9
Encontro com o Entremundo É importante que se compreenda a perspectiva aqui tratada: O que o mundo nos mostra, fomos nós que ali colocamos. O mundo é um espelho, quer se queira quer não. Criamos a realidade em que vivemos, a nossa imagem e semelhança. O único princípio de realidade seria a intersubjetividade. Por este lado, a vitória do embate mente x matéria é sempre da mente, sendo a percepção do mundo sensível sempre uma interpretação, uma projeção, um reflexo do mundo interior, seja da mente – cultural e socialmente condicionada – ou da Subjetividade Transcendental (aynu thabita), como no caso do místico muito mais profunda que a mente 1 e livre de condicionamentos. E é aqui que nos encontramos com o Mundus Imaginalis (aalam al-mithal) descoberto por Corbin na hermenêutica do Sufismo. A realidade sempre é imaginada – já que perceber o mundo é representá-lo, ou, mais precisamente falando, é interpretá-lo (tawuil). É nesta medida que o mundo é que está na alma e não a alma no mundo. Se o mundo é plasticidade pura, pura potencialidade, e é o olhar do homem que o define, a alma só pode estar é mergulhada em si mesma ao invés de estar exilada no mundo do tempo e espaço vazios e quantitativos. No entanto, isto só pode corresponder à visão de mundo de que trata Corbin, se entendermos esta “alma” num sentido extremamente amplo, transcendental e não num sentido restrito e psicologizante. Mundus Imaginalis é o mundo da Alma. As presenças e significados que o sujeito testemunha – e que veste com sua imaginação ativa – não são imaginários, não são invenções suas – são imaginais: possuem existência autônoma 1 Como disse Hamman: “Sum ergo cogito”. Cf. Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of Henry Corbin” – Introduction of The Voyage and the Messenger, Iran and Philosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p.xxxvii.

Mundus Imaginalis

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Mundus Imaginalis

Encontro com o Entremundo

É importante que se compreenda a perspectiva aqui tratada: O

que o mundo nos mostra, fomos nós que ali colocamos. O mundo é

um espelho, quer se queira quer não. Criamos a realidade em que

vivemos, a nossa imagem e semelhança. O único princípio de

realidade seria a intersubjetividade. Por este lado, a vitória do embate

mente x matéria é sempre da mente, sendo a percepção do mundo

sensível sempre uma interpretação, uma projeção, um reflexo do

mundo interior, seja da mente – cultural e socialmente condicionada –

ou da Subjetividade Transcendental (aynu thabita), como no caso do

místico – muito mais profunda que a mente1 e livre de

condicionamentos. E é aqui que nos encontramos com o Mundus

Imaginalis (aalam al-mithal) descoberto por Corbin na hermenêutica

do Sufismo. A realidade sempre é imaginada – já que perceber o

mundo é representá-lo, ou, mais precisamente falando, é interpretá-lo

(tawuil). É nesta medida que o mundo é que está na alma e não a

alma no mundo. Se o mundo é plasticidade pura, pura potencialidade,

e é o olhar do homem que o define, a alma só pode estar é

mergulhada em si mesma ao invés de estar exilada no mundo do

tempo e espaço vazios e quantitativos. No entanto, isto só pode

corresponder à visão de mundo de que trata Corbin, se entendermos

esta “alma” num sentido extremamente amplo, transcendental e não

num sentido restrito e psicologizante. Mundus Imaginalis é o mundo

da Alma. As presenças e significados que o sujeito testemunha – e

que veste com sua imaginação ativa – não são imaginários, não são

invenções suas – são imaginais: possuem existência autônoma

1 Como disse Hamman: “Sum ergo cogito”. Cf. Christopher BAMFORD,in “Esotericism today: the example of Henry Corbin” – Introduction ofThe Voyage and the Messenger, Iran and Philosophy, Berkeley, NorthAtlantic Books, 1998, p.xxxvii.

Page 2: Mundus Imaginalis

embora necessitem ser imaginadas pelo sujeito para poderem se

manifestar. Segundo famoso hadith2, o Profeta teria dito: “Ore a Deus

como se você o visse. E se você não o vê, saiba que Ele te vê.” Aí, o

Mundus Imaginalis é o mundo da imaginação criadora, a realidade

fluida e “abstrata” das concepções do “como se” que une e

intermedeia as duas realidades concretas: “Deus” e “você” – sendo

que a concretude do “você” é um mero reflexo ou arremedo da

concretude de “Deus”3. O mundo imaginal é abstrato por que seu

significado é abstraído dos significados (ma’ana) espirituais e suas

imagens abstraídas das imagens do mundo sensível. E como

lindamente colocado por Rizek: “Se voce não criar o Deus que te

criou, o Deus que te criou nunca te terá criado.”4

Quando os místicos islâmicos e Corbin tratam de “imaginação”,

não é a “imaginação” no sentido corrente da palavra: “não se trata

nem da fantasia – profana ou não –, nem do órgão que secreta um

imaginário identificado com o irreal; nem se trata tampouco do que

consideramos o órgão da criação estética. Trata-se sim de uma função

absolutamente fundamental, submetida a um universo que lhe é

próprio, provido de uma existência perfeitamente “objetiva” e do qual

a Imaginação é justamente o órgão de percepção.”

O Mundus Imaginalis é o mundo intermediário entre o

entendimento – o mundo inteligível, supra-formal, espiritual – e o

mundo sensível. Quem reporta um ao outro é a imaginação. Mesmo

no nível da filosofia ocidental isso foi delineado. Kant já o havia

apontado, embora somente no final de sua obra tenha passado a

2 Hadith qudsi. Dito do Profeta Mohammed segundo a tradição.3 Muito semelhante às idéias de George Berkeley: o mundo são idéiasde Deus; o mundo material não existe; nossas idéias são idéias deDeus enfraquecidas.4 Frase dita em aula.

Page 3: Mundus Imaginalis

conferir valor epistemológico à imaginação5 e a reconhecê-la como

fonte de conhecimento. Na fenomenologia husserliana, entre a

intuição sensível e o entendimento existe uma intencionalidade6 e um

preenchimento, que é feito pela Imaginação. Só aí pode haver

percepção integral.

O fato é que entre as percepções sensíveis e as intuições

ou categorias do intelecto permaneceu um vazio. Aquilo que

deveria haver ocupado seu lugar entre os dois, e que em outros

tempos e lugares sempre havia sido a Imaginação Ativa, foi aqui

deixado para os poetas.7

Em Kant, há os “esquemas”, que operam a passagem de um a

outro. Freud, seguindo Stuart Mill, reconhece os vínculos entre

imaginação e percepção. Para eles, o material das sensações deve ser

representado, imaginado, para que possa haver “percepção”. No

entanto, o status da imaginação, apesar de Kant, Freud, Stuart Mill,

Husserl e outros, permaneceu na mentalidade ocidental subestimado,

restrito ao mundo da arte e banido do âmbito do conhecimento.8 Ibn

Arabi, o principal autor de Henry Corbin, chegou a afirmar que “aquele

5 Procurar citação de kant quanto a 3 tipos de conhecimento nojambet

“A unidade do diverso fenomenal não é a receptividade mas aespontaneidade (...) A percepção é o efeito de um ato de força dosujeito determinando-se a uma representação a priori (...) A formaprecede o elemento material ... O objeto não é nem real nem ideal,ele não é dado, mas apenas concebido.” Opus Postumum textosescolhidos e traduzidos por ... Christian JAMBET, A Lógica dosOrientais: Henry Corbin e a Ciência das Formas, São Paulo, Ed. Globo,2006, p. 330.6 Husserl referencia – preenchimnento intencional7 Spiritual body and celestial earth vii8 Freud não deixa de reconhecer a intensidade do grau de realidade domundo da imaginação, mas continua deixando-o para os artistas: “Oartista, como o neurótico, retirou-se da realidade insatisfatória e serefugiou no mundo da imaginação, mas, diferentemente do neurótico,sabe como encontrar o terreno da sólida realidade.” Sigmund Freud(pedir referencia bibl.p para athié.

Page 4: Mundus Imaginalis

que não conhece o estatuto da imaginação não possui conhecimento

algum”9 e mantinha que apenas colocando a imaginação próxima ao

centro de nossas preocupações seríamos capazes de perceber a

significado não só da religião como da própria existência humana.

Segundo nossos místicos, a Imaginação (assim como o amor, ou

a sym-pathea ou um sentimento em geral) faz conhecer, e faz

conhecer um “objeto” que lhe é próprio. É necessário, para seguirmos

adiante e compreendê-los, admitir – ao menos provisoriamente ou a

título de suspensão fenomenológica do juízo – o valor noético pleno da

Imaginação. Para estes místicos o mundo é “objetivamente triplo”:

“entre o universo apreensível pela pura percepção intelectual e o

universo perceptível pelos sentidos, existe um mundo intermediário, o

mundo das Idéias-Imagens, das Figuras-Arquétipos, dos corpos sutis,

da “matéria imaterial”; mundo tão real e objetivo, consistente e

subsistente, quanto o universo inteligível e o sensível”.10 O termo

árabe aalam al-mithal (“mundo das imagens”) foi traduzido e trazido

a nós por Corbin através do latim “Mundus Imaginalis” para preservá-

lo de qualquer confusão com o imaginário, que caracterizaria as

imagens como “irreais” e revela uma impotência diante deste

entremundo. Uma realidade imaginal habita um domínio entre duas

realidades e compartilha dos atributos de ambos os lados. É o mundo

onde, segundo Ibn Arabi, “os corpos se espiritualizam e os espíritos

ganham corpo”.

É o mundo dos corpos sutis, de uma matéria espiritual

etérica, livre das leis da matéria corruptível deste mundo aqui mas

não da extensão (a dos sólidos matemáticos) possuindo

eminentemente toda a riqueza qualitativa do mundo sensível , mas

no estado incorruptível. Este entremundo é o lugar dos eventos

visionários, das visões dos profetas e dos místicos, [das histórias

9 William CHITTICK, Imaginal Worlds, State University of New YorkPress, Albany, 1994, p.12.10 Henry CORBIN, L’Imagination Créatice dans le Soufisme d’Ibn Arabi,Paris, Flammarion, 1976, p.12.

Page 5: Mundus Imaginalis

simbólicas], (...)Portanto, este mundus imaginalis é a via pela qual

nós nos livramos do literalismo, ao qual as “religiões do livro”

sempre são tentadas a sucumbir. É o nível ontológico ao qual o

sentido espiritual das revelações se torna o sentido literal, pois é

neste nível que obtemos uma percepção sacramental ou uma

consciência sacramental das coisas e dos seres, quer dizer, de sua

função teofânica, pois nos preserva de confundir um ícone, que

seria uma imagem metafísica, com um ídolo. Na ausência deste

entremundo, ficamos entregues ao encarceramento na História

unidimensional dos eventos empíricos.11

“A realidade é imaginação e a Imaginação Criadora é a criação

da realidade.” 12 O Mundus Imaginalis é quem cria o mundo para nós;

ele não é subjetivo, ele é a Subjetividade mesma. Esta é o lugar do

mundo, o locus de tudo o que há, de tudo o que é. Nela estão o

sujeito e o objeto. “Falar de um mundo imaginal não é outra coisa

senão meditar sobre uma metafisica do ser, em que sujeito e objeto

nascem conjuntamente do mesmo ato criador da Imaginação

Transcendental.”13 Esta não está em lugar algum e está em toda

parte. “A visão mística imaginal”, seja ela uma interpretação do

mundo sensível ou a criação de um corpo sutil, “não é um objeto, mas

uma subjetividade em ato, que engendra sua própria temporalidade e

seu próprio espaço.” 14

Henry Corbin, Cavaleiro do Invisível, é também o

Apóstolo da Imaginação. Pois abandonar o “lugar” do tempo-

espaço sensíveis e convencionais é mover-se desde as coisas

externas, visíveis e objetivadas, em direção às presenças,

11 Henry CORBIN, Le Paradoxe du Monothéisme, Paris, Éditions de l’Herne, 1981, p - ultimas paginas do livro12 Christian JAMBET, A Lógica dos Orientais: Henry Corbin e a Ciênciadas Formas, São Paulo, Ed. Globo, 2006, p.42.13Christian JAMBET, A Lógica dos Orientais: Henry Corbin e a Ciênciadas Formas, São Paulo, Ed. Globo, 2006, p.14 Christian JAMBET, A Lógica dos Orientais: Henry Corbin e a Ciênciadas Formas, São Paulo, Ed. Globo, 2006, p.

Page 6: Mundus Imaginalis

invisíveis e não-objetivadas de uma ordem diferente cujo lugar é

o “não-lugar” da Imaginação.15

Para Husserl o que permite a aparição dos fenômenos é a

“Subjetividade Transcendental”. Seu ex-discípulo Heidegger chamou-o

de Dasein – o “Ser-aí” – para não incorrer nos mesmos perigos de

idealismo que Husserl, para acentuar o vínculo do Ser, da

Subjetividade Transcendental, com a presença, com a existência

historial. É por isso que Corbin chama o Dasein de Heidegger de

“Presença”. E a Presença possui prioridade ontológica sobre a aparição

de um sujeito ou um ego, ou da restrita consciência humana; é

anterior a qualquer outra entidade, seja o sujeito ou o objeto, a

energia ou a matéria, o fenômeno ou o noumenon (coisa-em-si).

Escapa-se assim de dualidades metafísicas inconciliáveis, como

idealismo-realismo ou pensamento e extensão.

A partir das noções de Dasein e de Subjetividade

Transcendental, podemos alargar o sentido do termo “alma”, de modo

que a frase “a alma não vive no mundo, o mundo é que vive na alma”

não corra o risco de soar como convite ou apologia à psicose. Esta

alma não é o sujeito, o ego, que estaria nela como um peixe no

oceano. No entanto, é extremamente pessoal e única, sendo o ego

“cru” – que não foi cozido pela alma integral – normalmente um

constructo impessoal alienante, uma bricolage socio-cultural

condicionada aos fatores externos e “mundais”. Nesse caso, é o

sujeito desta vez o espelho do mundo, e não o mundo o espelho da

alma. O sujeito aqui é um mero reflexo do social e do histórico: “Pois,

sem a Imaginação entendida como fonte proveniente de uma fonte

divina além do ego, os únicos desejos que podemos ter são os

15 Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of HenryCorbin” – Introduction of The Voyage and the Messenger, Iran andPhilosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p. xxii.

Page 7: Mundus Imaginalis

impelidos a nós pela história.”16 Quando se fala, no contexto sufi ou

corbânico, de “alma” ou de “interioridade”, fala-se aí de

“espiritualidade”. “Mundos interiores” despertam normalmente idéias

psicologistas ou confessionais. Para os pensadores em questão,

“mundos interiores são mundos espirituais, e exigem, com completo

rigor ontológico, uma ‘objetividade’ sui generis, e certamente bem

diferente do que normalmente se entende por esta palavra.”17 Ao

mesmo tempo, Corbin insiste que estes mundos são puramente

psíquicos, embora não tenham nada que ver com a psicologia, como a

entendemos.

Corbin era profundo conhecedor das obras de Husserl e

Heidegger – foi o primeiro tradutor destes filósofos para o francês. A

dificuldade de se ler Heidegger é em parte devida ao vocabulário que

usa: Heidegger cria palavras para poder “quebrar as categorias

tradicionais do pensamento ocidental”18; cria com seu neologismo

imagens concretas porém ocultas a nossa consciência diária. É

bastante sintomático que o exemplar de Corbin de Ser e Tempo

estivesse repleto de anotações e comentários em árabe. Palavras que

Heidegger precisou criar, já existiriam em árabe, dentro de outra

tradição filosófica, sem que ele o soubesse. Corbin é um

fenomenólogo comparativo que pretendeu mostrar o “valor” de

mundos de outras culturas e de outros tempos radicalmente

diferentes da modernidade ocidentalizada. Foi através da

compreensão de Heidegger da prioridade ontológica do Dasein, que

Corbin encontrou os meios e as justificações filosóficas para seu

trabalho. Segundo bela imagem de Chittick, “sendo um filósofo

16 Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin andIslamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p. 79.17 Christopher BAMFORD, in “Esotericism today: the example of HenryCorbin” – Introduction of The Voyage and the Messenger, Iran andPhilosophy, Berkeley, North Atlantic Books, 1998, p. xvi.18 Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin andIslamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p.5.

Page 8: Mundus Imaginalis

localizado entre duas culturas, Corbin encontra-se em uma posição

única de estar em pé na fronteira dos mundos e sentir a força do

encontro”. Corbin afirma:

Aquilo que busquei em Heidegger, aquilo que eu entendi

graças a Heidegger, é a mesma coisa que busquei e encontrei na

metafísica irano-islâmica...Mas, nesta última, tudo estaria situado

daí por diante em um plano distinto...19

A busca de Heiddeger por um caminho alternativo ao nihilismo

moderno deu-se inteiramente dentro da tradição filosófica do

ocidente. Sua tentativa de escapar ao mundo pós-cartesiano levou-o

por fim às origens do pensamento ocidental: aos pré-socráticos. Aí

Heidegger procura pelas raízes de uma metafísica fracassada, a fim

de descobrir o que chamava de “história do Ser” e “destruir a história

da ontologia”, para desta forma reconstituir o fenômeno de um mundo

perdido. Assim como Heidegger, Corbin também buscava um caminho

alternativo. O seu porém “levou-o ao oriente, ao Irã – “um mundo

onde a ‘história do Ser’ é algo completamente distinto do que foi

imposto pela transição do grego para o latim” – e a uma história

alternativa, mas proveniente, assim como a nossa, tanto do

monoteísmo primordial de Abraão como da filosofia da Grécia antiga.

Foi ali que Corbin encontrou o mundo que buscava, e ao qual chamou

de Mundus Imaginalis.”20

19Henry CORBIN, Henry Corbin, ed. Jambet, 24.20 Tom CHEETHAM , The World Turned Inside Out: Henry Corbin andIslamic Mysticism, Connecticut, Spring Journal, 2003, p.15transcrever a fala de corbin da p. 15 que está no corpo espiritual eterra celeste viii

Page 9: Mundus Imaginalis