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Mudanças Sociais No Brasil - Florestan Fernandes

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  • Mudanas sociais no Brasil

    Aspectos do desenvolvimento da sociedade brasileira

    Florestan Fernandes

    Apresentao de Marco Antonio Villa

    ***

    1 edio digitalSo Paulo

    2013

    Global Editora

  • Florestan Fernandes em sua residncia, em So Paulo, 1995.der Luiz Medeiros / Folha Imagem

  • A Antonio Candido,universitrio modelar sob todos os aspectos,homenagem do amigo, colega e companheiro.

  • Um Socilogo e o Brasil

    Mudanas sociais no Brasil apresenta doze ensaios escritos entre1946-1959, portanto, entre a redemocratizao aps os oito anos deditadura do Estado Novo e o auge do governo Juscelino Kubitschek, dodesenvolvimentismo, da construo de Braslia e da modernizao indus-trial. Os auditrios que recebem o socilogo so variados: desde o Min-istrio da Educao at a Federao das Indstrias de So Paulo (Fiesp),sem esquecer diversos artigos em jornais algumas vezes, srie de arti-gos sobre determinada temtica. o socilogo militante em ao, en-frentando questes sociolgicas, culturais, econmicas e histricas; notemendo o pantanoso terreno da luta de classes e dos dilemas do desen-volvimento em um pas de capitalismo tardio. Florestan Fernandes e oleitor vai ter este prazer passeia pelas Cincias Sociais e a Histria comerudio e clareza nas exposies de temas que vo dos sculos XVI aoXX.

    As preocupaes com as relaes culturais contemplam dois ensaiosdo livro. Era uma questo presente no debate sociolgico da poca. Mas oautor logo demarcou o terreno das suas reflexes. Em um congresso deescritores falava como socilogo. E mais: como socialista. Ressaltou queescrever sobre Europa e Amrica no abstrato tambm era um problema.O domnio da literatura dos viajantes nos sculos XVI e XVII permitiu aoautor apresentar e discutir as imagens recprocas construdas ao longodos sculos, de americanos e europeus, suas contradies e dilemas. Afrmula nem dependncia colonial, nem nacionalismo cego deveriamarcar as relaes do Brasil com o Oriente na busca de solues comuns,uma espcie de anteviso da poltica externa independente adotada pelochanceler Afonso Arinos de Mello Franco, em 1961.

  • Dois ensaios tratam do tema do desenvolvimento. Na literatura e napoltica, o tema centralizava os debates. Havia plena confiana no desen-volvimento do Brasil e as discusses centravam-se na forma e na direodeste processo. Obstculos extraeconmicos industrializao noBrasil foi apresentado na Fiesp (Federao das Indstrias do Estado deSo Paulo). O auditrio empresarial no alterou em nada as reflexescrticas do socilogo. Reconheceu xito no primeiro momento da indus-trializao, contudo apresentou diversos problemas debilidadesbsicas do padro brasileiro de desenvolvimento industrial quegeravam o que os economistas vinculados ao pensamento cepalinochamaram de pontos de estrangulamento.

    Destaca como estava se constituindo o sistema de classes sociais e ascomplexidades de uma sociedade industrial. A luta de classes estpresente nas suas reflexes. Apresenta formas de resistncia ainda queno campo comportamental ao domnio do capital. Recorda que ospadres de mando e obedincia, tpicos da sociedade rural oligrquica,esto presentes no moderno, na indstria. A grande empresa existe naaparncia: As tcnicas sociais de controle, em particular, so element-ares e no tm nenhuma eficincia na identificao e neutralizao dosfatores irracionais, que prejudicam, irremediavelmente, a organizao, orendimento e o carter econmico da empresa industrial.

    Os escritos dos anos 1940 e 1950 esto marcados tambm pelo in-teresse com as transformaes sociais, econmicas e polticas da cidadede So Paulo. De um lado isto ocorre devido s comemoraes do QuartoCentenrio de fundao da cidade (1954), de outro pela transformao dacidade em um espao de pesquisa social, em objeto sociolgico. A re-flexo de Florestan Fernandes se distancia daquelas marcadas pelo triun-falismo, por um destino manifesto que marcaria a cidade. Pelo contrrio,o socilogo procura primeiro entender as razes que levaram ao rpido

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  • desenvolvimento de So Paulo, uma cidade que em 50 anos aumentoumais de sete vezes a populao.

    Identifica na localizao geogrfica um dos fatores do crescimento,busca na conformao da constituio das classes sociais as razes daconstruo de uma cidade muito particular, a primeira autenticamenteburguesa do Brasil. Desta forma, compreende sociologicamente a form-ao de um mundo social novo: anlises clssicas sobre a formao dasociedade de classes, do capitalismo e da civilizao tecnolgica poderiamser fundamentadas, empiricamente, com o que est agora acontecendoem So Paulo.

    Analisa com propriedade como o comportamento de ave de rapinadefine o interesse particular que se sobreps ao interesse coletivo da cid-ade e que se mantm durante o sculo XX: o homem conquistou o es-pao, mas no o domesticou no sentido urbano. A jornada para o tra-balho ou deste para o lar, por exemplo, est cheia de aventuras, de incon-venientes e de provaes, produzindo um encurtamento indireto do per-odo til da vida humana. A ocupao do espao urbano deu-se de formaanrquica, como se a cidade que est sendo edificada fosse provisria, umsimples acampamento de obras.

    A acumulao capitalista, a luta pelo prestgio social e pelo poderacaba configurando uma sociedade muito particular. As mudanas econ-micas aprofundadas pelos efeitos da crise de 1929 facilitaram a ascensodas novas fraes das classes dominantes mas no s s funespolticas. Isto possibilita promo. Durante o perodo conhecido comopopulismo (1945-1964), So Paulo teve uma disputa poltica muito par-ticular entre janistas e ademaristas isto quando o conflito nacional sedava entre o varguismo contra o udenismo produto do desenvolvi-mento capitalista e da formao pioneira de uma sociedade de classes.

    No processo de anlise de So Paulo como objeto sociolgico, Florest-an Fernandes buscou no sculo XVI, na peculiar formao da Capitania

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  • de So Vicente, caractersticas que os estudiosos tinham descuidado,fruto, certamente, do domnio que possua da documentao graas dis-sertao A organizao social dos tupinamb e a tese A funo socialda guerra na sociedade tupinamb, ambas defendidas na Universidadede So Paulo. Atravs da atenta leitura dos cronistas coloniais(assemelhando-se a um historiador, crtico das fontes e profundo con-hecedor da literatura do perodo) detectou como em So Paulo manteve-se um conservantismo cultural, estimulado pelo isolamento da vila, deacesso perigoso e a presena de uma economia de subsistncia que per-maneceu por longo tempo antes de ser substituda pela presena colonial.Tudo isso contribuiu para perpetuar, em outro ambiente geogrfico e emcondies diferentes de existncia, fragmentos inteiros da estrutura ruralibrica.

    o pleno conhecimento da sociedade colonial que permite ao autorapresentar como a vila de So Paulo se distinguiu de outras formas de ex-plorao colonial na Amrica Latina. Se Redfield identificou em vriospases a passagem do indgena para campons, como no Mxico; em SoPaulo, quando a explorao da fora de trabalho nativa deixou de ser umelemento da economia local, o indgena desapareceu socialmente. Bastarecordar, muitas dcadas depois, que o desenvolvimento da economiaprovincial vai se basear na explorao do trabalho negro.

    Isto explica o cuidado no trato das fontes primrias, a elaborao deuma bibliografia sobre o perodo, a preocupao com o estado da docu-mentao e a necessidade de sua publicao, como realizou no ensaioAspectos do povoamento de So Paulo no sculo XVI. Mas no ficousimplesmente na crtica documental. Avanou. Sugeriu pesquisas como areconstruo dos movimentos migratrios dos nativos, no documenta-dos historicamente pelos brancos, sobre a polmica fundao de SoPaulo, em 1554, ou sobre o processo de conquista da regio mediter-rnea, j no final do sculo XVI.

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  • Mas o socilogo procurou tambm o trabalho de campo. Em som-bra da idade de ouro fez trs excurses pelo Vale do Paraba permitindoassociar a bibliografia sofre o plantio de caf na regio que teve papelpreponderante durante a segunda metade do sculo XIX com apesquisa de campo, a visita s sedes das fazendas, aos terreiros ou entrev-istando descendentes das famlias outrora poderosas. A visita regiopermitiu agregar as anlises e informaes histricas com o olhar do so-cilogo, detectando os conflitos sociais presentes, a ascenso de novasfraes de classe, a permanncia de valores sociais e os ressentimentosdos que perderam poder econmico, social e poltico.

    Em Mudanas sociais no Brasil temos somente duas resenhas, dasdezenas publicadas principalmente na imprensa paulista por FlorestanFernandes especialmente nas dcadas de 1940, 1950 e 1960. Uma evoc-ao da Revoluo Constitucionalista, que trata do livro Palmares peloavesso escrito por Paulo Duarte intelectual, jornalista e participante at-ivo dos combates do Vale do Paraba comandando o clebre tremblindado , transformou uma resenha numa proposta de anlise sociol-gica da guerra civil de 1932. Ao apontar alguns momentos do livro,Florestan Fernandes tem como objetivo central transcender o merocomentrio, apontando possibilidades de pesquisas sobre o tema topouco, at hoje, estudado nas universidades. Indica que poderiam sertratados temas como o funcionamento do exrcito constitucionalista, suaestrutura interna e contradies, as relaes de sociabilidade, entre out-ros. Em Um retrato do Brasil, conjunto de dez artigos publicados ori-ginalmente no Jornal de So Paulo, tendo como pretexto o livro Viagemao Tocantins de Jlio Paternostro. Como diz logo na primeira linha,citando Paul-Arbousse Bastide, um livro vale pelo que sugere. Comentaos efeitos da colonizao portuguesa, aproveita para relembrar os explic-adores do Brasil, como Euclides da Cunha, Slvio Romero, Oliveira Vi-ana, Srgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jnior, a forte presena

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  • ibrica no s no interior, mas nas prprias pesquisas que o socilogorealizou em So Paulo. Enfrentou a clebre dicotomia litoral-serto, anal-isou as formas de vida e de sociabilidade no interior do pas, as condiessanitrias Paternostro era mdico do servio de combate a febre am-arela e educacionais, as condies de trabalho e os movimentosmigratrios.

    As preocupaes do socilogo tambm foram dirigidas a uma questocentral do Brasil nos anos 1950: a democracia. O ensaio Existe uma criseda democracia no Brasil? foi escrito para uma conferncia realizada noMinistrio da Educao dois meses antes do suicdio do presidenteGetlio Vargas. Florestan Fernandes aponta que os debates sobre a criseda democracia eram antigos: vinham desde a Proclamao da Repblica.Os elementos crticos (elites despreparadas, ignorncia popular,crise moral) se transformam em objetos de anlise sociolgica. Destaforma, o autor passa a analisar, ainda que de forma sumria, AlbertoTorres, Oliveira Viana, Nestor Duarte, Caio Prado Jnior, entre outros.

    A democracia, em vez de ser analisada atravs dos seus elementos decrise, vista em processo de construo, de elaborao sociocultural.Torna-se necessria contextualizar historicamente o momento da con-stituio do Brasil em nao e os obstculos difuso de ideais demo-crticos de vida poltica. Este era (e ) o grande desafio na construo dademocracia brasileira, inclusive no sculo XXI. Trs dcadas depois, dur-ante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, o deputadoFlorestan Fernandes teve a oportunidade de participar ativamente naelaborao da Carta mais democrtica da histria do Brasil, a Constitu-io de 1988.

    No primeiro captulo (As mudanas sociais no Brasil), que d ttuloao livro, foi escrito em outra conjuntura histrica, em meio ao regimemilitar, quando estava sendo iniciada a chamada distenso, processo detransio para a democracia mas sob controle governamental. um

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  • balano crtico at exageradamente crtico dos ensaios presentes nolivro. Florestan Fernandes, como um socilogo militante, fez questo delembrar que muito do que se imaginava possvel nos anos 1950 no pas-sou de uma utopia e de uma utopia equivocada, errada fez questo defrisar redondamente errada. Isto no invalida a importncia destes en-saios e nem o autor diz isto em nenhum momento. Mas no severo bal-ano tambm est presente a profunda desiluso com a universidadebrasileira, com uma intelectualidade que optou por uma reflexo da or-dem ou pela reflexo intra-muros, uma espcie de Huis Clos acadmico.

    Mudanas sociais no Brasil permanece como uma importante con-tribuio para o conhecimento crtico do nosso pas, como um exercciode um socilogo militante frente complexidade de uma sociedade declasses, seus dilemas, suas contradies e possveis formas de superao.

    Marco Antonio Villa

    bacharel e licenciado em Histria, mestre em Sociologia e doutor em Histria,sempre pela Universidade de So Paulo (USP). professor do Departamento de Cin-cias Sociais e do programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UniversidadeFederal de So Carlos (UFSCar). Autor de diversos artigos e ensaios e de mais de duasdezenas de livros entre os quais Canudos, o povo da terra, Vida e morte no serto:histria das secas no Nordeste nos sculos XIX e XX e Jango, um perfil. o organiz-ador da Coleo Paulista (Imprensa Oficial/Fundap).

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  • Prefcio

    O presente livro rene estudos de carter muito variado. Alguns fo-ram escritos para serem lidos como comunicaes e conferncias; outrosforam redigidos com vistas para o leitor de jornal ou de revistas especial-izadas... H diversidade nos assuntos, modos de discutir as questes enos objetivos centrais das exposies. Entre 1943 e 1959, a evoluo in-telectual do autor fez com que ele prprio alterasse, aqui ou ali, as suasconvices diante da sociologia e da contribuio que ela pode dar soluo dos problemas sociais no Brasil.1 Trata-se, pois, de um livro het-erogneo no s pela diversidade dos temas focalizados, mas, principal-mente, pelas variaes de estilo, de diretrizes do pensamento e de pre-ocupaes intelectuais.

    Ao selecionar os estudos que o compem, no entanto, o autor encarouessa heterogeneidade como um elemento positivo. Como muito bem sali-entou Emlio Willems, culturas diversas coexistem, na sociedadebrasileira, dentro das mesmas fronteiras polticas.2 A cidade de SoPaulo reproduz, na atualidade, o futuro provvel de outras comunidadesbrasileiras em urbanizao e em industrializao. Essas mesmascomunidades exprimem, por sua vez, se no histrica, pelo menos estru-tural e culturalmente, o passado da nossa cidade. Vrias fases, supostashistoricamente extintas, na evoluo social do Brasil, persistem e vivemna existncia cotidiana de muitas aglomeraes humanas brasileiras dopresente. Tais gradaes e diferenas so perfeitamente visveis e ofere-ceram a Jacques Lambert um prisma para a interpretao de processoshistrico-sociais e polticos em termos das duas civilizaes de idadebem diversas e das duas sociedades diferentes, que se entrechocam na

  • cena social brasileira. Como escreve,a estrutura social arcaica subsiste,quase intacta, no campo; a estrutura social evoluda, dos pases industri-alizados da civilizao ocidental, j se acha estabelecida em algumasgrandes cidades e, sob certos aspectos, penetrou inclusive as zonas ruraisdo Sul.3

    Essa situao histrico-social estimula o alargamento do horizonte in-telectual do socilogo. No plano emprico e terico, porque lhe abreamplas possibilidades de estudo sistemtico de fenmenos e processossociais que precisam, na Europa, ser tratados separadamente, pelos espe-cialistas, ou por meio do recurso comparao com sociedades difer-entes, estrutural e funcionalmente. No plano prtico, porque favoreceuma viso mais utilitria dos papis intelectuais dos cientistas sociais,combinada a motivaes que pem em evidncia a necessidade de se con-jugar o pragmatismo, imanente civilizao industrial, ao humanismo eao relativismo, inerentes tradio acadmica e cientfica europeia.

    Quanto ao primeiro plano, a situao brasileira, com suas cambiantes,d ao investigador possibilidades anlogas quelas que Redfield apontou observao direta na pennsula de Yucatn.4 Estudando o presente devrias comunidades, simultaneamente, o especialista analisa, de fato,vrios graus de evoluo social e de reao s influncias da civilizaoocidental. A diferena, a esse respeito, consiste em que, no Brasil, o poloextremo da civilizao est muito mais prximo do padro europeu enorte-americano, enquanto possvel encontrar comunidades tribaismais prximas do padro arcaico e pouco envolvidas na rede de expansodo sistema econmico e jurdico nacional.5 Doutro lado, a presuno deque se pode estudar o passado pela investigao do presente to ver-dadeira e legtima, que pesquisas sobre relaes raciais entre negros ebrancos em cidades como Florianpolis, Curitiba ou Porto Alegre trazemevidncias que esclarecem vrios aspectos da situao do contato de SoPaulo, no primeiro quartel do sculo XX.6 Da se infere que a comparao

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  • se torna til ao estudioso da evoluo da sociedade brasileira, sem pre-juzo de sua importncia na anlise lgica dos efeitos dos fatores sociaisem diferentes constelaes histrico-sociais, em que eles possam serconsiderados.

    Quanto ao segundo plano, claro que a situao brasileira lana de-safios prticos que s podem ser apropriadamente percebidos e enfrenta-dos, intelectualmente, pelos cientistas sociais. As polarizaes de centrosde interesses e de valores sociais animam o conhecimento de sensocomum de forma tumulturia e contraditria. Isso perfeitamente com-preensvel: a escolha de uma diretriz prtica envolve identificaes quenem sempre podem ser feitas com clareza. O antigo regime ainda nodesapareceu; a nova ordem social est em plena emergncia e formao.As lealdades morais e as preferncias ideolgicas prendem-se, confusa edramaticamente, a foras sociais vivas, que tentam prolongar o passadoou procuram construir o futuro sem se definirem, plenamente, em tornode alvos coletivos explcitos, consistentes e ordenados. Em consequncia,o smile brasileiro do homem de ao europeu ou norte-americano noconta com um conhecimento de senso comum capaz de orient-lo, naatuao prtica, de modo unvoco e integrado. Incapaz de ter uma visocoerente da situao total e da significao dinmica de seus prprios in-teresses e valores sociais imediatos dentro dela, apela para avaliaesegosticas e oportunistas, nas quais se mesclam, estranhamente, identi-ficaes com o antigo regime e solicitaes mais ou menos fortes daeconomia de mercado, da ordem de classes sociais e da democracia. Suainterveno prtica chega a produzir efeitos perniciosos, por falta de con-scincia exata da situao e dos fatores que nela operam, agravando emvez de auxiliar, a longo termo, a soluo dos graves problemas sociaisbrasileiros. A est a grande importncia intelectual da contribuio doscientistas sociais, que podero alargar o nosso campo de conscincia dos

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  • problemas sociais brasileiros, sugerindo, alm disso, as tcnicas mais efi-cientes de controle social que eles exigem.

    Haveria muito a dizer sobre um e outro ponto. No seria oportuno,porm, faz-lo no momento. Pensamos que as implicaes mencionadasdo ao leitor um sistema de referncias para a apreciao, em conjunto,dos ensaios aqui reunidos e das intenes subjetivas que os caracterizam.Eles so heterogneos porque afetam uma realidade que varivel e com-plexa; e, em particular, porque tratam de facetas dessa realidade, que nopoderiam ser apreendidas seno por meio de sondagens localizadas econfinadas. Sob esse aspecto, o livro rene pequenos estudos que so deinteresse para o leitor brasileiro para o qual foram redigidos os diversosestudos e respondem a questes que no apresentariam idntica signi-ficao para o leitor estrangeiro. So questes estritas, mas que nos pro-pomos a ns mesmos, para explicar o nosso passado ou compreender onosso presente. verdade que o indgena brasileiro dobrou-se, sem res-istncias materiais ou morais, ao colonizador branco? O que acontececom o indgena que responde ao apelo da civilizao, nas condies devida que lhe so asseguradas? Como explicar o malogro militar da Re-voluo Constitucionalista, se ela teve xito na esfera poltica? Por que osportugueses ocuparam, no sul, zonas mais ou menos distantes da costa,em contraste com o que fizeram em outras regies? Quais so as prin-cipais fases de desenvolvimento histrico-social de uma cidade como SoPaulo? O crescimento urbano e o desenvolvimento industrial de uma cid-ade como So Paulo traduzem um aumento efetivo e gradual do poder decontrole dos problemas sociais pelo homem brasileiro? A industrializao contida e limitada, no Brasil, somente por fatores econmicos? Estamosutilizando, de fato, todos os recursos de que dispomos na luta pela im-plantao da democracia no Brasil? So questes dessa magnitude queesto, essencialmente, por trs dos debates em cada estudo. So elas quelhes imprimem carter sociogrfico, pois raramente se poderia consider-

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  • los como tais luz da documentao emprica explicitada. So elas, porfim, que ligam as nossas contribuies, ainda que modestamente, in-teno de aumentar o grau de conscincia que alcanamos da situaohistrico-social brasileira.

    Isso no impede que os estudos aqui coligidos tenham, tambm, al-gum interesse para os especialistas. Ainda que de maneira assistemtica,eles situam problemas de certa significao terica. Processos que ocor-reram em comunidades urbanas e industriais da Europa e dos EstadosUnidos se vm repetindo no Brasil, em condies psicossociais e sociocul-turais marcadamente distintas. Essa circunstncia oferece duas opor-tunidades ao socilogo que estude tais processos na sociedade brasileira:1o) a de submeter os referidos processos a investigaes baseadas na ob-servao direta e na interpretao sistemtica das regularidadesdescobertas; 2o) a de explorar a comparao de situaes histrico-soci-ais diversas na interpretao e explicao dos mesmos processos, o quepermite verificar como certos fatores sociais se comportam ao variaremas condies em que eles se manifestam e operam, em sociedades quepertencem a um tipo social determinado.

    O primeiro resultado merece considerao especial, em virtude de osestudos sociolgicos sobre os processos em tela terem sido feitos, no pas-sado, sem recurso sistemtico a tcnicas rigorosas de pesquisa. Os pi-oneiros e fundadores da sociologia, como se sabe, consideravam indis-pensvel trabalhar sobre evidncias coligidas por meio de tcnicas pr-prias de investigao. Por isso, estudaram a urbanizao, a industrializa-o, a secularizao da cultura, a racionalizao dos modos de conceber omundo, a individualizao etc., atravs de evidncias tomadas, assistem-aticamente, das contribuies contidas em obras de histria poltica,histria econmica, histria cultural, geografia humana, estatstica, eco-nomia poltica, religies comparadas, direito comparado, filosofia dahistria etc. O Brasil e outros pases que esto evoluindo, de modo

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  • retardado, para os modelos de organizao econmica, poltica e socialimperantes, h tempos, especialmente em comunidades urbanas e indus-triais da Europa abre aos socilogos novas vias de investigaoemprico-indutiva desses processos.

    O segundo resultado, porm, parece mais relevante para a teoria soci-olgica. A comparao da situao histrico-social brasileira com outrassituaes histrico-sociais anlogas, transcorridas em comunidades quepertencem ao mesmo tipo social, d margem ao desenvolvimento de duasespcies de consideraes interpretativas. Primeiro, compreenso deque certas explicaes, supostamente gerais e universais no mbito dotipo social em questo, so vlidas apenas para as condies de manifest-ao psicossocial e sociocultural dos mencionados processos nas so-ciedades j estudadas. Os esquemas lgicos de interpretao, que elasacarretam ou implicam, precisam ser adequados s situaes empricasque no correspondem, literalmente, quelas que estiveram sob os olhosdos cientistas sociais europeus e norte-americanos. Segundo, manipu-lao sistemtica de inferncias baseadas em exploraes rigorosas domtodo comparativo. O confronto, no caso, tem importncia paraentender-se melhor o que se passa na sociedade brasileira, mas tambm de grande utilidade para uma apreciao mais positiva dos efeitos at-ribudos a determinados fatores sociais. A sociedade brasileira facilita afocalizao nesse novo ngulo, pois dirige a ateno dos investigadorespara condies nas quais as prprias circunstncias de manifestao nat-ural dos fenmenos se apresentam como variveis. Trata-se de uma al-ternativa de interpretao que cai na categoria da chamada experi-mentao indireta, to valorizada por socilogos do passado, de Comte eStuart Mill a Durkheim e Simiand, mas infelizmente inexplorada nas an-lises sociolgicas.

    Sabemos muito bem que no aproveitamos como seria desejvel am-bas as oportunidades. O carter dos estudos no nos permitiria ir alm de

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  • uma explorao ocasional de tais perspectivas. Esperamos tirar maiorproveito delas no futuro, em trabalhos que esto em elaborao ou emmaturao. Pareceu-nos conveniente mencion-las de passagem, en-tretanto, porque elas revelam implicaes tericas que do um sentidoespecial a alguns dos estudos aqui reunidos. Doutro lado, achamos queconviria atrair, como vimos fazendo h algum tempo, a ateno dos so-cilogos brasileiros para problemas tericos desse gnero. A investigaosociolgica precisa associar o conhecimento emprico dos fatos focaliza-dos sua explicao em termos de regularidade e de frmulas gerais.Pareceu-nos til dar certa nfase a essas possibilidades, no tanto paravalorizar cientificamente os nossos estudos, que esto eivados de imper-feies, quanto para estimular novos rumos nas indagaes dos nossoscolegas, que possam produzir um alargamento de suas contribuies teoria sociolgica propriamente dita.

    Em suma, os estudos que formam o presente volume interessam,primordialmente, ao leitor leigo, que pretenda aumentar seus conheci-mentos sobre questes debatidas pelo autor. Mas eles tambm possuemalguma significao para os especialistas, na medida em que colocam cer-tos problemas de mudana social sob um prisma de anlise ainda poucoexplorado no Brasil. Quer dizer que, apesar da sua heterogeneidade, estelivro pode ter alguma utilidade, como fonte de melhor conhecimento decertos aspectos da sociedade brasileira. Nele se colocam questes que de-safiam a nossa argcia e a nossa coragem, como homens de nossa po-ca, e problemas de interesse especfico para os socilogos. Se no fossemuito britnico para um escritor brasileiro, pediramos aos leitores quecolaborassem conosco, tirando numa e noutra direo o que houver deproveitoso em nossas indagaes. Assim, seria possvel dar um destinoprodutivo a estudos que estavam condenados fugacidade e aoesquecimento.

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  • 1 Sobre as alteraes na composio deste livro, em sua segunda edio, veja-se adiante, nota 1do atual captulo I.2 O problema rural brasileiro do ponto de vista antropolgico, So Paulo, Secretaria da Agri-cultura, Indstria e Comrcio, 1944, p. 9.3 Le Brsil. Structure sociale et institutions politiques, Paris, Lib. Armand Colin, 1953, p. 131.4 Cf. Robert Redfield, Civilizao e cultura de folk. Estudo de variaes culturais em Yucatan,Trad. de A. M. Gonalves, So Paulo, Liv. Martins Editora, 1949.5 Sobre as comunidades tribais remanescentes e suas condies de integrao ao sistemanacional brasileiro, cf. Darcy Ribeiro, Lnguas e culturas indgenas do Brasil, Rio de Janeiro,Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1957.6 Essas consideraes encontram fundamento em resultados das investigaes sobre relaesentre negros e brancos em Curitiba, Florianpolis, Porto Alegre e Pelotas, levadas a efeitopelos profs. Fernando Henrique Cardoso e Octvio Ianni particularmente, Cor e mobilidadesocial em Florianpolis, So Paulo. Companhia Ed. Nacional, 1960.

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  • INTRODUO

  • Captulo I

    As Mudanas Sociais no Brasil

    O ttulo deste livro foi escolhido por sugesto do editor, o querido epranteado amigo Paul-Jean Monteil. Dele tambm foi a deciso demanter o ttulo no plural, o que correspondia variedade de facetas dosassuntos abrangidos nas trs partes do livro7 e permitia fugir ambiguid-ade do conceito formalista de mudana social, to em voga entre ossocilogos norte-americanos. Todavia, na ocasio no me pareceu ne-cessria uma discusso sociolgica global dos problemas de mudana so-cial no Brasil.8 O ensaio, que agora passou para o apndice, sobreAtitudes e Motivaes Desfavorveis ao Desenvolvimento, parecia-meuma introduo terica suficiente, aqui e ali adequada situaohistrico-social brasileira, graas ao debate de alguns exemplos tpicos.

    Hoje, depois de tanto tempo ( preciso no esquecer que os trabalhosque constam desta coletnea foram escritos entre 1946 e 1959), evid-ente que se impe a discusso global do tpico geral. No tanto para jus-tificar interpretaes ou pontos de vista que ento pareciam mais certos;e ainda menos, para coloc-los em dia. Mas, para levar o prprio tema aoleitor de modo mais direto e ordenado, com a experincia que conseguiacumular posteriormente, de 1960 a 1974, anos durante os quais a anlisehistrico-sociolgica atingiu o seu apogeu, no Brasil, e nos quais sofreu,em consequncia, uma perseguio sem quartel. Tudo isso tem muito aver com a maneira pela qual os problemas de mudanas social se colo-caram, pelo menos para os socilogos brasileiros que viam a realidade deuma perspectiva crtica e participante.9

  • As razes que explicam essa mudana de atitudes so de naturezapsicolgica e poltica. O maior contraste entre a situao do socilogo emnossos dias e nas dcadas de 1940 ou de 1950 est no nvel de expect-ativas. Ento, duas coisas pareciam certas. Primeiro, que ao socilogo ca-bia assumir suas responsabilidades intelectuais em um nvel puramenteprofissional. Feita uma descrio ou uma interpretao, suas implicaesou consequncias relevantes acabariam sendo percebidas e se concretiz-ando, de uma forma ou de outra. Segundo, que a sociedade brasileira es-tava caminhando na direo da revoluo burguesa segundo o modelofrancs, sob acelerao constante da autonomia nacional e da democrat-izao da renda, do prestgio social e do poder. Havia, portanto, a presun-o de que o alargamento do horizonte intelectual mdio refluiria na reade trabalho do socilogo, criando para as investigaes sociolgicas decunho crtico uma ampla base de entendimento, tolerncia e, mesmo, deutilizao prtica gradual. Tratava-se de uma utopia e, o pior, de umautopia que se achava redondamente errada.

    Tal utopia pode ser facilmente compreendida se se toma em conta suaorigem acadmica (transferncia de ideais de trabalho por parte de pro-fessores de origem europeia e treinados para trabalhar nas universidadeseuropeias) e a falta de concomitncia entre papis profissionais e opor-tunidades de participao dos socilogos no movimento poltico-social.Um ideal relativamente complexo de pesquisa sociolgica foi tolerado,durante certo tempo; mas, por fim, entrou em conflito com as situaesde interesses de classes sociais dominantes, que no estavam preparadaspara conceder real autonomia aos socilogos profissionais. Alm disso, ainexistncia de um movimento poltico-social relativamente forte deixouos intelectuais mais ou menos livres e independentes merc dapresso conservadora. Os mais ntegros protegeram-se atravs de umradicalismo puramente subjetivo (isto , sem suporte institucional, j queno se poderiam apoiar na estrutura e no funcionamento da universidade

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  • brasileira; e sem suporte de massa, j que no existia qualquermovimento poltico-social suficientemente forte para servir de con-trapeso presso conservadora). Os que participavam, simultaneamente,da vida universitria e do movimento socialista tinham de cindir seuspapis intelectuais, como se esses dois eixos de atividades fossem est-anques, exclusivos e s se encontrassem no infinito... Apenas em algumasesferas mais abstratas, quase sempre de elaborao terica, ou, no ex-tremo, como referncia a questes prticas de alcance limitado, se tor-nava possvel alguma comunicao frutfera e ntegra desses doismundos.

    Durante a dcada de 1960 iria-se assistir a uma dupla evoluo. Nosprimeiros anos dessa dcada, fortaleceu-se o impacto da condio ex-terna do socilogo sobre seu labor intelectual. Abriram-se, ento, novasperspectivas, que acarretaram uma forte polarizao poltica e ideolgicados papis intelectuais dos socilogos. Em compensao, produziu-se umaprofundamento qualitativo e quantitativo da sociologia crtica e parti-cipante. Todavia, esse processo se desenrolou tendo como patamar umasituao de crise nacional e internacional das estruturas internas dedominao de classe. Logo se evidenciou que o grau de secularizao dasociedade brasileira como um todo e que os ritmos de democratizaodas relaes de poder eram totalmente insuficientes para absorver taldesenvolvimento da pesquisa cientfica. Abriu-se um vcuo, que exps asociologia s circularidades do obscurantismo intelectual e da repressoconservadora. A resistncia mudana eclodiu, assim, como uma foraespecificamente poltica de alto teor destrutivo, pois ela se desencadeoude fora da universidade para dentro, mas encontrando, dentro da univer-sidade, um slido ponto de apoio institucional.

    Esse rpido bosquejo mostra que no se podem reatar os vnculos como passado como se nada tivesse acontecido ou como se a evoluo tivessesido outra, mais favorvel expanso da pesquisa cientfica e das cincias

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  • sociais. Os crculos sociais dos quais participo no me proporiam, nos di-as que correm, os temas que me foram propostos nas dcadas de 1940 oude 1950. Doutro lado, os temas que me fossem propostos seriam certa-mente examinados de um ngulo bem diferente, como o demonstram ostrabalhos que escrevi recentemente ou que estou escrevendo. Essa difer-ena de expectativas e de orientaes impe, no mnimo, que se con-sidere criticamente certas questes. Por que o socilogo, numa sociedadecomo a nossa, volta-se com tanta insistncia para os problemas demudana? Quais so as caractersticas da mudana numa sociedade comoa brasileira? Por que o controle da mudana to importante para opoder poltico das classes sociais dominantes? Essas questes no apare-ciam ou ficavam apenas implcitas nos ensaios coligidos neste volume.Em nossos dias, porm, elas no podem ficar encobertas ou meramentepressupostas. Precisam ser consideradas em conjunto e tomadas, nocomo um foco de referncia, mas como o ponto de partida de qualquerdiscusso sociolgica crtica e realmente explicativa.

    Por que estudamos a mudana social?

    H muitas razes empricas, tericas e prticas, a serem considera-das isoladamente ou em conjunto para que o socilogo se interesse peloestudo da mudana social. As sociedades humanas sempre se encontramem permanente transformao, por mais estveis ou estticas queelas paream ser. Mesmo uma sociedade tida como estagnada s podesobreviver absorvendo presses do ambiente fsico ou de sua composiointerna, as quais redundam e requerem adaptaes sociodinmicas quesignificam, sempre, alguma mudana incessante, embora esta seja comfrequncia pouco visvel (quer anlise microssociolgica, quer anlisemacrossociolgica de conjuntura). De modo que um estado deequilbrio s pode ser imaginado e obtido, pelo socilogo, como recurso

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  • heurstico e interpretativo (sob a suposio de que, em dadas condies,podem-se observar melhor e, por conseguinte, interpretar melhor os din-amismos de uma sociedade determinada, tomando-a como se o estadoreal de funcionamento pudesse ser fixado e retido como um estado deequilbrio aproximado). Doutro lado, o que alguns descrevem como o es-tado de equilbrio perfeito somente se pode imaginar e construir, soci-ologicamente, como recurso puramente heurstico e interpretativo, porvia exclusivamente abstrata e terica. Na verdade, o estado normal dequalquer sociedade o nico modo pelo qual as sociedades se do ob-servao e interpretao dos socilogos um estado concreto em queela se revela em funcionamento e, portanto, sob alguma combinao detenses estticas e de mudanas sociais. Por sua vez, os padres e os rit-mos de mudana variam de um tipo de civilizao para outro (o que querdizer: variam de um tipo de sociedade para outro). Os limites dentro dosquais funcionamento, mudana social esttica ou dinmica e equilbriorelativo instvel podem conjugar-se e confundir-se s so determinveisconcretamente, em termos de condies objetivas (inerentes ao tipo desociedade que se considere) e de condies tcnicas (posio a partir daqual o sujeito-investigador ir descrever e interpretar os aspectos estti-cos e dinmicos de tal tipo de sociedade).

    Haveria pouco interesse terico em investigar-se a mudana social nasociedade de classes brasileiras com o objetivo de esclarecer os aspectosestruturais e dinmicos do prprio regime de classes. Esses aspectos de-vem ser naturalmente esclarecidos pela investigao sociolgica do re-gime de classes em sociedades nacionais que combinem certo grau deautonomia do desenvolvimento interno com um mnimo de projeohegemnica para fora (o que equivale a dizer: com algum controle es-tratgico direto e crescente das estruturas internacionais de poder, nasci-das das relaes de sociedades nacionais, seminacionais e neocoloniaisou coloniais entre si). Os socilogos da chamada periferia do mundo

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  • capitalista desenvolvido devem dedicar-se, atravs da anlise mono-grfica e da investigao comparada, ao estudo do regime de classes: 1o)ou sob condies tipicamente neocoloniais (nas quais apenas emerge ummercado capitalista especificamente moderno e o regime de classesaparece, assim, como uma realidade histrica incipiente); 2o) ou sob con-dies tipicamente de dependncia econmica, sociocultural e poltica(nas quais a dominao externa mediatizada e em que a revoluoburguesa, como uma dimenso histrica interna, no se acelera por viaautnoma, mas graas a esquemas de articulao da iniciativa privadanacional com o intervencionismo estatal, como o capital estrangeiroou com ambos). A primeira situao histrico-social existiu no Brasil napoca da emancipao nacional e da ecloso interna do capitalismo. A se-gunda j aparece claramente configurada nas ltimas quatro dcadas dosculo XIX, exprimindo e servindo de suporte ao ciclo de deslanche da re-voluo burguesa; mas sob a acelerao do crescimento econmico,portanto sob a integrao do mercado interno e o industrialismo, queela iria mostrar o que significa dependncia sob o capitalismo mono-polista e o imperialismo total. Se conhecimento sociolgico da formaodo regime de classes exige que se estude atentamente a primeira situao, na segunda e em seus desdobramentos histricos que se pode descobriruma explicao sociolgica para o presente e para o futuro, ou seja, parao que o regime de classes reserva periferia do mundo capitalista de-pendente e subdesenvolvido.

    Ao adotar um tica sociolgica semelhante, o sujeito-investigadordeixa de operar com a ordem social competitiva como se ela fosse oequivalente de um modelo fsico-qumico, biolgico ou matemtico,vlido da mesma maneira para qualquer subtipo da sociedade de classes.Ao estudar o regime de classes em sociedades nacionais dotadas, aomesmo tempo, de desenvolvimento capitalista autnomo e de posiohegemnica nas relaes capitalistas internacionais, os cientistas sociais

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  • puderam operar, tanto descritiva quanto interpretativamente, com umahomogeneizao mxima dos fatores propriamente estruturais e dinmi-cos da diferenciao social; puderam concentrar a observao, a anlise ea interpretao em casos extremos, considerados como sistema de umaperspectiva nacional, como se a economia, a sociedade e a cultura, sob ocapitalismo, se determinassem apenas a partir de um ncleo interno emexpanso; supuseram que os fatores causais e funcionais da transform-ao capitalista, tanto ao nvel histrico quanto ao nvel estrutural, atuama partir de dentro (isto , a partir do ncleo fundamental da relao capit-alista e do conflito das classes sociais), e variam, sempre, de um ponto demenor complexidade para outro de maior complexidade quanto ao graude diferenciao das relaes de classe. Tal tica sociolgica era adequadade um duplo ponto de vista: a) objetivamente, dadas as condies demanifestao e de expanso do regime de classes nos pases do centrodo mundo capitalista; b) subjetivamente, dadas as hipteses que funda-mentavam ao prprio estudo sociolgico do regime de classes. No que dizrespeito periferia do mundo capitalista, no entanto, impe-se que seponha em prtica uma verdadeira rotao tica do estudo sociolgico doregime de classes. Isso no invalida, como muitos supem, conceitos,mtodos e teorias acumulados previamente, pois o regime de classes omesmo. Essa herana deve ser aproveitada criticamente e enriquecida. Oque varia o modo pelo qual o regime de classes nasce e sedesenvolve, com influncias dinmicas externas que afetam tanto ahistria quanto as estruturas das sociedades de classes dependentes esubdesenvolvidas. A diferena entre uma e outra abordagem poderia serenfatizada da seguinte maneira: em um caso, o sujeito-investigadorestuda sociologicamente variantes do prottipo hegemnico da sociedadede classes; no outro, o sujeito-investigador estuda sociologicamente vari-antes do prottipo heteronmico (ou dependente) da sociedade declasses. O regime de classes transborda de um para outro, graas s

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  • estruturas de poder criadas no plano internacional pelo capitalismo,porm o primeiro faz a histria, enquanto o segundo a sofre ( claro,mantidas as condies de preservao e crescimento do capitalismo).Portanto, para no viciar sua capacidade de observao, de anlise e deinterpretao, o sujeito investigador precisa, para investigar unidadesque caem no segundo caso, ajustar-se criticamente s condies es-pecficas seja do seu objeto de estudo, seja de sua investigao.

    Isso implica romper com o resduo naturalista implcito na ideia deque o regime de classes surge da mesma maneira, funciona do mesmomodo e produz os mesmos resultados onde quer que ele aparea. Para osfins de nossa discusso, isso quer dizer, especialmente, que o socilogodeixar de considerar o desenvolvimento capitalista como se ele prpriofosse um cientista de laboratrio ou um matemtico. Ao estudar o regimede classes em sociedades que se defrontam com o desenvolvimento capit-alista induzido e controlado de fora, alm disso sujeitas ao impacto neg-ativo das debilidades resultantes de suas posies heteronmicas, oscientistas sociais tm de operar, tanto descritiva quanto interpretativa-mente, com uma heterogeneizao mxima dos fatores propriamente es-truturais e dinmicos da diferenciao social. Eles precisam adaptar seusngulos de observao, de anlise e de interpretao natureza e var-iedade das foras que intervm, concretamente, na configurao e nos di-namismos do regime de classes das naes capitalistas heteronmicas:umas, procedentes das sociedades hegemnicas externas; outras,provenientes de tendncias dominantes na evoluo das estruturas inter-nacionais de poder, criadas pela interao e acomodao, ao nvel mundi-al, das impulses imperialistas das naes capitalistas hegemnicas; eoutras, por fim, que nascem a partir de dentro, das prprias sociedadesde classes dependentes e subdesenvolvidas (s vezes induzidas a partirde fora mas, com frequncia, parte da evoluo interna do capitalismo) eque se voltam na direo do desenvolvimento capitalista para dentro.

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  • Ou seja, os cientistas sociais perdem parte de seu arbtrio na abstrao docaso nacional do amplo conjunto de foras, que operam simultanea-mente e com potencialidades sociodinmicas ao mesmo tempo to varia-das e contraditrias. E se tm em vista uma descrio razoavelmente bal-anceada e uma interpretao rigorosa dos fatos, o caso nacional s podeser entendido e explicado se no for considerado isoladamente: cumprereter todas as foras que so relevantes em termos estruturais e dinmi-cos, nos trs nveis mencionados, pois o regime de classes, em tal situ-ao histrica, exprime a combinao dessas trs ordens de influncias,tanto nas transies que so tidas como graduais, como nas que pos-suem teor revolucionrio.

    A principal contribuio do estudo sociolgico do regime de classes,em tais condies, emprica e terica, embora muitas consequnciasprticas possam ser derivadas desse conhecimento. Trata-se do regime declasses que se desenvolve em conexo com o capitalismo dependente. Adominao burguesa nele apresenta dois polos; um interno, representadopor classes dominantes que se beneficiam da extrema concentrao dariqueza, do prestgio social e do poder, bem como do estilo poltico queela comporta, no qual exterioridades patriticas e democrticasocultam o mais completo particularismo e uma autocracia sem limites;outro externo, representado pelos setores das naes capitalistashegemnicas que intervm organizada, direta e continuamente na con-quista ou preservao de fronteiras externas, bem como pela forma de ar-ticulao atingida, sob o capitalismo monopolista, entre os governos des-sas naes e a chamada comunidade internacional de negcios. Ogrande erro dos cientistas sociais dos pases capitalistas dependentes esubdesenvolvidos consistiu em considerar a dominao burguesasomente sob o smile fornecido pelos pases capitalistas hegemnicos.Esqueceram que o imperialismo, visto a partir do padro de dominaoburguesa existente em seus pases, configura um polo societrio

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  • especfico (mesmo em termos ecolgicos, institucionais e humanos, poisas firmas e capitais estrangeiros se deslocam para o interior dos pasesdependentes, e operam dentro deles com pessoal, tecnologia e polticaprprios). Ou, em outras palavras, ignoraram que a dominao burguesanunca poder ser descrita e interpretada corretamente, no caso de seuspases, sem que suas conexes causais e funcionais com as sociedades declasses hegemnicas sejam agregadas s conexes causais e funcionaispuramente internas. Alm disso, ao contrrio do que muitos cientistas so-ciais supuseram (e continuam a supor), seus pases no esto diante deuma ordem feudal ameaada e em desagregao. Nestes pases (salvo al-gumas excees), o que existe uma ordem colonial em processo de crisee de liquidao (nos casos excepcionais, essa ordem colonial se superpe ordem feudal preexistente). O equivalente do processo histrico de de-sagregao do feudalismo , pois, a descolonizao e esse fato de re-conhecimento difcil, especialmente na Amrica Latina, onde prevalece apresuno errnea de que a descolonizao constitui um episdio dosculo XIX e das lutas pelas emancipao nacional (quando, na verdade,o capitalismo comercial neocolonial e, em seguida, o capitalismo depend-ente condicionaram, de vrias maneiras, a persistncia de estruturas eco-nmicas, sociais e polticas coloniais ou neocoloniais e sua coexistnciacom estruturas econmicas, sociais e polticas criadas pela ecloso de ummercado capitalista moderno e, em seguida, de um sistema de produocapitalista localizado no setor novo, predominantemente urbano-comercial e, mais tarde, urbano-industrial). Na medida em que aburguesia nacional luta pelo desenvolvimento capitalista em termos deuma poltica de associao dependente, ela se articula, ativa e solidaria-mente, aos variados interesses externos, mais ou menos empenhados nareduo dos ritmos e dos limites da descolonizao. Por a se v, port-anto, que estamos diante de um subtipo de regime de classe, o qual spode ser descrito e explicado atravs da investigao sociolgica da

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  • sociedade de classes que se expandiu sob a gide do capitalismodependente.

    A segunda contribuio importante do estudo sociolgico desse re-gime de classes diz respeito ao esclarecimento do tipo de revoluoburguesa a que ele d origem (ou que ele requer). As classes dominantesinternas usam o Estado como um bastio de autodefesa e de ataque, im-pondo assim seus privilgios de classe como interesses da nao comoum todo, e isso tanto de cima para baixo, como de dentro para fora. Elasprecisam de um excedente de poder (no s econmico, mas especifica-mente poltico) para fazer face e, se possvel, neutralizar: 1o) as pressesinternas dos setores marginalizados e das classes assalariadas; 2o) aspresses externas vinculadas aos interesses das naes capitalistashegemnicas e atuao da comunidade internacional de negcios; 3o)as presses de um Estado intervencionista, fortemente burocratizado etecnocratizado, por isso potencialmente perigoso, especialmente se as re-laes de classes fomentarem deslocamentos polticos no controle soci-etrio da maquinaria estatal, transformaes nacional-populistas ou re-volues socialistas. Em vista disso, o Estado no , para as classes dom-inantes e com o controle do poder poltico, um mero comit dos in-teresses privados da burguesia. Ele se torna uma terrvel arma deopresso e de represso, que deve servir a interesses particularistas (in-ternos e externos, simultaneamente), segundo uma complexa estratgiade preservao e ampliao de privilgios econmicos, socioculturais epolticos de origem remota (colonial ou neocolonial) ou recente. Na lgicado uso do Estado como instrumento de ditadura de classe, seja ela dis-simulada (como ocorria sob o regime imperial e sob o presidencialismo),seja ela aberta (como ocorreu sob o Estado Novo ou no presente), o in-imigo principal da burguesia vm a ser os setores despossudos, namaioria classificados negativamente em relao ao sistema de classes,embora uma parte deles se classifiquem positivamente, graas

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  • proletarizao. Todavia, nessa mesma lgica o parceiro externo nopassa de um perigoso companheiro de rota. a relao poltica comesse aliado, alis, que caracteriza a existncia do capitalismo dependentee define os rumos da revoluo burguesa que ele torna possvel. Sem umEstado suficientemente forte e dcil, seria difcil manter a associao comos interesses externos em condies de autodefesa dos interessesprivados nacionais; esse Estado que engendra o espao poltico de quenecessita a burguesia nacional para ter uma base de barganha com oexterior e, ao mesmo tempo, poder usar a articulao com o capital ex-terno como fonte de acelerao do crescimento econmico ou detransio de uma fase para outra do capitalismo. As classes dominantesseriam uma mera burguesia compradora, destituda de meios polticospara evitar a regresso a uma condio colonial ou neocolonial, se nodepusessem dessa faculdade para criar e utilizar o seu prprio espaopoltico nas relaes com o seu polo externo. Analisando-se as conexesapontadas, constata-se que o Estado surge, assim como o instrumentopor excelncia da dominao burguesa, o que explica as limitaes de suaeficcia: seus alvos so egosticos e particularistas; e so raras as coin-cidncias que convertem o que interessa ao topo em algo relevante paratoda a nao. Em tais circunstncias, a dominao burguesa no tilnem para levar a cabo a revoluo nacional (por causa de suas conexesestruturais e dinmicas com as burguesias das naes capitalistashegemnicas e com o capitalismo internacional), nem para promover ademocratizao da riqueza, do prestgio social e do poder (por causa dacoexistncia de vrios modos de produo pr ou subcapitalistas com omodo de produo capitalista e do temor de que uma liberalizao dacompresso poltica pudesse conduzir anarquia e revoluo popu-lar). Em consequncia, temos a uma revoluo burguesa de tipo espe-cial. Ela tem sido encarada e definida como uma revoluo burguesafrustrada ou abortada. Contudo, esse raciocnio interpretativo s se

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  • justifica quando ela pensada em confronto com o modelo nacional-democrtico de revoluo burguesa (a comparao implcita ou explcitaseria com a Frana, a Inglaterra ou os Estados Unidos). Nos quadros emque ela ocorre, porm, a sua eficcia para o poder burgus e o desenvol-vimento depende da conteno tanto da revoluo nacional quanto darevoluo democrtica. Nesse sentido, ela no nem uma revoluofrustrada nem uma revoluo abortada, pois nem a democraciaburguesa nem o nacionalismo revolucionrio burgus se inscrevementre os seus objetivos reais. O que ela colima, a criao de condies emeios para o aparecimento e a sobrevivncia do capitalismo dependente,tem sido atingido, s vezes suscitando at a ideia do milagre econmico(j aplicada ao Mxico e ao Brasil quanto Amrica Latina). Sob outrosaspectos, ela cai na categoria das transformaes capitalistas conseguidaspor vias autocrticas.10

    Por fim, o estudo do regime de classes, em tais condies histrico-so-ciais, contm outra contribuio emprica e terica deveras importante.Ele esclarece que muitas transformaes ocorridas nas sociedades declasses no so um produto automtico da ordem social competitiva. Aocontrrio do que se acreditava, atravs de utopias democrtico-burgue-sas ou de hipteses especficas,11 por si mesma, a ordem social competit-iva no cria dinamismos suficientemente fortes para destruir o antigoregime ou as estruturas econmicas, sociais e polticas arcaicas, deleremanescentes, e para construir as estruturas alternativas, autentica-mente nacionais e democrticas, tpicas de uma sociedade de classes.Sem contar com um sistema de produo capitalista autnomo e univer-salizado tanto em bases nacionais quanto de classes, a ordem social com-petitiva s eficiente e aberta para os mais iguais (os quais oscilam, nospovos de capitalismo dependente, entre um e cinco por cento, raramenteatingindo um quarto da populao total). Esse pequeno setor realmenteconstitui toda a sociedade competitiva da nao. No obstante, seria

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  • incorreto dizer-se que a ordem social competitiva no exista, em taiscasos, ou que ela opere como um sistema fechado. As influncias so-ciodinmicas que ela desencadeia so considerveis, comandando todo ofluxo da reorganizao da economia, da sociedade e da cultura. Almdisso, ela se abre para baixo: h forte mobilidade social vertical, as-cendente e descendente, com alguma circulao das elites e intensa ab-soro dos elementos em ascenso social (nacionais ou estrangeiros).Contudo, tudo se passa como um processo tpico de socializao pelotope, o qual promove uma constante redefinio das lealdades dos gruposem mobilidade ascendente e uma permanente acefalizao das classesbaixas e destitudas. O que explica por que o crescimento quantitativoda ordem social competitiva no acarreta maiores alteraes nos padresde relaes de classe ou de conscincia de classes: o prprio crescimentoda ordem social competitiva tende a favorecer unilateralmente os grupose classes privilegiados; e, de outro lado, contribui para fortalecer e gener-alizar expectativas autocrtico-conservadoras de utilizao e controle dopoder. Isso que dizer que, nas condies apontadas, a ordem social com-petitiva se esvazia como fator histrico-social, tornando-se rgida ou in-erte principalmente para os interesses de classes que no coincidem comos dos donos do poder (os da imensa maioria silenciosa e esquecida).Ela no se coloca, atravs de seus dinamismos espontneos, na fonte dascorrees de tendncias antidemocrticas e antinacionais, porque elaprpria funciona como uma fonte de perpetuao indefinida e de fortale-cimento de tais tendncias. Correes dessa natureza s poderiam surgirse a ordem social competitiva fosse libertada da tutela de uma burguesiaautocrtica e ultraconservadora. Ou seja, atravs de presses anticon-formistas de grupos elitistas (isto , como uma revoluo dentro da or-dem) ou atravs da rebelio das massas isto , como uma revoluocontra a ordem), alternativas que so especificamente reprimidas e pos-tas fora da lei pela burguesia, com base em um ideal de nao e de

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  • democracia que se conforma ao modelo existente da ordem socialcompetitiva.

    Semelhantes contribuies empricas e tericas possuem alguma sig-nificao prtica? claro que a utilidade prtica das descobertas dos so-cilogos depende da existncia de grupos e de movimentos dispostos autilizar os resultados da investigao sociolgica na esfera da ao. Empases destitudos de forte participao poltica popular e de tradiesliberais muito dbeis, s existem limitados incentivos para que issopossa ocorrer. Ainda assim, os trs pontos assinalados contm evidenteimportncia para os vrios crculos sociais mais ou menos inconformistasda sociedade brasileira. No tanto em virtude do desmascaramento darevoluo burguesa, o qual j se patenteara, de mltiplas maneiras, noterreno da ao (j na dcada de 1910 as greves operrias foram tratadascomo questo de polcia, como essa tica foi reimplantada de formaampliada, em 1964, deve-se supor que ela define o horizonte poltico dasclasses dominantes). A nvel prtico, s acumulamos experincias quepressupem as expectativas autocrticas de uma tirania esclarecida, oque fez com que o desmascaramento da revoluo burguesa entrasse paraa rotina. Ningum, hoje, se ilude com os propsitos de autonomianacional, de nacionalismo econmico ou de democracia liberal daburguesia. Esses conceitos sofreram tal desgaste, que perderam qualquersentido prtico (a prpria burguesia gravitou para outros conceitos, comoo de segurana nacional, milagre econmico e democracia forte).Doutro lado, a revoluo institucional ps fim ao prprio mascara-mento ideolgico, deixando a nu que certas compulses nacionalistas edemocrticas so parte do folclore poltico, mero recurso de ritualizaodo comportamento de classe. De fato, a dominao burguesa se apresentacomo ela : rgida, monoltica e autocrtica, anulando ou suprimindo to-do o espao poltico que no sirva aos interesses econmicos, sociais epolticos das classes dominantes. Tudo isso essencial do ponto de vista

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  • prtico: os movimentos de oposio ou de inconformismo militante pre-cisam criar, por seus prprios meios, o seu espao poltico. A ordem so-cial competitiva no lhes d caminho; e a represso conservadora desabasobre eles para destru-los, quaisquer que sejam suas vinculaes reaiscomo o nacionalismo, com a democracia ou mesmo com a intensificaoda revoluo burguesa. Dada essa situao global e o fato de que a lutacontra a represso conservadora tem de ser, ao mesmo tempo, uma lutacontra a dominao externa claro o calibre das exigncias prticas,que impem ao movimento democrtico-nacionalista e ao movimento so-cialista uma ruptura total com a ordem existente. Nessa conjuntura, acontribuio prtica do conhecimento sociolgico fundamental, porqueele nos ensina a no termos iluses. Ou servimos ao Deus do capitalismodependente; ou nos colocamos contra ele, pelas formas e meios que con-seguirmos articular.

    Na verdade, onde a revoluo burguesa se insere em um contextohistrico-social de apropriao dual do excedente econmico,12 de modoa canalizar-se institucionalmente grande parte da expropriao capit-alista para fora, a base material para a formao e a expanso da ordemsocial competitiva torna-se muito fraca e vacilante. No se poderia esper-ar, em tais condies, que a ordem social competitiva, em suas sucessivastransformaes histricas, gerasse foras econmicas, sociais e polticascapazes de acelerar e universalizar a descolonizao e, por conseguinte,de subverter a orientao dependente e oscilante da revoluo burguesa.Nessa situao, a mudana social comprimida, convertendo-se, extensae profundamente, em um processo de modernizao dependente,13

    produzido e regulado graas absoro de dinamismos socioeconmicose culturais das naes capitalistas hegemnicas. claro que este padrobsico de modernizao debilita o controle interno da mudana social edo desenvolvimento econmico, de modo permanente (quando declina ahegemonia de uma nao central, surgem outras que ocupam a mesma

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  • posio, como sucedeu com as transies neocoloniais, para o capital-ismo competitivo ou para o capitalismo monopolista), e impede que seinstaure o padro alternativo de modernizao autnoma, ainda dentrodo capitalismo.

    O que importa aqui, do ponto de vista prtico, so as consequnciassociodinmicas e polticas de tal processo secular. Os ritmos histricos eestruturais, a continuidade ou descontinuidade e o grau de acelerao darevoluo burguesa passam a depender largamente dos dinamismos im-perialistas das naes capitalistas hegemnicas e do mercado mundial. Afalta de correspondncia entre poder econmico e poder poltico faz comque a burguesia nacional, mesmo que desejasse o contrrio, seja impot-ente para realizar, por conta prpria, os seus papis histricos e tentar,assim, assumir o controle completo, a partir de dentro (embora com re-cursos materiais e inovaes importados), das grandes transformaeseconmicas, socioculturais e polticas. Isso sugere que a revoluoburguesa, medida que se transita do capitalismo comercial para o capit-alismo industrial e financeiro, engendra problemas crescentemente maiscomplexos e insolveis na esfera da dependncia econmica, cultural epoltica, aparecendo como inevitvel a transferncia de decises vitaispara os centros estratgicos das naes capitalistas hegemnicas. Emconsequncia, a autonomia nacional e a democracia deixam de ser histor-icamente concretizveis, ao nvel em que elas se objetivam na conscinciaconservadora, pela via da revoluo burguesa. S as classes sociais que seponham a esse tipo de revoluo (ou ao carter que ela assume sob o cap-italismo dependente) poderiam romper o impasse. A experincia demon-strou que ainda no chegamos a esse ponto de ruptura e que, de outrolado, o inconformismo das elites (de classes mdias e altas) no bastante slido para criar uma alternativa histrica dentro e a partir daordem social competitiva. O que significa que s as classes sociais des-titudas e o proletariado podero forjar essa alternativa, mas fora e contra

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  • a ordem existente, o que exige que suplantem a dominao burguesa in-terna e externa, bem como se mostrem aptos para desencadear uma re-voluo socialista.

    Quais so as caractersticas da mudana social no Brasil?

    Deixando de lado vrias questes fundamentais algumas j debati-das em outros trabalhos de minha autoria, que cuidam do processo detransplantao cultural propriamente dito e do esforo criativo inerente preservao de uma herana sociocultural que transcendia, de modo in-evitvel, s exigncias das situaes histricas vividas concentrarei aateno sobre certos aspectos sociodinmicos do fluxo da mudana sociale de seu controle societrio coercitivo. Impe-se deixar de lado o perodocolonial. Contudo, no se deve esquecer que o padro brasileiro de gentede prol se constitui nesse perodo, em que se agravam, por causa da es-cravido e da prpria expropriao colonial, as distines sociais preex-istentes na sociedade portuguesa. H evidente ligao entre esse padro,que ainda no foi neutralizado pela ordem social competitiva, e a mental-idade mandonista, exclusivista e particularista das elites das classes dom-inantes. Por isso, as relaes de classe sofrem interferncias de padresde tratamento que so antes estamentais e que reproduzem o passado nopresente, a tal ponto que o horizonte cultural inerente conscincia con-servadora de nossos dias, em seu mandonismo, exclusivismo e particular-ismo agreste, lembram mais a simetria colonizador versus colonizadoque a empresrio capitalista versus assalariado. Isso evidencia oquanto a ordem civil ainda no atingiu mesmo grupos incorporados aomercado capitalista de trabalho e ao sistema de relaes de classes, de-mostrando que a distncia social entre as classes nem sempre umamera questo quantitativa. Aquele padro compatibiliza a coexistncia datolerncia e at da cordialidade com um profundo desdm elitista por

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  • quem no possua a mesma condio social. O que faz com que aquilo queparece democrtico, na superfcie, seja de fato autoritrio e auto-crtico, em sua essncia. Esse patamar psicossocial das relaes human-as a nossa herana mais duradoura (e, ao mesmo tempo, mais negativa)do passado colonial e do mundo escravista. Gostaria que ele fosse man-tido na perspectiva crtica do leitor, qualquer que seja sua dificuldadepara imaginar como as coisas seriam se o Brasil no tivesse surgido comouma sociedade colonial e escravocrata.

    O principal foco dos dinamismos sociodinmicos da mudana social a organizao da sociedade. No caso brasileiro, os modelos de organiza-o social sempre contiveram potencialidades sociodinmicas (de difer-enciao estrutural e funcional ou de saturao histrica ) que no lo-graram se concretizar de modo mais ou menos rpido e intenso.14 Oprimeiro modelo, que serviu de base para a organizao da sociedade co-lonial, envolvia uma superposio do padro portugus do regime esta-mental (em fase de transio incipiente para o regime de classes) es-cravido de estoques raciais indgenas, africanos e mestios. Essa super-posio representou uma tcnica adaptativa imposta pela explorao co-lonial e deu origem a um sistema estratificatrio misto, cuja durao foicondicionada pela persistncia do regime servil e do sistema de produoescravista. Ele possibilitava a classificao dos elementos da raa domin-ante em termos estamentais; a classificao dos elementos das raas es-cravizadas (legal ou ilegalmente) em termos de castas; e uma amplagravitao dos elementos mestios libertos ou livres em torno dessasduas categorias. Bastam dois exemplos para se ter uma ideia aproximadade como foi lenta a saturao estrutural-funcional e histrica desse sis-tema de estratificao. No que diz respeito ao senhor, no no perodocolonial, mas graas emancipao nacional que ocorre a integrao ver-tical dos estamentos senhoriais. Essa transformao operou-se atravs daintegrao desses estamentos em uma ordem civil, que detinha o

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  • monoplio do poder poltico, o qual conferiu aos senhores a probabilid-ade de controlar a mquina do Estado sem qualquer mediao. Enquantodurou o sistema colonial, a Coroa impediu essa evoluo, que deslocaria opoder poltico de suas mos para os estamentos senhoriais. No que diz re-speito ao escravo, somente depois da supresso do trfico (portanto, de-pois que o mundo de produo escravista entra em crise estrutural) epara fazer face s presses da incorporao de novas reas economia deplantao, que a escravido como instituio econmica iria sofreruma depurao funcional. O domus foi separado da plantao e, em con-sequncia, muitos fatores de desperdcio ou subaproveitamento do tra-balho escravo foram reduzidos ou eliminados, com o objetivo de aument-ar seja a sua intensidade, seja a sua produtividade.15 O segundo modelo,que se originou, simultaneamente, da desagregao do regime estamentale de castas e do desenvolvimento interno do capitalismo, foi amplamentesolapado pela coexistncia e concorrncia do trabalho servil, do trabalhosemilivre e do trabalho livre, provocadas pela coetaneidade de vrias id-ades histricas distintas e pela articulao, no mesmo sistema econ-mico, de modos de produo pr-capitalistas e capitalistas. Isso, maisque o seu aparecimento relativamente recente, explica as vicissitudes doregime de classses no Brasil e as dificuldades, tanto estruturais quantohistricas, que vm embaraando a eficcia da competio e do conflitona coordenao das relaes de classe. Basta um exemplo para de teruma ideia aproximada do que implica esta afirmao. As greves operri-as, enfrentadas como questo de polcia na dcada de dez, foram reit-eradamente tratadas de modo repressivo posteriormente e banidas da or-dem legal depois de 1964.16 Uma sociedade de classes que submete o sin-dicalismo a uma regulamentao corporativista e tolhe as presses debaixo para cima no est apenas na infncia. uma sociedade declasses que s funciona como tal para os mais iguais, ou seja, para asclasses altas e mdias.

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  • O outro foco dos dinamismos sociodinmicos da mudana social adifuso cultural. No caso brasileiro, cumpre reconhecer, desde logo, essefoco tem uma importncia bsica, pois a incorporao aos movimentosde expanso do mundo ocidental moderno tem operado como fator deprecipitao tanto de transies histricas quanto de diferenciaes es-truturais que explicam transformaes capitais da sociedade brasileira(quer sob o regime estamental e de castas, quer sob o regime de classes).Em regra, o desenvolvimento interno da economia, da sociedade e da cul-tura cria, previamente, um novo patamar, o qual condiciona e torna pos-svel a partir de dentro, uma alterao sbita no enlace com os dinamis-mos econmicos e culturais com as naes capitalistas hegemnicas ecom o mercado mundial. Precipita-se, desse modo, uma fase mais oumenos intensa de modernizao, orientada e regulada a partir de fora.Em seguida, a transformao completa-se, atravs de vrios reajustamen-tos internos simultneos ou sucessivos. Quando a transio substancial,estrutural e historicamente (como ocorreu na poca da emancipaonacional, com a passagem do sistema colonial para o neocolonial; do l-timo quartel do sculo XIX em diante, com a emergncia e a expanso docapitalismo competitivo; e, depois da Segunda Guerra Mundial, com aemergncia e expanso do capitalismo monopolista), ocorre uma sub-stituio do padro de desenvolvimento econmico, sociocultural epoltico; alteram-se tambm os ritmos do desenvolvimento econmico,sociocultural e poltico, que atingem maior velocidade inicial, para decairgradualmente e, com o tempo, retomar uma velocidade mdia compatvelcom a preservao das mudanas ocorridas (sem, no entanto, eliminarhiatos e descontinuidades, nascidos da heterogeneidade dos modos deproduo articulados no mesmo sistema econmico e da coetaneidade deidades histricas diversas); e, por fim, surge o encadeamento das trans-formaes ocorridas com a diferenciao da economia, da sociedade e dacultura, estabelecendo um patamar novo, que permite ou uma melhor

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  • saturao estrutural-funcional e histrica dos modelos de organizao so-cial vigentes, ou outro salto estrutural-funcional e histrico. Esse es-quema, ultrassimplificado, situa bem a complexidade da vinculao dosdinamismos sociodinmicos internos e externos. A relao no uma re-lao de causa e efeito simples. Temos, antes, um modelo dialtico decausao, pelo qual podemos localizar mltiplas causas e efeitos em in-fluncia recproca e em tempos sucessivos ou simultneos, todos regula-dos, nas relaes de concomitncia e de sucesso, pelos vrios tipos decontradies que jogam o desenvolvimento interno contra a moderniza-o e vice-versa. Procurei reter e pr em primeiro plano as regularidadesque aparecem, aos nveis estrutural-funcional e histrico, como astendncias caractersticas do complexo movimento social resultante. Esseesquema comporta duas afirmaes complementares: 1) em si e por simesmas, as transformaes internas no seriam suficientes para pro-mover a diferenciao estrutural-funcional e as transies histricas con-hecidas (a desagregao do sistema colonial, a plenitude do sistema decastas e de estamentos, a desagregao desse sistema e a formao do sis-tema de classes); 2) porm, em si e por si mesmos, os fluxos da mod-ernizao dependente no encontrariam base econmica, sociocultural epoltica para transcorrerem e, em particular, para atingirem a eficciaque lograram (seja na dinamizao da ordem escravocrata e senhorial ouda ordem competitiva, seja na dinamizao do desenvolvimento capit-alista interno, nos desdobramentos que vo de uma economia neocoloni-al dotada de um mercado capitalista moderno ao capitalismo competitivoe ao capitalismo monopolista). Essas duas concluses tambm com-portam um corolrio: a articulao dos dinamismos econmicos, sociais eculturais internos e externos, apesar de tudo, no suficiente paraproduzir a emergncia e a consolidao de uma padro de desenvolvi-mento que se pudesse equiparar ao padro de desenvolvimento autos-sustentado das naes capitalistas hegemnicas. Isso faz com que a

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  • incorporao e a modernizao surjam observao em sua verdadeiranatureza, como uma expanso de fronteiras econmicas, socioculturais epolticas externas (de fora para dentro: das naes capitalistas hegemn-icas na direo da sociedade brasileira), como uma espcie deconquista, qual os dinamismos internos no tm o poder de se opor-em e de neutralizar.

    O fluxo descrito continha, de fato, dois movimentos de mudana socialque se superpunham e, a partir de certo momento, se confundiam e sefundiam. Ambos os movimentos operavam espontaneamente: um, at-ravs de processos de diferenciao da ordem social escravocrata e sen-horial (ou, mais tarde, da ordem social competitiva) e da saturaohistrica progressiva de potencialidades dinmicas de status e papis so-ciais, de relaes sociais ou de funes sociais das instituies-chave;outro, atravs da ampla difuso e novas tcnicas, valores e instituiessociais, implantados no setor novo graas ecloso de um mercadocapitalista moderno, reorganizao poltico-administrativa do Estado e crescente expanso urbano-comercial (ou, mais tarde, urbano-industri-al). No conjunto, os dois movimentos que exprimiam toda a transform-ao da economia, da sociedade e da cultura. Todavia, eles no operavamisoladamente. Tanto a partir de dentro quanto a partir de fora, havia out-ros movimentos de sentido oposto, que trabalhavam pelo equilbrio es-ttico da economia, da sociedade e da cultura. O modo de produo es-cravista, a estrutura estamental e de casta das relaes sociais, e a domin-ao patrimonialista concorriam para preservar, aos nveis estrutural ehistrico, as estruturas econmicas, sociais e polticas herdadas do per-odo colonial, mantendo-as quase intacta. Doutro lado, a influncia ex-terna, autenticamente revolucionria aos nveis estrutural e histrico nafase de desagregao do antigo sistema colonial, pois incorporava a eco-nomia interna diretamente ao mercado mundial e fixava os ncleos urb-anos que iriam servir de fulcro ao crescimento de um mercado capitalista

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  • moderno, tambm pressupunha um feedback negativo. O comrcio exter-no constitua o verdadeiro ponto de apoio seja para a manuteno sejapara a ampliao de um esquema de exportao e de importao que iriaservir de eixo para a preservao, o desdobramento e a revitalizao deestruturas econmicas, sociais e polticas de origem colonial.

    preciso cotejar esses quatro movimentos de estabilidade e demudanas sociais, convergentes em certos aspectos e divergentes em out-ros, para se avaliar corretamente o resduo realmente inovador e constru-tivo dos influxos internos e externos de transformao econmica, so-ciocultural e poltica. Os movimentos que promoviam a preservao e ofortalecimento de relaes, instituies e estruturas coloniais no eram,pura e simplesmente, antagnicos modernizao, ao crescimento dosetor novo, e expanso interna do capitalismo comercial. Bem analis-ados, eles constituam antes uma precondio para que tudo isso fossepossvel, dadas as vinculaes existentes entre a grande lavoura, a con-tinuidade da incorporao direta ao mercado mundial e o desenvolvi-mento capitalista no setor novo, urbano-comercial (e, mais tarde, urbanoindustrial). O antagonismo mudana, portanto, tem de ser interpretadocom muito cuidado, porque ele faz parte da autodefesa do setor arcaico,que funcionava como fonte de alimentao indireta das transformaesem curso e se beneficiava delas no nvel menos visvel da reorganizao econcentrao do poder. Doutro lado, os interesses investidos na modern-izao ou na expanso interna de um mercado capitalista moderno e dosetor urbano-comercial, estratgico para tais fins, no lutavam, pelo con-trole do espao ecolgico, econmico, sociocultural e poltico incorporados estruturas econmicas, socioculturais e polticas de origem colonial.Na verdade, eles se superpunham e se agregavam, aos nveis estrutural ehistrico, aos interesses investidos neste setor de origem colonial,produzindo-se uma articulao dinmica entre ambos. Por isso, no s asrelaes de produo coloniais podiam subsistir: elas se convertiam, de

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  • imediato, em fonte do excedente econmico que iria financiar tanto a in-corporao direta ao mercado mundial, com seus desdobramentos econ-micos e culturais, quanto a ecloso de um mercado capitalista modernoe a subsequente revoluo urbano-comercial. Por a se verifica quo com-plexo era o quadro global. E, o que tem maior importncia interpretativa,de que natureza era o fluxo de mudana social descrito. Ele no surgia in-sopitavelmente, como uma torrente volumosa e impetuosa, que abria seucaminho de modo inexorvel. Mas uma espcie de afluente, que de-saguava em um rio velho, sinuoso e lerdo. medida que se formassemnovos afluentes e, em particular, medida que os homens drenassem ovelho rio e o retificassem, que a contribuio da massa de gua ad-quirida iria revelar todo o seu potencial. Essa imagem no meramenteretrica. Lembremo-nos de que da vinda da famlia real, em 1808, daabertura dos portos e da Independncia, Abolio, em 1888, Pro-clamao da Repblica e revoluo liberal, em 1930, decorrem 122anos, um processo de longa durao, que atesta claramente como ascoisas se passaram.

    Esse quadro sugere, desde logo, a resposta pergunta: a quem bene-ficia a mudana social?. Embora transformaes to profundas quantoas que ocorreram graas desagregao do sistema colonial e expansointerna do capitalismo comercial afetassem o presente e o futuro de todaa sociedade brasileira, de fato os proventos imediatos dessas transform-aes convergiram para pequenos grupos de agentes humanos, localiza-dos em posies estratgicas no exterior ou no interior do pas.Limitando-nos a estes ltimos: os benefcios e os efeitos construtivos alargo prazo da mudana social foram monopolizados pelos estamentosmdios e altos, os nicos que se incorporavam ordem civil com meios equalificaes para impor sua vontade. A questo no s, portanto, denvel de vida ou de estilo de vida, como querem crer muitos histori-adores e antroplogos. Ela , tambm, de organizao da vida. O fluxo

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  • de mudana social trazia em seu bojo novas formas de organizao in-stitucional das atividades econmicas, socioculturais e polticas, as quaisforam amplamente absorvidas e controladas pelos setores senhoriais ouquase senhoriais que compunham a referida ordem civil (no campo e nascidades). Os dois ncleos mais importantes de fixao dessas mudanaslocalizavam-se no Estado emergente e nas firmas comerciais. Como aemancipao nacional constitua uma revoluo especificamente poltica, em torno dessa rea que ocorrem as principais transformaes. A satur-ao histrica dos papis polticos dos senhores deu uma nova importn-cia sua participao das atividades polticas, em escala provincial enacional. As famlias senhoriais tm de enfrentar, assim, maiores investi-mentos humanos e financeiros nos centros de poder poltico, precisandodeslocar do campo para a cidade, de maneira crescente, sua esfera de atu-ao burocrtica e poltica crucial. O mesmo processo provoca umareativao das atividades poltico-burocrticas dos elementos dos esta-mentos mdios e altos localizados nas cidades, com uma intensificao dasolidariedade poltica estamental acima dos laos de famlia ou denobreza (o que constitua um requisito da formao da ordem civil comoum sistema de poder fechado e do seu funcionamento como um mecan-ismo de monopolizao do poder pelos estamentos altos e mdios daraa dominante). No outro plano, encontravam-se as novas firmascomerciais, na maioria estrangeiras ou associadas, em torno das quaisiria gravitar, inicialmente, o crescimento do mercado moderno e doprprio capitalismo. Malgrado o controle externo direto ou indireto, esseavano pressupunha o incio da desagregao gradual do padro colonialde mercado (que continuava a existir, a funcionar e a dominar as eco-nomias locais), uma nova relao com a economia mundial e as bases ne-cessrias para a organizao institucional das atividades econmicas in-ternas segundo padres especificamente capitalistas. Tal progresso noera de somenos, j que permitia absorver, de imediato, as cotas do

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  • excedente econmico que eram abocanhadas pela Coroa e pelas compan-hias comerciais metropolitanas; e, de outro lado, criava um ponto departida para o novo funcionamento do esquema exportao-importao,que passou a gravitar tambm para dentro, fomentando o aparecimentode um polo dinmico para o crescimento do mercado interno e, com otempo, do modo de produo capitalista. A estavam os germes de umaordem social competitiva, que abria seus flancos dentro do antigo re-gime em reelaborao e iria se alimentar de sua destruio paulatina.

    No que concerne monopolizao dos efeitos construtivos damudana social pelos estamentos dominantes da ordem social escravo-crata e senhorial h pouco a acrescentar. O cidado, na emergente so-ciedade nacional brasileira, no era apenas um componente da ordemcivil: era o nobre ou o burgus com condio senhorial gente quedesfrutava das garantias civis, do direito de representao e que dispunhade voz nos mecanismos seletivos da opinio pblica, que comandava ademocracia restrita imperial. A mudana social no se fazia para a so-ciedade brasileira, mas para essa gente, ou seja, para o pequeno universoestamental que continha os homens vlidos da nao emergente. Essemonoplio no iria desaparecer juntamente com a desagregao da or-dem escravocrata e senhorial: a Abolio, a Proclamao da Repblica e arevoluo liberal de 1930 apenas assinalam que ele entra em crise. Adestruio do modo de produo escravista leva, pela primeira vez, adescolonizao ao mago do sistema econmico, revolucionando as basesda ordem social e do sistema de poder. Ela exige que se elimine, gradual-mente, a articulao dinmica entre estruturas socioeconmicas arcaicase modernas. Todavia, a persistncia do esquema de exportao-im-portao e o fato de que a expanso do mercado interno iria revitalizar agrande lavoura tiveram efeitos especiais. Mantm-se o trabalho servil dis-farado e vrias formas de trabalho semilivre muito tempo depois da uni-versalizao do trabalho livre. Portanto, a ordem social competitiva

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  • atinge um clmax evolutivo excluindo tanto os brancos pobres quanto osremanescentes do trabalho escravo, os negros e os mulatos que nolograram proletarizar-se ou classificar-se nos estratos sociais mdios e al-tos. O que surge, muito forte, no o fim do processo que nos preocupa.Mas a presso de baixo para cima, que visa impor a presena e as ne-cessidades da nao como um todo na esfera da mudana social, visandoacabar com o esmagamento e a sufocao elitista da mudana social. Estesalto no se d mais sob compulso da modernizao (inclusive, quandosuas potencialidades de conflito se tornam claras, os interesses externosse compem com a chamada conscincia conservadora da oligarquia ecom as tcnicas repressivas que esta adota). Ele se processa sob a pressodas estruturas nacionais de integrao da economia, da sociedade e dacultura. Emerge, assim, uma ideologia reformista que empalma, commoderao, os ideais burgueses de uma revoluo nacional-democrtica.A relao de autodefesa dos setores que defendiam o monoplio elitistados efeit os construtivos da mudana social tomou vrios rumos, quetraduzem a desorientao criada nas classes mdias e altas por essaprimeira irrupo histrica dramtica das contradies que operam den-tro da ordem social competitiva. Contudo, a conscincia conservadoraprevaleceu, porque ela reunia os principais trunfos das estruturas depoder: a velha e a nova oligarquias coincidiam, em seus propsitos dedesenvolvimento com segurana, com os setores ascendentes dasclasses mdias e os parceiros estrangeiros. H mais de um sculo e meiodepois da Independncia e h mais de trs quartos de sculo da univer-salizao do trabalho livre e da Proclamao da Repblica, a mudana so-cial ainda no se d para a sociedade brasileira como um todo, mas parauma minoria privilegiada, a qual pode ser estimada, para efeitos de clas-sificao social efetiva no sistema, no mximo em 40%, mas que nopassa, na realidade, de 10%, em termos de concentrao de renda ou de

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  • poder e de renda mdia compatvel com o padro de vida decente daselites.17

    Os mesmos estratos sociais que monopolizam os benefcios damudana social tendem a submet-la a controles mais ou menos seletivose coercitivos. Isso ocorreu no Brasil e continua a ocorrer no presente(nem poderia ser de outra maneira). Os controles visavam garantir atransferncia de recurso da comunidade nacional para esses estratos, me-diante o subterfgio de aloc-los soluo dos problemas de mudanaque so estratgicos ou vitais para eles. Desse modo, a nao como umtodo financiou ou financia vrios desenvolvimentos tcnicos, econmicos,culturais e polticos que deviam servir, de modo direto ou indireto, apropsitos ou a interesses privados (internos e externos). Muitas poltic-as foram montadas, no passado remoto ou recente e no presente, paradotar o pas de uma infraestrutura econmica, de comunicaes, detransportes e de servios estreitamente moldadas por objetivos privadosimediatistas. Nos vrios momentos, a questo invarivel prementesempre foi a de criar espao ecolgico, econmico, social, cultural epoltico para a iniciativa privada (ou seja, para expandir a rede de neg-cios e de poder dos estratos sociais dominantes). Essa prtica no pecu-liar ao Brasil e aos pases de capitalismo dependente. Contudo, ela as-sume nestes pases um carter tpico. O passado colonial converte a sep-arao entre minoria privilegiada e a grande massa excluda numarealidade pungente, que no chegou a existir mesmo nas sociedades declasses mais rgidas da Europa, que foram descritas como se fossemduas naes. A minoria privilegiada encara a si prpria e a seus in-teresses como se a nao real comeasse e terminasse nela. Por isso, seusinteresses particularistas so confundidos com os interesses da nao eresolvidos desse modo. Enquanto os interesses da grande massa excludaso simplesmente esquecidos, ignorados ou subestimados. Os assuntosde mudana social entram, assim, na esfera do controle social e da

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  • dominao de classe, com uma tica enviezada, que identifica a naocom os donos do poder.

    Duas consequncias negativas advm de tal distoro. A primeira dizrespeito unilateralidade com que as exigncias da situao se elevam esfera da conscincia social, do comportamento social inteligente e daatuao poltica. Os problemas que ganham prioridade so os prob-lemas que afetam os interesses, a segurana ou a rede de poder daminoria privilegiada, insensvel aos dramas humanos ou desumanos dasmassas e pouco sensvel s questes de ordem nacional que no a pon-ham em risco visvel. A segunda diz respeito propenso dessa minoria,instalada nos principais centros estratgicos de deciso e de dominao, agraduar ou a adulterar as mudanas assim filtradas de acordo com seucdigo de convenincias. Um Estado nacional e democrtico, por ex-emplo, pode ser montado para servir aos interesses econmicos e s ne-cessidades de dominao de proprietrios de escravos. Ou todo umaparelho policial ou policial-militar, em outros exemplos, pode ser postoa servio da represso de greves operrias ou do sufocamento da in-quietao popular. Olhando-se tais exemplos pelo reverso da medalha,pode-se constatar que o controle coercitivo da mudana social visa acompatibilizar a ordem social competitiva com privilgios econmicos,sociais e polticos herdados do sistema colonial. como se, na Frana, sepretendesse justapor, durante a grande revoluo, os mveis da dom-inao feudal aos mveis da dominao burguesa. Isso traz baila maisuma evidncia de que a ordem social competitiva, sob o capitalismo de-pendente, no produz, por si mesma, as impulses para a mudana e asimpulses para concomitantes para o controle democrtico damudana, que so requeridas pelas grandes transformaes estruturais ehistricas que ela mesma acarreta. Institucionaliza-se a adulterao dessaordem, o que, por sua vez, engendra a adulterao sistemtica do prprio

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  • padro de estabilidade e de mudana da sociedade competitiva sob ocapitalismo.

    Contudo, existem mudanas espontneas que tm origem estrutural:elas se originam do prprio padro organizatrio da sociedade de classese no podem ser facilmente adiadas, sufocadas ou reprimidas. Elasnascem dos dinamismos do mercado e do sistema de produo sob o cap-italismo, das relaes e conflitos de classes, ou das impulses igualdadecivil desencadeadas pelas estruturas de poder de uma sociedade nacional.Tais tipos de mudana constituem o bicho-papo das burguesias das so-ciedades capitalistas dependentes e subdesenvolvidas (e, tambm, do quese poderia designar, eufemisticamente, como burguesia internacional).Elas ameaam (ou parecem ameaar) as posies de poder e as bases dedominao poltica das classes dominantes, que podem perder facil-mente, atravs delas, o controle da situao. Como as classes que seidentificam com tais mudanas nem sempre possuem o que algunscientistas polticos designam como poder de barganha, acaba sendo umatentao sedutora e fcil resistir a tais tipos de mudana, j que as retali-aes previstas podem ser comodamente contornadas ou reprimidas.Aqui, entra-se no captulo da resistncia socioptica mudana, atravsda qual as classes sociais dominantes e suas elites desfrutam a ordem so-cial competitiva, mas a convertem em uma ordem fechada s necessid-ades e s aspiraes das demais classes. lugar-comum na interpretaosociolgica que esse comportamento poltico das classes dominantes e desuas elites decorre da falta de socializao adequada e da inexistncia oudebilidade com que elas compartilham alvos coletivos nacionais edemocrticos. Por conservantismo, por oportunismo ou por uma com-binao de ambos, essas classes e suas elites seriam compelidas a en-frentar os problemas da mudana sem a disposio de resolv-los se-gundo critrios efetivamente nacionais e democrticos, isto , deacordo com as exigncias estruturais e dinmicas da ordem social

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  • competitiva em dada fase de seu desenvolvimento histrico. Essa inter-pretao , sem dvida, correta. Mas implica em um lugar-comum, quealm do mais ignora que, na raiz do comportamento das classes domin-antes e de suas elites, se acha outro componente de maior influncia con-dicionante e determinante. No s a cegueira, que conta, mas tambma certeza (ou quase certeza) de que se pode mani