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MULHERES QUILOMBOLAS: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO,
RAÇA E GERAÇÃO NO QUILOMBO DE SANTA RITA DA BARREIRA.
QUILOMBOLAS WOMEN: BRIEF OBSERVATIONS ON GENDER, RACE AND
GENERATION IN BARRIER RITA SANTA QUILOMBO.
Ana Célia Barbosa Guedes
Mestranda do programa de Desenvolvimento
Sustentável do Trópico Úmido/ Núcleo de Alto
Estudo da Amazônia (NAEA), UFPA.
Mayany Soares Salgado
Doutoranda do Programa de Desenvolvimento
Sustentável do Trópico Úmido – PDTU- Núcleo de
Altos Estudos da Amazônia (NAEA) – UFPA
RESUMO
O presente artigo visa estabelecer um apanhado de como se manifesta a relação de gênero, raça e
geração, bem como a organização histórica, socioeconômica e cultural do quilombo de Santa Rita da
Barreira, localizado no município de São Miguel do Guamá- Pará. Tendo como objetivo analisar a
relação de gênero, raça e geração no cotidiano do grupo social em questão. A metodologia utilizada foi
pesquisa bibliográfica, bem como de campo por meio de entrevista semiestruturada para coleta de dados,
tendo como sujeitos da pesquisa quatro mulheres moradoras dessa localidade, das quais são consideradas
como símbolo de resistência cultural, por meio da relevância de suas atividades desempenhadas no
quilombo. No entanto, observa-se que no mesmo a mulher ainda não dispõe uma participação ativa nas
decisões políticas e econômicas, embora seja de suma importância tanto para o desenvolvimento do
processo produtivo quanto para organização social e cultural do grupo.
Palavras- chaves: Quilombo; gênero; raça; geração.
ABSTRACT
This article aims to establish an overview of how is the gender relations, race and generation, as well as the historical, socioeconomic and cultural organization of the Santa Rita barrier quilombo located in São Miguel do Guamá- Pará. With the analyze the gender relations, race and generation in everyday
social group in question. The methodology used was research literature and field through semi-structured interview for data collection, The subjects were four women living in this locality. Of which are considered as a symbol of cultural resistance through the relevance of its activities performed in the quilombo. However, it is observed that the same woman does not have an active participation in political and economic decisions, although it is of paramount importance for the development of the production process and for social and cultural organization. Words- keys: Quilombo; genre; breed; generation
1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história social no Brasil, tem-se observado resistência em reconhecer a luta
e a participação de mulheres negras, em diversos setores da sociedade, em especial quando se
trata de mulheres do campo, visto que nas sociedades camponesas o processo produtivo está
relacionado ao universo masculino. No entanto, a realidade campesina, a participação feminina
manifesta forte expressão no que tange o trabalho cooperativo, no protagonismo das lutas
cotidianas, nas atividades produtivas e nos trabalhos domésticos.
Embora, a participação daquelas mulheres fora do âmbito doméstico tenha sido, durante
muito tempo, esquecida e ignorada pela historiografia e pela sociedade, sua participação é
fundamental para a sobrevivência do grupo social em que vive, pois participam das mais
diversas atividades, desde a agricultura, artesanato, cultivo de plantas medicinais, enfatizando
o papel significativo na preservação das fontes de água potável para o consumo da população
local.
Essa situação é notada também em Santa Rita da Barreira, comunidade quilombola
localizado no Km 12 da PA-251 na zona rural do município de São Miguel do Guamá Pará,
distante 134 quilômetros da capital do Estado. Esse quilombo foi reconhecido, pelo Estado
brasileiro, no dia 22 de setembro de 2002. A titulação dessas terras foi de acordo com a Lei
6.165, de 02 de dezembro de 19981 que rege sobre a legitimação de terras dos remanescentes
das comunidades quilombolas e o Decreto Estadual 3.572/992 que define as atribuições do
Instituto de Terra do Pará (ITERPA), no processo de Legitimação de Terras dos Remanescentes
de Quilombo. O quilombo possui uma área total de 371 ha, perímetro de 18.379,51m,
distribuídos atualmente entre 65 famílias que se identificam como quilombolas.
1 http://www.cpisp.org.br/htm/leis/pa03.htm 2 http://www.cpisp.org.br/htm/leis/pa05.htm
Assim o presente artigo procura fundamentalmente examinar e compreender como é
caracterizada a relação de gênero e raça, além de como se dá a participação das mulheres no
cotidiano do grupo social em questão.
As discussões acerca de gênero em populações quilombolas são recentes, em especial,
quando se trata das experiências de pessoas negras rurais na região Amazônica. Mas no final
do século XX houve um significativo aumento no que diz respeito ao debate desta temática.
Assim trabalhos de pesquisadoras como Benedita Celeste de Moraes Pinto, Cristina Scheibe
Wolff, Delma Pessanha Neves, entre outras, têm contribuído com estudo da história das
relações de gênero dos povos camponeses e na Amazônia. No entanto, mesmo com aumento
significativo de trabalhos científicos, nas primeiras décadas do século XXI, acerca de quilombo
rural na Amazônia, em especial, no município de São Miguel do Guamá DINIZ (2011), ainda
são parcas as pesquisas e análises sobre a questão de gênero, raça e geração na comunidade
quilombola de Santa Rita da Barreira que evidencie a relação de gênero e gerações diferentes,
bem como a luta de mulheres quilombolas pela sobrevivência, reconhecimento e espaço, numa
sociedade predominada por valores masculinos, prisioneira da visão eurocêntrica e universalista
da mulher, incapaz de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino
(CARNEIRO, 2003).
As mulheres do território quilombola de Santa Rita da Barreira têm pouca visibilidade,
em especial quando se trata de sua participação no processo produtivo e na política. Assim, o
estudo sobre a atuação das mulheres quilombolas pode denotar aspectos importantes referentes
às relações entre homens e mulheres, mulheres e mulheres na construção e reprodução de
conhecimento e poder, bem como a construção histórica, cultural e social do grupo.
Este trabalho pretende contribuir com a literatura existente ampliando o debate sobre a
questão de gênero, raça e geração sobre povos quilombolas e rurais na região amazônica, em
especial, do nordeste paraense.
A pesquisa é de caráter qualitativo e foi realizada em duas semanas com quatro mulheres
de diferente geração do quilombo Santa Rita da Barreira. Para tanto foi necessária uma revisão
bibliográfica e uma pesquisa de campo com entrevista semiestruturada para coleta de dados, as
quais possibilitaram uma melhor compreensão sobre o cotidiano do quilombo, a questão de
gênero, raça e geração do grupo em questão.
O artigo traz uma breve discussão sobre gênero e raça, Em seguida discorre sobre o
histórico de Santa Rita da Barreira. E logo após faz uma abordagem da organização política,
econômica e cultural. E por último discute-se a questão de gênero, raça e geração no quilombo
em questão.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO E RAÇA
No Brasil a desigualdade e discriminação de gênero e raça é um problema que tem
origem no período colonial e que persiste até os dias atuais, atingindo à maioria das pessoas,
em especial negras e indígenas. Essa desigualdade e discriminação pode ser observada em
diferentes setores da sociedade, a exemplo da educação, mercado de trabalho, moradia, saúde,
entre outros.
Nos últimos anos do século XX o movimento feminista no Brasil, em especial o
movimento feminista negro, tem se organizado e lutado pela equidade de gênero e direitos civis
e sociais. Esse movimento ganhou ainda mais legitimidade após implementação da
Constituição de 1988, pois a mesma contemplou cerca de 80% das suas propostas, o que mudou
radicalmente o status jurídico das mulheres no Brasil (CARNEIRO, 2003).
É importante destacar que estudo sobre a história social das mulheres apresenta-se em
diferentes perspectivas de interpretações e pode ser dividido em três momentos distintos. No
primeiro, visava dar visibilidade as mulheres na história, porém muitas vezes sem questionar a
forma. No segundo, enfatizava as diferenças e especificidades das mulheres. E no terceiro, que
é o atual, procura dar ênfase à categoria gênero (WOLFF, 1999). Este último, procura politizar
e historiar as desigualdades de gênero, transformando as mulheres em sujeitos políticos. Assim
essas mulheres passam a ser vista a partir do grupo social que estão inseridas, ou seja, como
mulheres indígenas e/ou negras e que necessitam de demandas específicas como legislação e
políticas públicas voltadas para atender suas necessidades (CARNEIRO, op. cit.).
O estudo das relações de gênero permite que deixe de lado as categorias “sexo” e “papel
sexual” que remete a uma conotação biológica e natural da qual a mulher é vista na maioria dos
grupos sociais. Assim, uma análise histórica a partir das relações de gênero permite
compreender às múltiplas e variadas formas pelas quais se constituem os gêneros em uma
sociedade (WOLFF, op. cit).
É importante ressaltar que o conceito de raça não é biológico, mas sim socialmente
construído para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças, ou seja, biológica e
cientificamente, as raças não existem. Trata-se de um conceito carregado de ideologia e como
todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação
(MUNANGA, 1999). Nesse sentido o racismo reside na negação total ou parcial do negro ou
de pessoas não branca, servido para justificar a dominação do branco sobre os povos de cor
(GONZALEZ; HASENBALG, 1982).
Contudo, o conceito de raça utilizado nesse artigo foi pensado a partir das reivindicações
contemporâneas, no qual o mesmo vem adquirindo novo significado, ou seja, vem se
ressignificando no decorrer do tempo de acordo com a cultura e os interesses da sociedade ou
do grupo social. Assim no Brasil, a partir do final do século XX e início do século XXI, a
identidade negra significou para os negros atribuir à ideia de raça presente na população
brasileira que se autodefine como branca a responsabilidade pelas discriminações sofrida por
aqueles nos últimos séculos, e ao mesmo tempo reivindica reparação dos danos sofrido pelo
povo negro no Brasil. (GUIMARÃES, 2002 Apud HEILBORN, et al, 2011). Dessa forma o
termo raça é retomado, de forma positivada, pelos movimentos antirracistas no Brasil que lutam
por direitos sociais e equidade racial.
3. BREVE HISTÓRICO DE SANTA RITA DA BARREIRA
Nas últimas décadas do século XX várias pesquisas apontaram a existência de
comunidades quilombolas localizadas no Estado do Pará ALMEIDA, 2011; ACEVEDO e
CASTRO, 1993; AMARAL, 2010. No nordeste paraense encontram-se várias comunidades
quilombolas (Santa Rita da Barreira, Menino Jesus, Canta Galo, entre outras). Segundo seu
Francisco Nascimento (54 anos), presidente da associação da comunidade quilombola de Santa
Rita da Barreira, a maioria delas não possui visibilidade nem mesmo no município em que estão
localizadas, pois muitos dos habitantes do mesmo não sabem o que é uma comunidade
quilombola.
A formação do quilombo de Santa Rita da Barreira ocorreu por volta de 1967 e está
relacionada à construção de uma nova igreja e ao deslocamento da população do “arraial” da
“Barreira Antiga”, antes localizado à beira do rio Guamá, para uma área mais afastada do rio,
devido vários conflitos ocasionados pelo manejo de recursos naturais entre os moradores da
comunidade e alguns fazendeiros da região (DINIZ, 2011). O processo de deslocamento, a
diminuição da terra (parte das terras foi perdida durante o conflito com um fazendeiro da região)
e o distanciamento das margens do rio Guamá representaram uma nova organização espacial,
mudanças na composição familiar e no modo de vida da população, haja vista que os moradores
tiveram que se adaptar a um território menor e principalmente não tiveram mais acesso a alguns
recursos naturais, a exemplo peixes, camarão, entre outras.
O deslocamento das famílias exigiu algumas estratégias de organizações e de
representação social para garantir a permanência no território. Dessa forma, a própria formação
da “Associação de Moradores” funciona como uma espécie de resistência política e como
iniciativas de mobilização.
É comum os descendentes de quilombo preservarem suas histórias através da memória,
que na maioria do quilombo são passado de pai para filho, em alguns locais, a exemplo do
quilombo do Saramacas em Suriname, a memória também é preservada através de textos que
narram as façanhas dos heróis fundadores (CARVALHO, 1995.).
Os habitantes de Santa Rita da Barreira, diferentemente dos demais povos quilombolas,
não possuem uma memória histórica precisa de sua origem étnica, das fugas, perseguições, dos
deslocamentos territoriais e do processo que deu início a formação do quilombo. Porém, muitas
de suas histórias e de sua cultura, em especial de matriz africana, foi preservada na memória
das pessoas mais velhas, a exemplo, do gênero musical “samba de roda” que hoje é cantado e
dançado tanto pelos mais velhos quanto pelos jovens do quilombo.
Arriba ciragador
Oh! Cajueiro, cajuá
Arriba ciragador
Vamos ver nossa Iaiá
Cajueiro piquinino carregadinho de flor
Eu também sou piquinino, mas carregadinha de amor
Arriba ciragador
Oh! Cajueiro, cajuá
Arriba ciragador
Vamos ver nossa Iaiá
Eu vou embora, eu vou embora,
Eu vou embora pra Anapú,
Se eu não for na minha barca
Vou no meu rebocador.
Eu vou embora, eu vou embora,
Eu vou embora pra Anapú,
Vou beber água de cheiro
E cachaça de pachangú3.
3 Autor (a) anônimo(a), música cantada por dona Raimunda Rufino.
Essa letra de música é um samba que faz parte do repertório musical do quilombo. Ela
se caracteriza como uma das músicas ensinadas pelos mais velhos aos mais jovens que são
cantadas e dançadas pelos membros do quilombo. Sendo assim, mesmo após séculos existem
muitos elementos da cultura africana em Santa Rita da Barreira, a exemplo o samba de roda, o
carimbó e a capoeira que se tornaram símbolos de identidade do quilombo.
3. ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA, POLÍTICA E CULTURAL DO QUILOMBO DE
SANTA RITA DA BARREIRA
Os diversos grupos existentes na Amazônia, entre eles, os quilombolas, diante da
necessidade e adversidade foram obrigados a inventar e reinventar formas de lidar com as
condições impostas pela sociedade em que vivem para conseguir sua sobrevivência. Assim, não
podemos buscar nesses grupos características homogêneas, visto que cada um se desenvolveu
de acordo com o contexto que lhe fora imposto mesmo porque não existe uma origem única da
qual se difundiu.
As pessoas da comunidade quilombola de Santa Rita da Barreira assim como as que
vivem em outras comunidades quilombolas na Amazônia praticam agricultura originadas das
roças. Nelas são cultivadas: mandioca, macaxeira, maxixe, milho, feijão, quiabo e melancia
para o cultivo doméstico. Já o excedente é vendido aos sábados na feira da cidade de São Miguel
do Guamá/Pa. Esses produtos são cultivados em períodos diferentes durante o ano. A mandioca
é a base da economia das famílias, sendo que é daquela que se retira a farinha de tapioca, farinha
d`água e a goma para o preparo de tapioca (beiju). O processo de preparação da terra, plantio,
colheita e da farinha d`água é dividido em diversas etapas e envolvem todos os membros da
família em trabalhos específicos individuais e coletivos.
A família tem o papel de definir todas tarefas, relacionadas às atividades agrícolas, pesca
e extrativismo, para cada membro do grupo e os períodos de cada atividade, logo é também a
guardiã dos valores culturais que muitas vezes auxiliam no modo de produção. Assim, o preparo
e cultivo das roças, os animais de carga, a seleção e corte da lenha continua a ser praticado
conforme o conhecimento tradicional, ou seja, a forma de cuidar das roças é a mesma de seus
ancestrais, o que inclui a broca, derrubada da mata, queima, coivara4, planta, capina e colheita.
4 Quantidade de ramagens a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas,
facilitando a cultura; fogueira.
Haja vista que, o saber constituído da população remanescente de quilombo vai além do saber
adquirido na sala de aula, muitos conhecimentos são passados de geração a geração
principalmente aqueles relacionados ao uso e manejo dos recursos naturais e as tradições
(AMARAL, 2009).
As pessoas de Santa Rita das Barreiras desenvolve suas atividades econômicas em
diferentes ambientes como: na Terra Firme, na várzea e no rio Guamá. Cada um desses
ambientes exige dos sujeitos sociais que utilizam esses locais o conhecimento específico da
região e as técnicas apropriadas para garantir o manejo dos recursos naturais. Dessa forma, a
existência das famílias bem como as estratégias de domínio do território está diretamente
relacionada à disponibilidade de recursos naturais, ou seja, todos os espaços do território são de
fundamental importância para a sobrevivência da população (DINIZ, opt cit.).
Há muitos anos as famílias desse quilombo manipulam plantas, sementes de açaí, entre
outras para vários fins relacionados inclusive a reprodução social e práticas culturais. Desse
modo, a natureza sempre foi fundamental para a vida e as práticas culturais dessa comunidade.
Nas áreas de várzea existe também a criação de porcos além de, alguns pequenos
igarapés que deságuam no rio Guamá onde se pratica a pesca com linha e anzol. Estes espaços
são de uso comum para a pesca, à retirada de madeiras, colocação de armadilhas para capturar
animais, e ainda se utiliza a coleta de frutos, sementes, ouriços, palhas e demais vegetais. Cabe
ressaltar que, essas atividades são reguladas pelas famílias no que se refere ao período de
execução.
Durante o momento em que em que o povo de Santa Rita da Barreira lutava pela
legalização de suas terras e pelo reconhecimento, enquanto quilombo houve a necessidade de
se organizar em associação, tendo um dos moradores como presidente da localidade, ou seja,
este se tornou uma unidade política de mobilização. Ao passo que, foi e continua sendo uma
forma de organização política para conseguir os recursos necessários para sua sobrevivência
diante do Estado, bem como para a preservação do meio ambiente.
As músicas, em especial o samba de roda e o carimbó, as danças, defumações,
agricultura, pescas e o extrativismo de sementes ainda são frequentes na comunidade e,
demonstram a permanência de elementos de matriz africana, além de ser uma estratégias de
autonomia e resistência do grupo.
4. GÊNERO, RAÇA E GERAÇÃO
Ana, Raimunda, Antônia e Antônia nos contam do quilombo rural de Santa Rita da
Barreira. Por intermédio de algumas entrevistas feitas com essas mulheres, é possível perceber
diferenças significativas entre elas como a região onde vivem, a cor da pele, atividades
exercidas, práticas religiosas e culturais. No entanto, apesar dessas dessemelhanças, o termo
“mulheres quilombolas” sugere uma identidade de/para diferentes corpos e experiências.
O surgimento do termo remanescente de quilombo está diretamente relacionado a um
contexto de valorização da diferença etnicorracial a partir dos movimentos sociais contra a
ditadura militar. Que buscavam direitos civis e sociais e também abertura política e democracia
nas décadas de 1970 e 1980. Esse termo ganha legitimidade com a promulgação da
Constituição Federal de 1988 no Art. 68 do ADCT (Ato das Disposições constitucionais
Transitórias) que garante aos remanescentes de quilombo a propriedade de suas terras e os
artigos 215 e 216 asseguram a proteção de seus modos de criar, fazer e viver.
Esses movimentos distinguem-se dos anteriores por introduzir, em sua pauta de
reivindicações, a denúncia do mito da democracia racial, a busca de ações de valorização da
identidade negra positivando a figura do negro por meio de iniciativas de incentivo da
autoestima. Principalmente valorizando os traços físicos e manifestações culturais desses
grupos e a luta perante o poder público em prol de políticas públicas e programas de ações
afirmativas como forma de reparar os danos causados as populações afrodescendentes
(ALBERTINI; PEREIRA 2007).
Para esse trabalho foram entrevistadas quatro mulheres que vivem na comunidade
quilombola de Santa Rita da Barreira. Assim, Dona Ana Lucia (48 anos), Antônia de Oliveira
(58 anos), Antônia Almeida (68 anos) e Raimunda Rufino (87 anos) nos contaram suas
experiências, enquanto quilombolas.
A partir desses depoimentos foi possível destacar participação dessas mulheres na
política, no trabalho e na vida cultural do quilombo. Principalmente de dona Raimunda Rufino
e dona Ana Lucia que participam da vida cultural ensinando e incentivando as tradições de seus
antepassados como o samba de Cacete e a capoeira como se observa na letra de música abaixo.
Espiri, espiri, piri
Catita não apareceu
Espiri, espiri, piri
Catita não apareceu
Por cima da ribanceira
Catita já se perdeu
Catita teve uma filha
Que coisa mais delicada
Parece à estrela dávida
Sereno da madrugada5
Dona Raimunda Rufino é a responsável por ensinar aos mais jovens o samba do Cacete,
e hoje este gênero musical é a principal atração cultural e símbolo de identidade do grupo, sendo
que a mesma faz questão de cantar, tocar e contar história para as pessoas que a visitam. Deste
modo, no período em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo na sociedade e passa
a viver a velhice social, este assume outras funções: a de lembrar e a de ser a memória do grupo
social na sociedade em que vive (BOSI , 1994). A memória é uma reconstrução psíquica e
intelectual das representações do passado, um passado que não é apenas daquele indivíduo que
lembra, mas de um sujeito inserido num contexto familiar, cultural e social (ROUSSO, 2006).
Essas mulheres ao serem interrogadas sobre o que significa ser “mulher quilombola”
responderam que tinham honra de serem quilombola, suas respostas se confundem com a ideia
de força e resistência, relacionadas a luta pela sobrevivência, tanto sua quanto de seus
familiares. Percebe-se que entre as mulheres camponesas o cuidado praticado não se restringe
ao grupo familiar, mas também à comunidade e com as pessoas que ali vivem, sendo todas
percebidas por elas como companheiras das lutas cotidianas. Assim, nos povoados negros da
Amazônia as mulheres inventaram caminhos, criaram e recriaram atalhos na luta pela
sobrevivência, para isso teceram uma rede de solidariedade na vida cotidiana, onde as alegrias,
tristezas e doenças são compartilhadas pelo grupo (PINTO 2004).
Os atributos de força e resistência, geralmente atribuídos ao universo masculino, são
deslocados constantemente nos depoimentos para caracterizar a mulher quilombola. Sobre isso,
dona Raimunda Rufino (87 anos), matriarca desta localidade, exerce papel de grande relevância
principalmente com relação à preservação de elementos culturais, pois uma de suas atribuições
é repassar aos jovens os saberes relacionados a: composição de música, tocar instrumentos
musicais e ensinar a coreografia do samba de cacete. Importa ressaltar que esta senhora também
5 Autor(a) anônimo(a), música cantada por dona Raimunda Rufino.
é a principal guardiã das memórias deste grupo, por ser a membro mais velha e respeitada pelos
demais que compõem a comunidade.
“Tenho cinco filhos todos já estão adultos”. Mas, foi um sacrifício criar eles. Não é
tão fácil assim não. Eu tinha de levantar cedo prepara a comida para levar para roça,
levavam as crianças pequenas, principalmente as que ainda mamavam, chegando na
roça atava uma rede na beira do mato, na sombra e botava ela pra dormir, enquanto
ela dormia eu plantava, capinava. Quando a roça tava madura ia arrancar a carregar
no paneiro6 do centrão pra cá, é bastante longe.” (Raimunda Rufino).
Sobre o relato da Srª Raimunda e o contato com essa pessoas é possível destacar a sua
importância quanto à preservação dos costumes. Considerando que, em sociedades tradicionais
não letradas, os costumes são preservados na memória dos mais velhos. Nesse sentido, é através
desses guardiões que se manifestam os saberes tradicionais.
Observam-se a partir dos depoimentos que as mulheres quilombolas assumem múltiplas
funções. A esse respeito é ilustrativa a fala de Antônia Almeida (68 anos):
“Eu sou mãe, trabalho na roça, desde criança e até hoje raspo mandioca7 e coo
massa8. Fiz o parto da maioria das crianças daqui. Tem uns que peguei que já são
até mãe de outros filhos, faço remédios caseiros para quebranto9, AVC (acidente
vascular cerebral), inflamação da garganta com plantas que planto ou que tiro do
mato. A gente é de tudo um pouco”.
Percebe-se a partir do depoimento da Srª Antônia Almeida que esses saberes são
fundamentais para prevenção e combate de certas doenças. Haja vista que, a comunidade não
dispõe de uma Unidade Básica de Saúde. Por esse motivo mulheres como dona Antônia
Almeida se tornam de grande relevância para a comunidade. Pois, durante a noite em alguns
casos os partos são realizados em suas próprias residências.
Assim como a maioria das mulheres do quilombo, que exerce várias funções, dona Ana
Lucia (48 anos) não foge dessa realidade e assim relata:
“Tenho oito filhos, sete nasceram com ajuda de parteira e uma delas nasceu dentro
do ônibus a caminho de São Miguel. Porque a parteira dona Antônia puxou minha
6 Utensilio feito de cipó utilizado para carregar mandioca 7 Retirada da casca de mandioca. 8 Coar desempenha a mesma função de peneiração (a peneiração separa os fragmentos menores dos maiores,
homogeneizando a gramatura da farinha, assim proporcionando melhor qualidade. Os fragmentos retidos na
peneira são chamados de crueira). 9 Suposta influência maléfica de feitiço, por encantamento à distância, segundo a crendice popular, que a atitude,
o olhar etc. de algumas pessoas produzem em outras.
barriga10 e disse que a criança estava em pé11, e que era pra eu correr pro hospital.
Tive que pegar um ônibus e não deu tempo de chegar no hospital e acabei tendo meu
filho no ônibus. Faço também xaropes para garganta, puxo dismentiduras12 e
trabalho na roça até hoje.
Já no relato de dona Antônia de Oliveira: “Nasci e me criei aqui. E não tenho vontade
de sair daqui. Aqui a gente tem tudo. Nós cansemos de carregar paneiro na costa. Hoje mudou
muito, até a alimentação”. É possível identificar que, embora a ideia de ser mulher quilombola
seja representada por um sentimento de felicidade, existe uma certa diferença entre essas
gerações que nos permitem verificar as distintas funções exercidas por elas, bem como uma
maneira diferenciada do sentido de ser quilombola.
Essas mulheres são guardiãs dos saberes e dos interesses do grupo social em que estão
inseridas. Nesse caso se articularmos às condições históricas da busca por direito dos
remanescentes de quilombo, a diferença etnicorracial acaba se tornando também um elemento
político, principalmente nas reinvindicações por direito territorial, cuja norma é dada pela noção
de ancestralidade. Nesse sentido, práticas como: danças, músicas e artesanatos têm sido peças
chaves na luta por território e políticas públicas para a comunidade quilombola.
A partir dos depoimentos e das músicas cantadas por dona Raimunda Rufino, observa-
se que as mesmas reforçam a ideia de ancestralidade e resistência e ao mesmo tempo,
compartilham tristezas.
Na comunidade quilombola de Santa Rita da Barreira a renda familiar é construída tanto
por homens quanto por mulheres. Isto significa que a mulheres exercem uma dupla jornada de
trabalho, já que também são responsáveis pelo trabalho doméstico, estes muitas vezes não é
reconhecido, pois não é visto como uma atividade que gera renda e riqueza.
Dessa forma, as mulheres fazem parte do espaço de produção e de consumo, embora
seu trabalho esteja mais relacionado ao coletivo, do que a realização de um projeto individual,
isto é, as questões de gênero e raça estão presentes na maneira como a dinâmica do contexto
entre homens e mulheres se organizam na comunidade quilombola.
Assim, as mulheres vivenciam situações diferenciadas, de acordo com a posição que
ocupam, trabalham na agricultura, em casa, são parteiras, curandeiras e organizam atividades
culturais para a população do quilombo.
10 Ato de massagear a barriga com óleo (andiroba ou banha de galinha). 11 Criança não está posicionada corretamente para nascer. 12 Torção de nervo.
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da ideia de mulher quilombola destacada pela visão de quatro gerações distintas
que compõem a localidade da comunidade Santa Rita da Barreira é possível depreender que
existem modos de preservação das tradições vivenciadas de maneiras diferentes. Isto porque,
apesar da comunidade manter suas culturas em muitos aspectos do quilombo, suas vivências
são repassadas geracionalmente. Uma vez que, no modo de vida dessas populações observa-se
rupturas com relação às modificações quanto ao uso de tecnologias como forno elétrico para
torrar farinha, transporte coletivo, celular, etc. E também permanências quanto algumas
manifestações culturais como samba de cacete, carimbó e capoeira que se tornaram símbolo de
identidade desse grupo social.
O governo municipal local ainda não intervêm de maneira efetiva e significativa com
políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento da comunidade local. Além de
proporcionar ações que possibilite a visibilidade das questões de gênero, de forma que a
sociedade guamaense compreenda as diversas funções exercidas por homens e mulheres no
quilombo.
Nesse sentido, faz-se importante destacar que as questões de gênero desta comunidade
não implicam necessariamente na definição de funções e sim na divisão de tarefas que se
complementam entre si com um papel significativo das mulheres entrevistadas, das quais
destacam a função e o desempenho de seus ofícios que contribuem para a vida social das
famílias quilombolas.
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