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MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVA – OPAN 2ª EDIÇÃO

MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA · A percepção dos autores sobre as mudanças climáticas está pautada na vi-vência e observação da natureza para, a partir delas

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MUDANÇAS CLIMÁTICAS EA PERCEPÇÃO

INDÍGENA

OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVA – OPAN

2ª EDIÇÃO

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IND

ÍGEN

A

O

PAN

- 2018 / 2ª EDIÇÃO

Realização Patrocínio

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Organização:ARTEMA LIMA

ANDREIA FANZERES LÍVIA ALCÂNTARA

OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVA – OPANMato Grosso. Brasil. 2018

Organização e ediçãoArtema LimaAndreia FanzeresLívia Alcântara RevisãoAndreia Fanzeres Artema Lima Ivar Luiz Vendruscolo Busatto Coordenação executiva da OPANIvar Luiz Vendruscolo Busatto Vinicius Benites Alves

Equipe OPAN – Bacia do Juruena / Projeto Berço das ÁguasArtema Lima / Coordenadora do Programa Mato GrossoTarcísio dos Santos / Coordenador do Projeto Berço das ÁguasEdemar Treuherz / IndigenistaLiliane Xavier / IndigenistaLívia Alcântara / Comunicadora Foto da capaAdriano Gambarini/OPAN Projeto Gráfico e diagramaçãoMarina Lutfi / cacumbu

ISBN: 978-85-67133-12-6

OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVAAv. Ipiranga, 97 Bairro Goiabeiras, Cuiabá - MT Brasil CEP: 78032-035Telefone: 55 (65) 3322-2980 / FAX: 55 (65) 3322-4161www. amazonianativa.org.br

MUDANÇAS CLIMÁTICAS EA PERCEPÇÃO

INDÍGENA

2ª EDIÇÃO

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9 APRESENTAÇÃO

13 VAMOS OUVIR OS ÍNDIOS

TARCÍSIO DA SILVA SANTOS JÚNIOR E LUCIANA REBELLATO

20 UM OUTRO NOME PARA AS

MUDANÇAS CLIMÁTICASAILTON KRENAK

24 MUDANÇAS CLIMÁTICAS, POVOS INDÍGENAS,

EDUCAÇÕES E ECOLOGIA PROFUNDASEVERIÁ IDIORIÊ

30 MUDANÇAS CLIMÁTICAS PARA POVO

MUNDURUKU DE JUARAMARCELO MANHUARI MUNDURUKU

36 PRECISAMOS PRESERVAR PARA

CONTINUAR EXISTINDOTIPUICI MANOKI

40 RÓ NA WAHÖIMANAZÁ

VIVER NO CERRADOCAIMI WAIASSÉ XAVANTE

46 AS MUDANÇAS NO CLIMA

PARA O POVO MANOKIMANOEL KANUNXI

52 O POVO MEHINAKO E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

MAYAWARI MEHINAKO

58 MUDANÇA CLIMÁTICA PARA

O POVO KAYABI-KAWAIWETÉPIKURUK CAVALCANTE KAYABI

62 OS WAURÁ DO XINGU E

AS MUDANÇAS NO CLIMAPIRATÁ WAURÁ

66 RIO JURUENA: CAMINHO DOS

POVOS DA FLORESTAPAULO HENRIQUE MARTINHO SKIRIPI

70 O POVO RIKBAKTSA E

AS MUDANÇAS CLIMÁTICASJUAREZ PAIMY

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Foto: Adriano Gambarini/OPAN

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8 9 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

A OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVA (OPAN), com quase cinco décadas de atu-ação no campo do indigenismo, contribuiu de forma relevante para a pro-moção e garantia dos direitos indígenas no Brasil. Em meio às mudanças locais e globais, suas ações e estratégias estão pautadas no apoio à demar-cação e proteção de territórios tradicionais desde a década de 60, e mais recentemente, facilitando a implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas (PNGATI) nos estados de Mato Grosso e do Amazonas.

Consideradas áreas prioritárias para a conservação da sociobiodiversidade, os territórios indígenas tornaram-se ilhas de resiliência expostas aos efei-tos negativos dos modelos de ocupação do entorno, baseados na geração de energia a partir de numerosos empreendimentos hidrelétricos e no agrone-gócio. Ainda assim, resistem culturas que conservam a biodiversidade como estratégia não apenas de sobrevivência, mas de garantia de um futuro com qualidade de vida, numa lógica bem diferente da mercantilização da natureza.

Nossas ações também estão no âmbito das agendas políticas, com repre-sentantes da sociedade civil em comitês, fóruns e conselhos, e no monito-ramento do desenvolvimento de obras de infraestrutura governamentais e seus efeitos sobre as áreas protegidas, assim como nas discussões sobre mudanças climáticas em níveis regionais, que provocaram, por exemplo, a atualização do calendário sazonal do povo Manoki. O monitoramento dos territórios, com atividades de expedições terrestres e fluviais, ajuda a pro-duzir dados in loco das mudanças de paisagem, recursos e clima que estão afetando os territórios indígenas.

APRESENTAÇÃO

Foto: Adriano Gambarini/OPAN

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10 11 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

Entendemos, assim, que a partir da nossa estratégia institucional de atuar pela defesa e gestão dos territórios indígenas, esses espaços articulam di-mensões humanas e não humanas, contribuindo para a conservação da dinâmica dos ecossistemas e para a proteção dos locais sagrados correla-cionados. Cada povo determina seu modelo de gestão, faz suas análises e interpretações acerca das mudanças observadas no mundo.

Por esta razão, o livro “Mudanças climáticas e a perspectiva indígena” foi ela-borado. Nesta segunda edição, mais dois textos de autoria indígena e uma re-flexão sobre instrumentos de monitoramento climático foram incorporados. Ele cumpre seu papel de registrar as diferentes visões dos indígenas sobre seus territórios, seu modo de vida e o clima. Sem a pretensão de mapear as alterações climáticas pelo vasto universo indígena, esta publicação reúne percepções do que vem mudando no cotidiano dos povos e de como enfrentar esses desafios a partir de uma ótica holística que se encaixa perfeitamente dentro dos principais pleitos indígenas apresentados em fóruns internacio-nais, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU).

Nos textos aqui publicados, os indígenas não discorrem sobre os compro-missos dos estados nacionais mais ou menos ousados com relação às metas de emissões, não opinam quanto à subida de dois, três ou quatro graus na temperatura média do planeta, não falam de créditos de carbono, mecanis-mos de desenvolvimento limpo e nenhum dos jargões climáticos usados nas mesas de negociação internacionais, e que invadem o noticiário sem conse-guir expressar qualquer concretude. Eles, por sua vez, demonstram quão ra-pidamente suas vidas têm mudado por influência dos não indígenas, como animais, plantas e rios têm respondido a todas as pressões, e que não será apenas uma canetada que impedirá maiores impactos.

Para que grandes alterações ocorram – grandes como o desafio de reverter a guinada climática mundial – os indígenas enxergam mais longe. E o mo-delo de desenvolvimento escolhido pelos países é o que precisa mudar. As soluções devem ser reais e não paliativas. Qualquer decisão tem que ser pre-cedida do respeito aos direitos humanos, territoriais e à participação. O co-nhecimento tradicional deve ser reconhecido, assim como seu papel na cons-trução de soluções para mitigação e adaptação, com acesso aos mecanismos financeiros e de formação. Dialogar com os indígenas tem a ver com observar outras referências, outros valores. Qualquer proposta que não contemple tais elementos terá sido apenas mera diplomacia.

Boa leitura!

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12 13 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

SABIAMENTE ELABORADOS pelos indígenas, os textos deste livro nos permi-tem perceber como povos e territórios estão sendo afetados pelas mudanças climáticas. Esse tema, na atualidade, perpassa os distintos grupos humanos, seus espaços geográficos e contextos geopolíticos. A seriedade desta pauta para os indígenas pode ser melhor compreendida ao notar em suas falas que as consequências das mudanças estão sendo sentidas no dia-a-dia das co-munidades e nas terras que resguardam um rico patrimônio natural. A maio-ria dos autores, mesmo vivendo em distintas regiões do estado de Mato Gros-so, apontam problemas similares no que tange às mudanças climáticas. Eles estão pagando uma conta que não é deles, mas dos que adotam uma lógica de uso do ambiente diferente daquela realizada pelos indígenas.

Compreender e dar atenção às percepções indígenas sobre mudanças cli-máticas é um desafio para aqueles que cresceram sob a influência do pen-samento hegemônico de que a tecnologia ocidental é algo inquestionável e que tudo pode solucionar. Sem querer desmerecê-la, é preciso abrir a mente para pensar que há outras formar de pensar e agir, como também de perceber mudanças no meio ambiente.

A percepção dos autores sobre as mudanças climáticas está pautada na vi-vência e observação da natureza para, a partir delas dar continuidade aos seus modos de vida e realizar a reprodução física e cultural. Isto se viabiliza, na prática, pelo conhecimento que os indígenas adquiriram sobre o tempo e as relações entre as coisas (fauna, flora, chuva, frio, calor) para saber onde e quando elas estarão disponíveis para uso alimentar, medicinal, cultural, ar-quitetônico e de confecção de artefatos domésticos, de caça e de pesca. Por outro lado, a percepção dos não-índios sobre as alterações no clima estão pautadas, de forma muito resumida, na elaboração de modelos matemáticos e computacionais de previsão climática que fazem uso de valores históricos de precipitação, temperatura, pressão atmosférica e cobertura de nuvens.

Vamos ouvir os índiosTARCÍSIO DA SILVA SANTOS JÚNIOR E LUCIANA REBELLATO

Foto: Adriano Gambarini/OPAN

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14 15 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

Os diversos componentes presentes no meio ambiente não estão, de fato, em pacotinhos, mas intimamente interligados. Por exemplo, os atuais padrões de distribuição, densidade, floração e de frutificação de muitas espécies de plantas evoluíram interagindo, entre outros, com animais, chuvas, ventos e temperaturas, por sua vez importantes na determinação das estações do ano. Como mencionado antes, é nesta realidade que as estratégias e tecno-logias de manejos dos recursos naturais pelos indígenas estão pautadas. Há um longo histórico de observação da natureza que se dá pela ancestralidade de uso e ocupação de seus territórios tradicionais. O fato é que os povos das florestas têm um olhar refinado sobre o ambiente e conseguem indicar mu-danças sutis quando elas ocorrem.

Atualmente há uma diversidade de plataformas digitais que permitem acom-panhar a dinâmica das ações antrópicas e suas correlações com as mudanças climáticas1. Como forma de ilustrar as percepções indígenas sobre as altera-ções no clima, foi realizada uma pesquisa2 no site The Carbon Source especi-ficamente para as terras indígenas localizadas na sub-bacia do rio Juruena3, que, junto com o rio Teles Pires, são os principais formadores do rio Tapajós.

3. A sub-bacia do Juruena tem a maior parte de sua extensão (190.770 Km²) localizada no MT e 26% dela corresponde a 22 TIs, onde vivem cerca de 5.000 indígenas de 10 grupos étnicos.

Terras Indígenas de Mato Grosso, com destaque para aquelas localizadas na sub-bacia do Juruena.

Terras indígenas

Sub bacia do Juruema

Mato Grosso

Brasil

1. Sugestões para consulta: http://www.dpi.inpe.br/prodesdigital/prodes.php e https://www.globalforestwatch.org/map

2. A pesquisa no www.thecarbonsource.org/climate_explorer/ foi feita consultando-se valores de temperatura e precipitação para as Terras Indígenas cuja extensão territorial estão totalmente incluídas nos limites geográficos das sub-bacia do rio Juruena. Os valores apresentados correspondem ao que o site disponibiliza no cenário de alta emissão de carbono.

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16 17 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

Os gráficos gerados quanto à previsão de temperatura e precipitação corro-boram as percepções dos indígenas. As temperaturas se mostram mais altas, da ordem de 1 a 2° C, para todas as terras indígenas quando se consideram os valores medidos entre 1961-1990 e 1991-2015. Mostram também um au-mento cumulativo de 2 a 3° C nas projeções feitas para cada um dos novos intervalos (2016-2039, 2040-2069, 2070-2099).

TEM

PE

RAT

UR

A (º

C)

24

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1961 a 1990 1991 a 2015 2016 a 2039 2040 a 2069 2070 a 2099

2.400

2.300

2.200

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1.900

1.800

1.700

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1.500

1.400

1.300

1.2001960 a 1991 1991 a 2015 2016 a 2039 2040 a 2069 2070 a 2099

PR

EC

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AÇÃO

(mm

)

Apiakás e IsoladosEscondidoJapuíraEikpatsaApiaká-KayabiBatelãoMenkuEnawenê NawêNambikwaraPirineus de SouzaTirecatingaUtiaritiPareciJuininhaUirapuruPonte de pedraEstação parecisSantanaIrantxeManoki

2.400

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Temperatura real e projetada para as Terras Indígenas da sub-bacia do Juruena, Mato Grosso (1961 a 2099)

Precipitação real e projetada para as Terras Indígenas da sub-bacia do Juruena, Mato Grosso (1961 a 2099)

As chuvas, na grande maioria dos territórios, apresentam uma diminuição real, da ordem de até 100 milímetros, nos valores medidos entre 1961-1990 e 1991-2015. Esta mesma redução se revela cumulativa para o restante dos intervalos. Esses dados são uma pequena mostra do que já se tem registra-do sobre o assunto, ilustrando-se somente os quantitativos de chuva e tem-peratura. Não se mencionou como eles estão distribuídos, ou seja, como as estações do ano (inverno, verão, outono e primavera) estão sendo alteradas.

Se há uma perspectiva de manter o atual modelo econômico de uso dos recursos naturais pelos não-índios, e o entendimento é de que ele causa mudanças climáticas, ficam algumas perguntas para reflexão. Será que o agronegócio ou o poder público vai compensar os indígenas pelos impactos do clima no seu modo de vida? Será que com a diminuição da produtivida-de agrícola por falta de chuvas haverá pressão sobre as áreas protegidas como forma de expandir áreas de plantio para compensar essas perdas de produtividade? Os governos estão preparados para lidar com os possíveis conflitos sociais e fundiários que provavelmente irão advir pelo avanço dos projetos agrícolas, minerários e de infraestrutura sobre as terras indíge-nas? É urgente dar atenção às percepções dos povos tradicionais sobre as mudanças climáticas, sobre suas tecnologias e estratégias de sobrevivên-cia para que seja possível lidarmos com os impactos negativos das modifi-cações que estamos impondo à natureza.

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18 19 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

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20 21 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

TODOS SOMOS ALERTADOS por mil alto-falantes a cada dia sobre as mu-danças no clima, que vêm alterando o ciclo das chuvas nas mais diversas re-giões onde vivemos. Enchentes e secas prolongadas afetam a produção de alimentos, causando mortandade de peixes. Inundações sucedem as secas e esgotamento das nascentes. Desde a década de 1980, governos promovem conferências e criam sistemas de medição e monitoramento destas mudan-ças que ganharam o nome de Mudanças Climáticas.

E então vejo que o homem branco, que até aqui tem devastado as florestas revi-rando a terra em busca de ouro e outros minérios, envenenando os rios e cursos d’água, também sofre a consequência de suas escolhas. Mas nem estas graves perdas que afetam as vidas de milhões de pessoas no mundo todo foram ainda suficientes para mudar o rumo deste desastre. De certo seguem imaginando que podem dominar a Terra e outros seres viventes que nela habitam.

Não entenderam os alertas que nossos antigos sempre deram, sobre pisar com cuidado na Terra, este imenso jardim da criação, onde tudo está inter-ligado, desde a mais elevada montanha ao menor organismo que medra nos líquens e caules das pequenas ervas do campo. Muito antes dos complexos sistemas de medição e monitoramento dos brancos darem o sinal de perigo, nossos avós já mostravam como nossas caças iam se afastando das aldeias, e muitas de nossas plantas medicinais desapareciam de seus hábitats, como ocorreu na nossa região do Médio Rio Doce, onde vive o povo Krenak.

Mas isto não importava para os colonos, afinal quem fazia uso daquelas plan-tas ou animais eram somente os índios. Os colonos buscavam nas farmácias o seu remédio e no armazém o seu alimento. Com isto, as plantas que eram a base de nossas medicinas foram desparecendo. Suas cidades substituíram as nossas matas e florestas, seus pastos e rebanhos ocuparam o lugar dos animais silvestres. Agora, para as últimas regiões onde ainda temos flores-tas, os negócios sustentáveis dos brancos chegam na forma de ‘preservação da biodiversidade’, como uma modalidade de serviços ambientais que prome-tem melhorar o clima do planeta.

Não entenderam que a Terra é nossa mãe e tem o suficiente para suprir to-das as nossas necessidades, assim como tem capacidade de regeneração própria, e que pode dispensar a nossa presença no seu seio, despejando esta humanidade que insiste em moldar as paisagens onde vivem, sem honrar a maravilha da criação que nos deu tudo que precisamos para viver até aqui.

UM OUTRO NOME PARA MUDANÇAS

CLIMÁTICAS:“Tudo o que fere a Terra fere aos Filhos da Terra”

AILTON KRENAK

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22 23 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

Seguindo a citação que fiz das palavras de nosso parente Davi Kopenawa Yanomami, transcrita do livro “A Queda do Céu”, publicado este ano no Bra-sil, depois de ter sido já publicado na França e nos Estados Unidos, quero mostrar como nossos irmãos das nações indígenas no norte da América já profetizaram acerca deste tempo de mudanças que vivemos hoje, isto quase duzentos anos atrás:

“O homem branco não compreende nosso modo de viver. Uma porção de terra, para ele, é como outra qualquer. A Terra não é sua irmã, nem sua ami-ga. Depois de exauri-la, abandona-la, deixando para trás o túmulo de seus antepassados e os sonhos de seus filhos”. Palavras do chefe Seattle, do clã Suquamish e Duawamish, no ano de 1854.

AILTON ALVES LACERDA KRENAKJornalista, ambientalista e escritor da etnia Krenak. Nasceu em 1953 na região do Médio Rio Doce, no estado de Minas Gerais, Brasil. Aos 17 anos de idade mu-dou-se com sua família para o estado do Paraná, onde se alfabetizou e se tornou produtor gráfico e jornalista. Na década de 1980, passou a dedicar-se exclusiva-mente ao movimento indígena. Em 1985, fundou a organização não governamen-tal Núcleo de Cultura Indígena, de pro-moção e valorização da diversidade cul-tural indígena em nível nacional. Eleito para o Congresso Nacional do Brasil em 1986, participou da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Brasileira de 1988, lutando para que os direitos indígenas fossem garantidos.

Foto: Adriana Moura

Quero lembrar aqui as palavras de nosso irmão Davi Kopenawa Yanomami, no livro “A queda do Céu”:

“No primeiro tempo, nossos ancestrais ainda eram pouco numerosos. Oma-ma deu a eles as plantas das roças, que acabara de receber de seu sogro do fundo das águas. Então passaram a cultivá-las, cuidando da floresta. Não pensaram: ‘vamos desmatar tudo para plantar capim e vamos cavar o chão para arrancar metal!’. Ao contrário, começaram a se alimentar do que crescia na terra e dos frutos da mata. É o que continuamos a fazer até hoje.” (YANOMAMI,2015)

Hoje vemos que estas mudanças alcançaram as nossas terras indígenas a ponto de desestruturar as formas tradicionais de ocupação do território. Com as políticas do Estado brasileiro, associado com as empresas e corporações, estão barrando os nossos rios e até mesmo mudando o curso de grandes bacias, como na região do Xingu, rio Madeira e Tapajós. O ciclo das águas, a floresta e todos estes ecossistemas que dão fartura e abundância, e que sus-tentaram a vida de gerações e gerações de nossos povos, além da cultura e todas as expressões da vida livre e autônoma destes povos, estão sendo gravemente afetados.

Aldeias estão cercadas por campos de soja, de onde são lançados venenos pelo ar, afetando a vida das aves que fazem a polinização e disseminação ou dispersão das sementes que refazem a vida das florestas; provocando o afas-tamento das abelhas e outros polinizadores, além dos animais de caça que são expulsos pelo sobrevoo de aviões lançadores de agrotóxicos.

Ora, como os governantes querem falar de mudanças climáticas se seguem ocupando as cabeceiras e nascentes dos rios com as políticas do Estado e ignorando os direitos dos povos indígenas?

Antes, as comunidades indígenas, em diversas regiões do Cerrado e das flo-restas, viviam com fartura e prosperidade. Agora, a segurança alimentar des-tes povos é motivo de política pública! Primeiro o Estado brasileiro promoveu a destruição de seus modos de vida. Agora, milhares de famílias indígenas dependem da cesta básica ou dos programas assistenciais como a Bolsa Fa-mília. Esta é, para mim, a maneira mais direta e visível com que as mudanças climáticas afetam a vida dos Povos Indígenas. Se não temos nossos territó-rios demarcados e respeitados os seus limites, se segue avançando o agro-negócio sobre todas as regiões do país, será o fim da soberania alimentar de todos nós e o começo da nossa sobrevivência.

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24 25 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

NÓS, POVOS INDÍGENAS, temos falado há muito tempo das mudanças que poderiam acontecer se não nos atentássemos ao meio onde estamos, ob-servando nossas ações e corrigindo-as e/ou aperfeiçoando as práticas. Um exemplo disto é o discurso do Chefe Seatle da nação Suquamish, do Estado de Washington, ao presidente dos Estados Unidos, em 1855. Suas palavras estão imortalizadas em uma carta. Como disse ele, tudo que fizermos à terra nós sentiremos também porque “Todas as coisas estão relacionadas como o sangue que une uma família. Tudo está associado”. E continua: “O que fere a terra fere também os filhos da terra. O homem não tece a teia da vida; é antes um de seus fios. O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio”.

A questão é que, pelo modo como pensamos, não podemos discutir mudan-ças climáticas sem analisar as formas como o ser humano tem vivido no pla-neta. O que tem movido suas ações e quem tem de fato vivido e a quem a sobrevivência é imposta?

Cada sociedade concebe o corpo humano conforme seu sistema de significa-dos, sua cultura. Cada sociedade é prenhe de significados que desejam im-primir nas suas crianças e jovens por meio de socializações. E cada povo em particular tece essa rede de significados. A cultura, ao iniciar este processo, torna em “natural e universal” os padrões de comportamento que foram mol-dados. Contudo, por uma simples observação em nosso meio, notamos que o corpo humano é afetado pela religião, pela ocupação, pelo grupo familiar, pela classe e outros fatores sociais e culturais.

Muitas sociedades indígenas ainda mantêm uma educação especializada como prática social que une o saber, a vida e o trabalho. Educam-se na vida do dia a dia da comunidade quando fazem suas roças, coletam frutas e escutam as histórias dos mais velhos, realizam e participam de cerimônias coletivas.

Segundo registros históricos, os Xavante estão no Planalto central muito an-tes do descobrimento do Brasil. As primeiras tentativas de contato têm como registros referências ao século XVII. Uma carta-régia do século XIX decretou guerra contra eles. Nesta época, os Xavante seguiram rumo ao Rio das Mor-tes, Mato Grosso, e se dividiram em dois grupos: os Xerente que se estabele-ceram ao norte do Estado de Goiás, hoje Tocantins, e os Xavante, no Estado de Mato Grosso. Os Xavante do leste de Mato Grosso, da Terra Indígena Pimentel Barbosa, se autodenominam A’uwe Uptabi que significa povo verdadeiro. Os A’uwe Uptabi são povos caçadores, povos do sonho. Ser povo verdadeiro é ter ligação com o meio em que vive.

MUDANÇAS CLIMÁTICAS, POVOS INDÍGENAS,

EDUCAÇÕES E ECOLOGIA PROFUNDA

SEVERIÁ IDIORIÊ

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26 27 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

Numa caminhada pelos grandes centros desenvolvidos, observamos quais são as pessoas que vivem aliando “qualidade de vida e padrão de vida”. Nos condomínios horizontais existem heliportos, áreas verdes e lagos. Enquanto nas habitações populares, o que há?

O que tem tudo isto com mudanças climáticas? Tudo. Como é a educação nos países desenvolvidos? Os pais têm tempo de educar os filhos? Que va-lores são ensinados? Que tipo de pessoas têm deixado para o planeta, para a sociedade? E, como o poder público tem atuado? Assegura o direito do cidadão de viver dignamente?

São infinitas perguntas. Isto porque queremos entender como temos vivido. Tantas informações e conhecimentos, mas nada ameniza o calor, nada impe-de os tornados e as enchentes. Não sabemos o conceito de microclima, mas podemos sentir a diferença quando uma árvore é derrubada. Há diferença na temperatura, o local fica sem umidade, há mais claridade.

Estão ocorrendo mudanças climáticas. Se perguntarmos aos mais velhos a época das chuvas e das secas, ele com certeza dirá que houve mudanças nos últimos tempos. Não há como saber “direitinho”. Em Mato Grosso, nas áreas onde estão nossas aldeias, a leste, próximo ao Rio das Mortes, há uma década, as chuvas costumavam começar no final de outubro e terminavam em março. O término das chuvas parecia similar à época das chuvas do Rio de Janeiro, como bem canta Vinícius de Moraes em Águas de Março: é pau, é pedra, é o fim do caminho, é um resto de toco... são as águas de março fechando o verão...

Sabemos que as mudanças climáticas estão ligadas à forma de desen-volvimento e progresso. É necessária uma transformação social e cultural para reestruturar o sistema de informação e educação, como disse Fritjof Capra em “O ponto de mutação, a ciência, a sociedade e a cultura emergen-te”, em 1982. Ele fala sobre a distinção sobre “ecologia profunda” e ambien-talismo superficial. Segundo ele, enquanto o ambientalismo superficial se preocupa com o meio ambiente mais eficiente para o “homem”, a ecologia profunda exige mudanças radicais em nossa percepção do papel dos seres humanos no ecossistema planetário. E isso, conforme ele, requer uma nova base filosófica e religiosa.

Para os Xavante da aldeia Wede’rã, da Terra Indígena Pimentel Barbosa, mu-nicípio de Canarana, os conhecimentos sobre os cerrados, os rios, vales e montanhas, a maneira de pensar sobre si e seus semelhantes e outros po-vos, a maneira de realizar suas cerimônias, seus cantos, danças e sonhos, os A’uwẽ Uptabi trazem em suas memórias, em seu coração e em seus corpos pintados de urucum, carvão e às vezes tinta de jenipapo. O cheiro das ervas, as cordinhas amarradas no pulso e as gravatas são usadas como seus ances-trais costumavam utilizar. Para os A’uwẽ Uptabi tudo está interligado desde antes do nascimento, quando os pais se preparam utilizando banho de ervas, cordinhas nos pulsos e tornozelos. Preparam-se para gerarem os filhos e de-pois, após o parto, cuidar do crescimento da criança. Tudo está interligado desde a primeira respiração até o último suspiro. Exatamente, como disse o Chefe Seattle, somos apenas um elo da corrente.

Os fundadores desta aldeia são filhos e netos de Apowẽ, líder que fez o con-tato oficial com o sertanista Francisco Meireles em 1946. Anteriormente, este grupo residia na aldeia Pimentel Barbosa fundada por seu avô. Fundaram a nova aldeia com o objetivo de melhorar a qualidade de vida, melhor utilizar os territórios de caça, pesca e coleta de frutas do Cerrado, fortalecer e manter vivo o espírito e as tradições A’uwẽ Uptabi. Segundo Apowẽ, esse grupo é de uma linhagem antiga, de tempos imemoriais. Conforme sua filosofia é preciso saber andar neste mundo com sabedoria; é preciso aprender o segredo de ser e estar no mundo e viver em comunhão com tudo que existe no mundo.

Foi guiado por esta filosofia que este grupo, a partir dos anos 80, após a recon-quista de parte de seus territórios tradicionais, inicia trabalhos socioambien-tais, culturais e educacionais. Era necessário recompor com plantas nativas do Cerrado as áreas que foram usadas para pastagens, monocultura de arroz e retirada de madeira. E iniciaram também as boas práticas do uso do fogo conforme conhecimentos ancestrais. Era necessário equilibrar o ambiente.

Em 2015, o que vemos no entorno dessas áreas é o avanço das áreas de plan-tio de soja e com isto a destruição do Cerrado. Isso impacta negativamente os climas da região, a época da chuva. A seca e as altas temperaturas são sentidas. Houve mudanças no plantio das roças Xavante de milho, abóbora e melancia. O período de seca teve seu prazo prolongado. E como estão as cidades vizinhas?

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28 29 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

Mas, ele afirma que:

Portanto, movimento da ecologia profunda não propõe filosofia inteiramen-te nova, mas está revivendo uma consciência que é parte de nossa heran-ça cultural. O que é novo, talvez é a ampliação da visão ecológica num nível planetário, apoiada pela poderosa experiência dos astronautas e expressa em imagens como “nave espacial Terra” e “toda a Terra”, assim como a nova máxima, “Pense globalmente e atue localmente”. (CAPRA, 1982, p. 403 e 404)

Desta forma, penso que era disto que falava o cacique Seatle. Pensemos e vamos agir.

Quem sabe devemos começar marcando rodas de conversas entre nós, povos indígenas, seminários em universidades, mostras socioculturais- ambientais e reunião com líderes políticos locais, estaduais e federais. Quem sabe poderá ser o início.

SEVERIÁ IDIORIÊIndígena Karajá e Javaé, nascida no es-tado de Goiás, Brasil e conselheira Tra-dicional da Aldeia Wede’rã, T.I. Pimentel Barbosa, do povo Xavante, municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso, Brasil. Mestre em Educa-ção pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e graduada em letras Modernas Inglês/ Português pela Ponti-fícia Universidade Católica (PUC) de Goi-ás. Atua na área de movimentos sociais, educação escolar indígena, meio am-biente e cultura. É também professora licenciada da Escola Estadual Indígena de Educação Básica “Etenhiritipá”. Foto: Helenice Stela / Seduc-MT

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30 31 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

O POVO MUNDURUKU é um povo tradicionalmente da região do Alto Tapajós, que se concentra majoritariamente na Terra Indígena de mesmo nome, com a maioria das aldeias localizadas no rio Cururu, afluente do Tapajós, região esta que ficou conhecida como Mundurukânia, citada no mito de origem. Karosakaybo criou os Munduruku na aldeia Wakopadi, situada nos campos centrais, próxima às cabeceiras do rio Krepori, nas proximidades do limite leste da terra demarcada em 2001.

O povo Munduruku de Mato Grosso, que reside no município de Juara, migrou pelo rio Juruena, desde a região do Alto Tapajós, no Pará, no final da década de 70, motivado por fortes laços familiares que tem como o povo Apiaká, e pela exploração dos seringais nativos para a extração do látex, única ativi-dade de renda da época, legado do incentivo do governo durante a segunda grande guerra mundial. Atualmente, convivem com as etnias Apiaká e Kayabi, sendo seus vizinhos, o que enriquece e fortalece as tradições e a cultura indí-gena local, que se denomina Terra Indígena Apiaká-Kayabi, a 60 Km da sede do município de Juara.

Atualmente a população Munduruku é de 137 pessoas, que residem na aldeia Nova Munduruku, à margem direita do rio dos Peixes, registrada na Fundação Nacional do Índio (Funai) no dia 24 de junho de 1988. Seu contexto sociocul-tural está relacionado à realidade das demais comunidades desta terra in-dígena. Compartilha com os povos Apiaká e Kayabi todas as políticas assis-tencialistas nas diversas áreas, como na educação, saúde, esporte e projetos de cidadania que buscam trazer para ambas as comunidades a formação de seus membros. Hoje essa relação de interculturalidade é bastante amistosa, havendo a miscigenação entre esses povos, e, não apenas isso, mas também se dá no contexto econômico, desfrutando de uma mesma forma de susten-tabilidade das riquezas e de produtos florestais não madeireiros desta terra.

O QUE O POVO MUNDURUKU DE JUARA PENSA SOBRE AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

A mudança do clima para o povo Munduruku é considerada como um grande problema para o modo de vida de nosso povo, levando em consideração a in-terferência que a mesma causa no processo natural do ciclo de estações do ano, impactando vários aspectos da agricultura tradicional, da pesca artesa-nal, assim como na realização de atividades ligadas à produção de alimen-tos. Acreditamos que tudo está interligado à natureza. Nosso povo crê que no decorrer dos tempos a natureza nos encaminhou até aqui, nos remetendo ao

MUDANÇAS CLIMÁTICAS PARA O POVO

MUNDURUKU de JUARA

MARCELO MANHUARI MUNDURUKU

Texto construído com acompanhamento de Joaquim Crixi, cacique da aldeia Nova Munduruku.

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32 33 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

COMO OS MUNDURUKU DE JUARA SENTEM E CONVIVEM COM AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Nosso povo está passando por um processo de adaptação, até por não es-tarmos em nosso território tradicional, e que estamos passando a entender e desfrutar do potencial deste lugar. Essa capacidade de adaptação de nosso povo vem desde o contato com a sociedade não indígena, é claro que com al-gumas perdas de nossas características, como a inversão de valores e adoção de alguns comportamentos, que se fizeram necessários para que pudésse-mos capacitar pessoas para nos representar nos mais diversos movimentos.

Quanto ao clima, estamos procurando trabalhar com projetos que valorizam as práticas culturais, uso de plantas medicinais, coleta e plantio de sementes que são usadas na confecção de artesanato e outros adereços, coleta de cas-tanha, capacitação de valorização deste produto de muitas utilidades, assim como da própria floresta. Isso está inserido no calendário da escola, como a coleta de frutos silvestres na área de conhecimento de práticas agroecológi-cas, pois nossa escola tem um curriculum flexível para essa temática.

Tentamos de todas as formas trazer para as nossas crianças e jovens o co-nhecimento e a vantagem de proteger os rios e as nascentes, o controle das queimadas, a visibilidade e valorização da biodiversidade em nosso meio, e os impactos que as hidrelétricas podem causar, nos aspectos social, ambiental e cultural, bem como as políticas de desenvolvimento de nosso estado e País.

COMO OS MUNDURUKU DE JUARA GOSTARIAM OU DEVERIAM PARTICIPAR DAS DISCUSSÕES SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Estes assuntos podem ser debatidos dos modos abaixo:

• Trabalho de conscientização e o uso adequado das matas e rios, assim como a fauna, que de certa maneira só passa a ser valorizada a partir de quando se agrega valor econômico a esses recursos;

• Desfrutar do potencial de economia verde dos lugares, como assentamen-tos, Terras Indígenas, e outros;

• Busca de políticas de incentivos as atividades de alternativas econômicas sustentáveis de produtos orgânicos, uma vez que o foco da produtividade de alimento está pautada na monocultura em nosso estado;

Crianças Munduruku ajudando a combater o fogo. Foto: Marcelo Munduruku.

conhecimento sobre o tempo, espaço e o ciclo de vida dos seres existentes no mundo, e, dessa forma, nos preocupamos como o meio em que vivemos diante o quadro crítico que vemos acontecer nos últimos tempos.

Nos preocupamos que este modo da gente viver seja considerado ultrapassa-do, pois procuramos viver e conviver da forma de nossos antepassados. Isso está ficando cada dia mais difícil, mediante as políticas públicas que visam apenas uma forma de produção, sem preocupação e sem controle do uso dos recursos naturais no estado de Mato Grosso, assim como em outros estados de nossa federação. A problemática vem se agravando a cada ano, trazendo situações que mais tarde trarão consequências irreversíveis, como o assore-amento dos rios e construção de hidrelétricas na bacia dos principais rios da Amazônia, local onde residem muitos povos tradicionais e ribeirinhos.

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34 35 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

• Debater as consequências de grandes empreendimentos como hidrelétri-cas, agronegócio e ausências de políticas públicas voltadas para a socie-dade de risco, como as aldeias indígenas e as populações ribeirinhas, ou mesmo quilombolas;

• Articular parcerias para desenvolver atividades de caráter sustentável para as populações de risco;

• Procurar alternativas de mercado acerca de produtos da floresta e articula-ção para a qualificação desses produtos, suporte técnico, ou mesmo o uso de mecanismo de acompanhamento de pequenos empreendimentos como as incubadoras, ou cooperativas e associações que já trabalham com tais atividades de sustentabilidade.

MARCELO MANHUARI MUNDURUKUPovo Munduruku. Professor indígena da Aldeia Nova Munduruku, formado em Línguas, Artes e Literatura pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). Dedica-se ao fortalecimen-to do movimento cultural Munduruku em Mato Grosso. É escritor, músico, representante do povo Munduruku no Conselho Estadual de Educação e li-derança da aldeia Nova Munduruku, na Terra Indígena Apiaká-Kayabi, municí-pio de Juara, Mato Grosso, Brasil. Foto: Marcelo Munduruku

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36 37 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

O QUE ERA REALIDADE ontem virou história hoje, como tantas outras his-tórias contadas e que muitas vezes fica difícil de acreditar. Quando eu era criança, meu avô ainda pegava trairão na ponte do córrego São Domingos, que passa no meio da aldeia Cravari. Muitas pessoas pescavam ali, tiravam seus alimentos desse córrego. Hoje virou história. Quando passo sobre aque-la ponte, fico lembrando de quando eu era criança e pegávamos peixes com meu avô. Ele contava que tinham muitos peixes durante as chuvas porque o rio ficava cheio, os peixes subiam do rio Cravari para o córrego São Domingos.

Hoje eu cresci e meu avô já foi morar com Inuli (Deus), e eu continuo passando naquela ponte. Vejo muitas crianças mergulhando, mas hoje fico feliz por elas não necessitarem somente dos peixes do rio para sua alimentação porque, se dependessem disso, muitas não teriam o que comer. Hoje o córrego São Domingos é apenas para tomar banho, fugir do calor e se divertir aos fins de semana. As crianças se divertem e muitas ainda eu ouço reclamar, dizendo que o córrego é pobre, e eu me lembro de quando eu e meu avô sentávamos na ponte para pegar peixe à noite, e de outras famílias que também pesca-vam ali. O córrego São Domingos e o rio Cravari eram ricos de peixes. Hoje em dia não é mais possível ver peixes porque alguns anos atrás foi construída a Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Bocaiúva, o que não permitiu mais a pas-sagem dos peixes para os rios que ficam acima dessa PCH.

Sabemos que Mato Grosso é o maior produtor de grãos e também campeão na criação de boi, acabando assim com as suas matas. Como se isso não fos-se o bastante, os licenciamentos para construções de hidrelétricas e PCHs seguem a todo vapor. Tudo isso deixou as terras indígenas ilhadas por gran-des fazendas de sojas e bois. Hoje estão matando os rios e seus peixes. Os processos de licenciamento desses projetos não levam em consideração a participação e a voz dos povos indígenas, mesmo que muitos deles sejam próximos às terras indígenas.

Entendemos que matando a natureza também estão matando nós, povos in-dígenas. Existem muitas outras formas sustentáveis, que podem ser usados para o desenvolvimento do país, e que todos podem ser beneficiados. Sabe-mos que a preservação do meio ambiente não é uma responsabilidade só dos povos indígenas, mas sim de toda sociedade que busca ter um mundo melhor. Sem a natureza não será possível viver nesse planeta chamado Terra.

Para um povo que tem vivido e cuidado da natureza, pois tudo o que temos depende da natureza, é difícil lidar com toda essa mudança climática. Antes

Precisamos preservar

para continuar existindo

TIPUICI MANOKI

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38 39 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

Já contribuímos muito com a humanidade, mas, para contribuir mais ainda, precisamos ser ouvidos pelos órgãos que tomam decisões, e, acima de tudo, a lei neste país precisa ser cumprida. A sociedade precisa entender que as fru-tas não nascem nas prateleiras de um supermercado e que a água que bebem não sai como em um passe de mágica da torneira.

Para continuar a existência da vida na Terra é preciso saber respeitar a natu-reza e saber usar o que ela nos oferece. É preciso entender que o dinheiro não é capaz de comprar tudo. Enquanto cada um não fizer sua parte, estaremos longe de alcançar uma solução para resolver tudo que está acontecendo. Não se pode agredir a natureza, a Terra, porque entendemos que, sem ela, não po-demos ter saúde, educação e, acima de tudo, felicidade para o povo.

Não podemos culpar a natureza pelas catástrofes que vêm ocorrendo pois o homem é o culpado do que está acontecendo. A natureza está apenas respon-dendo o que ela sofre. Os peixes precisam da água, as águas precisam da mata e nós precisamos de tudo isso para nos alimentar, para respirar e para viver.

TIPUICI MANOKI Liderança indígena Manoki, moradora da aldeia Treze de Maio e professora na aldeia Cravari, na Terra Indígena Irantxe, município de Brasnorte, região noro-este de Mato Grosso, Brasil. Graduada em Ciência sociais na Universidade Fe-deral de Mato Grosso (UFMT). Antes da faculdade atuou como agente de saúde indígena, trabalhando com seu povo. Atualmente participa ativamente do movimento indígena e de todos outros que defendem a causa social.

Foto: Arquivo pessoal

sabíamos os meses da chuva, quando era tempo seco e frio, dessa forma era possível saber quando deveríamos derrubar a roça, tacar fogo, plantar e co-lher, tudo isso era acompanhando a mãe natureza. Nos dias atuais não é mais possível fazer isso porque não se sabe mais as estações do ano e não dá mais para acompanhar a lua também. Para meus avós, o período da lua era muito importante, pois era assim que as plantas nasciam bonitas e davam muitos frutos. Por causa das atitudes impensadas do homem, agredindo a natureza, muitas dessas práticas foram se perdendo. Agora quando deveria ser seca é chuva e no frio faz calor.

O que podemos fazer pela nossa mãe natureza é lutar com todas as forças contra o interesse do governo federal, governo estadual e municipal que que-rem destruir mais. Lutar para que os nossos territórios continuem preserva-dos e as terras ainda não demarcadas sejam demarcadas. Pois a natureza que preservamos hoje é a segurança da humanidade do amanhã. Todos es-tão sendo beneficiados pela natureza que a gente preserva, mas poucos têm essa visão dos povos indígenas.

Crianças brincam no rio da Aldeia Cravari, TI Irantxe. Foto: Tipuici Manoki

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ANTIGAMENTE, o território do povo A´uwẽ (Xavante) não tinha os limites ar-bitrários que são nossas fronteiras hoje. As fronteiras eram os tipos de vege-tações e os limites eram naturais. É por isso que, para nós, tudo está interli-gado. Somos e fazemos parte do ecossistema do Cerrado. Ele nos alimenta e cabe a nós respeitá-lo.

Desde que nascemos, há uma ligação de cada Xavante com o território em que moramos. Nossos pais se prepararam para nos gerar e cuidar de nosso crescimento após o parto em relação com o meio ambiente. Usando as ma-deiras dos brincos cerimoniais, as cordas de buriti para proteção e os banhos de ervas, fomos pensados, sonhados e gerados no útero de nossa mãe. Quan-do nascemos, recebemos das entrecascas vindas do Cerrado, das matas de galeria ou da vereda de buriti as cordinhas usadas nas pulseiras e tornoze-leiras sagradas de proteção. Nossas mães e pais se alimentam de mingau de milho e outras comidas leves oferecidas pelo território.

Por isso, estamos interligados com tudo da natureza que nos envolve; ela nos alimenta, fortalece e nos supre; nós cuidamos e devemos reverenciá-la como nossa Grande Mãe. Nossa vida e nossos ritos de passagem e de iniciação estão interligados com ela desde a primeira respiração até o nosso último suspiro.

Aldeia Wede’rã, agosto de 2015. Foto: Acervo Ponto Cultura Apowẽ.

RÓ NA WAHÖIMANAZÉ - Viver no Cerrado

CAIMI WAISSÉ XAVANTE

Texto construído com base em entrevista com o tio Waza’é, ancião da aldeia, no mês de agosto 2015.

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Para enfrentar essas questões, que são problemas de ordem socioambiental, nosso maior desafio é continuar formando nossos jovens dentro da filosofia A´uwẽ. Nossos ritos de iniciação e passagem devem acontecer como sempre aconteceram, como nossos antepassados e os Espíritos que não vemos nos ensinaram. Cada padrinho deve saber de sua responsabilidade em continuar repassando a essência de nosso povo, a forma como concebemos o mundo e respeitamos o lugar onde vivemos, tanto física como espiritualmente.

Para continuar a educação tradicional, os padrinhos, pais e avós ensinam e educam de forma oral os jovens durante as expedições de caça, pesca e coleta de frutas e palhas. Para atingir esses objetivos, nosso povo está assimilando técnicas do warazu (não indígenas) em nosso favor. A Escola Indígena Etenhi-ritipá, da aldeia, sistematiza os conhecimentos da tradição em língua xavante e portuguesa. O Ponto de Cultura Apowẽ documenta em audiovisual todas as atividades feitas nas aldeias e nas cidades, assim como nossos costumes e rituais. Com isso, tentamos desfazer a ilusão das coisas trazidas do mundo dos warazu, que tem cegado nossos jovens, alguns padrinhos e anciãos.

Aldeia Etenhiripá, agosto de 2015. Foto: Acervo Ponto Cultura Apowẽ.

Limite da Terra Indígena Pimentel Barbosa, divisa com áreas de pasto, maio de 2008. Foto: James Welch / Ponto Cultura Apowẽ.

Celebramos a natureza através dos cantos, danças e expedições zömori, quando passamos por cada tipo de vegetação do Cerrado. Somos o povo do Sonho. Para sonharmos nossos cantos e termos sabedoria para compre-endermos as respostas para nossas dúvidas e problemas devemos nos ali-mentar de espécies vindas dos nossos ecossistemas, carnes de caça como queixada, anta, cervo, tamanduá, entre outras. Nossa saúde mental, física e espiritual está interligada com o que nos cerca, com a forma como nos ali-mentamos e levamos nossa vida em cada momento.

Mas isso tudo vem sofrendo mudanças, com consequências trágicas para nós, decorrentes da diminuição territorial, desmatamento ao redor das Terras Indí-genas, poluição por agrotóxicos e mudanças do clima, problemas que afetam di-retamente a saúde das comunidades. As políticas de desenvolvimento no Brasil não respeitam nosso modo de ser e não se importam se exploram, poluem e profanam a Terra. São projetos de hidrelétricas, monocultura de soja com agro-tóxicos, contaminação dos rios. Os projetos sociais do Governo Federal, como as cestas básicas e o Bolsa-Família tornam nossa alimentação pobre em nutrien-tes e nos fazem dependentes dos produtos que vêm das cidades, enquanto nos-sas roças de toco e nossas expedições de caça e pesca recebem pouco apoio.

Cerrado, agosto de 2015. Foto: Caimi Waiassé Xavante.

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44 45 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

CAIMI WAIASSÉ XAVANTEPovo Xavante, do Clã dos Poreza´õno, do grupo Hötö-rã. Da família de linhagem da madeira sagrada “Wa-marï tedewa”. Neto de Apowe. É casado. Tem filhos e netos. Reside na Aldeia Etenhiritipá, Terra Indígena Pimentel Barbosa, municípios de Canarana e Ri-beirão Cascalheira, Mato Grosso, Brasil. Professor de língua portuguesa e língua xavante, atualmente é diretor na Escola Estadual Indígena de Educação Básica Samuel Sahutuwe na aldeia Etênhiritipa, na mesma terra indígena. Conselheiro na Educação Escolar Indígena-MT. Cineasta desde 1990 possui dez filmes produzidos, três deles premiados em fes-tivais nacionais e internacionais de cinema. Repre-sentante da Associação Aliança dos Povos do Ron-cador, Associação Xavante Etenhiritipa e membro do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas.

Nos últimos anos, conseguimos fazer as caçadas de fogo como nossos avós fa-ziam. Estamos estudando a melhor fórmula de uso da queimada nas caçadas e nas roças. Para melhor consumo de proteínas, temos desenvolvido projetos de manejo e monitoramento de queixadas. Os resultados virão nos próximos anos. Isso tudo na Terra Indígena Pimentel Barbosa, no estado de Mato Grosso.

Por isso, queremos ser consultados em relação às políticas públicas, tanto no nível federal, como o PAC, quanto no nível estadual e municipal, que afetam diretamente o entorno de nosso território com projetos em turismo, rodovias, ferrovias, hidrovias, produção agrícola monocultora, entre outros. Gostaría-mos de ver projetos de educação ambiental nas cidades, que ensinem os jo-vens a entender o ecossistema na região em que vivem. Mas, principalmente, queremos que os gestores públicos nos níveis municipal, estadual e federal reconheçam que podemos fazer parcerias para um trabalho que cuide da nossa região e do planeta. Todos dependem desse equilíbrio socioambiental para viver melhor como seres humanos.

Nós, humanos, topo da cadeia alimentar, temos destruído tudo, desrespei-tando tudo em nome do progresso. Como fica a qualidade e a continuidade da vida dos seres humanos? E de outros seres? Devemos refletir e tomar uma posição em relação aos impactos que o planeta recebe. Tomar posição. Se não estaremos perdidos e não haverá mais planeta Terra.

Foto: Manoel Ramos Junior

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46 47 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

O POVO MANOKI, no momento, se preocupa bastante com a questão das mu-danças climáticas porque a gente não tem mais o controle dos ciclos da na-tureza como a gente tinha antigamente. Os nossos antepassados conheciam muito bem o tempo. Antes a gente tinha controle do trabalho, se planejava. Tinha as épocas certas de chuva, época certa de seca, época certa de plantar e colher. O clima está mudando e a gente se preocupa muito com o futuro.

A gente vê que, hoje em dia, a gente planta certas coisas nas épocas em que a gente era acostumado a plantar, mas não dá resultado. E, quando dá, as produções vêm atrasadas, fora de época, e não é mais rico como era antes. A gente não tem mais as épocas certas de nada. O tempo está sendo maluco!

Essas mudanças, a meu ver, têm muito a ver com o agronegócio, com to-das essas fazendas de soja ao nosso redor. Estamos cercados. Quando não tinha o agronegócio e todo o desmatamento que ele causa, o controle do tempo era muito melhor. A gente sabia o tempo certo e trabalhava no tempo certo. Agora o tempo muda toda hora. O frio vem chegando de repente. A gente não sabe se vem friagem ou não, mas a gente já percebe que quando ele vem, fica dois ou três dias e nem é tão frio quanto era antigamente. Ao mesmo tempo, o calor vem aumentando muito. Épocas que eram para estar mais frio, agora estão sempre quentes.

Aí, com o desmatamento e todo esse calor vêm as queimadas e o avanço do fogo sobre a natureza. Está tudo relacionado. Por isso que nós, como proteto-res das matas que restam, estamos conseguindo reduzir as queimadas nas nossas terras. A gente está se preparando, junto com parceiros, para defender nossa terra das queimadas, que aumentam junto com o calor e a quentura.

A nossa convivência com a natureza está diferente, está sendo afetada pela mudança do clima. Nos preocupamos muito com o futuro. A gente não sabe onde a humanidade vai chegar. A nossa alimentação também está sendo afetada porque a gente não colhe na época certa, a gente não tem mais as produções como tinha antes. Antes sempre tinha o alimento da roça, isso era certo. Hoje em dia, às vezes dá, às vezes não dá. Sem plantar e colher, a gente fica dependendo da comida da cidade.

A gente conhecia a natureza e nossos pajés sabiam os tempos dela através dos astros, através das plantas e até dos animais que a gente via na mata. Agora, até a questão da reprodução dos animais está mudando. Tem bicho que a gente nem vê mais e, na verdade, não sabemos se estão se reproduzindo

AS MUDANÇAS NO CLIMA PARA

O POVO MANOKI

MANOEL KANUNXI

Texto construído a partir de entrevista realizada por Mel Mendes e Artema Lima, em agosto de 2015, na Aldeia Cravari, Terra Indígena Irantxe (MT)

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48 49 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

PRECISAMOS SER OUVIDOS

O governo muda, mas a gente continua sem saber qual a postura e o que o governo vai fazer em relação a essas mudanças no clima. Os políticos falam muito sobre isso, mas não agem para frear isso, na verdade. A gente está ven-do que nós, os índios, estamos sendo ignorados pelo governo nessa discus-são. Parece que estamos isolados.

Chegou o momento de nós, populações indígenas, nos unirmos para discutir como essas mudanças no clima nos afetam. Falar sobre nossas preocupa-ções e ter espaço, junto com os governos, pra gente discutir nossas preocu-pações e formas de resolver a questão. O governo precisa entender o que nos preocupa. Mas parece que o governo não se preocupa com isso, por que só quer ver o agronegócio crescendo e fazendo dinheiro. Enquanto isso, a saúde e o bem-estar da população indígena e da população brasileira, de modo ge-ral, não estão sendo considerados.

Extensa área convertida ilegalmente em pasto dentro da TI Manoki. Registro de 2013. Foto: Arquivo OPAN

ou se já desapareceram para sempre. Os animais estão morrendo, e isso é por causa do clima e por causa do desmatamento.

O povo Manoki é apicultor. O mel dos Manoki sempre foi conhecido por ser bom. Por causa do clima, as florações estão mudando, estão variando de ano a ano. Agora a gente não tem mais a produção de mel como antigamente. As flores melíponas estão aparecendo na época errada, quando a gente não está preparado para coletar. Percebemos que está havendo também uma dimi-nuição das abelhas. Elas estão se mudando ou morrendo por causa do clima diferente. Elas não conseguem sobreviver nesse clima diferente do que elas estão acostumadas e, por isso, as abelhas estão acabando. Isso afeta o nossa produção do mel, mas também toda a nossa vida, pois as abelhas são impor-tantes para polinizar e espalhar vida na mata.

A gente sente que isso, essas mudanças mais fortes no clima, vieram junto com o avanço do agronegócio, do desmatamento e dos projetos do governo, como as hidrelétricas. A nossa área aqui tá rodeada de lavoura de soja, milho e algodão e isso vem nos prejudicando muito, principalmente por causa dos agrotóxicos que eles usam nas lavouras. As águas estão contaminadas, a ter-ra também. A gente percebe que os peixes diminuíram: ou morreram por cau-sa do veneno, ou ficaram presos nas represas e não puderam mais reproduzir.

Essas barragens, as hidrelétricas e as PCHs estão acabando com os peixes e mudando as características do rio. O volume e o tamanho do rio diminu-íram bastante. Por causa disso, a gente não tem mais a convivência com o rio que tínhamos antes. E nem sabemos se no futuro teremos um rio, pois as cabeceiras estão todas sendo desmatadas e as nascentes estão secando. Por causa disso tudo, a gente não tem mais como viver como vivíamos antes, da caça e da pesca. Os animais e os peixes diminuíram, a mata diminuiu, o rio diminuiu. A gente não tem mais aquela relação cultural tão forte com a caça e pesca como tinha antes porque é impossível.

A gente convive com essas mudanças no clima e elas nos afetam todos os dias. Sentimos que a poeira aumentou, e, misturada com o agrotóxico que está no ar, que a gente respira, causa doenças pro nosso povo. Parece que as gripes e pneumonias que temos agora são mais fortes das que a gente tinha antes. E parece que ninguém vê. Nossa saúde também está ameaçada.

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50 51 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

MANOEL KANUNXI Liderança e cacique geral do povo Ma-noki. Vive na aldeia Asa Branca, Terra indígena Irantxe, município de Brasnor-te, noroeste de Mato Grosso, Brasil.

É claro que a gente pode tirar uma árvore, fazer nossas roças, nossos trabalhos, matar um bicho aqui ou em outro lugar, mas tem que ser de forma equilibrada.

Os outros países mais desenvolvidos hoje já enxergam que a situação está difícil e agora estão querendo discutir como resolver, mas isso é porque lá eles já acabaram com todo o mato e as florestas. Mas como vão resolver se agora eles vêm aqui no Brasil, que ainda tem floresta, para querer devastar o Brasil também? A nossa população tem que ter consciência que isso não é desenvolvimento. Não podemos deixar que aqui aconteça o que já aconteceu por lá. A gente tem que usar essa experiência deles e continuar na luta para proteger o que ainda temos de floresta e de água e pensar formas de diminuir os impactos do estrago que já foi feito. Só assim vamos ter chance de tentar diminuir o mal das mudanças climáticas.

Foto: Andreia Fanzeres

Nós, como índios, temos que mostrar que o governo precisa se preocupar com isso e agir de verdade. A impressão que dá é que, apesar do que falam na te-levisão, o governo não está se preocupando com isso porque segue fazendo obras, acabando com os rios e desmatando cada vez mais. Temos muito pra dizer. É possível nós, índios, nos unirmos e mostrarmos para o governo que assim não dá pra gente viver e, no futuro, não vai ser possível ninguém viver. O governo tem que dar espaço pra gente nas plenárias, com os deputados, com os pesquisadores e todos os especialistas, pra gente discutir a sério, pois também somos conhecedores da natureza.

A gente acha que ainda tem jeito de resolver esta situação. Mas para isso é preciso parar de desmatar, e é preciso parar agora. No momento, a gente sabe muito bem que o que já foi derrubado de floresta e o que já tem de área de plantação são o suficiente. Se usasse toda essa grande área que desmata-ram para produzir alimentos para o povo, todo mundo vivia bem e não existiria fome. A questão é que a soja a gente não come, e o povo e o meio ambiente não são prioridade. Essa soja toda é para mandar para fora, para fazer dinhei-ro e produzir outras coisas.

Não precisa desmatar mais, precisa replantar floresta e preservar o que ain-da tem. As pessoas falam como se isso não fosse possível, mas é sim. Só pre-cisa querer fazer. O problema é que, por causa de interesse dos grandes, o governo parece que está cego para a solução. A gente está discutindo entre nós nas comunidades, estamos apontando os caminhos, mas tem que nos ouvir e tem que ter vontade de fazer. Só assim vai ter um jeito de parar essa destruição e tentar resolver essa questão das mudanças climáticas pra gen-te ter futuro. Assim os índios vivem há anos.

Os empresários da madeira, das hidrelétricas e do agronegócio acham que desmatar é a melhor forma de viver, mas não é assim. A gente quer mostrar pros governos que existem outras formas. Os indígenas sabem disso, vivem nesta terra desde sempre. O desmatamento zero pode ser uma das soluções, mas isso depende da consciência de cada um. Todos precisam se juntar para ajudar e aprender a cuidar do planeta de uma forma diferente.

Já existem alguns outros parentes indígenas que estão lutando e discutin-do a questão das mudanças climáticas em vários lugares. A gente tem que se juntar e ir à luta para mostrar pros brancos que não é assim que a gente sobrevive. A gente vive junto com a natureza, a gente também é parte dela.

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52 53 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

O POVO MEHINAKU pensa que a mudança climática está cada vez mais complicando a vida cotidiana e a convivência dos seres humanos e de todos os seres vivos. Precisamos pensar e refletir com atenção, para preservar e conservar a natureza que dá bem estar na vida. O Brasil é um território que possui muita riqueza, um grande patrimônio cultural, ambiental e biológico. Infelizmente, os habitantes do país não vêm tendo capacidade de proteger essas riquezas do país. A natureza foi degradada sem preocupação com o uso da biodiversidade no futuro.

Conforme a visão do povo Mehinaku, cada vez mais aumenta a população no mundo e os cidadãos não analisam a importância do planeta saudá-vel. A natureza precisa ser valorizada e protegida porque a vida depende da natureza. Como atualmente vivemos no capitalismo, acaba ocorrendo uma destruição grande, uma degradação da natureza e os seres vivos não têm os espaços adequados para viverem. Por isso, por causa dom capita-lismo, a mudança climática está sem controle e poucas pessoas se preo-cupam com a natureza.

Mesmo que as leis federais existam para nos proteger, alguns grupos não res-peitam a constituição e outros pensam na individualidade, na melhoria de vida a qualquer preço e no lucro. São uns exemplos: os ruralistas, pecuaristas, madeireiros, empresários etc., que são destruidores da terra e da natureza e não pensam nas comunidades brasileiras. Cada vez mais eles estão pode-rosos, são a classe alta do Brasil, e está difícil parar eles. Eles mandam no Brasil. As leis são conhecidas por eles, mas não são respeitadas. Na prática, a lei nunca está em vigor conforme constituído.

Os colonizadores chegaram ao Brasil em 1500 com a visão só de explorar. Ainda hoje o povo brasileiro não sabe lidar com a natureza, só quer explorar também. O resultado dessa degradação é que mudou o clima. Agora temos menos chuvas, os ventos na região aumentaram e alguns estados estão até com dificuldade de abastecimento de água.

Os governantes do país não se preocupam com a natureza, apenas pensam em desenvolvimento econômico e comércio e continuam destruindo a natureza sem planejamento. A natureza é um patrimônio do país, é de todos nós. Por isso, o povo Mehinaku pensou formas de ensinar os não índios sobre a importância da natureza porque todos os seres dependem do planeta. Se não soubermos preservar a biodiversidade, ficará muito difícil o futuro do país e do mundo.

O POVO MEHINAKU E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

MAYAWARI MEHINAKO

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54 55 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

COMO SENTIMOS E LIDAMOS COM AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

O povo Mehinaku se sente muito incomodado com a mudança climática por conta de suas várias consequências para a nossa vida. Todos os territórios indígenas se tornaram ilhas, cercados de agronegócio, onde os indígenas habitam com esforço. A nossa comunidade sempre se reuniu para cuidar e proteger o que temos dentro da nossa terra, senão tudo pode acabar. Não desmatamos floresta e a queimada para a roça é controlada e bem fisca-lizada para não queimar as plantas medicinais e as matérias-primas que precisamos para viver. Temos que usar bem os recursos naturais disponí-veis, senão vai aumentar ainda mais a mudança climática. A população no mundo está crescendo e podemos todos juntos pensar e agir para garantir o futuro da Terra.

Conforme a visão da nossa comunidade, a mudança climática começou des-de que os colonizadores vieram dos outros países e começaram a cercar os indígenas e destruir a natureza. Atualmente a vida está difícil, aumentou mui-to a temperatura, vemos muitas chuvas com ventos fortes e algumas pessoas têm morrido em tragédias climáticas que não existiam no passado.

Enquanto algumas regiões estão sem água, os indígenas continuam preser-vando a natureza e cuidando das nascentes dos rios. O grande problema é que, apesar disso, não somos reconhecidos como sábios e como importantes para a preservação da vida. Seria importante nos ouvirem para conscientizar-mos o povo brasileiro sobre a mudança climática. Estamos nesta terra desde a sua origem, temos muitos conhecimentos do passado, dos ancestrais, que podemos ensinar para os não índios. No entanto, nosso ponto de vista nunca é considerado pelo governo e não está sendo divulgado, o que seria funda-mental para a população brasileira e para o mundo.

COMO OS MEHINAKU GOSTARIAM DE PARTICIPAR DAS DISCUSSÕES

Para nós, é preciso garantir que os direitos e conhecimentos dos indígenas sejam considerados nas três esferas do governo: municipal, estadual e fe-deral, para que os indígenas tenham o direito de participar nos seminários e reuniões sobre a mudança climática e falar das questões da realidade de convivências nas aldeias.

Os indígenas têm mais conhecimentos sobre a natureza do que os letrados que estudam na teoria. Temos conhecimento prático. Assim, os indígenas podem se organizar para ensinar para o mundo sobre o valor da natureza.

Assim como nós, também os pesquisadores e cientistas devem ensinar e conscientizar a população. Precisamos de uma educação plena para a socie-dade, para entender a vida de todos os seres e da Terra como um só. Estamos apenas vivendo no planeta por um tempo, ele não foi criado por nós ou só para nós, devemos saber utilizá-lo. Sem natureza não tem vida agradável, não tem saúde, alimento, educação e nem segurança.

É fundamental divulgar os conhecimentos dos indígenas através de regis-tros e livros para publicar as preocupações e as lições dos índios em prol da preservação da natureza, para amenizar a mudança climática. Através disso, esses registros serão uma fonte de pesquisa, de conhecimentos da natureza. Assim também deve ser feito na mídia, para mostrar os mecanismos de pro-teção e uso sustentável da natureza.

É necessário fortalecer e fazer cumprir as leis federais para que os rura-listas nos respeitem. Eles devem começar a compreender que o que estão fazendo está prejudicando o futuro do país e do planeta. O mundo precisa de respeito e humanidade.

Vista aérea de uma aldeia Mehinaku no Parque Indígena do Xingu. Foto: reprodução internet.

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56 57 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

MAYAWARI MEHINAKOPovo Mehinalku, Alto Xingu, Terra Indígena do Xingu (TIX), localizado na região nordeste do estado de Mato Grosso, município de Gaúcha do Norte, na porção sul da Amazônia brasileira. É professor gra-duado em línguas, artes e literaturas e integrante do Conselho Estadual de Educação Escolar Indíge-na (CEEI) e membro da Comissão Nacional de Edu-cação Escolar Indígena (SECAD e MEC). É artista internacionalmente reconhecido pelos seus ban-cos de madeira mehinaku e indígenas.

Nós, indígenas, também faríamos conversas com os ruralistas e pecuaristas para conscientizar eles sobre a importância da natureza.

Segundo a nossa proposta, o Mistério de Meio Ambiente (MMA) e todo o go-verno deveriam investir mais recursos na publicação dos livros sobre como cuidar do planeta, e na educação plena do povo, para proteger a natureza e a humanidade.

Nós, indígenas, sempre somos chamados pelos preconceituosos de incapazes e sem conhecimento, mas isso ocorre porque não temos espaço e direitos reco-nhecidos como eles. Nós, indígenas, deveríamos fazer parte do quadro docente das universidades, para que nosso olhar diferenciado sobre as mudanças cli-máticas possa contribuir com os pesquisadores e estudiosos do tema.

Não devemos pensar só no presente, é melhor cuidar do futuro. Precisamos refletir que tínhamos muitas riquezas no planeta que já perdemos. Os indíge-nas precisam participar nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legisla-tivas e no Congresso Nacional, com voz e sendo respeitados, para discutir a mudança climática junto com os governantes. Nós, indígenas, podemos con-tribuir com e enriquecer os conhecimentos dos não índios para planejarmos o futuro do país e do planeta. Afinal, ninguém conhece tanto a natureza quan-to os povos originários.

Foto: Arquivo pessoal

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58 59 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENA

PARA O CONHECIMENTO do povo Kawaiwete, o criador do mundo e dos seres vivos e não vivos é Tuiararé, que criou tudo que existe hoje. Junto com seus membros criou kupeirup, que originou a alimentação da roça do povo Ka-waiwete. Os conhecedores de espíritos, que são os pajés do povo Kawaiwete, explicam que tudo que está acontecendo hoje em dia com a mudança cli-mática é por conta de desmatamento de cabeceira de rios, córregos e olhos d’agua, e que tudo isso está causando a morte da Terra.

Vendo tudo o que homens da Terra estão causando para a natureza, o próprio Tuiararé reuniu os seus aliados para aumentar o calor, para ver como os ho-mens da Terra iam se comportar com essa temperatura muito quente, e que está ficando cada vez mais quente. Por isso, nós, Kawaiwete, respeitamos a natureza e usamos a terra do jeito que o próprio Tuiararé ensinou, para po-dermos fazer as nossas roças e ter produtos de boa qualidade para a nossa alimentação. Essa terra boa para os Kawaiwete é a capoeira de terra preta que, hoje em dia, se encontra pouco onde estamos habitando, por conta de aumento de população de indígenas no Parque Indígena do Xingu (PIX).

Os cientistas, para os Kawaiwete, são nossos próprios pajés, pois eles têm conhecimento de como é o mundo e respeitam muito os fenômenos da na-tureza. Eles são orientados pelos espíritos e respeitam conforme as orienta-ções, para que Tuiararé não se revolte contra nós, seres vivos, que existem na Terra. Assim vive o Kaiawete.

Com esse grande desmatamento feito pelo homem não indígena, com gran-de plantação de lavoura, instalação de usinas hidrelétricas em todos os rios, ferrovias, estradas etc., o dono da Terra, criador do mundo, se revolta contra a humanidade. O clima está mudando no mundo inteiro. Se o homem não mini-mizar isso, a tendência é ficar cada vez mais quente.

O povo Kawaiwete é um povo nômade. Vivem mudando de aldeia em aldeia para que o mato que eles usaram anteriormente possa se recuperar e, qua-tro anos depois, possa servir de novo para fazer a roça. A roça é sempre adubada com adubo natural, feito de restos de folhas, insetos e outros nu-trientes que a própria terra dá. Todo esse conhecimento vem dos nossos cientistas. Respeitamos e acreditamos que temos que cuidar da natureza. Só assim o dono, o criador, verá que estamos usando bem e zelando o que ele nos deu, conforme a sua orientação.

Segundo depoimento dos anciãos Kawaiwete, originalmente o povo vem do rio Teles Pires, no Pará, de onde vieram para o Xingu. Na época em que os

MUDANÇA CLIMÁTICA PARA O POVO KAWAIWETE

PIKURUK CAVALCANTE KAYABI

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60 61 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

Kawaiwete vieram, não existia nenhum município no estado de Mato Grosso em torno do Parque Indígena do Xingu. Eles dizem que a natureza naquela épo-ca era toda original, que o ar que respiravam era muito puro e que a terra tinha muito nutriente, então produziam produtos das roças de muita qualidade.

Agora, a plantação das nossas roças está ficando fraca com aproximação de grandes fazendas de monocultura de soja. Está mudando o clima no mundo todo, não somente no estado de Mato Grosso. Isso é consequência do desma-tamento e da aplicação de veneno agrotóxico que está enfraquecendo a Ter-ra. Acreditamos que esses venenos são levados pelos ventos e pelas chuvas e contaminam os índios do PIX. Estamos cercados de grandes fazendas de soja.

Quero aqui deixar registrado o conhecimento do meu povo. E dizer também que todos os seres humanos devem respeitar a natureza em tudo, ela é vida. Falan-do especificamente da água, que já é problema em vários lugares do mundo, se não cuidarmos e respeitarmos a Terra, o próprio o dono da natureza e cria-dor dos seres humanos pode se revoltar, e até mesmo quem não faz nada de ruim contra a natureza vai pagar por isso. Por isso devemos colaborar com a natureza e respeitar aas matas e as margens dos rios e nascentes que existem porque é dela que tiramos os nossos alimentos e do que precisamos para viver.

PIKURUK CAVALCANTE KAYABIPovo Kayabi-Kaiwaiwete. Licenciado em Ciências da Natureza pela Universida-de do Estado de Mato Grosso (Unemat). Pesquisador indígena, desenvolve pro-jetos de documentação, revitalização e manutenção da língua Kaiwaiwete.Dire-tor da Escola Indígena Central Diaurum, do povo Kawaiwete, na região do Baixo Xingu, no Parque Indígena do Xingu (PIX), localizado na região nordeste do estado de Mato Grosso, na porção sul da Ama-zônia brasileira.

Foto: Prodoclin / Museu do Índio

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O POVO WAURÁ é falante de uma língua pertencente ao tronco linguístico Aruák e vive na Terra Indígena do Xingu, estado de Mato Grosso. Essa socieda-de se divide em três aldeias: Piyulaga e Piyulewene, localizadas no município de Gaúcha do Norte, região do Alto Xingu, onde vivem cerca de 400 indivíduos. A terceira aldeia também se chama Piyulewene e está situada no município de Feliz Natal, região do Médio Xingu. Nosso povo vem, ao longo dos anos, preservando vários tipos de tradições e rituais na nossa cultura.

As mudanças climáticas vêm há tempos modificando a vivência na cultura do povo Waurá. Entendemos que esses fatos são alterações que ocorrem no cli-ma geral do planeta Terra, e sabemos que são provocados principalmente por ações dos seres humanos. Percebemos o aumento significativo da poluição do ar e da temperatura, e nosso maior desafio é nos adaptarmos, principal-mente da década passada até a atual.

Nesse sentido, a mudança climática está causando muitos problemas para a sociedade Waurá, e está afetando, principalmente, o calendário tradicional que o povo segue conforme as suas tradições e costumes. Os nossos cultivos, por exemplo, são uma grande preocupação. O clima mudou, o calor aumen-tou, a chuva diminuiu, deixando confuso o período de plantação.

Aldeia Piyulaga, Xingu. Foto: Piratá Waurá. 2014

Os Waurá do Xingu e as mudanças no clima

PIRATÁ WAURÁ

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nos empenhar e ajudar a reverter as mudanças climáticas, porque nós, os povos indígenas, sozinhos nunca conseguiremos.

A partir de tudo isso, sabemos que a união pode ser a verdadeira chave para a solução dos nossos problemas. Todos estão sofrendo com muito calor, não só os índios. E a água, principal fonte de vida para os seres vivos, está diminuin-do. Todos são afetados, não só nós. Mas temos muito o que contribuir para a solução desses problemas.

Precisamos de respeito e reconhecimento por parte dos governos aos povos indígenas. Atualmente, os deputados e senadores do Brasil, que foram elei-tos por todos nós, mas não nos representam, estão tentando aprovar o a PEC 215** . Esse projeto nos prejudica e trará mais destruição das florestas e de nossos territórios. Precisamos ser ouvidos, respeitados. E precisamos de par-ceiros, gente que luta conosco, ONGs voltadas para a conservação das matas e defesa dos territórios, e também dos governos, todos juntos, só assim é que poderemos salvar o mundo futuramente.

PIRATÁ WAURÁPovo Waurá. Filho de Kamo Waurá e Yakakumalu Waurá. Professor indígena desde 2007, quando iniciou o curso de formação de professores indígenas em magistério intercultural do projeto Haiyô. Graduado em Licenciatura Intercultural na área de Língua, Arte e Literatura pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), na cidade de Barra do Bugres, Mato Grosso. Mora na aldeia Piyulaga, localizada na Terra Indígena do Xingu, município de Gaúcha do Norte, região nordeste de Mato Grosso, Brasil. Leciona na Escola Estadual Indígena de Educa-ção Básica Piyulaga, na sua comunidade.

** Projeto de Emenda Constitucional (PEC 215/2000): Transfere a decisão final sobre a de-marcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Poder Legislativo, proíbe a amplia-ção de terras já delimitadas, permite revisão de processos de demarcação já concluídos e garante indenização a fazendeiros que ocupam áreas da União.

Foto: Arquivo pessoal

Em todos os tempos passados, o rio sempre fez a sua correnteza normalmente, não havia destruição das florestas ao redor do território, o fogo não escapava do nosso controle durante a queimada na nossa roçada. Atualmente, podemos ver que, cada vez mais, estão acabando as florestas exuberantes que existiam ao redor da área da Terra Indígena do Xingu. Fazendas de soja e gado estão ocu-pando o entorno, apertando o território xinguano, nos cercando. Também sen-timos que o rio está secando bastante e aumentando a temperatura da água. Além disso, o calor deixa a serrapilheira* muito ressecada, transformando-a em um poderoso combustível para o fogo e queimando as nascentes dos rios.

“Queremos saber o que está acontecendo. Antes sabíamos controlar o fogo quando queimávamos para preparar a nossa roça. Agora ele escapa e não para. Não era assim naquele tempo aqui na região. Também sabíamos quan-do a chuva ia parar e quando ia voltar, mas agora não sabemos mais”, disse o cacique Awaulukuma Waurá.

A humanidade, principalmente os não indígenas, não pensa na saúde do planeta. Para nós, é simples: precisamos diminuir a queimada das florestas, respeitar os territórios indígenas, que são os que mais cuidam e se preocu-pam com a floresta como um bem cultural, parar de queimar combustíveis fósseis, parar com funcionamento de fábricas poluidoras, reciclar e contro-lar o lixo, dentre tantas outras soluções. Podemos entender que falar é fácil, o problema verdadeiro é como fazer isso. Pois tudo seria mais fácil se as pessoas se conscientizassem de verdade. O problema é que as pessoas que têm o poder escolhem o dinheiro em vez do meio ambiente, e assim a situa-ção fica cada vez mais difícil.

Nós, da cultura Waurá, que dependemos da natureza, temos muito conheci-mento para dividir: como reflorestar tradicionalmente, como cuidar do meio ambiente da nossa região, formas de fazer a derrubada para a nossa planta-ção de sobrevivência e depois jeitos de ajudar a crescer de novo as árvores que foram derrubadas.

Entre fechar uma de suas fábricas que causa maior poluição para ajudar a natureza e mantê-la para conseguir mais poder, todos preferem continuar com suas indústrias poluentes. Isso precisa ser revisto. Todos nós temos de

* Serrapilheira, manta morta ou serapilheira é a camada formada pela deposição e acúmulo de matéria orgânica morta em diferentes estágios de decomposição que reveste superficial-mente o solo ou o sedimento aquático.

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O BRASIL que vai completar 519 anos no dia 22 de abril de 2019 desconhece sua imensa sócio diversidade pluriétnica indígena. Até o presente momento, não se sabe, ao certo, quantos grupos e nem quantas línguas nativas existem no país. Há poucas publicações e poucos museus indígenas, poucos vídeos que sejam trabalho indígena, ou seja, autores indígenas divulgando a própria história como protagonista. Apesar da chegada do mundo exterior, a cultura Rikbaktsa continua presente. A língua faz parte do meio de comunicação es-pecífico e social do nosso povo. A experiência histórica está presente em cada ser humano que constrói a sua forma de sobrevivência.

Um dos principais desafios encontrados para os povos indígenas é o não cumprimento da legislação vigente. Essa é desrespeitada pelo próprio poder público, que mostra a sua face de descaso, passando por cima dos direitos sociais e humanos. Entendo que, a cada dia que passa, estamos mais prepa-rados para enfrentar esse mundo tão imprevisível e cheio de burocracias e desrespeito. Não vamos deixar de lutar e fazer valer os nosso direitos.

O rio Juruena serviu durante muito tempo de caminho para nós, povos da floresta, que sempre tivemos sossego vivendo em nossos territórios, conser-vando a nossa cultura tradicional livremente. Agora estamos ameaçados com grandes empreendimentos planejados pelo governo federal, como a constru-ção das grandes Usinas hidrelétricas (UHEs) e das Pequenas Centrais Hidre-létricas (PCHs) em nosso rio.

As alterações dos rios, já com nível de água muito baixo e com escassez de pescado, vem interferindo na nossa sustentabilidade econômica. Sem contar a grande expansão da monocultura próximo às nossas terras indígenas, que pulverizam grandes quantidades de agrotóxicos, mantando os alevinos no pe-ríodo da piracema. A pescaria é proibida, mas não a aplicação dos agrotóxicos nas lavouras, que com a enxurrada deságuam no rio afetando a reprodução dos peixes, que são a base de nossa alimentação. Esse processo tem significado a falta de pescado e de caça para as nossas festas culturais e até a produção de artesanato. Foi assim que chegou à extinção histórias que não serão reveladas com o desaparecimentos de povos do planeta Terra. Mas isso não acontece-rá com nós, povo Rikbaktsa. Lutaremos até perdermos o último guerreiro, na certeza de enquanto existirem os povos indígenas existirá florestas e natureza conservada. É por isso que a nossa bandeira se chama resistência.

Diante desse contexto, a Conferência do Clima da ONU teria que discutir como fiscalizar os investimentos das obras que os países fazem no Brasil

Rio Juruena: caminho dos povos

da floresta

PAULO HENRIQUE MARTINHO SKIRIPI

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em nome do progresso, que afetam diretamente as terras indígenas e des-troem milhares de vidas dos biomas brasileiros. A ONU deveria investir no cumprimento da Lei 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), respeitando protocolos de consultas elaborados por cada povo indígena brasileiro e de acordo com os interesses destes povos para preservação e manutenção cultural e étnica.

Os povos indígenas devem participar efetivamente nas tomadas de decisões políticas no que diz respeito aos interesses coletivos que venham afetar as nossas terras e as nossas identidades culturais e étnicas. Que os povos in-dígenas sejam compensados permanentemente, financeiramente e efetiva-mente pelos danos causados no meio ambiente.

PAULO HENRIQUE MARTINHO SKIRIPI Povo indígena Rikbaktsa, tem 50 anos e reside na Aldeia Palmeirinha, Terra Indígena Erikpatsa, município de Bras-norte, no estado de Mato Grosso. Possui graduação em Ciências Sociais e Pós--graduação em Educação Escolar Indí-gena pela Universidade de Mato Grosso (UNEMAT). É também professor na Al-deia Barranco Vermelho.

Foto: Adriano Gambarini/OPAN

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O povo Rikbaktsa e as mudanças

climáticas

JUAREZ PAIMY

A PALAVRA “RIKBAKTSA” significa gente guerreira. Nós, do povo Rikbaktsa tra-dicionalmente ocupamos o noroeste do estado de Mato Grosso, no baixo e mé-dio Juruena, médio Arinos e rio do Sangue. Residimos nos municípios de Bras-norte, Juara e Cotriguaçu e migramos pelo rio Juruena desde os primeiros anos de contato com a frente de expansão colonizadora na região, dos 40 até os 60.

Antes do contato éramos aproximadamente 5000 mil pessoas, atualmente somos um pouco mais de 2500 pessoas. Houve uma redução significante da população dos anos 50 a 63 devido ao conflito com os seringueiros e as epi-demias de fortes doenças trazidas pelos mesmos.

Para o povo Rikbaktsa, a mudança climática significa um grande problema em nossas vidas e para a nossa sobrevivência, pois causa interferência nos calendários tradicionais, em nossas atividades de plantação de roças tradi-cionais, pescaria, caça e coleta de frutos nativos. Interfere também na vida dos animais aquáticos, florestais e nos materiais da natureza usados para nossos cerimoniais culturais.

Os Rikbaktsa acreditam que no decorrer dos tempos pode não haver mais vi-das neste planeta, podem deixar de existir várias vidas ou diminuir o ciclo das existentes. Mediante as políticas públicas do agronegócio, usinas hidrelétricas, desmatamento da floresta, do uso excessivo de agrotóxico e das queimadas descontroladas, ou seja, de práticas de degradação, está ficando cada vez mais difícil controlar ou entender a questão climática. Os nossos pajés e anciões que são conhecedores dos fatos fenomenais acham que com essa maneira de pen-sar e usar o meio ambiente, a própria natureza trará consequências irreversí-veis para toda população do planeta terra. E, principalmente, para a população indígena que conhece e depende dos fenômenos da natureza para a realização de suas atividades e seus rituais de costumes tradicionais.

O principal desafio para o nosso povo é a resistência e a permanência des-de os primeiros anos de contato, até os tempos atuais. Embora, como diz a história, o Brasil irá fazer 519 anos desde o seu descobrimento, antes desse processo os Rikbaktsa já existiam. E, ao longo desses anos, o povo Rikbaktsa sempre permaneceu e resistiu às grandes tentações econômicas em várias situações que envolvem a degradação do meio ambiente, tais como madeirei-ras, mineradoras, usinas hidrelétricas, estradas e outras.

O povo percebe e sente que o rio Juruena está ficando, cada vez mais, di-ferente dos tempos anteriores, com a degradação de suas nascentes, com

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assoreamento do seu leito, contaminação de sua água, com vidas aquáticas que já não existem mais e com o pescado que está muito escasso. A água não tem mais boa qualidade para o consumo, (beber, cozinhar, lavar roupa e tomar banho), pois está cada vez mais barrenta.

O nível das secas e enchentes varia muito de um ano para outro. Até o ca-lendário de conhecimento tradicional para pesca e para plantio de roça, tem sofrido mudanças muito significantes. Os mais experientes e anciões dizem que o calor está excessivo, a terra está ficando muito quente e pode queimar ou assar todas as sementes e as mudas de várias espécies que plantamos nas nossas roças tradicionais.

A Conferência Mundial do Clima, deveria discutir a redução do desmatamen-to, reflorestamento das nascentes e beira de rios, queimadas abusivas sem controle, usinas hidrelétricas, o agronegócio e o uso excessivo de agrotóxicos no agronegócio.

A população indígena deveria fazer parte da tomadas de decisões, participan-do das discussões em todas as instâncias públicas, sejam elas municipais, es-taduais e federais (país). Para isso, precisamos ter representações indígenas na Câmara Legislativa dos municípios, na Assembleia Legislativa dos estados, no Congresso Nacional e no Senado Federal do país. Mas enquanto não temos isso, todas as discussões que envolvem e atingem uma população indígena deveria ser tratada em assembleias com toda a população indígena, principal-mente com as lideranças, caciques, professores e pajés. Deveria ser explicado para os Rikbaktsa os interesses de um projeto que decide sobre a vida deles.

JUAREZ PAIMYEtnia Rikbaktsa, vive na aldeia da Curva, na Terra Indígena Erikpatsa, município de Brasnorte, estado de Mato Grosso. Tem 50 anos e é professor indígena. Pos-sui magistério intercultural pelo projeto Hayô, realizado pela Seduc/MEC. Atu-almente está cursando licenciatura em pedagogia na Faculdade de Educação à Distância FAEL, em Juína.

Foto: Arquivo pessoal

Foto: Adriano Gambarini/OPAN

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74 75 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PERCEPÇÃO INDÍGENAFoto: Adriano Gambarini/OPAN

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