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pablo-zaldarriaga
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Encontro com o Entremundo
É importante que se compreenda a perspectiva aqui tratada: O
que o mundo nos mostra, fomos nós que ali colocamos. O mundo é
um espelho, quer se queira quer não. Criamos a realidade em que
vivemos, a nossa imagem e semelhança. O único princípio de
realidade seria a intersubjetividade. Por este lado, a vitória do embate
mente x matéria é sempre da mente, sendo a percepção do mundo
sensível sempre uma interpretação, uma projeção, um reflexo do
mundo interior, seja da mente – cultural e socialmente condicionada –
ou da Subjetividade Transcendental (aynu thabita), como no caso do
místico – muito mais profunda que a mente1 e livre de
condicionamentos. E é aqui que nos encontramos com o Mundus
Imaginalis (aalam al-mithal) descoberto por Corbin na hermenêutica
do Sufismo. A realidade sempre é imaginada – já que perceber o
mundo é representá-lo, ou, mais precisamente falando, é interpretá-lo
(tawuil). É nesta medida que o mundo é que está na alma e não a
alma no mundo. Se o mundo é plasticidade pura, pura potencialidade,
e é o olhar do homem que o define, a alma só pode estar é
mergulhada em si mesma ao invés de estar exilada no mundo do
tempo e espaço vazios e quantitativos. No entanto, isto só pode
corresponder à visão de mundo de que trata Corbin, se entendermos
esta “alma” num sentido extremamente amplo, transcendental e não
num sentido restrito e psicologizante. Mundus Imaginalis é o mundo
da Alma. As presenças e significados que o sujeito testemunha – e
que veste com sua imaginação ativa – não são imaginários, não são
invenções suas – são imaginais: possuem existência autônoma
1 Como disse Hamman: “Sum ergo cogito”. Cf. Christopher BAMFORD,in “Esotericism today: the example of Henry Corbin” – Introduction ofThe Voyage and the Messenger, Iran and Philosophy, Berkeley, NorthAtlantic Books, 1998, p.xxxvii.
embora necessitem ser imaginadas pelo sujeito para poderem se
manifestar. Segundo famoso hadith2, o Profeta teria dito: “Ore a Deus
como se você o visse. E se você não o vê, saiba que Ele te vê.” Aí, o
Mundus Imaginalis é o mundo da imaginação criadora, a realidade
fluida e “abstrata” das concepções do “como se” que une e
intermedeia as duas realidades concretas: “Deus” e “você” – sendo
que a concretude do “você” é um mero reflexo ou arremedo da
concretude de “Deus”3. O mundo imaginal é abstrato por que seu
significado é abstraído dos significados (ma’ana) espirituais e suas
imagens abstraídas das imagens do mundo sensível. E como
lindamente colocado por Rizek: “Se voce não criar o Deus que te
criou, o Deus que te criou nunca te terá criado.”4
Quando os místicos islâmicos e Corbin tratam de “imaginação”,
não é a “imaginação” no sentido corrente da palavra: “não se trata
nem da fantasia – profana ou não –, nem do órgão que secreta um
imaginário identificado com o irreal; nem se trata tampouco do que
consideramos o órgão da criação estética. Trata-se sim de uma função
absolutamente fundamental, submetida a um universo que lhe é
próprio, provido de uma existência perfeitamente “objetiva” e do qual
a Imaginação é justamente o órgão de percepção.”
O Mundus Imaginalis é o mundo intermediário entre o
entendimento – o mundo inteligível, supra-formal, espiritual – e o
mundo sensível. Quem reporta um ao outro é a imaginação. Mesmo
no nível da filosofia ocidental isso foi delineado. Kant já o havia
apontado, embora somente no final de sua obra tenha passado a
2 Hadith qudsi. Dito do Profeta Mohammed segundo a tradição.3 Muito semelhante às idéias de George Berkeley: o mundo são idéiasde Deus; o mundo material não existe; nossas idéias são idéias deDeus enfraquecidas.4 Frase dita em aula.
conferir valor epistemológico à imaginação5 e a reconhecê-la como
fonte de conhecimento. Na fenomenologia husserliana, entre a
intuição sensível e o entendimento existe uma intencionalidade6 e um
preenchimento, que é feito pela Imaginação. Só aí pode haver
percepção integral.
O fato é que entre as percepções sensíveis e as intuições
ou categorias do intelecto permaneceu um vazio. Aquilo que
deveria haver ocupado seu lugar entre os dois, e que em outros
tempos e lugares sempre havia sido a Imaginação Ativa, foi aqui
deixado para os poetas.7
Em Kant, há os “esquemas”, que operam a passagem de um a
outro. Freud, seguindo Stuart Mill, reconhece os vínculos entre
imaginação e percepção. Para eles, o material das sensações deve ser
representado, imaginado, para que possa haver “percepção”. No
entanto, o status da imaginação, apesar de Kant, Freud, Stuart Mill,
Husserl e outros, permaneceu na mentalidade ocidental subestimado,
restrito ao mundo da arte e banido do âmbito do conhecimento.8 Ibn
Arabi, o principal autor de Henry Corbin, chegou a afirmar que “aquele
5 Procurar citação de kant quanto a 3 tipos de conhecimento nojambet
“A unidade do diverso fenomenal não é a receptividade mas aespontaneidade (...) A percepção é o efeito de um ato de força dosujeito determinando-se a uma representação a priori (...) A formaprecede o elemento material ... O objeto não é nem real nem ideal,ele não é dado, mas apenas concebido.” Opus Postumum textosescolhidos e traduzidos por ... Christian JAMBET, A Lógica dosOrientais: Henry Corbin e a Ciência das Formas, São Paulo, Ed. Globo,2006, p. 330.6 Husserl referencia – preenchimnento intencional7 Spiritual body and celestial earth vii8 Freud não deixa de reconhecer a intensidade do grau de realidade domundo da imaginação, mas continua deixando-o para os artistas: “Oartista, como o neurótico, retirou-se da realidade insatisfatória e serefugiou no mundo da imaginação, mas, diferentemente do neurótico,sabe como encontrar o terreno da sólida realidade.” Sigmund Freud(pedir referencia bibl.p para athié.
que não conhece o estatuto da imaginação não possui conhecimento
algum”9 e mantinha que apenas colocando a imaginação próxima ao
centro de nossas preocupações seríamos capazes de perceber a
significado não só da religião como da própria existência humana.
Segundo nossos místicos, a Imaginação (assim como o amor, ou
a sym-pathea ou um sentimento em geral) faz conhecer, e faz
conhecer um “objeto” que lhe é próprio. É necessário, para seguirmos
adiante e compreendê-los, admitir – ao menos provisoriamente ou a
título de suspensão fenomenológica do juízo – o valor noético pleno da
Imaginação. Para estes místicos o mundo é “objetivamente triplo”:
“entre o universo apreensível pela pura percepção intelectual e o
universo perceptível pelos sentidos, existe um mundo intermediário, o
mundo das Idéias-Imagens, das Figuras-Arquétipos, dos corpos sutis,
da “matéria imaterial”; mundo tão real e objetivo, consistente e
subsistente, quanto o universo inteligível e o sensível”.10 O termo
árabe aalam al-mithal (“mundo das imagens”) foi traduzido e trazido
a nós por Corbin através do latim “Mundus Imaginalis” para preservá-
lo de qualquer confusão com o imaginário, que caracterizaria as
imagens como “irreais” e revela uma impotência diante deste
entremundo. Uma realidade imaginal habita um domínio entre duas
realidades e compartilha dos atributos de ambos os lados. É o mundo
onde, segundo Ibn Arabi, “os corpos se espiritualizam e os espíritos
ganham corpo”.
É o mundo dos corpos sutis, de uma matéria espiritual
etérica, livre das leis da matéria corruptível deste mundo aqui mas
não da extensão (a dos sólidos matemáticos) possuindo
eminentemente toda a riqueza qualitativa do mundo sensível , mas
no estado incorruptível. Este entremundo é o lugar dos eventos
visionários, das visões dos profetas e dos místicos, [das histórias
9 William CHITTICK, Imaginal Worlds, State University of New YorkPress, Albany, 1994, p.12.10 Henry CORBIN, L’Imagination Créatice dans le Soufisme d’Ibn Arabi,Paris, Flammarion, 1976, p.12.
simbólicas], (...)Portanto, este mundus imaginalis é a via pela qual
nós nos livramos do literalismo, ao qual as “religiões do livro”
sempre são tentadas a sucumbir. É o nível ontológico ao qual o
sentido espiritual das revelações se torna o sentido literal, pois é
neste nível que obtemos uma percepção sacramental ou uma
consciência sacramental das coisas e dos seres, quer dizer, de sua
função teofânica, pois nos preserva de confundir um ícone, que
seria uma imagem metafísica, com um ídolo. Na ausência deste
entremundo, ficamos entregues ao encarceramento na História
unidimensional dos eventos empíricos.11
“A realidade é imaginação e a Imaginação Criadora é a criação
da realidade.” 12 O Mundus Imaginalis é quem cria o mundo para nós;
ele não é subjetivo, ele é a Subjetividade mesma. Esta é o lugar do
mundo, o locus de tudo o que há, de tudo o que é. Nela estão o
sujeito e o objeto. “Falar de um mundo imaginal não é outra coisa
senão meditar sobre uma metafisica do ser, em que sujeito e objeto
nascem conjuntamente do mesmo ato criador da Imaginação
Transcendental.”13 Esta não está em lugar algum e está em toda
parte. “A visão mística imaginal”, seja ela uma interpretação do
mundo sensível ou a criação de um corpo sutil, “não é um objeto, mas
uma subjetividade em ato, que engendra sua própria temporalidade e
seu próprio espaço.” 14
Henry Corbin, Cavaleiro do Invisível, é também o
Apóstolo da Imaginação. Pois abandonar o “lugar” do tempo-
espaço sensíveis e convencionais é mover-se desde as coisas
externas, visíveis e objetivadas, em direção às presenças,
11 Henry CORBIN, Le Paradoxe du Monothéisme, Paris, Éditions de l’Herne, 1981, p - ultimas paginas do livro12 Christian JAMBET, A Lógica dos Orientais: Henry Corbin e a Ciênciadas Formas, São Paulo, Ed. Globo, 2006, p.42.13Christian JAMBET, A Lógica dos Orientais: Henry Corbin e a Ciênciadas Formas, São Paulo, Ed. Globo, 2006, p.14 Christian JAMBET, A Lógica dos Orientais: Henry Corbin e a Ciênciadas Formas, São Paulo, Ed. Globo, 2006, p.
invisíveis e não-objetivadas de uma ordem diferente cujo lugar é
o “não-lugar” da Imaginação.15
Para Husserl o que permite a aparição dos fenômenos é a
“Subjetividade Transcendental”. Seu ex-discípulo Heidegger chamou-o
de Dasein – o “Ser-aí” – para não incorrer nos mesmos perigos de
idealismo que Husserl, para acentuar o vínculo do Ser, da
Subjetividade Transcendental, com a presença, com a existência
historial. É por isso que Corbin chama o Dasein de Heidegger de
“Presença”. E a Presença possui prioridade ontológica sobre a aparição
de um sujeito ou um ego, ou da restrita consciência humana; é
anterior a qualquer outra entidade, seja o sujeito ou o objeto, a
energia ou a matéria, o fenômeno ou o noumenon (coisa-em-si).
Escapa-se assim de dualidades metafísicas inconciliáveis, como
idealismo-realismo ou pensamento e extensão.
A partir das noções de Dasein e de Subjetividade
Transcendental, podemos alargar o sentido do termo “alma”, de modo
que a frase “a alma não vive no mundo, o mundo é que vive na alma”
não corra o risco de soar como convite ou apologia à psicose. Esta
alma não é o sujeito, o ego, que estaria nela como um peixe no
oceano. No entanto, é extremamente pessoal e única, sendo o ego
“cru” – que não foi cozido pela alma integral – normalmente um
constructo impessoal alienante, uma bricolage socio-cultural
condicionada aos fatores externos e “mundais”. Nesse caso, é o
sujeito desta vez o espelho do mundo, e não o mundo o espelho da
alma. O sujeito aqui é um mero reflexo do social e do histórico: “Pois,
sem a Imaginação entendida como fonte proveniente de uma fonte
divina além do ego, os únicos desejos que podemos ter são os
15 Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of HenryCorbin” – Introduction of The Voyage and the Messenger, Iran andPhilosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p. xxii.
impelidos a nós pela história.”16 Quando se fala, no contexto sufi ou
corbânico, de “alma” ou de “interioridade”, fala-se aí de
“espiritualidade”. “Mundos interiores” despertam normalmente idéias
psicologistas ou confessionais. Para os pensadores em questão,
“mundos interiores são mundos espirituais, e exigem, com completo
rigor ontológico, uma ‘objetividade’ sui generis, e certamente bem
diferente do que normalmente se entende por esta palavra.”17 Ao
mesmo tempo, Corbin insiste que estes mundos são puramente
psíquicos, embora não tenham nada que ver com a psicologia, como a
entendemos.
Corbin era profundo conhecedor das obras de Husserl e
Heidegger – foi o primeiro tradutor destes filósofos para o francês. A
dificuldade de se ler Heidegger é em parte devida ao vocabulário que
usa: Heidegger cria palavras para poder “quebrar as categorias
tradicionais do pensamento ocidental”18; cria com seu neologismo
imagens concretas porém ocultas a nossa consciência diária. É
bastante sintomático que o exemplar de Corbin de Ser e Tempo
estivesse repleto de anotações e comentários em árabe. Palavras que
Heidegger precisou criar, já existiriam em árabe, dentro de outra
tradição filosófica, sem que ele o soubesse. Corbin é um
fenomenólogo comparativo que pretendeu mostrar o “valor” de
mundos de outras culturas e de outros tempos radicalmente
diferentes da modernidade ocidentalizada. Foi através da
compreensão de Heidegger da prioridade ontológica do Dasein, que
Corbin encontrou os meios e as justificações filosóficas para seu
trabalho. Segundo bela imagem de Chittick, “sendo um filósofo
16 Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin andIslamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p. 79.17 Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of HenryCorbin” – Introduction of The Voyage and the Messenger, Iran andPhilosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p. xvi.18 Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin andIslamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p.5.
localizado entre duas culturas, Corbin encontra-se em uma posição
única de estar em pé na fronteira dos mundos e sentir a força do
encontro”. Corbin afirma:
Aquilo que busquei em Heidegger, aquilo que eu entendi
graças a Heidegger, é a mesma coisa que busquei e encontrei na
metafísica irano-islâmica...Mas, nesta última, tudo estaria situado
daí por diante em um plano distinto...19
A busca de Heiddeger por um caminho alternativo ao nihilismo
moderno deu-se inteiramente dentro da tradição filosófica do
ocidente. Sua tentativa de escapar ao mundo pós-cartesiano levou-o
por fim às origens do pensamento ocidental: aos pré-socráticos. Aí
Heidegger procura pelas raízes de uma metafísica fracassada, a fim
de descobrir o que chamava de “história do Ser” e “destruir a história
da ontologia”, para desta forma reconstituir o fenômeno de um mundo
perdido. Assim como Heidegger, Corbin também buscava um caminho
alternativo. O seu porém “levou-o ao oriente, ao Irã – “um mundo
onde a ‘história do Ser’ é algo completamente distinto do que foi
imposto pela transição do grego para o latim” – e a uma história
alternativa, mas proveniente, assim como a nossa, tanto do
monoteísmo primordial de Abraão como da filosofia da Grécia antiga.
Foi ali que Corbin encontrou o mundo que buscava, e ao qual chamou
de Mundus Imaginalis.”20
19Henry CORBIN, Henry Corbin, ed. Jambet, 24.20 Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin andIslamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p.15transcrever a fala de corbin da p. 15 que está no corpo espiritual eterra celeste viii