceito e do que se dizia deles na TV, parecem significativas. Um amplo grupo de estudantes da UFRJ, da UERJ, do Colégio Pedro II e de escolas particulares, organizando o ato do dia 28 de março dentro de um prédio ocupado no Centro do Rio, junto a jovens sem-teto, sem-terra e das favelas, também poderia ser considerada uma cena relevante da construção de experiências comuns entre distintos sujeitos sociais. Como essas, várias outras cenas, fatos e processos poderiam ser lembrados para demonstrar que as trocas de experiências favorecidas pela PMS não se restringiam aos atores políticos que atuavam rotineiramente naquele espaço. Não obstante, essas trocas ainda seriam bem restritas se comparadas àquelas vividas pelos representantes desses movimentos na PMS.

Page 314: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

314

indispensável para o fazer-se da classe trabalhadora no Rio de Janeiro e no Brasil

nos anos 2000. Enfim, a PMS-RJ foi uma resposta política digna de registro e

reflexão.

Page 315: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

315

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No capítulo I foi apresentada a seguinte definição para os movimentos sociais

urbanos:

Movimentos sociais urbanos são aqueles movimentos que se organizam para

intervir nas disputas relativas à cidade e ao processo de urbanização. Movimentos

que têm a cidade não apenas como arena, mas como objeto de suas lutas. As

questões colocadas por esses movimentos são: as leis e políticas urbanas, a forma

como se alocam e distribuem os recursos urbanos (financeiros, fundiários,

locacionais, paisagísticos, políticos, simbólicos), os serviços públicos, as políticas

habitacionais, de saneamento, de cultura, de uso e ocupação do solo, obras,

transporte urbanos, segurança pública etc. São movimentos que se distinguem de

outras lutas e conflitos urbanos por serem de cunho mais permanente, por terem

objetivos delimitados e atuação organizada, abrangente e recorrente sobre a

problemática urbana, organizando diretamente os atingidos ou demandantes dessas

políticas urbanas.

Essa definição inicial de movimentos sociais urbanos não tinha por objetivo

problematizar o conceito nem era uma tentativa de construir uma definição precisa

que expressasse toda a reflexão proposta por esse trabalho. O objetivo era apenas

delimitar algumas características gerais sobre os MSUs - um recurso para dar

continuidade à narrativa que estava sendo apresentada. Era uma definição

incompleta, mas que apresentava importantes delimitações sobre os MSUs.

As três delimitações principais presentes naquela definição inicial sobre os

MSUs eram: a) Entre movimentos sociais (organizados) e lutas e conflitos sociais:

Movimentos sociais organizados seriam sujeitos políticos - grupos organizados que

agem constante e recorrentemente nas lutas e conflitos sociais305; b) Entre

movimentos sociais (especificamente) urbanos e outros movimentos sociais:

Movimentos sociais urbanos seriam aqueles que têm a cidade não apenas como

arena de suas lutas, mas que têm como objeto principal de suas lutas a cidade e as

305 Lutas e conflitos sociais podem ser mais ou menos espontâneos e podem contar com a participação de nenhum ou de muitos movimentos sociais organizados.

Page 316: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

316

políticas urbanas306; e c) Entre movimentos sociais urbanos e outras entidades e

grupos: Os MSUs se caracterizariam por não apenas reivindicar ou refletir sobre

políticas urbanas, mas organizariam e seriam compostos pelos diretamente atingidos

ou demandantes dessas políticas307.

Essa definição inicial de movimentos sociais urbanos, conforme o que foi visto

nos Capítulos II e III, necessita incorporar outras características fundamentais. Exige

também a revisão das delimitações inicialmente apresentadas e de alguns

pressupostos teóricos, em busca de maior clareza e precisão sobre o que são os

MSUs.

Antes de passar a essas características, faz-se necessário apresentar uma

questão de ordem metodológica: Nessa tese foram examinados mais detidamente

os MSUs de luta por moradia no Rio de Janeiro. Mesmo tendo como hipótese que

essas características não são específicas aos movimentos por moradia, nem dos

MSUs do Rio de Janeiro, por falta de meios para comprovar tais hipóteses308, essas

características são apresentadas como dos MSUs que lutam por moradia no Rio de

Janeiro.

A primeira e mais importante característica a ser acrescentada na definição

de MSUs diz respeito à composição desses movimentos. Movimentos sociais

urbanos que lutam por moradia são compostos, fundamentalmente, por um

segmento específico dos trabalhadores: trabalhadores pobres, com vínculos

precários e instáveis de trabalho e que não participam de sindicatos. Segmento que

comporta heterogeneidade nas relações de trabalho, mas significativa

homogeneidade social. Consequentemente, podem ser definidos como uma forma

de organização dos trabalhadores pobres.

306 Muitos outros movimentos sociais atuam “nas” cidades sem ter a cidade como objeto de suas lutas. Outros movimentos atuam eventualmente sobre temas urbanos, mas têm como objeto principal de suas lutas, por exemplo, questões trabalhistas, de gênero, os direitos humanos e outras. 307 Outras entidades e grupos não são compostos e/ou não organizam os atingidos e demandantes das políticas urbanas. São ONGs, partidos políticos, fóruns de articulação como a PMS-RJ, entre outros grupos formados conforme proximidades diversas (territoriais, profissionais, ideológicas) e mesmo para reivindicar políticas urbanas ou apoiar/assessorar os movimentos sociais urbanos. 308 Essa hipótese guarda relações com as características do mercado de trabalho no Brasil, com a forma como as desigualdades urbanas atingem desigualmente os diferentes segmentos dos trabalhadores, com as características de organização dos sindicatos, com a cultura politica dos MSUs, com a importância e influência exercida pelos movimentos que lutam por moradia entre os demais MSUs etc. Enfim, é apenas uma hipótese.

Page 317: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

317

A segunda característica diz respeito ao objeto das lutas urbanas e, em

decorrência, aos movimentos sociais urbanos. Esses movimentos não participam ou

organizam apenas lutas relativas ao consumo e à reprodução da força de trabalho.

Lutam também pelo direito de usar a cidade como local de trabalho - como se vê,

por exemplo, nas lutas contra as remoções ou dos camelôs. A luta dos trabalhadores

pobres por moradia também está intimamente ligada à luta pelo direito ao trabalho e

por melhores condições de trabalho e renda, como mostram as experiências das

ocupações (cf. Capítulo II). Essas lutas e movimentos negam a separação que seria

imposta pelo capital entre “local de trabalhar” e “local de viver” (HARVEY, 1982). O

sentido da luta é pela transformação da cidade para que essa ofereça melhores

condições de moradia, trabalho e consumo na cidade, unindo o que o capital separa.

Por isso, podem ser definidos como lutas e movimentos pelo direito (dos

trabalhadores) de mudar e usar a cidade.

A terceira característica é muito ligada às duas anteriores. Os MSUs de luta

por moradia organizam um segmento dos trabalhadores que não costuma se

organizar de outras maneiras. Através das ações e experiências coletivas, esses

trabalhadores criam identidades com os movimentos e o sentimento de

pertencimento a um coletivo, o que permite vislumbrar mudanças em suas vidas e

na sociedade. Nos MSUs, participam de lutas relativas às várias esferas da vida nas

cidades. Nas ocupações e nos fóruns do movimento discutem questões de gênero, o

racismo, os anseios da juventude, refletem sobre questões eleitorais, sobre o

Estado, sobre a vida coletiva e a democracia que praticam, promovem atividades

culturais, cursos de formação política, projetos de geração de trabalho e renda etc.

Emergem das lutas urbanas, mas seus participantes fazem do movimento também o

seu sindicato, seu partido político, sua ONG. Esses movimentos tornam-se assim “a”

forma de organização desses trabalhadores. Podem ser definidos, então, como a

forma de organização que expressa as experiências dos trabalhadores pobres, os

coloca em movimento e os constitui como sujeitos políticos.

Conforme as reflexões expostas pode-se apresentar então a seguinte

definição para os movimentos sociais urbanos:

Movimentos sociais urbanos são movimentos que se organizam para intervir

nas disputas relativas à cidade e ao processo de urbanização. Movimentos que têm

a cidade não apenas como arena, mas como objeto principal de suas lutas. São

Page 318: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

318

sujeitos políticos, grupos organizados de cunho permanente, com objetivos

delimitados e atuação organizada, constante, abrangente e recorrentemente sobre a

problemática urbana, as lutas e conflitos sociais. São caracterizados por não apenas

reivindicar ou refletir sobre políticas urbanas, mas por organizarem e serem

compostos pelos diretamente atingidos ou demandantes dessas políticas.

Organizam um segmento específico dos trabalhadores - os trabalhadores pobres

com vínculos precários e instáveis de emprego – e tornam-se a forma de

organização desses trabalhadores, expressam suas experiências e os colocam em

movimento, constituindo-os como sujeitos políticos. Suas lutas são pelo direito (dos

trabalhadores) de mudar e usar a cidade e envolvem as condições de moradia,

trabalho e consumo na cidade309.

Para além dessa definição, outras observações ainda merecem ser feitas. A

primeira é que os MSUs tratam de temas que, direta ou indiretamente, atingem

generalizadamente os trabalhadores: moradia, mas também transportes,

saneamento, segurança, cultura, dentre outros. Temas que, como mostra a

experiência do Rio de Janeiro, figuram entre aqueles capazes de motivar lutas

unitárias. Mesmo organizando e pondo em movimento um segmento específico dos

trabalhadores, os MSUs e as lutas urbanas ganham centralidade nas articulações

entre movimentos e nas lutas gerais. Constituem-se em sujeitos políticos dos

trabalhadores pobres, e também através das relações com outros sujeitos políticos e

suas lutas, criam condições para o fazer-se de uma fração da classe trabalhadora.

Os MSUs estão inseridos em um campo de conflito no qual são ameaçados

permanentemente com a imposição de um tempo burocrático do Estado – o alvo

e/ou interlocutor costumaz das lutas urbanas. Ficam sujeitos à adaptação de suas

demandas aos projetos governamentais focalizados, à dependência de mediação

das ONGs e das negociações com técnicos e políticos, todos esses elementos que

favorecem a cooptação e a institucionalização dos movimentos. Mas, à dinâmica que

fragmenta e institucionaliza, às tecnologias de legitimação e cooptação, às vezes

respondem com a dinâmica das ações coletivas. Ações coletivas que costumam ser

309 As questões colocadas por esses movimentos são: as leis e políticas urbanas, a forma como se alocam e distribuem os recursos urbanos (financeiros, fundiários, locacionais, paisagísticos, políticos, simbólicos), os serviços públicos, as políticas habitacionais, de saneamento, de cultura, de uso e ocupação do solo, obras, transporte urbanos, segurança pública, as condições de uso do espaço urbano para o trabalho, além de diversas outras questões que expressam os anseios e demandas do segmento dos trabalhadores que organizam.

Page 319: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

319

criminalizadas e reprimidas em nome do sacrossanto princípio da propriedade –

privada ou pública – e do Estado de direito. Criminalização, propriedade e Estado,

temas que de mil e uma maneiras tornam-se objeto de acúmulo de experiências,

motivos de manifestações e fontes de polêmicas.

As ocupações são as mais poderosas formas de ação direta dos MSUs que

lutam por moradia, como observado na experiência da Manoel Congo. Permitem a

constituição de um grupo, uma base social organizada, além de publicizar/denunciar

a ociosidade de imóveis e terrenos em meio a um problema social que atinge

milhões de famílias de trabalhadores: a dificuldade de acesso e as condições

inadequadas de moradia. A “questão da periferia” e a “questão do centro”

possivelmente não existiriam sem essas formas de ação coletiva direta, assim como

a “questão da autonomia” talvez nunca tivesse chamado tanta atenção ao ponto de

ter sido considerada (uma possibilidade) marcante das práticas dos MSUs. Através

delas foram consumadas algumas das mais importantes respostas políticas

praticadas pelos MSUs cariocas à conjuntura que enfrentavam nos anos 2000.

Respostas fundamentais para o trabalho de toupeira que os MSUs praticavam e que

permitiram a fundação ou refundação de movimentos sociais urbanos.

Além da conquista “material”, ocupações conformam vitórias simbólicas, dão

identidade aos movimentos que lutam por moradia e podem se transformar em

locais de encontro, cultura, política e de novas experiências e consciências. São

ações políticas que, entre outros resultados, proporcionam o surgimento de espaços

de sociabilidade, de troca de experiências e de cultura para o segmento de

trabalhadores pobres que se organiza em MSUs, como também de encontro desse

segmento com outros segmentos dos trabalhadores organizados em outros

movimentos sociais.

Se a classe (trabalhadora), diferentemente do sol, já estava presente ao seu

fazer-se, seria em razão das experiências acumuladas diariamente nas

contraditórias relações de trabalho e através das mais diversas formas de luta,

organização, da política, da cultura etc. Se identidade e consciência de classe estão

sempre em declínio ou ascensão, cambiantes, e se classe e consciência de classe

são o último degrau de um processo histórico possível de fazer-se (THOMPSON,

1987, 2001), a análise deste trabalho não poderia se concentrar em outra coisa

senão em como a ação dos MSUs incide sobre essa classe em processo. E se o

Page 320: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

320

potencial anti-sistêmico ou contra-hegemônico de qualquer movimento social reside

na sua capacidade de articulação com outros movimentos (SANTOS, 2003),

examinar as formas de articulação dos MSUs com outros movimentos era uma

condição para a reflexão aqui proposta.

Distintas formas de articulação de movimentos e lutas (tanto na escala local

quanto nacional e em diferentes momentos) foram reconhecidas, com destaque para

a experiência da Plenária de Movimentos Sociais. Experiência marcada pela

participação de movimentos, entidades e grupos com diferentes formas

organizativas, objetos de luta, influências ideológicas e ligados a variados

segmentos dos trabalhadores e dos intelectuais. A PMS-RJ foi uma resposta política

dos movimentos sociais cariocas à conjuntura de fragmentação e refluxo das

grandes mobilizações dos anos 2000. Resposta que demonstrava que para além da

dispersão, havia também uma profunda diversidade de lutas e movimentos sociais.

Com uma história que lembra a dos MSUs, teve origem na organização de uma

manifestação que tinha por objeto as políticas urbanas associadas aos Jogos Pan-

americanos de 2007 - que por atingirem diferentes segmentos sociais foram

percebidas como uma “ameaça geral”, um inimigo poderoso e comum. Ao longo de

sua história, articulou outras lutas urbanas e também lutas sindicais, estudantis,

ambientais, por direitos humanos ou ligadas a datas como o 1º de Maio ou 7 de

Setembro. Colaborou para divulgar e fortalecer diversas lutas sociais cariocas e

ajudou a criar laços de solidariedade entre os movimentos e de amizade e confiança

entre seus militantes, proporcionando uma intensa troca de experiências e tradução

de práticas.

As experiências anteriores de fóruns de articulação e algumas vitórias

obtidas em um período marcado por derrotas impulsionaram a vontade de unidade

expressa pelos representantes dos movimentos que atuavam naquela arena política

e ajudam a explicar como a PMS moldou o seu funcionamento e ganhou

importância. As lutas urbanas e as tentativas de enfrentamento ao modelo de cidade

de negócios sustentado na realização de megaeventos ganharam significado de

lutas gerais e adquiriram centralidade na PMS-RJ. Não obstante a reduzida

capacidade de mobilização e a ausência ou reduzida presença de diversos

movimentos sociais que representariam ou expressariam outros segmentos dos

trabalhadores – como os operários – na contramão da conjuntura de fragmentação

Page 321: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

321

vivida pelos movimentos socais no Rio de Janeiro e no país, a PMS tornou-se um

exemplo.

Atividades como o Fórum Social Urbano e a constituição de fóruns que

articulavam lutas e movimentos da área de educação, de saúde, ou relacionados

aos megaeventos, como o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, foram

influenciadas ou inspiradas pela experiência da PMS. Temas e lutas que eram

tratados nas reuniões da PMS motivaram ações institucionais, jurídicas e

parlamentares, foram divulgados nas escalas local e nacional (alguns até

internacionalmente), atraíram a atenção de pesquisas acadêmicas e ganharam as

pautas da comunicação alternativa, comunitária e sindical. Através da PMS, a “velha

toupeira” disseminava o sentimento de injustiça sobre diversas contradições

urbanas, algumas delas que estiveram no Centro dos gigantescos protestos

ocorridos em 2013.

A experiência da PMS, e particularmente a ação dos MSUs nesse fórum,

iluminam também uma série de questões sobre a cultura política desses e outros

movimentos. Joga luz sobre a nova posição que os MSUs assumem frente aos

sindicatos, especialmente quando seus militantes afirmam como fator de distinção (e

positividade) que organizam os trabalhadores pobres de empregos precários e

instáveis, e apresentam suas lutas como argumento. Ajuda a desvendar também

novas relações entre movimentos sociais e partidos políticos, negando velhas

hierarquias, questionando as concepções e relações tradicionais entre massa e

vanguarda e afirmando o protagonismo dos de baixo nas lutas da esquerda. Como

com os partidos, a relação com os intelectuais – das universidades, das ONGs etc –

também é marcada por essa autoafirmação dos movimentos e dos trabalhadores

pobres. A integração dos detentores de capital simbólico/cultural às estruturas dos

movimentos é uma novidade, mas também é diferente – menos naturalizada e

despercebida, mais problematizada, criticada e até evitada - relação que, na sua

forma, segue os antigos padrões dos anos 1980. Em que pese a importância

dessas relações para os MSUs com sindicatos, partidos e intelectuais, as formas

dessas relações mudaram e a experiência da PMS expressava essas mudanças que

parecem ainda estar em curso.

Entre a recusa ou a forma crítica de se relacionar com as instituições da

sociedade civil e com os partidos, com as ONGs, entre as diferentes formas de

Page 322: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

322

relação com intelectuais, a marca principal é o protagonismo dos movimentos

sociais. A reconfiguração sobre o significado de autonomia, que não falava mais só

sobre a relação com o Estado, expressaria então uma autonomia de classe? Uma

autonomia das classes populares ou da classe dos trabalhadores pobres? Estaria

sendo afirmada uma nova teoria e hierarquia dos sujeitos revolucionários? Não é o

que sugere a experiência examinada nesse trabalho. A vontade de unidade e a

intensa busca por construir relações com outros movimentos, entidades e

segmentos dos trabalhadores (percebida na experiência da PMS-RJ, mas também

em experiências anteriores e posteriores no Rio de Janeiro e, por exemplo, na

participação do MTST na CSP-CONLUTAS) indicam para a construção de um

sujeito político que se constitui e colabora com o fazer-se de uma fração de classe e,

ao mesmo tempo, com o fazer-se da classe trabalhadora. Essa relação crítica e essa

vontade de unidade parecem significar, sim, a recusa de um papel secundário dos

MSUs e dos trabalhadores pobres, tanto com relação aos sindicatos, ao segmento

operário dos trabalhadores, quanto aos partidos políticos e aos intelectuais.

Essa reconfiguração e maior protagonismo dos movimentos sociais urbanos

não é fruto de uma elaboração político-teórica sobre a posição dos trabalhadores

pobres no sistema, embora algumas elaborações tenham tentado seguir essa linha.

Essas, como outras questões percebidas entre os MSUs como de cunho muito

teórico, não eram tratadas com importância comparável a que conferiam à política

do dia a dia ou às relações de confiança política que estabeleciam, por exemplo.

Quantas vezes, ao invés de tentarem explicar ou vangloriar o protagonismo de suas

lutas ou movimentos, relembravam a fragilidade de suas organizações, as

dificuldades que enfrentavam e até mesmo lamentavam que outros segmentos dos

trabalhadores e outros setores do movimento social estivessem tão desmobilizados.

Há que se admitir que, neste trabalho, não foram examinadas mais

profundamente diversas dimensões da experiência de classe – ou de fração de

classe – que integram a noção de fazer-se de classe (THOMPSON, 1987 e 2001).

Cultura, habitus, costumes, experiências e vivências sobre as relações de produção

não foram observadas com a mesma intensidade conferida à luta social, às formas

de organização, em suma, à política. Para além da integral responsabilidade do

autor, que pode ter desviado ou turvado o olhar sobre questões tão importantes,

essa foi também uma opção por tentar iluminar as lutas e a ação política dos MSUs.

Page 323: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

323

Lutas e ação política que não são descoladas de outras dimensões do fazer-se de

classe e permitem refletir sobre vários aspectos a respeito da participação dos MSUs

nesse fazer-se.

Cabe ressaltar que essas lutas e ações políticas, por vezes, também

propiciam a constituição de espaços de sociabilidade e cultura da classe, caso de

algumas ocupações e, portanto, são ações que se relacionam diretamente ou

indiretamente com outras dimensões do fazer-se da classe. Lutas e ação política

que não são descoladas de outras dimensões do fazer-se de classe e permitem

refletir sobre vários aspectos a respeito da participação dos MSUs nesse fazer-se.

Não obstante todas as possíveis insuficiências na análise, registrar e chamar

a atenção para alguns processos históricos foi também um objetivo perseguido: 1) A

emergência dos novíssimos movimentos sociais urbanos no Rio de Janeiro e a

relação desse processo com as respostas políticas apresentadas por MSUs mais

tradicionais, como a CMP, para enfrentar a crise que viviam, em um processo no

qual se influenciavam mutuamente. 2) Ações como a que deu origem a Ocupação

Manoel Congo e seu poder de mudar a vida de seus participantes e refundar um

histórico Movimento. 3) O ciclo de ocupações nos anos 2000 no Rio de Janeiro e

alguns dos seus significados para a luta pela habitação e para os MSUs cariocas. 4)

A constituição da Plenária de Movimentos Sociais do Rio de Janeiro, sua forma de

funcionamento, os atores e sujeitos políticos envolvidos e algumas das influências

que resultaram dessa experiência. 5) Além de alguns sentidos e significados

possíveis para essas experiências e ações, tanto para os militantes e movimentos

que as protagonizaram quanto para a pesquisa acadêmica sobre o tema. Todas

essas são experiências, questões e histórias merecedoras de registro que, para

muito além do que foi apresentado nesse trabalho, espera-se que venham a ser

objeto de exame e reflexão por mais e melhores pesquisadores.

São experiências que, conforme tudo o que foi apresentado, podem ser

entendidas como parte de um processo de fazer-se da classe trabalhadora no Rio

de Janeiro, e por que não, no Brasil dos anos 2000. Experiências que, a depender

do pesquisador e leitor desse processo, poderiam indicar a fragilidade desses

movimentos, a dificuldade de superar o(s) fracionamento(s) da classe e a perda da

referência das lutas mais diretamente centradas na produção ou na relação capital-

Page 324: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

324

trabalho, e que assim seriam empecilhos para o fazer-se da classe trabalhadora no

Brasil.

Talvez influenciado por todas as reconfigurações e ressignificações

percebidas nas práticas dos movimentos sociais urbanos e de seus militantes, que

sugerem a subversão de algumas hierarquias e formas tradicionais de compreensão

do processo de fazer-se de classe, o entendimento desse trabalho é de que as

ações e relações desses movimentos são experiências que atualizam o fazer-se da

classe trabalhadora. Experiências que refletem uma consciência que, longe de como

deveria ser segundo alguns partidos, seitas ou teóricos, é como ela é, e expressa a

classe que acontece efetivamente (THOMPSON 2001). Segmentos de trabalhadores

em luta se organizando em movimentos, se relacionando e trocando experiências

com outros trabalhadores e suas lutas e movimentos. Com maior ou menor

quantidade de tinta, escrevendo o livro da luta de classes, sem qualquer certeza de

chegar ao último degrau – o da classe e consciência de classe - mas certos de que

esse é um livro ainda sem final.

Sader (1988) afirmava estar diante da emergência de uma nova configuração

das classes populares, de “novas configurações dos trabalhadores”, de uma parcela

que constituiu movimentos sociais e da emergência de novos sujeitos políticos.

Telles (1987) dizia que os movimentos populares se constituíam num dos eixos de

construção de identidades de classe porque articulavam setores do proletariado que

não teriam acesso à organização sindical. O trabalho aqui apresentado poderia ser

contextualizado entre esses que relacionam os MSUs à constituição de sujeitos

políticos e ao fazer-se de classe. Buscou questionar e se diferenciar daqueles que

se prendem às explicações estruturais; das teorias que separam ou secundarizam

as lutas dos MSUs frente a outras lutas e movimentos locais dos trabalhadores; das

explicações importadas dos países do Centro e acionadas sem mediações para

explicar a realidade dos países periféricos; e também das perspectivas políticas que

reduzem a importância desses movimentos e do segmento dos trabalhadores que

neles se organiza.

Seguiu a trilha dos estudos que tentam perceber as ações coletivas e as

experiências políticas e organizativas dos trabalhadores e seus distintos segmentos

em movimento como parte do processo histórico possível de fazer-se de classe. E

tentou compreender o processo de fazer-se de uma fração de classe – dos

Page 325: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

325

trabalhadores pobres que participam de MSUs -, que ocorria em meio à constante

relação com outros segmentos dos trabalhadores, favorecendo também o fazer-se

de outras frações da classe trabalhadora. Buscou-se, assim, uma melhor

compreensão da participação dos MSUs no fazer-se da classe trabalhadora no

Brasil e, ao mesmo tempo, se avançar na superação da (possível) dicotomia entre o

fazer-se das “classes populares” e da classe trabalhadora.

Por fim, se não foram respondidas todas as questões inicialmente propostas,

se o resultado desse trabalho são mais dúvidas e hipóteses do que conclusões e

comprovações, se foram reconhecidas mais deficiências e insuficiências nas

análises teóricas do que soluções, e se o próprio fazer-se de classe é apenas uma

possibilidade da história, parece ter ficado claro que não é possível examinar o

processo de fazer-se da classe trabalhadora nos anos 2000 no Brasil sem que os

movimentos sociais urbanos sejam objeto de investigação.

Page 326: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

326

REFERÊNCIAS

ABRAMO, Pedro (org.). A cidade da informalidade: O desafio das cidades latino-americanas. Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras/FAPERJ, 2003. ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO - ZAHAR, 1988. ALMEIDA, Cássia; GOMES BATISTA, Henrique (et. al.). Incentivos e subsídios a carros somam quase o dobro do valor investido em transporte coletivo em 2013. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 02 nov. 2014. Caderno de Economia, p. 35. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/incentivos-subsidios-carros-somam-quase-dobro-do-investido-em-transporte-coletivo-em-2013-14439996>. Acesso em: nov. 2014. ______. Gasto para usar transporte público subiu mais em 20 anos do que para andar de carro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 03 nov. 2014. Caderno de Economia, p. 19. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/gasto-para-usar-transporte-publico-subiu-mais-em-20-anos-do-que-para-andar-de-carro-14444273>. Acesso em: nov. 2014. ______. Emprego concentrado na Capital complica trânsito na Metrópole. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 03 nov. 2014. Caderno de Economia, p. 20. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/emprego-concentrado-na-capital-complica-transito-na-metropole-14444327>. Acesso em: nov. 2014. ______. Caos urbano é retrato comum nas maiores metrópoles brasileiras. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 02 nov. 2014. Caderno de Economia, p. 36. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/caos-urbano-retrato-comum-nas-maiores-metropoles-brasileiras-14440214>. Acesso em: nov. 2014. ______. Léguas de distância: Quatro horas e um cavalo separam o Rio de Londres. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 02 nov. 2014. Caderno de Economia, p. 37. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/caos-urbano-retrato-comum-nas-maiores-metropoles-brasileiras-14440214>. Acesso em: nov. 2014. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?. São Paulo: Cortez, 1995. ______. Os sentidos do trabalho. Rio de Janeiro: Boitempo, 1999.

Page 327: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

327

______. A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. Campinas: Autores Associados, 2004. ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy. Os Dias que Abalaram o Brasil: as rebeliões de junho. Jul. 2013. Disponível em: <http://r5vereador.wordpress.com/2013/07/01/os-dias-que-abalaram-o-brasil-as-rebelies-de-junho-julho-de-2013/>. 2013. Acesso em: jul. 2014. ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. ARANTES, Paulo. O futuro que passou. Paulo Arantes: O Estado de São Paulo, jun. 2013. Entrevista concedida a Ivan Marsaglia. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,o-futuro-que-passou,1045705>. Acesso em: jul. 2014. ARAÚJO, Silva Maria de; BRIDI, Maria Aparecida; FERRAZ, Marcos (org.). O sindicalismo equilibrista: entre o continuísmo e as novas práticas. Curitiba: UFPR/SCHLA, 2006. AZEVEDO, Sérgio. Habitação e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. ______. Vinte e dois anos de política de habitação popular (1964-1986): Criação, Trajetória e Extinção do BNH. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, n. 4, p. 107-119, out./dez. 1988. AZEVEDO, Sérgio; RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. A produção da moradia nas grandes cidades: dinâmicas e impasses. In: AZEVEDO, Sergio; RIBEIRO; Luiz César de Queiroz (Org.). A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. BALDEZ, Miguel. A luta pela terra. In: RIBEIRO, Luiz César de Q.; CARDOSO, Adauto L. (Org.). Reforma urbana e gestão democrática. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2003. BEGA DOS SANTOS, Regina. Movimentos sociais urbanos. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

Page 328: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

328

BOITO JR, Armando. O sindicalismo de estado no Brasil. Campinas: Ed. UNICAMP, 1991. BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. Estação Liberdade / FAPESP, São Paulo, 1998. ______. Crise de habitação e a luta pela moradia no pós-guerra. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 95-130, 1994. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. ______. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. ______. Razões práticas. Campinas: Papirus, 2007a. ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007b. BOURDIEU, Pierre; CHAMBODERON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: Metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes, 2005. BRAGA, Ruy. Sob a sombra do precariado. In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 79-82, 2013. BRANT, Vinícius Caldeira. Da resistência aos movimentos sociais. In: SINGER, P; BRANT, V. C. (org.) São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis: Vozes, p. 9-27, 1980. BRITO, Felipe; ROCHA DE OLIVEIRA, Pedro. Territórios transversais. In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 65-70, 2013. CACCIA BAVA, Silvio. A luta nos bairros e a luta sindical. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 287-313, 1988.

Page 329: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

329

CARDOSO, Adalberto M. A década neoliberal e a crise dos sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo Janeiro: planejamento estratégico e urbanismo de resultados. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR 7, 1997, Recife. Anais... Recife: UFPE/MDU, 1997. p. 1721-1734. v. 3. CARDOSO, Ruth C. Apresentação. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 12-15, 1994. ______. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas do método. In CARDOSO, R. (org.) A aventura antropológica: Teoria e Pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 95-105, 1986. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. COMPANS, R. A emergência de um novo modelo de gestão urbana no Rio de Janeiro: planejamento estratégico e urbanismo de resultados. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR 7, 1997, Recife. Anais... Recife: UFPE/MDU, 1997. p. 1721-1734. v. 3. CORAGGIO, José Luis. Pesquisa urbana e projeto popular. Espaço & Debates, São Paulo, nº 26, Ano IX, p. 22-39, 1989. CYMBALISTA, Renato (org.). Conselhos de habitação e desenvolvimento urbano. São Paulo: Polis, 2001. DURHAM, Eunice Ribeiro. A sociedade vista da periferia. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 169-204, 1994. EDER, Klaus. A classe social tem importância no estudo dos movimentos sociais? Uma teoria do radicalismo da classe média. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.16, nº 46, p.5-27, jun. 2001. Invasão exige respostas urgentes do poder público. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 05 abr. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/invasao-exige-respostas-urgentes-do-poder-publico-12097862>. Acesso em: abr. 2014.

Page 330: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

330

ENGELS, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo, 1977. ______. Contribuição ao problema da habitação. In: Marx e Engels: Obras Escolhidas, Vol. II. SP: Editora Alfa-Omega, 1979. ______. A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. RJ: Paz e Terra, 1975. FERRER, Roberto L. Las clases sociales: Más acá de la utopia. In: I Conferencia Internacional “La obra de Carlos Marx y los desafios del siglo XXI”, 2003 Havana. Disponível em <http://www.nodo50.org/cubasigloXXI/congreso/ lima_15abr03.pdf>. Acesso em: maio de 2011. FONTES, Virgínia. Reflexões Im-Pertinentes: História e Capitalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005. GIANNOTTI, Vito; LOPES NETO, Sebastião. CUT por dentro e por fora. Rio de Janeiro: Vozes, 1990. ______. CUT ontem e hoje. São Paulo: Vozes, 1991. ______. Para onde vai a CUT?. São Paulo: Scritta Ed, 1993. ______. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. GIMÉNEZ, Gilberto. Problemas teórico-metodológicos. Revista Mexicana de Sociologia, Ano LVI, nº 2, p. 3-14, abr./jun. 1994. GOHN, Maria da Glória. Reivindicações populares urbanas. São Paulo: Cortez Editora, 1982. ______. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições Loyola, 1991. ______. Teoria dos movimentos sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

Page 331: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

331

GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lenin e Gramsci. Porto Alegre:L&PM Editores,1986. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. HARVEY, David. O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas sociedades capitalistas avançadas. Espaço & Debates, São Paulo, nº 6, ano II, 1982. ______. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, São Paulo, Ano XVI, n.39, p. 48-64, 1996. ______. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004. ______. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. HOBSBAWM, E.J. Rebeldes primitivos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. ______. Os Trabalhadores: Estudos sobre a História do Operariado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. ______. Revolucionários. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ______. Mundos do Trabalho: Novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006. ______________. Ensaios Sobre Consciência e Emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2007. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br

Page 332: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

332

/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2008_2009/POFpublicacao.pdf>. Acesso em: out. 2010. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD. Síntese de Indicadores 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2010ª. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/ /pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf>. Acesso em: out. 2010. JACOBI, Pedro R. Movimentos sociais: teoria e prática em questão. In: SCHERER-WARREN, IIse; KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma revolução no cotidiano?. Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, p. 246-275, 1987. ______. Movimentos sociais e políticas públicas: demandas por saneamento básico e saúde, São Paulo, 1974-1984. São Paulo: Cortez, 1989. JACOBI, Pedro R.; NUNES, Edilson. Movimentos populares urbanos, poder local e conquista da democracia. In: MOISES, J.A. [et. al.] Cidade, povo e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 165-199, 1982. JARAMILLO, Samuel. Las formas de manifestación de la renta: el precio del suelo urbano. In:JARAMILLO, Samuel; PÁEZ, Andrés (org.). Hacia una teoría de la renta del suelo urbano. Bogotá: Ediciones Uniandes, 1994. ______. Producción de vivienda y capitalismo dependiente: el caso de Bogotá. Bogotá: CEDE/Uniandes, 1981. KARNER, Hartmut. Movimentos sociais: revolução no cotidiano. In: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma revolução no cotidiano?. Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, p. 19-34, 1987. KOWARICK, Lúcio. (Introdução) As lutas sociais e a cidade: repensando um objeto de estudo. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 17-27, 1988. ______. (Considerações finais) As lutas sociais e a cidade: impasses e desafios. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo, passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 315-326, 1988.

Page 333: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

333

KOWARICK, Lúcio e BONDUKI, Nabil. Espaço urbano e espaço político: do populismo à redemocratização. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 147-177, 1994. LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LINHART, Robert. Lênin, os Camponeses, Taylor: Ensaio de análise baseado no materialismo histórico sobre a origem do sistema produtivo soviético. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. LOPES DE SOUZA, Marcelo; RODRIGUES, Glauco Bruce (org.). Planejamento urbano e ativismos sociais. São Paulo: UNESP, 2004. LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social: Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1985. LÖWY, Michael; BENSAID, Daniel. Marxismo, modernidade e utopia. São Paulo: Xamã, 2000. LUTAS URBANAS. Revista Espaço & Debates, Ano IX, nº 26. São Paulo: NERU, 1989. LUXEMBURG, Rosa. A revolução russa. Petrópolis: Vozes, 1991. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro, Vecchi, 1956. MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2008. ______. É a questão urbana, estúpido! In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 19-26, 2013. MARQUES, Guilherme. O Novo Sindicalismo, a Estrutura Sindical e a Voz dos Trabalhadores – 1977 a 1995. Rio de Janeiro: ADIA, 2004.

Page 334: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

334

MARQUES, Guilherme; HILGERT, Nádia; ARAUJO, Rosane L.; AMORIM, Mirella. O Programa de Arrendamento Residencial – PAR: um panorama do Rio de Janeiro. In: SEMANA DE PLANEJAMENTO URBANO REGIONAL, 9, 2003, Rio de Janeiro. Anais..., Rio de Janeiro: UFRJ/ IPPUR, 2003. MARQUES, Guilherme. Cidade e Conflitos Urbanos na Imprensa Sindical Carioca (1995-2002). Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2005. Disponível em: <http://www.ippur.ufrj.br/download/pub/GuilhermeJoseAmilcarLemosMarques.pdf.>. MARQUES, Guilherme; Benedicto, Danielle B. PAN Rio 2007: Manifestações e Manifestantes. In: XIII Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 2009 Florianópolis. Anais... ANPUR, 2009 Disponível em: <http://www.anpur.org.br/anais/ena13/ARTIGOS/GT1-1062-938-20081220230327.pdf>. MARQUES, Guilherme; MAGNI, Ana C. Luta por moradia, educação e direitos humanos: pais e filhos em uma ocupação urbana no Rio de Janeiro. Universidade e Sociedade, Brasília, Ano XXII, nº 50, p.58-71, jun. 2012. MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. ______. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Lisboa: Estampa, 1971. ______. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. Obras Escolhidas, vol. 1. Moscou, Progresso; Lisboa, Avante: 1982. MATTOS, Marcelo Badaró. Classes Sociais e Luta de Classes. Mimeo, 2006. ______. Reorganizando em meio ao refluxo: Ensaios de intervenção sobre a classe trabalhadora no Brasil atual. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2009.

Page 335: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

335

______. A multidão nas ruas: construir a saída de esquerda para a crise política, antes que a reação imprima sua direção. 2013. Disponível em: <http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1576>. Acesso em: jul. 2014. Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, mai. 2013. MELO, Marcus André B. C. de. Classe, burocracia e intermediação de interesses na formação da política de habitação. Espaço & Debates, Ano VIII, nº 24. São Paulo, p.75-85, 1988. MIAGUSKO, Edson. Movimentos de moradia e sem-teto em São Paulo: experiências no contexto do desmanche. São Paulo: Alameda, 2012. MINISTÉRIO DAS CIDADES (2010). Déficit habitacional 2008. Nota técnica. Disponível em <http://www.cidades.gov.br/ministerio-das-cidades/arquivos-e-imagens-oculto/NOTA_DEFICIT2008_FJP_jul2010 .pdf>. Acesso em: set. 2010. MOISÉS, José Álvaro. O Estado, as contradições urbanas e os Movimentos Sociais. In: MOISES, J.A. [et. al.] Cidade, povo e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 14-29, 1982. MOISÉS, José Álvaro; MARTINEZ-ALIER, Verena. A revolta dos suburbanos ou “Patrão, o trem atrasou”. In: MOISÉS, José Álvaro [et. al.]. Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Paz e Terra-CEDEC, p. 13-63, 1977. MOVIMENTO Passe Livre – São Paulo. Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo. In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 13-18, 2013. MUNCK, Gerardo L. Algunos problemas conceptuales en el estudio de los movimientos sociales. Revista Mexicana de Sociologia, ano LVII, nº 3, p. 17-40, jul./set. 1995. NUN, José. Marginalidad y exclusión social. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000.

Page 336: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

336

NUNES, Edison e JACOBI, Pedro. Movimentos populares urbanos, poder local e conquista da democracia. In: MOISES, J.A. [et. al.] Cidade, povo e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 165-198, 1982. ______. Carências e modos de vida. In: São Paulo em Perspectiva, vol. 4, nº 2, p. 2-7, abr./jun. 1990. OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1989. OLIVEIRA, Francisco de. Acumulação monopolista, Estado e urbanização: a nova qualidade do conflito de classes. In: MOISÉS, José Álvaro [et. al.]. Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Paz e Terra-CEDEC, p. 65-76, 1977. ______. O estado e o urbano no Brasil. Espaço & Debates, São Paulo, Ano II, n.6, p. 36-54, jun./set. 1982. ______. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público. In: Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998. ______. O elo perdido: Classe e identidade de classe na Bahia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. ______. Era uma vez operários da Volkswagen... (Prefácio) In: MIAGUSKO, Edson. Movimentos de moradia e sem-teto em São Paulo: experiências no contexto do desmanche. São Paulo: Alameda, p.11-17, 2012. PAGOTTO, Claudete. Movimentos e práticas sociais no jogo das transformações político-econômicas. Revista Espaço Acadêmico, nº 57, Ano V. Maringá: fev. 2006. PALUMBO, Adriana Poci; PEREIRA, Márcia Accorsi; BALTRUSIS, Nelson (org.). Direito à moradia: Uma contribuição para o debate. São Paulo: União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, FASE, Paulinas, 1992. PERRUSO, Marco Antonio. Em busca do novo: Intelectuais brasileiros e movimentos populares nos anos 1970/80. São Paulo: Annablume, 2009.

Page 337: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

337

PLANEJAMENTO e Território: Ensaios sobre a desigualdade. Cadernos IPPUR, ano XV, nº 2, Ago-Dez 2001 / Ano XVI, nº 1, Jan-Jul 2002. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 2001-2002. POCHMANN, Márcio; BORGES, Altamiro. “Era FHC”: a regressão do trabalho. São Paulo: Anita Garibaldi, 2002. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. RIBEIRO, Ana Clara T. A reforma e o plano: algumas indicações gerais. In: DE GRAZIA, G (org). Plano diretor: instrumento de reforma urbana. Rio de Janeiro, FASE, 1990, pp. 13-25. ______. Movimentos Sociais: caminhos para a defesa de uma temática ou os desafios dos anos 90. Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Vértice, ANPOCS, p. 95-121, 1991. RIBEIRO, Ana Clara T; SILVA, Luis Antonio M. Paradigma e movimento social: por onde andam nossas idéias? In: Ciências Sociais Hoje, São Paulo: Vértice, ANPOCS, p. 318-336, 1985. RIBEIRO, L. C. de Q. Rio de Janeiro: exemplo de metrópole partida e sem rumos? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.45, p. 167-182, 1996. RIBEIRO, L. C. de Q; SANTOS Jr, Orlando Alves dos. Associativismo e participação popular: tendências da organização popular no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR: FASE, 1996. RIDENTI, Marcelo. Classes sociais e representação. São Paulo: Cortez Editora, 1994. ROCHA, Carla; SCHMIDT, Selma; RAMALHO, Sérgio. Negócios em áreas pacificadas crescem até 30% em 5 anos. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 09/12/2013. Disponível em <http://oglobo.globo.com/rio/negocios-em-areas-pacificadas-crescem-ate-30-em-5-anos-11009521>. Acesso em: dez. 2013. RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras. São Paulo: Contexto, 2001.

Page 338: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

338

ROLNIK, Raquel. São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política. In: KOWARICK, L. (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo, passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 75-92, 1988. ______. Minha casa, minha vida: a dificuldade de atender às famílias de menor renda. Artigo, 2010. Disponível em: <http://raquelrolnik.wordpress.com/2010/08/30/minha-casa-minha-vida-a-dificuldade-de-atender-as-familia-de-menor-renda/>. Acesso em: out. 2010. ______. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 7-12, 2013. SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SADER, Eder; PAOLI, Maria Célia. Sobre “Classes populares” no pensamento sociológico brasileiro. In CARDOSO, R. (org.) A aventura antropológica: Teoria e Pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 39-67, 1986. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. Cortez Editora, São Paulo, 2004. SALLUM JR, Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. In: Lua Nova. Revista de Cultura e Política. Nº 65. São Paulo: CEDEC, p. 11-42, 2005. SCHERER-WARREN, Ilse. O caráter dos novos movimentos sociais. In: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma revolução no cotidiano? .Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, p. 35-53, 1987. SCHMIDT, Benício e FARRET, Ricardo. A questão urbana. Rio de Janeiro, Zahar, 1986. SECCO, Lincoln. As Jornadas de Junho. In: MARICATO [et alii]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 71-78, 2013.

Page 339: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

339

SINGER, Paul. Movimentos de bairro. In: SINGER, P. & BRAN'T, V. C. (org.) São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis, Vozes, p. 83-107, 1980. ___________. Movimentos Sociais em São Paulo: Traços comuns e perspectivas. In: SINGER, P. & BRAN'T, V. C. (org.). São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis, Vozes, p. 207-230, 1980. SPITZ, Clarice. Mapa dos Rendimentos: O Centro do trabalho. Jornal o Globo, Rio de Janeiro, 02 jan. 2014. Caderno Economia, p. 17. Disponível em: <http://www.ecosistemas.com.br/arquivos/eco-sistemas-2014-nova-sede.pdf>. Acesso em: mar. 2014. SUGRANYES, Ana e MATHIVET, Charlotte (ed.). Cidades para todos: Propostas e experiências pelo direito à cidade. Santiago: Habitat International Coalition, 2010. TELLES, Vera da Silva. Movimentos sociais: reflexões sobre a experiência dos anos 70. SCHERER-WARREN, Ilse e KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, p. 54-85, 1987. _______. Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade: São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 247-283, 1988. TELLES, Vera da Silva; CABANES, Robert (org.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. (3 vols.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001. TILLY, Charles. Los movimientos sociales como agrupaciones historicamente específicas de actuaciones políticas. Sociológica. Ano 10, nº 28. México: maio-agosto 1995, p. 13-36, mai /ago. 1995. TOPALOV, Christian. La urbanización capitalista. Mexico: Ed. Edicol, 1978.

Page 340: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

340

______. Fazer a história da pesquisa urbana: a experiência francesa desde 1965. Espaço & Debates, São Paulo, n.23, p.5-30, 1988. TOURAINE, Alain. O retorno do actor: Ensaio sobre sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. VAINER, Carlos. Cidade de Exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional da Associação Nacional de Planejamento Urbano e Regional, realizado de 23 a 27 de maio de 2011, em Rio de Janeiro. ______. Quando a cidade vai às ruas. In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 35-40, 2013. ______. Mega-eventos, Mega-negócios, Mega-protestos: uma contribuição ao debate sobre as grandes manifestações e as perspectivas políticas. Rio de Janeiro, IPPUR, 2013a. Disponível em: <http://www.ettern.ippur.ufrj.br/ultimas-noticias/196/mega-eventos-mega- negocios-mega-protestos>. Acesso em: jul. 2014. VARGAS, José D. UPP é bom negócio. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11 dez. 2013. Disponível em <http://oglobo.globo.com/opiniao/upp-bom-negocio-11030706>. Acesso em: dez. 2013. VASCONCELLOS, Fábio. Minha Casa Minha Vida enfrenta problemas como contas não pagas, puxadinhos e tráfico. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15 jan. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/minha-casa-minha-vida-enfrenta- problemas-como-contas-nao-pagas-puxadinhos-trafico-11302923>. Acesso em: jan. 2014. VILAS, Carlos M. Actores, sujetos, movimientos: donde quedaron las clases?. Sociológica, Ciudad de Mexico, ano X, n. 28, p. 61-89, mai./ago. 1995. WEFFORT, Francisco C. Apresentação. In: MOISÉS, José Álvaro [et. al.]. Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Paz e Terra- CEDEC, p. 9-12, 1977. ______. Participação e Conflito Industrial – Osasco e Contagem 1968. São Paulo: CEBRAP: 1972.

Page 341: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - objdig.ufrj.brobjdig.ufrj.br/42/teses/863419.pdf · Tese apresentada ao Curso de ... Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

341

WRIGHT, Erik Olin. Class Counts: comparative studies in class analysis. Cambridge University Press, 1997. ŽIŽEK , Slavoj. Problemas no Paraíso. In: MARICATO [et. al.]. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, p. 101-108, 2013.