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Musica Hodie - Volume 6 - Numero 1

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Volume 6 - Número 1 - 2006

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)(GPT/BC/UFG)

________________________________________________________

Música Hodie ; Revista do Programa de Pós-graduação Stricto-Senso da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Vol. 6 (n. 1, 2006) Goiânia: UFG, 2006.

v. : Il. Semestral Descrição baseada em : Vol. 5, n. 2 (2005)

ISNN 1676-3939

1. Música Periódicos I. Universidade Federal de Goiás. Escola de Música e Artes Cênicas.

CDU: 78(05)________________________________________________________

MÚSICA HODIEVolume 6 - n. 1 - 2006

ISSN 1676-3939

Universidade Federal de GoiásProf. Dr. Edward Madureira Brasil (Reitor)

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-GraduaçãoProfa. Dra. Divina das Dores Cardoso

(Pró-Reitora)

Escola de Música e Artes CênicasProfa. Dra. Glacy Antunes de Oliveira

(Diretora)

Programa de Pós-Graduação em MúsicaProf. Dr. Anselmo Guerra (Coordenador)

REVISTA MÚSICA HODIE

Conselho EditorialProfa Dra Sonia Ray - Presidente (UFG)

Prof. Dr. Anselmo Guerra de Almeida (UFG)Profa Dra Cristina Gerling (UFRGS)

Profa Dra Eliane Leão (UFG)Prof. Dr. Fausto Borém (UFMG)

Prof. Dr. Florian Pertzborn (Portugal)Profa Dra Lúcia Barrenechea (UFG)Profa Dra Tânia Lisboa (Inglaterra)

Consultores do Volume 6 - n. 1Adriana Kayama (UNICAMP)

Ângelo Dias (UFG)Anselmo Guerra de Almeida (UFG)

Any Raquel Dias (UFRGS)Claudia Zanini (UFG)

Cristina Gerling (UFRGS)Daniel Wolff (UFRGS)

Florian Pertzborn (Portugal)Heloisa Valente (SP)Lia Tomas (UNESP)

Luciane Cardassi (SP)Marcelo Fagerlande (UFRJ)

Margarete Arroyo (UFU)Maria Alice Volpe (UFRJ

Maria Lúcia Pascoal (UNICAMP)Marisa Fonterrada (UNESP)

Martha Herr (UNESP)Maurício Dottori (UFPR)

Mônica Lucas (SP)Rogério Costa (USP)

Silvio Ferraz (UNICAMP)Sonia Ray (UFG)

Wolney Unes (UFG)

Revisão: Silvana Rodrigues e Sonia Ray Capa: Kina Bagoviska (www.bagoviska.com)

Editoração: Franco Jr.Impressão: Gráfica e Editora Vieira

Acabamento: Centro Editorial e Gráfico da UFG

Site: www.musicahodie.mus.brJudson Costa (Webmaster)

A publicação contínua de Música Hodie desde dezembro de 2001, tem nos permitido buscar recursos para mantê-la, bem como receber reconhe-cimento nacional e internacional. Os abstracts de Música Hodie já podem ser acessados em duas bases de dados onde o periódico se encontra indexado: The Music Index e RILM - Abstracts of Music Literature. Além disso, a revista está classificada como Qualis “A” na Capes-MEC. Isto só está sendo possível em função do trabalho de toda a equipe de colaboradores de Hodie, do apoio do PPG Música e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFG. Regis-tro aqui meu agradecimento a todos, em especial para nossos pesquisadores, autores e pareceristas, sem a colaboração dos quais não teríamos o principal objeto da revista, seu conteúdo. Obrigada!

Este volume traz todas as seções que são originalmente parte de Mú-sica Hodie: Artigos, Resenha, Primeira Impressão e Primeira Audição. Os ar-tigos são seis. Os três primeiros versam sobre musicologia histórica: Mônica Lucas (humor em Haydn), Stella Almeida (um modelo de realização de baixo contínuo) e Ana Carolina Rodrigues (aspectos retórico-musicais em Vivaldi). O quarto discute a prática coral na atualidade (A. Fernandes, A. Kayama e E. Östergren). O quinto (Rita Fucci Amato) discute o ensino de piano em conser-vatórios e a seção termina como o texto de Valério Brittos e Ana Oliveira sobre o papel atual da MTV.

Resenha apresenta a caixa com 3 Cds e um DVD do grupo A Barca, a qual traz resultados de uma viagem por 10 estados brasileiros documentando manifestações culturais envolvendo música e criação artística em 30 comuni-dades carentes. A viagem e o trabalho de pesquisa do grupo têm inspiração no legado de Mário de Andrade.

Primeira Impressão apresenta ToCachita, para piano solo de Daniel Wolf. Primeira Audição é dedicada à Mário de Andrade. Apresenta uma se-leção de músicas coletadas pela Barca, ainda inéditas, e a gravação do Ciclo Poemas da Negra, na composição musical de C. Guarnieri, sob interpretação de Marina Machado (piano) e Ângela Barra (canto).

Lembramos que o Conselho Editorial de Música Hodie recebe e avalia material para publicação (artigos, resumos, gravações e partituras) continua-mente no sistema blind review e com pareceristas externos. Informações deta-lhadas para submissão podem ser obtidas no final deste volume ou através do endereço: www.musicahodie.mus.br

Sonia RayEditora

Editorial

Sumário

Artigos

O Lugar-Comum do Humor em HaydnHumor´s common place in Haydn

Mônica Lucas ........................................................................................................11

Um Modelo de Realização de Baixo Contínuo: 2º movimento da sonata em Si menor BWV 1030 para flauta e cravo obbligato de J. S. BachA model for figured bass realization: 2nd moviment of the B minor Sonata BWV 1030 for flute and harpsichord obligato by J. S. Bach

Stella Almeida .....................................................................................................23

Análise de Alguns Aspectos Retórico-Musicais de “Domine Deus, Agnus Dei” do Gloria RV 589 de Antonio VivaldiAnalysis of Some Musical-Rhetoric Aspects of “Domine Deus Agnus Dei” of Gloria RV 589 by Antonio Vivaldi

Ana Carolina Rodrigues ..........................................................................................35

A Prática Coral na Atualidade: sonoridade, interpretação e técnica vocalToday’s Choral Practice: sonority, interpretation and vocal technique

Angelo José Fernandes; Adriana Giarola Kayama; Eduardo Augusto Östergren ........................ 51

Educação Pianística: o rigor pedagógico dos conservatóriosPianistic education: The pedagogic rigour of the conservatories

Rita de Cássia Fucci Amato ...................................................................................... 75

MTV, Sucesso Musical e Cena AlternativaMTV, Musical Success and Alternative Scene

Valério Cruz Brittos; Ana Paola de Oliveira .................................................................. 97

Resenha

A Barca: trilha, toada e trupéA Barca: trilha, toada and trupé

Sonia Ray ........................................................................................................ 129

Primeira Impressão

ToCathita (para piano solo) ToCathita (for piano solo)

Daniel Wolf ..................................................................................................... 135

Primeira Audição

Mário de Andrade: duas visões contemporâneasMário de Andrade: two contemporary views

Sonia Ray (Ed.) ..................................................................................................149

Chamada para artigos / Call for papers ................................................................... 159

Arti

gos

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 11MÚSICA HODIE

O LUGAR-COMUM DO HUMOR EM HAYDNHUMOR´S COMMON PLACE IN HAYDN

Mônica Lucas (SP)

Resumo: Este artigo busca resgatar a acepção setecentista do termo humor, no intuito de reavaliar um lugar-comum que, desde o século XVIII, associa esta qualidade à obra de Haydn. Esta relação perdura até os dias de hoje, a despeito da mudança de acepção do termo humor, sem que haja, em grande parte dos casos, preocupação em definir este conceito. Para proporcionar uma melhor compreensão do sentido do termo nas críticas setecentistas que se referem à produção de Haydn, dividimos esse artigo em três partes: a primeira busca situar os textos que discorrem sobre a noção de humor no final do século XVIII; a segunda parte dedica-se à reconstituição, propriamente dita, do sentido do termo humor no século XVIII; a terceira, à aplicação desta acepção na leitura de artigos setecentistas que relacionam a música de Haydn à qualidade humorística.Palavras-chave: Joseph Haydn; Humor; Crítica setecentista; Retórica; Estética; Cômico.

Abstract: This article attempts to recover seventeenth century meaning of the term humor, in order to reevaluate a common-place that has been, since Haydn´s own time, associating this quality to his work. This relation remains valid until today, despite many changes in the significance of the term humor, without any concern for defining this concept, in most cases. This article is divided in three parts: in first place, there is a contextualizing of the sources dealing with the notion of humor in the seventeenth century; the second part is dedicated to the reconstitution of the term humor in the seventeenth century, and the third part regards magazine articles that related Haydn’s music to the notion of humor, during his own time.Keywords: Joseph Haydn; Humor; Seventeenth-century critics; Rhetoric; Aesthetic; Comic.

‘O aparecimento de C. Phil. Em. Bach, o humorista sério, e de Joseph Haydn, o romântico cômico, deram finalmente aos berlinenses e aos vienenses uma nova vida e diferenciaram seus gêneros para sempre”.1 Allgemeine Musikalische Zeitung [Jornal Musical Geral], 1813

O epíteto “humorista sério”, com que Johann Friedrich Reichardt, autor da crítica acima, se refere à produção de Carl Philip Emannuel Bach, é, para o leitor moderno, no mínimo, intrigante, se considerarmos que as acepções modernas mais comuns de humor relacionam o termo a idéias de comicidade em geral, como graça e jocosidade.2 O paradoxo que se estabe-lece entre as categorias “humor” e “sério”, aponta para a necessidade de se resgatar o sentido setecentista do termo humor, que qualifica freqüente-mente a música de Haydn. Isto ajudará a entender melhor o conteúdo de críticas como a Allgemeine Musikalische Zeitung [Jornal Musical Geral], acima, ou comentários de muitos autores que, no século XVIII, relacionam a idéia de humor à obra de Haydn. No início do século XIX, a associação entre a produção de Haydn e o seu aspecto humorístico já é um lugar-co-

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mum estabelecido. A relação perdura até os dias de hoje, sem que haja, em grande parte dos casos, preocupação em definir conceitos.

No intuito de proporcionar uma melhor compreensão do sentido do termo nas críticas setecentistas que se referem à produção de Haydn, optamos por dividir esse artigo em três partes: a primeira busca situar os textos que discorrem sobre a noção de humor no final do século XVIII; a segunda parte dedica-se à reconstituição, propriamente dita, do sentido do termo humor no século XVIII; a terceira, à aplicação desta acepção na leitu-ra de artigos setecentistas que relacionam a música de Haydn à qualidade humorística.

1. Ética e Estética

Alguns dos tratamentos setecentistas mais extensos sobre o con-ceito de humor encontram-se em escritos que versam sobre Estética, dis-ciplina surgida por volta da metade daquele século, que começava a se tornar relevante na época de Haydn. O termo estética, cunhado por Ale-xander Baumgarten no século XVIII,3 refere-se à disciplina que visa definir o belo, refletindo uma preocupação muito em voga durante o século XVIII: reconhecer as qualidades intrínsecas dos objetos que geram prazer visual ou auditivo.

Nas preceptivas clássicas e em suas releituras seiscentistas e sete-centistas, o belo submete-se à virtude (excelência moral) e, assim, é assun-to da Ética. Aristóteles afirma, em sua Retórica, que “forçosamente, será belo o que produz virtude (já que tende a ela) ou o que procede da virtude; as coisas belas constituem os signos e as obras da virtude”.4 No mundo cor-tesão, a virtude é considerada, aristotelicamente, como “uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta con-sistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão”,5 pressupondo, desta forma, haver uma adequação (“meio termo de-terminado pela razão”) do comportamento individual (“escolha de ações e emoções”) às circunstâncias externas; estes são protocolos do decoro.

No século XVII e no início do XVIII, o preceito clássico de decoro associa-se a idéias que visam justificar e difundir a fé cristã. Em concor-dância com esse princípio, que o teórico e compositor Johann Mathesson

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inicia seu tratado sobre o mestre-de-capela perfeito (1739), estabelecendo a seguinte premissa principal: “tudo deve soar convenientemente [i.e., com decoro]”, princípio do qual fluem, “como de uma fonte cristalina, todas as regras da música.”6 Para ele, ainda, a música tem uma única função: lou-var a Deus.7 O mestre-de-capela Perfeito foi estudado por Haydn, em sua juventude.

A partir do século XVIII, alguns pensadores ingleses, influencia-dos pela filosofia empírica de John Locke, desenvolveram idéias que per-mitiram uma nova acepção do belo. Entre eles encontra-se Henry Homes, o Lord Kames, que publicou seu “Elements of Criticism” na Inglaterra, em 1761. A obra foi traduzida para o alemão em 1763, e exerceu influência determinante no pensamento germânico de então. Ela é citada também em artigos que se referem a Haydn, publicados em sua própria época, como veremos adiante. No primeiro capítulo da obra, Kames explica que sua ma-neira de julgar o belo não se fundamenta na moralidade: procura examinar a área sensitiva da natureza humana e, analisando os objetos naturalmente agradáveis ou desagradáveis, tem por objetivo descobrir os princípios que considera como sendo genuínos das belas-artes. No capítulo 3, ele amplia essa consideração, afirmando que a beleza tem dois aspectos. o primeiro, que ele denomina relativo, reflete a visão tradicional, aristotélica, que se associa com a utilidade (moral). O reconhecimento do belo exige, portanto, além dos sentidos, o uso da razão, pois requer compreensão e reflexão. Em seguida, Kames atribui ao belo um segundo (e mais importante) as-pecto, que ele denomina de intrínseco, fundamentado apenas na sensação imediata de prazer ou repulsa que o objeto causa ao observador. Kames restringe a função moral a apenas uma das espécies da beleza. A espécie mais importante de beleza, no entanto, é a que depende exclusivamente dos componentes intrínsecos do objeto, como regularidade e simplicida-de (com respeito ao todo), uniformidade, proporção, ordem, movimento e grandeza (com respeito à relação das partes entre si) – assuntos de investi-gação da Estética que Kames trata separadamente, um a um.

Assim, a Estética surge como disciplina que trata exclusivamente do Belo, colocando sua discussão acima de questões éticas, como sua utili-dade moral e a adequação da obra de arte a protocolos de decoro. Essa re-flexão é importante para a leitura de documentos setecentistas que tratam do humor nas obras de Haydn. A reflexão sobre o caráter moral da conduta

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humana e, conseqüentemente, das belas-artes possibilita entender as dis-cussões setecentistas sobre humor, como veremos a seguir.

2. Humor

Etimologicamente, o termo é derivado do latim humor que significa líquido, fluido, e refere-se, em especial, aos quatro humores ou líquidos do corpo humano. A fisiologia e a medicina antigas apoiavam-se amplamente no corpus hipocraticus, reunião de escritos atribuídos ao médico grego Hi-pócrates de Cós (séc. V-IV a.C.) e nos escritos de Galeno, médico do século I a.C.8 De acordo com essas fontes, os humores influenciavam não só o es-tado de saúde e a aparência física, mas também o caráter do indivíduo, daí as acepções de temperamento, modo de ser, gênio. A disposição de espírito particular de cada homem era resultante do temperamento (mistura) entre os quatro humores de seu corpo. Ao equilíbrio desejável, opunham-se as disposições sanguínea, flegmática, melancólica ou colérica, cada qual de-terminada pela predominância de um dos humores.

No século XVI, por extensão e especialização, o termo passou a referir-se exclusivamente às formas de desvio, provocado por alguma des-proporção acentuada (e, portanto, indecorosa) entre os humores. Dessa forma, o humor tornava o indivíduo mais propenso a certas afecções. O controle sobre as disposições naturais pertencia ao território da Ética. Des-ta forma, os humores, que forneciam a matéria básica da qual se constituía o temperamento, independiam da razão, mas deveriam ser dominados por ela. Eles constituíam “uma espécie de latência ou forma orgânica, na qual se incluiria, em alguma medida, também a mente e o espírito”.9 O contro-le racional a que a disposição humorística, natural, deveria estar sujeita, presumia uma adequação a ideais de decoro, tais como previstos em refe-rências clássicas, como o tratado “Sobre os Deveres” [De Officiis], I.A.C., do orador romano Marco Túlio Cícero, emuladas em fontes cortesãs, como o “Livro do Cortesão” [Il Libro del Corteggiano], publicado, em 1527, por Baldassare Castiglione.

No fim do século XVII, o conceito de humor passou a sofrer, na Inglaterra, transformações significativas, intimamente conectadas com o desenvolvimento da comédia inglesa. O humor passou a designar uma

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combinação única de fluidos que determinava o temperamento particular de cada homem, passando a ser visto, não mais como falta de adequação, mas como qualidade individual. No início do século XVIII, consolidou-se a expressão british humor. A causa da superioridade do humor inglês era, se-gundo o comediógrafo inglês William Congreve (1695) “a grande liberdade, privilégio e os direitos [especiais] de que as pessoas comuns da Inglaterra gozam. Cada homem tem um humor, [e] não tem restrições ou medo de dar vazão a ele.”10 De acordo com escritores britânicos, somente na Inglaterra havia o clima, prosperidade e liberdade econômica capazes de produzir cidadãos dotados de saúde, de coragem, de beleza, de verdadeiro gênio, de boa-índole, e, acima de tudo, de humor. Na Inglaterra, a sociedade é mais livre, “pois cada homem segue seu [humor] original e tem prazer, talvez até orgulho, de mostrá-lo”.11 O aspecto individual é apreciado por Congreve, para quem humor é “uma maneira singular e inevitável de fazer ou dizer algo, peculiar e natural a um homem único, pela qual seu discurso e ações distinguem-se daqueles de outros homens.”12

A definição de Congreve foi largamente empregada no século XVIII, por autores ingleses e também alemães. Analisando essa citação, Lord Kames conclui que

“se essa explicação estivesse correta, um ar altivo e majestoso, que é uma característica singular, ou um domínio da eloqüência, que não é menos singular, também seria considerado humor. As coisas justas e adequadas não são denominadas humor, nem a singulari-dade de caráter, palavras ou ações valorizadas ou respeitadas. O caráter do humorista é risível e impróprio, e isso diminui nossa estima por ele, tornando-o de certa maneira ridículo.”13

Kames considera o humor como uma qualidade individual, mas atribui a ele uma conotação risível, que irá predominar na visão do século XIX.

No sentido que Congreve atribui ao termo, torna-se facilmente aceitável o aparecimento de um novo tipo de comédia, em que os per-sonagens apresentam um humor individual, às vezes excêntrico, porém peculiar, benevolente e, sobretudo, desvinculado de preceitos de decoro. A bondade natural sobrepõe-se à rigidez prescrita pela moral aristocráti-ca. Numa sociedade de orientação cada vez mais burguesa, o fator deter-minante da convivência social passa a ser a boa índole, que estabelece o

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denominador comum para um comportamento que tende cada vez mais para o individual e o subjetivo. É nesse sentido que Kames afirma que “um autor de humor, afetando gravidade e seriedade, pinta os objetos em cores que provocam alegria [mirth] e o riso.”14

Neste contexto, torna-se mais fácil compreender o conteúdo de críticas setecentistas sobre a obra de Haydn, amplamente fundamentadas nas discussões inglesas. Nelas, os autores elogiam ou vituperam o aspecto humorístico – original ou excêntrico – da música de Haydn, como veremos adiante.

3. O humor de Haydn em documentos alemães do século XVIII

O termo inglês humor foi incorporado, no século XVIII, ao vocabu-lário alemão, identificando-se com o termo Laune, que, derivado do latim luna (lua), representava inicialmente uma disposição passageira. O sentido do termo alemão alterou-se, aproximando-se do sentido do termo inglês humor, disposição natural duradoura e individual.

Como dissemos, na época de Haydn, já é freqüente a associação entre sua produção e o termo humor. O verbete “Haydn” do Portfeuille für Musikliebhaber (“Portfólio para Amantes da Música”), de Karl Ludwig Junker15 (Leipzig, 1792) contém uma abordagem extensa do assunto. O ar-tigo começa definindo o que seja a “Laune musical” e, com isso, revela uma preocupação em associar a música de Haydn a questões estéticas da época.

“Laune (...) representa em parte uma disposição da mente por meio da qual a pessoa enxerga todas as coisas de uma maneira especial, sendo movida por tudo de uma forma não-convencional, e [representa] em parte aquele modo de ser [Gemüthsart] que leva a pessoa a dizer e fazer, sem restrição, aquilo que outras pessoas, que se deixam limitar pelo pensamento das restantes, ou pelos costumes não fariam nem diriam – [mas seguiremos] adiante. O caráter humorista [launig] abre, por assim dizer, a alma, desenvolve tanto cada germe de pensamento, que precisa ser dito, e nos deixa, portanto, saber mais sobre a filosofia secreta do homem (do coração, acrescento), do que qualquer outro”16

Ao utilizar as expressões “Anlage des Kopfes” ([pré]disposição da mente) e “Gemüthsart” (modo de ser), deixa claro que está se referindo a

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disposições permanentes, traços peculiares de caráter, e põe ante os olhos o processo de aproximação entre Laune e humor. Junker, de fato, serve-se de autores ingleses, mas critica a definição corrente de Congreve, e, para isso, baseia-se na investigação estética do autor alemão Joseph Riedel17. Nega que o humor seja, como Congreve afirma, apenas “uma maneira es-pecial e inevitável de agir e falar, peculiar a uma única pessoa”18: ele con-corda que o caráter do humorista deve ser particular [eigenthümlich], e que deve ser diferenciado [abstechend], mas acrescenta que contém algo de bizarro e indecoroso [unschicklich]. Se não fosse assim, segundo ele, seria forçoso concluir que qualquer homem seria, em tese, um humorista, o que ele considera falso. Nesse ponto, Junker está de acordo com Lord Kames, autor que ele cita no artigo sobre Haydn.

Johann Georg Sulzer, autor da importante enciclopédia das belas-artes, Allgemeine Theorie der Schönen Künste (Teoria Geral das Belas Artes, 1777), por outro lado, considera a Laune em uma acepção mais próxima da visão germânica, como uma disposição de espírito (“Gemüthsfassung”), um estado afetivo (“leidenschaftlicher Zustand”). No verbete “Laune”, ele aproxima os conceitos Laune e humor, e afirma que:

“Laune é exatamente aquilo que comumente se expressa com a pala-vra francesa humeur, ou seja, uma disposição passageira [Gemüths-fassung] na qual uma emoção, agradável ou triste, é tão dominante que todas as idéias e expressões da alma são por ela contagiadas. Ela é um estado afetivo [leidenschaftlichen Zustand] no qual a paixão não é intensa, nem tem um objeto determinado; simplesmente, seu conte-údo agradável ou desagradável espalha-se por toda a alma. Em uma Laune alegre vemos tudo pelo lado prazeroso, numa triste, no entanto, é tudo triste. (...) O juízo não é totalmente tolhido pela Laune, como [é tolhido] por uma afecção violenta, mas é distorcido, pois não vê ne-nhum objeto em sua forma verdadeira, ou em sua proporção correta. (...) Freqüentemente, o artista não tem outra musa para auxiliá-lo que sua Laune. (...) Aquilo que nós vemos em sua forma verdadeira e com suas cores naturais, o homem humorista [launig] vê de forma alterada e com cor falsificada. Espanta-nos que ele não veja as coisas como nós as vemos, e por isso, o estado humorista (launig) se aproxima do ridí-culo, e serve para nos alegrar.”19

No final do século XVIII, relação entre o humor e o cômico torna-se possível dado o aspecto comum a ambos: a falta de proporção de seus elementos internos. No entanto, apesar dessa analogia, há uma diferença entre os conceitos: enquanto o humor apresenta uma falta de adequação

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natural, no cômico ela é intencional, e visa a edificação, pelo reconheci-mento e repulsa ao caráter vicioso dessa inconveniência. Sulzer estende essa propriedade do cômico para o humor, e explica que a Laune não deve ser admirada por si só, mas pelo aspecto edificante de sua desproporção, cômica, que aponta para a “direção correta da razão”. Junker usa o aspecto incongruente do cômico para vituperar certas obras de Haydn, e afirma que o resultado do humor de Haydn é “a inadequação dos pensamentos de [seu] caráter singular, distorcido [abstechend], quando exposto sem reser-vas, através de (...) e obras”.20 Essa visão não impede que, eventualmente, no século XIX, o aspecto análogo a ambas inconveniências, natural (hu-morística) ou afetada (cômica), livres das críticas que as consideram como viciosas, torne possível que se encare o cômico positivamente, como um subgênero do humor. O próprio cômico passa a ser considerado um gênero potencialmente alto.

Seguindo essa vertente, Sulzer dedica metade de seu artigo sobre Laune ao gosto cômico:

“No palco cômico, a Laune do personagem principal é a coisa mais importante. Nada é mais divertido de se ver e ouvir que a cor e o tom que a Laune empresta a todas as ações e julgamentos dos homens, e os mais notáveis contrastes surgem ali onde pessoas com Launen contrárias se interessam por um mesmo objeto, pois um o vê pelo lado triste, o outro pelo alegre. Nestes contrastes, o poeta encontra a melhor oportunidade para tornar visível a direção correta da razão. (...) Deve-mos freqüentemente espantar-nos conosco, por fazermos julgamentos diferentes, com respeito a diferentes aspectos de uma mesma coisa. Eles são resultado da Laune.”21

No processo de aceitação das idéias inglesas, que se deu na Ale-manha de forma efetiva apenas no início do século XIX, podemos perceber que certos procedimentos de Haydn, que exibem soluções peculiares e, na visão de Junker e Sulzer, humorísticas, divergem de pressupostos estabe-lecidos por alguns de seus críticos. Esta incompatibilidade está na raiz de algumas críticas negativas a Haydn escritas em sua própria época.

No tratamento dado pela crítica ao humor de Haydn no século XVIII, podemos perceber a confluência de ideais éticos, que evidenciam o aspecto indecoroso do humor, com idéias mais modernas (pensamento inglês) que fundamentam o fazer de Haydn, enfatizando seu aspecto indi-vidual. Estas não vêem na falta de decoro um obstáculo para a apreciação

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da obra de arte. A compreensão moderna do termo humor, ao reduzí-lo simplesmente ao cômico tende a desprezar um aspecto importante da obra de Haydn, pelo qual ele foi muito louvado no início do século XIX, que são seus procedimentos peculiares e originais. Isso torna possível compreen-der o significado mais amplo de afirmações como a de Griesinger, primeiro biógrafo de Haydn (1809): “o traço principal de Haydn era uma travessura benevolente, aquilo que os bretões denominam humor.”22

Notas

1 “Die Erscheinung C. Phil. Em. Bachs, des ernsten Humoristen und Joseph Haydn, des comischen Romantikers gaben endlich der Berliner und Wiener Musik neues Leben und entschieden deren Genre für immer.”

2 HOUAISS, Antônio, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco – Dicionário Houaiss da língua Portuguesa. São Paulo, Objetiva, 2001.

3 Baumgarten (1714-1762) publicou sua obra inacabada Aesthetica em 1750-58.4 ARISTÓTELES. Retórica. Madrid: Gredos, 1991, 1466 b (9.3).5 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 2001, 1106b.6 “Alles muss gehörig singen. Unter dem Wörtlein gehörig, als worauf die meiste Stärcke dieses

allgemeinen Grund-Satzes ankommt, begreiffen wier hieselbst, wie leicht zu ermessen, alle angenehme Umstände und wahre Eigenschafften des Singens und Spielens, sowohl in ansehung der Gemüths-Bewegungen, als Schreyb-Arten, Worte, Melodie, Harmonie, usw.” In: MATHESSON, Johann. Der Vollkommene Capelmeister (Hamburg, 1739). Kassel: Bärenreiter, 1991 (fac-simile), I, 1.

7 Música é uma ciência e uma arte de produzir prudentemente sons convenientes e agradáveis, encaixá-los de maneira correta e proferí-los amavelmente, de modo que através de sua consonância sejam incentivados o louvor a Deus e todas as virtudes. A música também é ciência, pois os sons (matéria) devem ser prudentemente ordenados no papel (forma). Se a música não visar o louvor a Deus e o incentivo das virtudes, ela jamais alcançará seu objetivo. In: Id. Ibid. I, 2.

8 Para uma discussão mais detalhada do assunto, cf. PILSZINSKI, Judith. “The Evolvement of the Humoral Doctrine”. In: Medical Times 92 (1964), p. 1009-1014.

9 PÉCORA, Alcir. “Humores e Simetrias das Máximas”. In: Máquina de Gêneros. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 130.

10 “...the great Freedom, Privilege, and Liberty which the Common People of England enjoy. Any Man has a Humour, [and] is under no restraint, or fear of giving it Vent.” Apud TAVE, Stuart. The Amiable Humorist – A Study in the Comic Theory and Criticism of the 18th and Early 19th Centuries. Chicago: University of Chicago Press, 1960, p. 100.

11 “because every man follows his own [humor] and takes a pleasure, perhaps a pride, to shew it” Temple, William (1690). Apud. Id. Ibid., p. 95.

12 “a singular and unavoidable manner of doing, or saying any thing, Peculiar and Natural to one Man only; by which his Speech and Actions are distinguished from those of other Men.” Congreve, William. Apud. Id. Ibid., p. 99.

13 “Were this definition just, a majestic and commanding air, which is a singular property, is humour: as also a natural flow of correct and commanding eloquence, which is no less singular. Nothing just or proper is denominated hujour; nor any singularity of character, words, or actions, that is valued or respected. When we attend to a character of a humorist, we find that it arises from circumstances both risible and improper, and therefore that it

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lessens the man in our esteem, and makes him in some measure ridiculous.”.In: HOME, Henry (Lord Kames), Elements of Criticism (1761). Honolulu: University Press of the Pacific, 2002 (fac-simile da edição de 1840), p. 161.

14 “[a writer of humour], affecting to be grave and serious, paints his objects in such colours as to provoke mirth and laughter. A writer that is really an humorist in character, does this without design”. Id. ibid., p. 161.

15 [JUNKER, Karl Ludwig]. Portefeuille für Musikliebhaber. Leipzig: Ostermesse, 1792. Publicado originalmente como Zwanzig Componisten: eine Skizze (Bern,1776).

16 “Laune (...) soll theils diejenige Anlage des Kops anzeigen durch die ein Mensch alle Sachen, von einer etwas sonderbahren Seite ansiehet, von allen auf eine etwas ungewöhnliche Art gerühret wird; theils diejenige Gemüthsart, in der er das, was er denkt, oder wozu er Lust hat, und was andre weder sagen noch thun würden, weil sie sich von der Meinung der übrigen, oder von der Gewohnheit einschränken lassen, ohne Zurückhaltung sagt und thut: - weiter. Der launigte [sic] Charakter öfnet so zu sagen die Seele, er treibt jeden Keim von Gedanken gleich so weit heraus, dass er gesagt werden muss, und lasset uns also mehr von der geheimen Philosophie des Menschens (des Herzens setze ich hinzu) erfahren, als irgend ein anderer.” In: Id.ibid.. 56-57.

17 Riedel publicou sua Theorie der Schönen Künsten (Teoria das Belas-Artes) em Jena, 1767.18 “ein besondern und unvermeidlichen Art zu thun und zu reden, die einem Menschen allein

natürlich ist”. In: JUNKER. Op. cit., p. 57.19 “[Laune ist]eben das, was man gemeiniglich auch im deutschen mit dem französischen

Wort Humeur ausdrücket, nämlich eine Gemüthsfassung, in der eine unbestimmte angenehme oder verdriessliche Empfindung so herrschend ist, dass alle Vorstellungen und Aeusserungen der Seele davon angesteckt werden. Sie ist ein leidenschaftlichen Zustand, in dem die Leidenschaft nicht heftig ist, keinen bestimmten Gegenstand hat; sondern blos das Angenehme, oder Unangenehme, das sie hat, über die ganze Seele verbreitet. In einer lustigen Laune sieht man alles von der ergötzenden und belustigenden Seite; in einer verdriesslichen aber ist alles verdriesslich. (...)Von der Laune wird der Vernunft nicht so völlig, als von der heftigen Leidenschaft gehemmet; aber sie bekommt doch eine schiefe Lenkung, dass sie keinen Gegenstand in seiner wahren Gestalt, oder in seinem eigentlichen Verhältniss sieht. (...) Gar oft hat der Künstler keine Muse zum Beystand, als seine Laune. (...). Was wir in seinem wahren Gestalt und mit seinen natütlichen Farben sehen, das sieht der launige Mensch in veränderten Gestalt, und in verfälschter Farbe. Es befremdet uns, dass er die Sachen nicht so sieht, wie wir; um daher nähert sich de launige Zustand dem Lächerlichen, und dienet uns zu belustigen.” In: SULZER, Johann Georg. Allgemeine Theorie der Schönen Künste. Vol 1(Leipzig, 1771), p. 156-158.

20 “die Unschicklichkeit der Gesinnungen eines sehr eigenthünlichen, abstechenden, und eigensinnigen Charakters, wie fern sie, ohne Zurückhaltung durch Mienen, Worte, oder Werke an den Tag geleget werden.” In: JUNKER. Op. cit., pág. 58.

21 “Auf der comischen Schaubühne macht die Laune der Hauptpersonen oft das Vornehmste aus. Nichts ist belustigender zu sehen und zu hören, als die Farbe und der Ton, den die Laune allen Handlungen und Urtheilen der Menschen giebt; und die merkwürdigsten Gegensätze entstehen da, wo Personen von entgegengesetzten Laune sich fur einerley Gegenstände interessiren, da der eine alles von der verdriesslichen, der andre von der lustigen Seite ansieht. Der Dichter hat auch nirgendwo bessere Gelegenheit, als bey solchen Contrasten, uns die gerade Richtung der Vernunft sichtbar zu machen. (...) Wir müssen uns oft über uns selbst verwundern, dass wir zu verschiedenen Zeiten so verschiedene Urtheile über dieselben Sachen fällen. Sie sind eine Würkung der Laune.” In: SULZER. Op. cit., p. 157.

22 “Eine arglose Schalkheit, oder was die Britten Humor nennen, war ein Hauptzug in Haydn’s Charakter...”. (a primeira biografia de Haydn foi publicada em capítulos na Allgemeine Musikalische Zeitung [Jornal Musical Geral], em 1809).

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 21MÚSICA HODIE

Referências

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Mônica Lucas – Graduada em clarinete pela Universidade de São Paulo, especializou-se na interpre-tação de música antiga no Conservatório Real de Haia (Holanda), obtendo diplomas em flauta-doce e em clarinetes históricos. Foi finalista do concurso internacional “Van Wassenaer” (Holanda, 1995). Participa regularmente das orquestras Barrocas “Concerto Köln” e “Das Kleine Konzert”. Coordena o Núcleo de Música Antiga da ECA-USP. Concluiu o doutorado em música na UNICAMP em 2005.

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UM MODELO DE REALIZAÇÃO DE BAIXO CONTÍNUO: 2º MOVIMENTO DA SONATA EM SI MENOR BWV 1030

PARA FLAUTA E CRAVO OBBLIGATO DE J. S. BACHA model for figured bass realization: 2nd moviment of the B minor Sonata BWV 1030 for

flute and harpsichord obbligato by J. S. Bach

Stella Almeida (UNICAMP)[email protected]

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre a cifragem dos acordes do Largo e Dolce da sonata em Si menor para flauta e cravo obbligato, partindo da percepção de que eles são um baixo contínuo realizado por J. S. Bach. Para esta verificação foram utilizadas as instruções escritas sobre este assunto, pelo compositor, em duas ocasiões: a primeira em 1725, no Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach, e em 1738; nas Regras e Instruções para tocar o baixo contínuo ou acompanhamento a quatro partes. Priorizando a análise dos aspectos harmônicos tratados no primeiro dos trabalhos, encontramos clara preocupação didática, e sua aplicação neste estudo revela a importância que esta técnica composicional tinha para o mestre, bem como a relevância dos aspectos melódicos e fraseológicos. Acreditamos que a análise em questão forneça elementos para a interpretação desta peça e de outros trechos semelhantes na obra de J. S. Bach e seus contemporâneos.Palavras-chave: J. S.Bach; Baixo Contínuo; Cravo; Flauta; Música de câmara; Análise.

Abstract: This article presents a study about figuration of the chords from the Largo e Dolce of the B minor sonata for flute and harpsichord obbligato by J. S. Bach, from the perception that they are a thoroughbass composed by Bach himself. As a support we have worked on the instructions written by the composer on this subject twice, the first one in Anna Magdalena´s Notebook of 1725, and in The Precepts and principles for playing a thorough bass or accompanying in four parts, of 1738. Giving priority to the harmonic aspects found in the first work, we noticed a didatic view, and its application here shows us the great worth this had in the master´s work, in the same way that the relevance of melodic and phaseological aspects. We believe that this analysis brings elements for the interpretation of this and other passages in J. S. Bach´s music as well as for his contemporary composers.Keywords: J. S. Bach; Figured bass; Harpsichord; Flute; Chamber Music; Analysis.

1. Histórico

A sonata em Si menor para flauta e cravo obbligato BWV 1030 foi provavelmente composta no período em que Bach esteve na corte de Cöthen (1717-1723), quando, livre das obrigações com os serviços religio-sos, escreveu a maior parte de sua música de câmara. No entanto, os três manuscritos que conhecemos, à parte o autógrafo de Bach, são de um pe-ríodo posterior, e vêm das mãos de alunos do mestre,1 com exceção do manuscrito contendo apenas a parte do cravo obbligato, de caligrafia des-conhecida, que mostra a tonalidade de Sol menor como a original da obra,

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composta inicialmente para um instrumento melódico que poderia ser o oboé. Poucas são as diferenças encontradas, levando-nos a entender que essas cópias foram feitas sob sua supervisão. Estudos recentes2 apontam 1736 como a data da transposição para Si menor.

Das quatro sonatas autênticas3, duas são para flauta e contínuo (Mi menor, BWV 1034 e Mi maior, BWV 1013), e duas para flauta e cravo obbligato (Si menor e Lá maior, BWV 1032). A grande Sonata em Si menor, considerada por Spitta (1951) “a mais primorosa sonata para flauta exis-tente” e até hoje tratada pela musicologia e pelos intérpretes como uma das mais importantes escrita para o instrumento, não foi originalmente composta na forma em que a conhecemos. O fato de haver uma versão anterior da obra em Sol menor aponta para uma primeira concepção ain-da nos moldes da Trio-sonata, que era o modelo de composição da época. Hans Epstein (1978) considera que o primeiro e o terceiro movimentos são baseados numa forma de trio para duas flautas e baixo contínuo. Já o movi-mento central, segundo o mesmo autor, foi, evidentemente, escrito em sua forma original para um único instrumento melódico e baixo contínuo, que mais tarde foi realizado pelo próprio Bach.4

Spitta (1951, p. 102), em sua monumental biografia de Bach, nos dá indicações das intenções do compositor ao escrever seus acompa-nhamentos, e da maneira pela qual procedia ao teclado executando-os. Diz ele: ...quando o tema é primeiramente ouvido no instrumento líder sobre um baixo de sustentação, acordes completos devem ser tocados na intenção de dar especial nitidez e ênfase. Tal indicação sugere aqui uma reflexão sobre a questão do volume de som que se espera conseguir na execução de trechos como o selecionado, e de como fazê-lo. Apesar da indicação dolce do título, a textura da escrita requer um volume sonoro condizente com uma dinâmica forte, evidenciada pelos acordes cheios da realização, e que pode ser favorecida pelo uso do acoplamento em cravos de dois manuais. Existe a possibilidade de mudar para a dinâmi-ca piano na repetição, através da troca de manuais, quando se opta por esse tipo de interpretação. No entanto, salvo algumas obras para cravo que requerem especificamente instrumentos com dois manuais, a quase totalidade da obra de Bach para teclado e música de câmara pode ser tocada num instrumento de um único manual, e neste caso, como o com-positor indica através da escrita, os procedimentos para obter o volume

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sonoro desejado seriam o preenchimento dos acordes e o dobramento de vozes.

Devemos também considerar, neste caso, que Bach inicialmente adaptou as sonatas para instrumentos solistas de suas próprias trio-sona-tas, e depois, reconhecendo que o cravo requeria um tratamento próprio, gradualmente desenvolveu a forma pura de duo, como aparece nas sonatas para violino e cravo obbligato BWV 1014 a 1019. As sonatas para flauta e cravo obbligato pertencem, no entanto, à primeira categoria. Mais tarde, encontramos em C. Ph. E. Bach (1762) referência à imperfeição do instru-mento (tratando-se de cravos de um único manual), no que diz respeito ao volume do acompanhamento. Atribuindo a passagem à Mizler, 5 um amigo de Bach de Leipzig, ilustra Spitta: “...nosso Capellmeister acompanha um baixo cifrado à maneira de um concerto, e a melodia que ele faz em sua mão direita parece ter sido composta anteriormente.” Essas passagens aju-dam a esclarecer o tratamento dado por Bach ao baixo do Largo e dolce, com acordes cheios e linhas melódicas na mão direita.

2. Análise formal e fraseológica

Formalmente, o Largo e dolce tem uma estrutura muito simples, em duas partes de 8 compassos cada uma e que devem ser repetidas. O tema é feito de um acorde de Ré maior arpejado ascendentemente levando a uma appoggiatura, seguido de uma seqüência de ornamentos escritos em graus conjuntos no compasso 2. Os compassos 3 e 4 repetem essa estrutura em resposta, concluindo uma frase na forma clássica de quatro compassos. No compasso 5, um motivo de notas repetidas em ritmo sincopado é seguido de uma escala ascendente que culmina num trilo precedido de uma figura me-lódica (compasso 6), conferindo grande expressividade à passagem (ex. 1).

Exemplo nº 1: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 5-6)

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No compasso 7 as síncopes continuam, primeiro em nota parada como haviam aparecido anteriormente (compassos 2 e 4), e depois num salto ascendente de 6ª, e então vem a escala, que dessa vez é descendente, chegando ao compasso de cadência, bem definido pela hemiólia na primei-ra metade do compasso (ex. 2).

Exemplo nº 2: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 7-9)

A parte B (compassos 9 a 16), inicia-se com o mesmo acorde ar-pejado ascendentemente, agora na dominante, levando à appoggiatura. Embora seja mantida a frase de quatro compassos, aqui o desenho rítmico da parte da flauta é diferente, com mais notas de menor valor (fusas) e intervalos maiores (6ªs e 7ªs), que imprimem mais movimento e maior dramaticidade à parte B. Ao contrário da parte A, o tema com o acorde arpejado não é repetido. Em seu lugar, no compasso 11, o desenho meló-dico da flauta é feito de grupetos que levam à cadência do compasso 12 (ex. 3).

Exemplo nº 3: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 11-12)

No compasso 13, aparece a mesma figura em síncope do com-passo equivalente na parte A, seguida de escala descendente e do dese-nho sincopado em graus conjuntos (compasso 14), dessa vez ascendente (ex. 4).

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Exemplo nº 4: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 13-14)

No compasso 15, a síncope, que esteve presente em graus conjun-tos ou nota parada, acontece em intervalos descendentes enfatizando a har-monia, e um ornamento conduz para a hemiólia e cadência final (ex. 5).

Exemplo nº 5: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 15-17)

3. Análise harmônica

Procedendo a uma cifragem dos acordes, verificamos que esta se encontra inteiramente dentro do contexto explorado por Bach em suas ins-truções. No entanto, uma ou outra conduta no preenchimento da harmonia ou na condução das vozes difere do que o compositor registrou em seus textos. Devemos no entanto considerar que, como observam David e Men-del (1991), as primeiras regras, de 1725, portanto próximas à composição da sonata, são de natureza elementar, e bem poderiam servir de introdução ao assunto para um iniciante. Ao final delas, o compositor pondera: “as demais precauções que devem ser observadas serão melhor transmitidas oralmente do que por escrito” (Bach, 1978). Bem mais elaboradas são as instruções de 1738, de época mais próxima a dos manuscritos de Kirn-berger, Altnikol e Penzel. Outro aspecto a ser levado em consideração é a grande habilidade de improvisador que sabidamente Bach possuía o que

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provavelmente levava-o a nem sempre considerar tais realizações como definitivas, ainda que as tenha registrado como tal.

3.1 Cifragem – Parte A

No primeiro compasso encontramos, logo na terceira colcheia, um acorde de Ré maior com sétima levando à subdominante, à dominante com sétima, e retornando à tônica invertida; temos já dois acordes com cinco sons e uma realização melódica na mão direita. No compasso 2, o com-positor antecipa, na realização do contínuo, a síncope de notas repetidas característica de todo o movimento, utilizando-a ao mesmo tempo que a da flauta; ainda neste compasso observamos como a nota longa do instrumen-to melódico pode ser melodicamente preenchida pelo cravo, e não apenas com um acorde, e a presença de um acorde menor com sétima (última col-cheia do baixo). O compasso 3 segue com o acorde de Ré maior com sétima nas três posições e em seguida encontramos uma realização em desacordo com as instruções. Na primeira parte das regras de 1738, ele afirma que, com a cifra 7-4-2, nada mais é tocado; porém, nesta passagem ele utilizou um acorde de cinco sons, que inclui a 5ª (ex. 6).

Exemplo nº 6: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 3)

Esse procedimento se repetirá nos compassos 9 e 13. O Ré suste-nido colocado na linha melódica da mão direita (compasso 3), antecipa o acorde diminuto da primeira colcheia do compasso seguinte (cifra 6 bar-rado-5). Esse detalhe nos mostra claramente como Bach criava um diálogo entre os instrumentos através da realização do contínuo, fazendo com que a parte improvisada esteja em continuidade com o solista (ex. 7).

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Exemplo nº 7: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 3-4)

No compasso 4, o mesmo Ré sustenido, em síncopes, forma o acor-de de Si maior, que resolve em Mi menor. No compasso 5 o acorde de Lá maior com sétima aparece em várias posições, porém interrompido pelo Mi menor da terceira colcheia. O compasso seguinte traz uma diferença entre o autógrafo e o manuscrito de Penzel (parte da flauta): o Sol bequadro que este copista colocou na segunda metade (ex. 8). Esta diferença, embora bastante notável quanto à melodia, não acarreta mudança na realização harmônica, que segue com o acorde de Fá sustenido menor, seguido de Si menor (compasso 7), que surge também com a sétima, Mi maior com séti-ma e cadência para Lá maior, com o retardo 4-3 na realização do contínuo (compasso 8).

Exemplo nº 8: Manuscrito da parte da flauta atribuído a Penzel. Mus.ms.Bach, p. 975, Deutsche Staatsbibliothek Berlin (Castellani, 1989)

ALMEIDA, S. (p. 23-34)30 MÚSICA HODIE

3.2 Cifragem – Parte B

Na parte B, a tensão harmônica que caminha para Si menor cola-bora com o já comentado aumento da dramaticidade. Observa-se um acor-de diminuto logo na primeira colcheia do segundo compasso, e a presença novamente do retardo 4-3 na mão direita. O compasso 11 é o mais intenso harmonicamente, com o acorde diminuto de Lá sustenido apresentando as síncopes na voz mais aguda, antecipando as harmonias dos tempos se-guintes numa passagem de grande efeito expressivo, em contraponto com a voz solista (ex. 9).

Exemplo nº 9: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 11-12)

A tensão resolve em Si menor (compasso 12), e uma escala ascen-dente ornamentada (ex. 9) leva ao compasso seguinte, que nos apresenta um acorde notável, de Mi maior com sétima sobre a nota Dó (cifra 9-7), que faz parte do acorde de Lá maior (ex. 10).

Exemplo nº 10: Sonata BWV 1030 de J. S. Bach – 2º Movt (comp. 13)

No próximo compasso, encontramo-nos de volta ao Ré maior. Em sua segunda metade, Bach novamente faz com que a linha melódica da mão direita preencha estruturalmente a nota longa do solista, levando ao

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acorde de Lá maior com nona, que encaminha para o final da peça. Interes-sante notar que aqui, ao contrário da parte A, Bach não preenche na mão direita a nota longa do solista para retornar ao início da parte B.

4. Consideraçõesfinais

O contato com a obra de Bach nos leva a refletir sobre seus pro-cessos de composição e os caminhos para a interpretação de sua música. Forkel, logo no início do século XIX, observava que ele subordinava a or-dem, o sentido de unidade e de encadeamento lógico ao seu pensamento musical. Ainda que esses elementos se refiram a conceitos estéticos, e pos-sivelmente postos em relevo por este pioneiro biógrafo do compositor, essa observação se faz muito clara nesse Largo e dolce da Sonata em Si menor; a harmonia cheia e ornamentada é, no entanto, austera, sem nunca prejudi-car o livre fluir da melodia delicadamente cantabile. Ainda segundo as ob-servações do mesmo autor, o compositor tinha sempre à sua disposição os meios de expressão suficientes para traduzir os afetti, qualquer que fosse a linguagem utilizada. Seu primeiro cuidado nesse sentido, foi o de inserir sua originalidade e requinte em tudo que se referia à harmonia, e essa ma-neira de fazê-lo traduziu-se em engenhosidade e personalidade.

Alguns autores, como Geiringer (1985), consideram este movimen-to um Siciliano, e, de fato, no manuscrito em Sol menor contendo apenas a parte de cravo, de copista desconhecido, existe esse título. No entanto, se observarmos outros trechos nos quais Bach utilizou essa alcunha, como, por exemplo, na Sonata para flauta em Mi bemol maior BWV 1031, temos um balanço bem mais evidente quanto ao ritmo da dança Siciliana, que a textura do Largo e dolce não permite. Talvez, neste caso, possamos encon-trar características de uma Sarabanda, considerando dois compassos 3/8 dentro de um 6/8. além dessa possível subdivisão, poderíamos pensar em acentos no segundo tempo de vários desses hipotéticos compassos, espe-cialmente nos lugares onde ocorrem as hemiólias e onde a sétima do acorde aparece pela primeira vez no segundo tempo, valorizando a dissonância e o momento especialmente expressivo, como o trilo que se inicia na segun-da colcheia do compasso 6. Christensen (1994) vê indícios de que o estilo luthé,6 praticado na França durante os séculos XVII e XVIII, era conhecido

ALMEIDA, S. (p. 23-34)32 MÚSICA HODIE

também na Alemanha, graças à presença dos acordes quebrados do Largo e Dolce. Essa observação pode sustentar uma interpretação na qual grande parte dos acordes sejam arpejados.

Diante dessas observações, o cravista que for interpretar essa peça deve ter em mente que ela tem um afeto notadamente afável, terno, como que libertando da atmosfera melancólica do longo Andante que inicia a Sonata. Assim, remetendo-nos aos ensinamentos de C. Ph. E. Bach, que re-comenda que as regras da boa execução sejam aplicadas também ao acom-panhamento, concluímos que devemos buscar uma execução que valorize o toque legato e expressivo e que o baixo contínuo seja, aqui, tão cantabile quanto a parte do solista.

Facsimile do manuscrito autógrafo de Bach. Mus.ms Bach, p. 975. Deutsche Staatsbibliothek Berlin

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 33MÚSICA HODIE

Notas

1 J. Ch. Altnikol (1719-1759) foi aluno e genro de Bach, e seu manuscrito é datado entre 1748 e 1758. J. Ph. Kirnberger (1721-1783) foi discípulo do mestre no período de Leipzig entre 1739 e 1741, e também Ch. F. Penzel (1737-1801), embora mais adiante. Este é autor do manuscrito da parte de flauta que acompanha o autógrafo de Bach.

2 Marshall, R. L., J. S. Bach compositions for solo flute: a reconsideration of their authenticity and chronology, em Journal of the American Musicological Society XXXII, 1979, e Wolff, Christoph, Bach’s Leipzig Chamber Music, em Early Music XIII, 2, 1985.

3 Hans Peter Schmitz, no prefácio da edição Bärenreiter nº 4402 de 1963, assinala que o volume contém todas as sonatas para flauta e baixo cifrado ou cravo obligato das quais a autoria de J. S. Bach é absolutamente indiscutível (Mi maior, Mi menor, Si menor e Lá Maior).

4 Epstein, Hans. Prefácio do volume I de Sonaten fürFlöte und Klavier (Cembalo), Henle Verlag, München, 1978.

5 Lorenz Christoph Mizler von Kolof (1711-1778), foi um dos fundadores da musicologia alemã. Teve aulas de cravo e composição com Bach em Leipzig. Fundou a Sociëtat der musikalischen Wissenchaften, destinada a discutir questões relativas à música como arte e ciência.

6 “Como alaúde”. Mais especificamente, os alaudistas franceses dos séculos XVII e XVIII desenvolveram o style brisé, com acordes arpejados. (Dicionário Grove de Música. Ed. Concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1994.

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CHRISTENSEN, J B. Les Fondements de la Basse Continue au XVIIIe siècle. Bâle: Bärenreiter, 1994.

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GEIRINGER, K. Johann Sebastian Bach: O apogeu de uma era. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ALMEIDA, S. (p. 23-34)34 MÚSICA HODIE

Stella Almeida – Graduada em piano pelo IA-Unesp. Desde 1989 é pianista da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo. É camerista e acompanhadora. Como cravista atua com a Orquestra de Câmara Engenho Barroco e com a Bachiana Chamber Orchestra, além de formações com instrumentos an-tigos. Atualmente cursa o doutorado em cravo no Instituto de Artes da Unicamp e é professora de música de câmara no Conservatório Souza Lima.

HANTAÏ, M e HANTAÏ, P. J. S. Bach: Sonates pour Flûte. CD1. London: Virgin Clas-sics, 1999.

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Vol. 6 - Nº 1 - 2006 35MÚSICA HODIE

ANÁLISE DE ALGUNS ASPECTOSRETÓRICO-MUSICAIS DE “DOMINE DEUS, AGNUS DEI”

DO GLORIA RV 589 DE ANTONIO VIVALDIAnalysis of some musical-rhetoric aspects of “Domine Deus Agnus Dei” of Gloria RV

589 by Antonio Vivaldi

Ana Carolina Rodrigues (UFMG)[email protected]

Resumo: Nas obras de arte barrocas, a estrutura interna possui um fundamento retórico com o intuito de mover os afetos do público. O sistema retórico-musical consiste na aplicação dos princípios retóricos clássicos à música, os quais objetivam a criação de discursos belos e persuasivos. Este trabalho apresenta uma análise de alguns aspectos retórico-musicais do oitavo movimento – “Domine Deus, Agnus Dei” – do Gloria RV 589 de Antonio Vivaldi. Com a análise, foi possível verificar, na música, as diversas partes do discurso retórico e a presença de figuras retórico-musicais em cada uma delas. A análise exemplifica como os princípios retóricos estão fortemente presentes na música barroca.Palavras-chave: Análise; Gloria RV 589; Música barroca; Retórica; Vivaldi.

Abstract: The inner structure of the baroque art works has a rhetorical foundation with the purpose to move the affections of the audience. The musical-rhetoric system consists of the application of classical rhetoric principles to music, which aim to create beautiful and persuasive discourses. This article presents a analysis of some musical-rhetoric aspects of the eighth movement – “Domine Deus, Agnus Dei” – of Gloria RV 589 by Antonio Vivaldi. The analysis made it possible to verify, in the music, various rhetoric discourse parts and several musical-rhetoric figures in each of them. The analysis exemplifies how the rhetoric principles are strongly present in baroque music.Keywords: Analysis; Gloria RV 589; Baroque music; Rhetoric; Vivaldi.

Este artigo consiste na apresentação da análise de alguns aspectos retórico-musicais do oitavo movimento do Gloria RV 589 de Antonio Vi-valdi – “Domine Deus, Agnus Dei”. O artigo encontra-se dividido em duas partes. A primeira apresenta uma revisão a respeito da influência da retóri-ca na música barroca e expõe a composição do sistema retórico-musical. A segunda parte consiste na análise do movimento mencionado, a partir dos princípios retóricos expostos.

1. Música e Retórica no período Barroco

O período Barroco, compreendido entre o século XVII e meados do século XVIII, caracterizou-se por empregar todos os meios e recursos pos-

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síveis para transformar a arte em instrumento de persuasão. O alcance de tal espírito persuasivo, por sua vez, exigia um grande conhecimento da na-tureza e funcionamento dos afetos ou paixões da alma, o que era possível com o uso da retórica. Beristáin (1988, p. 421) define retórica como “a arte de se fazer discursos gramaticalmente corretos, elegantes e, sobretudo, per-suasivos”. Assim, nas obras de arte barrocas a estruturação interna possuía um fundamento retórico com o intuito de mover os afetos do público.

1.1 Barroco e Retórica

A retórica exercia uma influência determinante nas atividades de literatura, poesia, teatro, música e artes plásticas. Especificamente em re-lação à música, segundo Cano (2000, p. 27), entre 1599 e 1791 foi escrito o que se tornaria o grande corpo de textos de retórica musical do Barroco. Em tais tratados, de acordo com o autor, faz-se referência direta à íntima relação entre música e retórica, ao papel do músico como um orador cuja tarefa principal é persuadir o público, à origem e funcionamento dos afetos e à maneira como opera o sistema retórico-musical.

É importante ressaltar, como aponta Cano (ibid, p. 44), que a vincu-lação da música a estados emocionais afetivos específicos pode ser observa-da desde os tempos da cultura grega. Entretanto, é no período Barroco que tal idéia alcança o mais alto grau de refinamento e teorização. Também con-vém destacar a oposição existente entre o período Romântico, que abrange o século XIX, e o período Barroco no que se refere à idéia de afeto. Enquan-to, no primeiro, ela se relaciona a uma expressão sentimental subjetiva e espontânea, no segundo, se refere a conceitos racionalizados e objetivos.

1.2 O Sistema Retórico-Musical

Primeiramente, é necessário situar o período de formação do siste-ma retórico, no qual houve o estabelecimento de seus princípios teóricos fundamentais. Cano (ibid, p. 20) menciona os principais autores responsá-veis por essa sistematização e suas respectivas obras:

•Aristóteles (384-322 a.C.): Poetica, Retorica;

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•Cícero (106-43 a.C.): De Inventione, De Oratore, De Optimo Genere, Oratorum, Partitiones oratoriae, Orador, Topica;

•Quintiliano (35-aprox. 100 d.C.): Institutio Oratoria.

Segundo estes autores, “o sistema retórico é composto por cinco partes: Inventio, Dispositio, Elocutio, Memoria e Pronuntiatio”. Todas elas, com exceção da memoria, foram aplicadas à música. De acordo com Cano (ibid, p. 71), o sistema retórico-musical se preocupa com os afetos em cada uma de suas fases, as quais encontram-se descritas a seguir:

Inventio – Descobrimento ou invenção das idéias e argumentos que sustentarão o discurso. Anteriormente à inventio analisam-se a origem e o funcionamento de cada afeto, bem como as possibilidades de se-rem representados musicalmente. Dispositio – Distribuição das idéias e argumentos ao longo do discurso, de forma apropriada e eficaz. Na dispositio são estabelecidos o mo-mento e a maneira de intervenção de cada tipo de afeto, de acordo com sua intensidade. Elocutio – Verbalização das idéias já determinadas e distribuídas. Na decoratio, parte da elocutio, são estabelecidas as figuras retórico-musi-cais apropriadas para a representação de um afeto determinado. Pronuntiatio – Execução do discurso. Na pronuntiatio é aconselhado ao intérprete que, no momento da execução do discurso musical, dei-xe-se levar pela mesma paixão contida na música, pois somente assim ele será capaz de despertar o mesmo afeto no público.

Em relação à dispositio, de acordo com Cano (ibid, p. 82), os retóri-cos distinguem seis momentos principais no desenvolvimento do discurso:

Exordium – Trata-se da introdução ao discurso, onde se prepara o ouvin-te para o tema que será abordado. O exordium compreende dois momen-tos: captatio benevolentiae – que tem como objetivo seduzir e ganhar a confiança do ouvinte – e partitio – que anuncia propriamente o conteúdo, organização e plano conforme os quais o discurso será desenvolvido. Narratio – Consiste em um relato, uma narração dos fatos, e funciona como uma preparação para a argumentação. Uma boa narratio deve ser objetiva, clara, breve e, principalmente, verossímil. Propositio – É o anúncio da tese fundamental que sustenta o discurso.Confutatio – Trata-se da argumentação, onde se apresentam os argu-mentos que confirmam determinado ponto de vista e se refutam aque-les que o contradizem. A confutatio caracteriza-se por incluir um gran-de número de idéias contrárias entre si.Confirmatio – Consiste na volta à tese fundamental. Após a argumen-tação há uma reexposição do ponto de vista original, porém agora com uma maior carga afetiva. Peroratio – É o epílogo do discurso, onde se resume e enfatiza o que já foi exposto ou se anuncia algum tipo de conclusão.

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Cano (ibid, p. 85) salienta que a dispositio não é um esquema for-mal pré-estabelecido que divide o discurso em partes bem delimitadas. Todas as seções podem ser omitidas, mudar de posição, fundir-se, subdi-vidir-se ou modificar-se tanto quanto o discurso exija. O autor ressalta que a dispositio deve ser entendida como uma infra-estrutura que permite en-tender cada momento musical como parte funcional de um todo orgânico, e que se relaciona diretamente com o discurso musical em ação.

Em relação à decoratio, conjunto de figuras retóricas e parte da elo-cutio, Cano (2000, p. 101) afirma que se trata do tópico mais conhecido e es-tudado da retórica. De acordo com o autor, a figura retórica é uma operação que desvia uma expressão verbal, literária ou musical do uso gramatical comum. Portanto, trata-se de um processo de transgressão à regra, no qual, em determinado contexto, a forma “correta” de expressão dá lugar a outra de caráter inesperado e inusitado que modifica notavelmente o aspecto do discurso e o efeito que este produz no ouvinte. Ainda, segundo o autor, as figuras retóricas determinam um estilo. Por meio da escolha de deter-minadas figuras, o discurso se individualiza, caracteriza suas expressões, adquirindo uma personalidade própria pela qual o ouvinte o identifica. A figura confere beleza, refinamento e elegância ao discurso, fornecendo-lhe um caráter de agudeza, com o intuito de mover os afetos do ouvinte.

De acordo com Cano (ibid, p. 109), as figuras retórico-musicais in-cluem uma grande quantidade de eventos musicais como repetições, imi-tações, acordes, contrastes, interrupções, modificações de registro, condu-ção melódica, preparação e resolução de dissonâncias, modos, etc., que, em determinado contexto, são percebidos como desvios ou alterações da gramática musical. Deve-se ressaltar, como aponta CANO (ibid, p. 111), que a retórica não codifica o inusitado que se opõe a todos os sistemas de expectativas do código ou da psicologia dos ouvintes, mas, sim, o que, ainda sendo inusitado, é capaz de integrar-se ao sistema de expectativas dos mesmos. Logo, considerando que o objetivo da retórica é a persuasão, pode-se entender a figura como um desvio, mas um desvio que não com-promete o entendimento do discurso.

É interessante mencionar algumas considerações dos tratadistas barrocos, citadas por Cano (ibid, p. 112-114), a respeito das figuras retóri-co-musicais. Segundo Burmeister (1606) e Nucius (1613), “a figura é um ornamento”. Entretanto, este termo deve ser entendido em seu sentido mais

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amplo, já que, como coloca Bernhard (1660), tal ornamento pode consistir em “uma arte especial de utilizar as dissonâncias”. Do mesmo modo, como é possível observar no registro das figuras, estas também podem envolver uma “arte especial de utilizar” a harmonia, a melodia, ou outro elemen-to musical. Assim, segundo Cano (ibid, p. 114), isso constitui exatamente a idéia de desvio à norma, presente na definição de figura retórica. Para Nucius (1613), Kircher (1650) e Scheibe (1745), “as figuras tornam o dis-curso agradável, refinado, elegante” e, além disso, podem ser consideradas o meio musical dos afetos. De acordo com Scheibe (1745), “podem existir figuras sem afetos, mas não afetos sem figuras”. Ao mesmo tempo em que representa um afeto em si mesma, a figura retórico-musical se propõe a mover o mesmo tipo de afeto no ouvinte. Segundo Cano (ibid, p. 115), tal-vez seja possível afirmar que a qualidade afetiva é o princípio e o fim de toda figura retórico-musical.

Desde o início do período barroco, tanto a música vocal quanto a instrumental envolveram o uso de figuras retóricas. Entretanto, como res-salta Cano (ibid, p. 115), é no âmbito da primeira, onde se observa de ma-neira mais evidente a articulação de seus recursos e mecanismos. Na músi-ca vocal, originou-se uma relação singular e um desenvolvimento interativo entre a retórica do texto e a realização instrumental, já que o conteúdo ou a elaboração retórica dos textos determinavam as alterações retóricas do dis-curso musical. Assim, na música vocal, a figura retórico-musical foi utiliza-da de maneira determinante para apoiar o sentido e a intenção do texto.

2. Análise de “Domine Deus, Agnus Dei” do Gloria RV 589 de Antonio Vivaldi

O Gloria RV 589 foi escrito provavelmente em 1715, e é conside-rada uma das mais importantes e conhecidas obras de Vivaldi. Compõe-se de doze movimentos:

I. Gloria in excelsis Deo VII. Domine Fili unigeniteII. Et in terra pax VIII. Domine Deus, Agnus DeiIII. Laudamus te IX. Qui tollis peccata mundiIV. Gratias agimus tibi X. Qui sedesV. Propter magnam gloriam tuam XI. Quoniam tu solus sanctusVI. Domine Deus XII. Cum Sancto Spiritu

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A presente análise, que enfocará a dispositio e a decoratio, será feita sobre o oitavo movimento – “Domine Deus, Agnus Dei”. Trata-se de um movimento relacionado aos afetos de devoção, lamento e humil-dade, inserido em uma obra que, como um todo, possui um caráter de júbilo.

O texto do oitavo movimento e sua respectiva tradução encon-tram-se a seguir:

Domine Deus, Agnus Dei, Filius PatrisQui tollis peccataDomine Deus, Rex CoelestisQui tollis peccataDomine Fili Unigenite Qui tollis peccata Domine Deus, Agnus Dei, Filius Patris Qui tollis peccata mundi Miserere, Agnus Dei Miserere, Filius patris Miserere nobis Miserere Miserere nobis.

Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus PaiQue tirais o pecadoSenhor Deus, Rei dos CéusQue tirais o pecadoSenhor Filho UnigênitoQue tirais o pecadoSenhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus PaiQue tirais o pecado do mundoTende piedade, Cordeiro de DeusTende piedade, Filho de Deus PaiTende piedade de nósTende piedadeTende piedade de nós.

Em linhas gerais, dois pontos precisam ser ressaltados. Primeira-mente, trata-se de uma música na tonalidade de ré menor, a qual é asso-ciada ao “caráter devoto” (Charpentier, 1670), à “religiosidade” (Matthe-son, 1713) e à “tristeza” (Rameau, 1722), conforme o apresentado por Cano (ibid, p. 67). Além disso, as catábases1 são extremamente freqüentes no movimento. Em particular, dois desenhos são recorrentes – o de quatro colcheias e o de três colcheias e duas semicolcheias – o que poderia, então, ser considerado como uma anaphora2, no sentido de uma repetição geral. Portanto, tanto a tonalidade quanto a ocorrência de catábases refletem o caráter de devoção, lamento e humildade da peça. É interessante observar

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também a escolha do timbre de contralto, assim como do baixo na instru-mentação, para a melodia principal, o que contribui para a idéia de algo denso, pesado. Portanto, a opção pela voz de contralto representa o caráter sério e maduro do orador do discurso, o que está plenamente de acordo com o sentido do texto que o mesmo possui.

A dispositio encontra-se estruturada da seguinte forma:

Exemplo nº 1: Vivaldi, Gloria, “Domine Deus, Agnus Dei”. Exordium c.1-5

O exordium contém o captatio benevolentiae, mas não o partitio, já que não anuncia propriamente a organização e o plano conforme os quais o discurso será desenvolvido, mas coloca o ouvinte nos afetos desejados – la-mento, humildade, devoção. Algumas figuras retórico-musicais podem ser destacadas. Primeiramente, é importante notar, na catábase dos compassos 2 e 3, a presença do tetracorde descendente (da tônica à dominante) que é um elemento típico de lamento. Além disso, há suspiratio3 nos compas-sos 1, 3 e 4, o que contribui para uma idéia de dor, de “respiração difícil”; saltus duriusculus4 nos compassos 2 e 3, que estão associados ao caráter de dificuldade, aspereza; e auxesis5 entre os compassos 3 e 4, que reflete uma tensão na repetição da idéia musical. O exordium termina com uma longa catábase, o que reforça o caráter descendente dos afetos associados ao movimento.

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Exemplo nº 2: Vivaldi, Gloria, “Domine Deus, Agnus Dei”. Narratio c.5-19

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A narratio inicia-se com a introdução do canto e consiste na apre-sentação do seguinte texto: “Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai, que tirais o pecado; Senhor Deus, Rei dos Céus, que tirais o pecado; Senhor Filho Unigênito, que tirais o pecado”. Logo no início da narra-tio, há uma abruptio6 nas cordas, o que dá um grande destaque à voz da solista. Isto confere um caráter bastante pessoal à expressão de lamento. No compasso 6, nota-se a presença de synaeresis7, pois as sílabas mi e ne contêm, cada uma delas, duas notas. A ocorrência de abruptio nas cordas, concomitantemente à synaeresis no solo, pode ser observada também nos compassos 14 e 17. É importante notar que a abruptio ocorre exatamen-te no momento da synaeresis, o que dá um grande destaque à mesma e, portanto, enfatiza a palavra “Senhor”. Como a synaeresis ocorre em catá-base, tal ênfase é caracterizada por uma forte expressão de lamento. Nos compassos 7 e 8 do solo, quando o texto diz: “Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai”, há uma circulatio8. Como esta figura expressa a idéia de eterno, perfeito e completo, há uma total identidade entre a mesma e o significado do texto. É interessante verificar que, inserido na circulatio, na segunda metade do compasso 8, existe um trítono na harmonia. Isso pode repre-sentar que a referência ao eterno, perfeito, enfim, à divindade, é feita com uma certa tensão ou temor, o que é plausível, considerando-se o sentido do texto do movimento como um todo. A narratio ainda contém, como o exordium, suspiratio nos compassos 7, 15 e 18 (na instrumentação), e sal-tus duriusculus nos compassos 15 e 17 (no solo) e em 16 e entre 18 e 19 (na instrumentação).

Por fim, é importante destacar o contraste existente entre a linha melódica da solista e o noema9, representado pela massa sonora que ocor-re com a entrada do coro. O noema ocorre três vezes, nos compassos 13 e 14, 15 e 16, 18 e 19, e, em todas elas, há epizeuxis10, pois se observa uma repetição de notas nas quatro vozes e, portanto, uma repetição na harmo-nia. Deve-se notar que esta é dissonante e confere, por isso, uma tensão à repetição. É interessante observar que a linha melódica da solista apresen-ta expressões, ainda que lamentosas, de exaltação a Deus: “Senhor Deus”, “Cordeiro de Deus”, “Filho de Deus Pai”, “Rei dos Céus”, “Filho Unigêni-to”. Enquanto isso, a massa sonora do coro possui a expressão: “que tirais o pecado”. Assim, é possível contrapor o individual e fluido, que ressalta a divindade, ao coletivo e estacionário, que menciona o pecado. A presença

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de uma massa sonora densa e repetitiva separa, enfaticamente, a menção ao pecado da exaltação a Deus.

Exemplo nº 3: Vivaldi, Gloria, “Domine Deus, Agnus Dei”. Propositio c.19-24

A propositio consiste na defesa da idéia apresentada na narratio e possui o seguinte texto: “Senhor Deus, Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai, que tirais o pecado do mundo”. Da mesma forma que a narratio, a propositio apresenta, nos compassos 19 e 20, abruptio nas cordas ressaltando a synaeresis do solo e, nos compassos 23 e 24, noema com epizeuxis nas quatro vozes do compasso 23. Além disso, há auxesis no solo dos compassos 19, 20 e 21, onde a passagem musical com a expressão “Senhor Deus” é enfatizada, de maneira tensa, por este tipo de repetição. Portanto, a auxesis ressalta o caráter de tensão presente na evocação à di-vindade.

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Exemplo nº 4: Vivaldi, Gloria, “Domine Deus, Agnus Dei”. Confutatio c.25-36

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A confutatio é marcada pela inserção de um novo texto, a súpli-ca “tende piedade de nós”, e pela presença de idéias contrárias entre si. Novamente verifica-se a ocorrência de abruptio nas cordas ressaltando a synaeresis do solo, nos compassos 25 e 27, sendo que em 29 e 33 há so-mente synaeresis, a qual contribui para enfatizar o pedido de misericórdia. Há também suspiratio nos compassos 29 e 33 (na instrumentação) e saltus duriusculus nos compassos 27, 29 e 33 (no solo) e em 26, 29, 33, entre 31 e 32 e entre 34 e 35 (na instrumentação). Nota-se que a confutatio é a parte da dispositio que possui a maior quantidade de saltus duriusculi.

É interessante observar que, nos quatro primeiros compassos da confutatio, os pedidos de misericórdia e as evocações a Deus estão interca-lados (pedido – evocação – pedido – evocação), o que aumenta a expectativa em relação à súplica. O segundo pedido, no compasso 27, está entre duas grandes massas sonoras. Tais massas (final do compasso 26 e início do 28), além de possuírem uma grande intensidade sonora, como é observado na performance, exibem trítonos na harmonia. Estes atributos conferem uma grande tensão às evocações, tornando tenso também o pedido de miseri-córdia, o qual fica, de certa forma, comprimido entre as duas massas.

Nos compassos 31 e 32, a súplica adquire um caráter diferente do que foi apresentado até então. Em primeiro lugar, nota-se uma gradatio11, já que na performance observa-se um aumento gradual de intensidade. En-tretanto, é importante ressaltar que como se trata de uma opção interpreta-tiva, a gradatio, nesse caso, não seria classificada como figura retórico-mu-sical. Além disso, a harmonia desses compassos apresenta uma seqüência de acordes maiores. Estas características contribuem para uma idéia de “pontos de luz” que se tornam cada vez mais amplos. Tal surgimento e ampliação de claridade podem estar associados ao nascimento de uma es-perança, uma confiança no real atendimento do pedido de misericórdia. É interessante observar que esse momento de luz é temporário, pois logo em seguida, no compasso 33, há o retorno da tonalidade de ré menor, caracte-rizando uma volta à realidade. Finalmente, no compasso 35, o caráter de tensão na súplica é reforçado com a presença de epizeuxis, com a repetição de notas nas quatro vozes, ocasionando uma repetição na harmonia, a qual é tensa devido à presença de trítonos. Além disso, observa-se, na perfor-mance, uma grande intensidade sonora nesse compasso, o que contribui para ressaltar a tensão. É possível notar, então, a existência de um contras-

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te significativo entre os pedidos de misericórdia dos compassos 31 e 32 e do compasso 35. Enquanto nos primeiros a súplica pode ser associada à luz e esperança, no segundo ela exibe um caráter de escuridão e tensão.

Exemplo nº 5: Vivaldi, Gloria, “Domine Deus, Agnus Dei”. Peroratio c.36-40

A peroratio é idêntica ao exordium e, portanto, possui as mesmas figuras retórico-musicais: catábase contendo o tetracorde descendente nos compassos 37 e 38; suspiratio em 36, 38 e 39; saltus duriusculus em 37 e 38; auxesis entre 38 e 39; e longa catábase em 39 e 40.

Consideraçõesfinais

A análise realizada neste trabalho exemplifica como os princípios retóricos estão fortemente presentes na música barroca. Foi possível veri-ficar a estrutura da dispositio, bem como perceber a existência de figuras retórico-musicais, a decoratio, em cada uma de suas partes. Como aponta Cano (ibid, p. 43), a apropriação dos recursos utilizados pelos retóricos

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para mover os afetos do público era uma tarefa fundamental para os músi-cos do período Barroco.

É interessante notar que o caráter não pré-estabelecido da dispo-sitio, ressaltado por Cano (ibid, p. 85), pode ser observado no movimento analisado, uma vez que não foram encontrados partitio, no exordium, e nem mesmo confirmatio. Assim, é importante reconhecer a imprevisibilidade das seções da dispositio e percebê-la como uma estrutura que emerge da música, e não como um esquema formal a ser encaixado na mesma – como já observavam os retóricos clássicos. Embora não tenha sido discutido no presente trabalho, é válido ressaltar, como aponta Cano (ibid, p. 69), que as figuras retóricas são fundamentalmente estruturas abertas e desprovidas de um significado único e definitivo, não sendo recomendável, portanto, associar um significado afetivo absoluto a cada figura retórica.

Notas

1 Catabasis: Passagem musical descendente, que expressa imagens ou afetos negativos, de lamento, submissão ou humildade (Bartel, 1997. p. 214).

2 Anaphora: (1) Repetição da linha do baixo; (2) Repetição da frase ou motivo de abertura em várias passagens subseqüentes; (3) Repetição geral (Bartel, 1997. p. 184).

3 Suspiratio: Expressão musical de um suspiro através de uma pausa (Bartel, 1997. p. 392).4 Saltus duriusculus: Salto dissonante (Bartel, 1997. p. 381).5 Auxesis: Repetição de uma passagem musical com a subida de um tom (Bartel, 1997. p. 209).6 Abruptio: Interrupção repentina e inesperada na composição musical (Bartel, 1997. p. 167).7 Synaeresis: (1) Suspensão ou síncope; (2) Colocação de duas sílabas por nota, ou duas notas

por sílaba (Bartel, 1997. p. 394).8 Circulatio: Série de, geralmente, oito notas, em uma formação circular ou senoidal (Bartel,

1997. p. 216).9 Noema: Passagem homofônica inserida em uma textura de contraposição (Bartel, 1997. p.

339).10 Epizeuxis: Repetição imediata e enfática de uma palavra, nota, motivo ou frase (Bartel, 1997.

p. 263).11 Gradatio: (1) Seqüência de notas em uma voz repetida em altura superior ou inferior; (2)

Movimento paralelo de duas vozes de maneira ascendente ou descendente; (3) Aumento gradual na sonoridade e altura, criando um aumento na intensidade (Bartel, 1997. p. 220).

Referências

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Ana Carolina Rodrigues – Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda pela Escola de Música da mesma universidade. Sua linha de pesquisa aborda a relação entre Música e Neurociência.

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A PRÁTICA CORAL NA ATUALIDADE:SONORIDADE, INTERPRETAÇÃO E TÉCNICA VOCAL

Today’s Choral Practice: sonority, interpretation and vocal technique

Angelo José Fernandes (Unicamp)[email protected]

Adriana Giarola Kayama (Unicamp)[email protected]

Eduardo Augusto Östergren (Unicamp)[email protected]

Resumo: Este trabalho é uma reflexão sobre a figura do regente coral em suas funções de criador sonoro, intérprete e preparador vocal. O artigo discute a importância da sonoridade na performance coral, bem como sua adequação aos diversos estilos de música coral através de um trabalho de exploração e variação de aspectos estilísticos. Aponta-se o preparo vocal como principal ferramenta para a construção da sonoridade coral bem como para o desenvolvimento da variação sonora, e propõem-se caminhos para o trabalho com os vários aspectos técnicos da sonoridade de um coro: produção vocal, dicção, registração vocal, timbre, vibrato, homogeneidade, equilíbrio, afinação e precisão rítmica.Palavras-chave: Música Coral; Regência Coral; Sonoridade Coral; Interpretação Musical; Técnica Vocal.

Abstract: This work is a reflection on the figure of the choral conductor in his tasks as sound builder, interpreter, and vocal coach. The article discusses the relevance of sonority in the choral performance and its adaptation to the various styles of choral music through the exploration and variation of stylistic aspects. Attention is called to the aspect of vocal preparation as the principal tool for the construction of choral tone as well as for the development of sound nuances pointing ways for the working of the various technical aspects of a choir sound: vocal production, diction, vocal registration, timbre, vibrato, blend, balance, intonation, rhythmic precision.Keywords: Choral Music; Choral Conducting; Choral sonority; Music Interpretation; Vocal Technique.

1. O regente e a performance da música coral

Não se pode ignorar o fato de que “as notas escritas por um com-positor não existem em um vácuo; elas foram concebidas com uma certa sonoridade em mente, e essa sonoridade seria, naturalmente, aquela com a qual ele se familiarizava” (NEWTON, 1984, p. 3). “Um compositor do passado concebia suas obras em termos de sonoridades musicais da sua época, como faz um compositor do século XX” (DART, 2000, p. 27).

Assim como as formas e os estilos musicais, as sonoridades1 também mudaram ao longo da história. A prática da música coral so-

FERNANDES, A. J.; KAYAMA, A. G.; ÖSTERGREN, E. A. (p. 51-74)52 MÚSICA HODIE

freu influências temporais, geográficas e próprias da individualidade dos vários compositores. Essas influências se refletem em uma série de aspectos que merecem ser investigados no processo interpretativo de uma obra: a) em que circunstâncias e para que tipo de público a obra foi escrita; b) as possíveis condições acústicas das salas de concerto, bem como o tipo e o tamanho dos grupos vocais e instrumentais para os quais a obra foi composta; c) o sistema e o padrão local de afinação; d) a “cor sonora” das vozes e dos instrumentos; e) as variações de métrica, fraseado, articulação e dinâmica; f) o significado do texto e as formas regionais de pronúncia deste texto. Direta ou indiretamente, todos esses aspectos exercem alguma influência sobre o resultado sonoro de uma obra na performance. Assim, a fim de desenvolver um trabalho coerente com questões estilísticas através da sonoridade, o regente precisa dar atenção à forma, no sentido de verificar como esta se relaciona com cada um dos citados elementos.

Contudo, “o músico que se dedica à questão da sonoridade e lhe concede um papel importante no contexto da interpretação vê surgir au-tomaticamente problemas referentes aos critérios históricos” (HARNON-COURT, 1998, p. 86). Provar com absoluta certeza qualquer coisa sobre sonoridades e práticas interpretativas, antes da invenção das gravações, é algo evidentemente difícil. Há, entretanto, grande quantidade de indica-ções e evidências que podem orientar o regente a respeito da prática vocal em séculos passados. A respeito de tais evidências Newton diz que:

“Elas podem ser encontradas nos vários livros de instrução escritos pelos grandes professores de canto. Elas podem também ser encon-tradas nas descrições do canto de perspicazes comentadores como Berlioz e Chorley no século XIX e Burney no século XVIII. Ou-tras evidências importantes podem ser encontradas no estudo dos instrumentos usados na prática musical, particularmente aqueles que acompanhavam a voz. Eles prosperariam ou então cairiam em desuso, ou eles seriam modificados para satisfazer as mudanças de gosto. Especialmente nos tempos mais antigos, um dos objetivos declarados da criação de instrumentos, seja de sopro ou de cordas, era imitar a voz humana.” (NEWTON, 1984, p. 9)

No que tange a questionamentos envolvendo a performance coral em épocas e culturas diversas, a busca de respostas calcadas em evidências é uma atitude que pode dar grande dimensão ao processo interpretativo.

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 53MÚSICA HODIE

Por isso, antes de reger uma obra, os regentes deveriam conduzir um pro-cesso investigativo a respeito da obra, em que circunstâncias foi composta, buscando, se possível, fontes de pesquisa atualizadas.

Embora um regente coral não deva exigir de seu grupo uma so-noridade pré-concebida – “ideal” – que seja incompatível com as habili-dades técnicas de tal grupo, é preciso abordar cada composição com um conhecimento de seu estilo musical e da técnica vocal mais eficiente para sua execução. Por questões de transparência e clareza de articulação, um moteto renascentista ou um madrigal, assim como as obras do período Bar-roco, requerem uma produção vocal que resulte em um som mais leve, cla-ro, brilhante, com um vibrato naturalmente reduzido. Já o repertório coral composto desde Schubert até o presente requer uma produção vocal capaz de produzir um amplo espectro de cores e sons – do mais leve e brilhante ao mais vigoroso, pesado, ou até mesmo escuro – muitas vezes utilizados na performance de uma mesma peça.

A execução de uma obra coral depende, entre outros aspectos, da realização correta da afinação, da articulação inteligível do texto, além de outras qualidades técnico-vocais do coro moldadas pelo regente que, assu-mindo sua função de intérprete, deve conceber sua própria visão da obra, expressando-a através da sonoridade resultante deste processo. Assim, re-gentes atentos ao refinamento histórico-estilístico de uma obra devem tam-bém se preocupar com a importância de se ter um conhecimento técnico-vocal que viabilize os resultados buscados. Conhecendo a pedagogia vocal, regentes podem trabalhar efetivamente para desenvolver nos cantores uma maior habilidade vocal, facilitando a tarefa de interpretação de repertórios diversificados. Com uma técnica vocal eficaz e saudável, o cantor pode aprender a variar a sonoridade da voz em todos os registros, atingindo grande quantidade de “cores sonoras”, desenvolvendo um amplo espectro de dinâmicas e, ainda, adquirindo a habilidade de executar passagens me-lismáticas com grande agilidade e leveza.

Newton (1984, p. 5) diz que “existe um amplo espectro de sons que podem ser produzidos pelas pregas vocais para realizar os mais dife-rentes tipos de música, considerando-se o mundo inteiro e sua variedade cultural.” Como a prática coral atual tende a abranger grande diversidade de estilos de música erudita e popular, é preciso se formar coros conscien-tes e capazes de produzir sonoridades variadas.

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Certamente, as opiniões irão variar de regente pra regente, no que diz respeito à importância de se trabalhar em favor da adequação da sono-ridade às exigências estilísticas. Contudo, embora seja árduo, o trabalho de variação sonora é possível, sendo de grande importância para a performan-ce de repertórios diversos. É evidente que reproduzir exatamente as con-dições sonoras originais de uma composição coral é uma tarefa um tanto pretensiosa. Entretanto, “qualquer coro pode variar seu som até certo grau, freqüentemente em uma escala surpreendente. [...] O fator determinante é a técnica vocal de cada cantor individualmente, [por isso], os regentes de-vem trabalhar para uma flexibilidade de produção” (HEFFERNAN, 1982, p. 82). O autor ainda afirma que:

“Até que os membros do coro estejam seguros em sua demonstração de postura, respiração e apoio, e até que eles possam cantar sem ten-são com a ressonância adequada, pouco pode ser feito para produzir variações na sonoridade. Por isso é que muitos coros destreinados ou inexperientes são tediosos de ouvir; deficientes de técnica vocal, eles podem produzir pouquíssima variação em seu som. O regente deve ter em mente, constantemente, a necessidade de uma boa produção vocal.” (loc. cit.)

Ao regente cabe, portanto, a responsabilidade de conduzir o pro-cesso interpretativo, no qual ele deve exercer seu papel de preparador vocal. “O regente influencia na técnica vocal, formação vocálica, tipo de ataque e terminação, aspectos do legato e da articulação, e outros fatores que possibilitam que o som seja moldado de acordo com suas intenções.” (SMITH; SATALOFF, 2000, p. 138).

Uma estimativa aproximada revelou que, no ano de 1992, havia 15.000.000 de cantores corais em todo o mundo, e pelo menos 95% desses cantores (14.250.000, na época) não estudavam canto individualmente, de onde se conclui que seu preparo vocal estava nas mãos de seus regentes (Brandvik, 1993). O regente é, em geral, o primeiro e único professor de canto dos cantores de seu grupo. Por isso é preciso assumir a responsabili-dade de instruí-los tecnicamente. Heffernan observa que:

“Regentes de coros que aspiram a um alto nível de excelência artísti-ca devem, portanto, se verem não apenas como líderes de organiza-ções mas também como professores de técnica vocal. Embora [alguns] membros do coro possam estudar canto privadamente, eles ficam sob a instrução do regente durante um período muito maior por semana.

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A influência do regente, vocalmente falando, pode ser extensiva, e ele ou ela devem assumir a responsabilidade desta posição de liderança.” (HEFFERNAN, 1982, p. 20)

Como já refletimos anteriormente, é fato que, para o exercício da sua função de intérprete, o regente precisa moldar o coro para que respon-da às exigências estilísticas das obras. Entretanto, constata-se que, mesmo tendo consciência da sonoridade pretendida, nem sempre o regente está apto para alcançar o resultado esperado. Preparar vocalmente um grupo de cantores, especialmente aquele formado por amadores, é uma tarefa árdua que exige do regente horas a fio de estudo e prática com o universo da téc-nica vocal, seja individualmente ou em grupo. Seu relacionamento com a técnica vocal deve ser tão íntimo quanto sua familiaridade com a técnica de regência e com o seu conhecimento geral de música. Smith e Sataloff afirmam que:

“O regente deve reunir um arsenal de ferramentas pedagógicas, inspiração poética, conhecimento histórico e habilidades pessoais para acompanhar os passos da natureza de constantes mudanças do coro. É essencial que os regentes corais aprendam a usar bem suas próprias vozes, e por meio disso formem uma estrutura pesso-al de referência para assuntos vocais. Postura, qualidade e som da voz, uso da linguagem e gestual de regência deveriam, cada qual, exemplificar e encorajar bons hábitos vocais.” (SMITH; SATALOFF, 2000, p. 9)

Miller ainda ressalta que:

“Um som coral completo só pode ser alcançado quando os cantores dentro do grupo usarem suas vozes eficientemente. É dever do regente coral ensinar os coristas como se tornar cantores eficientes, de forma que as exigências musicais a eles impostas os beneficiem e não os pre-judiquem, e assim, a qualidade do som do conjunto seja da mais alta condição possível.Aceitando-se a premissa de que música coral é música vocal, as qua-lificações exigidas de um regente coral devem ser direcionadas. É su-ficiente ser um bom musicista, ter qualidades de liderança, possuir habilidades como um organista ou pianista, ou ser musicologicamente bem informado? Não é necessário ser um cantor profissional para ser um bom professor de canto, mas é necessário que se alcance um bom nível de proficiência técnica com o seu próprio instrumento. Da mes-ma forma, não é necessário ao regente coral ser um cantor, mas ele ou ela deveria estar apto a conduzir os coristas a uma proficiência vocal.” (MILLER, 1996, p. 58)

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No entanto, regentes ainda estão divididos em seus posicionamen-tos quanto ao trabalho técnico-vocal. Alguns possuem pouca ou nenhuma experiência em canto e, por isso, se sentem desconfortáveis com a respon-sabilidade de lidar com tais questões. Para outros, a técnica vocal se limita a simples exercícios de aquecimento, que produzem pouco ou nenhum benefício ao desenvolvimento vocal a longo prazo. Há os que se prendem ao emprego de determinados exercícios ou métodos aprendidos em alguma escola de canto, sem discernir se esses contribuirão efetivamente para o desenvolvimento das vozes. Existem aqueles que, por não planejarem ade-quadamente seus ensaios – e por inabilidade na aplicação da técnica vocal na preparação do repertório – utilizam-se de um número exagerado de vo-calises recolhidos em diversos cursos, aulas e masterclasses, acreditando que, destarte, conseguirão bons resultados. Observa-se, ainda, regentes que buscam uma sonoridade única em seu trabalho. Por acreditarem que os vários estilos devem tão somente se adequar a seus grupos, executam qual-quer peça com um mesmo perfil sonoro. Tal sonoridade é normalmente uma marca do coro e de seu regente e, para eles, não deve mudar nunca.

As divergências de opiniões e atitudes em relação ao trabalho sis-temático de técnica vocal aplicado ao coro não param por aí. Regentes tendem a concordar que um som vocal eficaz e bonito precisa ser saudá-vel, sem vazamento de ar, confortavelmente sustentado, cantado na afina-ção correta, bem articulado e capaz de variar amplamente em intensidade. Existem, entretanto, diferentes posicionamentos a respeito do uso do vi-brato, da importância de se trabalhar os registros vocais e a produção do som das vogais, da diferença entre a voz do cantor lírico solista e do cantor coral, entre outros.

Muitas destas controvérsias ocorrem em função da diversidade de escolas de canto, todas cobrindo um amplo espectro de metodologias para se desenvolver uma técnica vocal eficaz. É importante que o regente, em se dedicando ao estudo do canto, determine suas prioridades e trabalhe para alcançá-las, procurando conhecer sua própria voz e adquirindo o hábito de utilizar-se de uma terminologia adequada no treinamento de seus canto-res. Edwin observa que:

“Nós não deveríamos aceitar o estado atual no tocante ao vocabulário e à técnica. Todos nós [regentes e professores de canto] precisamos exa-minar [melhor] a terminologia a respeito de apoio, foco, colocação, voz

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de cabeça e de peito, considerando informações pedagógicas e pesqui-sas científicas fornecidas por autoridades como Richard Miller, Johan Sundberg, Thomas Cleveland e Robert Thayer Sataloff. A administra-ção pessoal da respiração, a fonação e as técnicas de ressonância devem ser comparadas com essas [encontradas] na literatura de uso comum. Quando as comparações revelarem procedimentos contraditórios, deve-se estar disposto a experimentar, no estúdio ou na sala de aula, as técnicas opostas para determinar se uma é mais eficaz que a outra e, se necessário for, abandonar aquelas que são familiares e confortáveis por aquelas que são mensuravelmente melhores.” (EDWIN, 2001, p. 54)

Finalizando, concluímos que a tarefa do regente coral de interpre-tar uma obra e “traduzi-la” para seu público depende, entre outros aspectos, de seu conhecimento vocal e de sua capacidade de atuar como um “profes-sor de canto” dos cantores de seu grupo coral. O som de um coro precisa ser construído de forma saudável, produtiva e responsável, e em geral, os cantores corais não possuem, individualmente, o conhecimento necessário para tal. É preciso que se entenda que “ser um regente coral é como ser, ao mesmo tempo, organista e construtor de órgãos – o regente deve construir o instrumento coral como ele o toca” (BRANDVIK 1993, p. 148).

2. Aspectos formadores da sonoridade de um coro

Dos vários elementos presentes na performance coral, o som do coro é um dos que mais chama a atenção dos apreciadores de tal arte. He-ffernan observa que:

“A primeira coisa com a qual um público reage num concerto coral, com exceção dos aspectos visuais, é o som produzido pelo coro. A atenção dos ouvintes é imediatamente atraída à qualidade do som que está sendo externado – sua riqueza, maturidade, plenitude e clareza – também, em muitos casos à falta de alguma dessas características.” (HEFFERNAN, 1982, p. 80)

A construção de um som coral tecnicamente eficiente e estetica-mente equilibrado depende de escolhas feitas pelo próprio regente que, assim, poderá demonstrar sua habilidade como preparador vocal:

“O som do seu coro será uma exposição da sua habilidade em trans-mitir seu conhecimento, em aumentar e refinar suas técnicas pedagó-

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gicas, em estimular e manter nos seus cantores a dedicação às normas vocais e musicais, em dar forma às nuances silábicas e melódicas, em expandir o conhecimento e proficiência técnica de seu coro e em con-duzir o grupo à performance artística.” (PFAUSTCH, 1988, p. 91)

Uma vez que a sonoridade coral depende das escolhas do regente, que aspectos são relevantes e devem ser trabalhados pelo regente para se atingir a sonoridade pretendida? O que faz a “cor sonora” de um coro ser diferente daquela de outro coro?

Existem vários fatores que, embora não participando diretamente da formação sonora do coro, influenciam no seu resultado: o tipo de grupo coral (se profissional ou amador); a faixa etária, saúde geral e maturidade musical dos cantores; a realidade sócio-cultural do coro; o ambiente acús-tico em que se realizam ensaios e performances; a freqüência semanal de ensaios; e o tempo dedicado a cada ensaio. Uma vez que esses fatores são variantes, não temos a intenção de abordá-los separadamente.

Em sua abordagem sobre prioridades no treinamento de coros de todos os níveis, Carrington aconselha ao regente, em sua função de prepa-rador vocal, que:

“Independente do nível inicial do coro, decida sobre um som coral ideal e trabalhe para desenvolvê-lo. Por exemplo, um som limpo, sau-dável, alto, com uma variedade de cores, do brilhante ao escuro, do frio ao caloroso, do forte ao suave. Um som flexível, mas com intensi-dade constante, e um vibrato controlado, que pode variar sem esforço e rapidamente desde nenhum até um vibrato moderado – assim como o vibrato de um excelente instrumentista de corda.” (CARRINGTON, 2003. p. 29)

O autor ainda aponta como ingredientes vitais para a prática coral, a construção de “um som básico para o qual o coro possa sempre retor-nar”, a exploração de um espectro sonoro abrangente – baseado em tim-bres orquestrais – e uma ampla variação de dinâmica. A partir deste “som padrão”, o coro poderá variar sua sonoridade e adquirir uma flexibilidade vocal que possibilite a execução adequada de repertórios diversos.

HEFFERNAN (1982, p. 82) afirma que “o som coral é influenciado por algumas áreas claramente definidas: produção vocal, altura, dinâmi-ca e vogais.” Para Swan, não existem dois coros que produzam um som idêntico, dependendo a sonoridade de um coro não somente das escolhas

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técnicas e musicais feitas pelo regente, mas também de sua capacidade de aplicá-las no trabalho à frente do coro. O autor afirma que:

“O tipo ou qualidade de som produzido por um grupo coral é influen-ciado primeiramente pelos pensamentos e ações do seu regente no que diz respeito: 1. Aos processos básicos do canto: fonação, suporte sonoro, ressonância e extensão vocal; 2. Ao grau de ênfase dado a uma ou mais das variadas técnicas corais fundamentais, precisão rítmica, fraseado, equilíbrio, dinâmica e articulação; 3. Às exigências interpre-tativas e estilísticas da partitura musical; 4. Aos recursos pessoais e técnicos do regente que ele usa para se comunicar com o coro nos ensaios e apresentações.” (SWAN, 1988, p. 8)

Acreditamos, pois, que a formação do som padrão de um coro de-pende de uma série de elementos de ordem técnica e pessoal. Na perfor-mance, este som ainda sofre a influência de fatores e escolhas de ordem estilística. Entre os aspectos técnicos, há os que estão relacionados à in-dividualidade das vozes que formam o coro, devendo ser trabalhados a partir de técnicas específicas para a otimização da produção e registração vocais, da dicção, do timbre e do vibrato. Outros se relacionam diretamen-te com o canto coletivo e dependem de técnicas voltadas para a busca de homogeneidade, equilíbrio, melhoramento da entonação (individualmente e em grupo) e precisão rítmica. Uma vez construída a sonoridade padrão, o regente poderá trabalhar sua variação através dos chamados aspectos estilísticos: “cor sonora”, fraseado, articulação (musical), emprego de dinâ-mica e agógica.

2.1 Aspectos técnicos individuais:

Para que um coro aprimore suas habilidades coletivas é essencial que cada cantor desenvolva individualmente uma boa técnica vocal. O desenvolvimento da qualidade sonora de um grupo coral começa por um processo de conscientização do cantor a respeito das ferramentas básicas para uma produção vocal adequada. Partindo do princípio de que o regente esteja apto para preparar vocalmente seus cantores – considerando o fato de que não teria tempo para lecionar canto individualmente a todos – surge a necessidade de se desenvolver um programa de trabalho sistemático nos ensaios, para que os cantores aprendam a lidar com as questões técnicas e

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aplicá-las ao repertório. “Contrastes de dinâmica, homogeneidade e equilí-brio apropriados, afinação e entonação precisas, e fraseado eficaz são todos dependentes de uma produção vocal correta” (GARRETSON, 1988, p. 67).

No âmbito do estudo vocal, a compreensão – ainda que rudimen-tar – dos aspectos fisiológicos da produção sonora é de grande valia no domínio da emissão e no controle da voz. Evidentemente a fisiologia vocal é bastante complexa, mas pode-se dizer que existem, essencialmente, três áreas da produção vocal, claramente distinguíveis, que devem ser estuda-das e constantemente trabalhadas: 1) a administração da respiração; 2) a função laríngea (coordenação eficiente da respiração com a produção do som) aliada à busca do relaxamento do pescoço, mandíbula e músculos faciais; 3) e o desenvolvimento e exploração da ressonância vocal. Neste processo o regente deve, ainda, considerar fatores como a postura apro-priada para o canto, o aquecimento corporal e vocal, e a função e o valor dos vocalises, buscando meios de trabalhar a registração, a extensão, os timbres e a flexibilidade vocal.

Não temos a intenção de abordar extensivamente os vários aspec-tos envolvidos na produção vocal humana. Para maiores esclarecimentos a respeito deste assunto sugerimos a leitura dos trabalhos de Costa (1998) e Miller (1986).

2.1.1 Registração vocal e música coral

Saber lidar com a questão da registração vocal é fator de grande re-levância para regente e cantores. Para Costa e Silva (1998), o termo registro tem o cunho didático e procura descrever os intervalos de freqüência que têm, entre si, uma determinada conjugação de atividades musculares e res-piratórias. Os autores observam que “os registros são chamados de peito, misto e de cabeça, numa tentativa de estabelecer uma relação entre os sons produzidos e o local onde ocorre a maior sensibilidade sonora durante sua emissão” (Costa; Silva, 1998, p. 84). De fato, segundo a terminologia utilizada pelas escolas de canto, a voz humana possui os três citados regis-tros: a voz de peito (registro grave), a voz mista (registro médio) e a voz de cabeça (registro agudo). Cada registro vocal tem sua própria “cor sonora”, seu peso e suas características. Para que o cantor possa executar expressi-

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vamente repertórios diversos, as qualidades de cada registro precisam ser trabalhadas. Além disso, o desenvolvimento da extensão vocal, do grave ao agudo, só é possível através do domínio dos registros.

A transição da voz de peito para a voz mista é chamada de primo passagio2 e a transição da voz mista para a voz de cabeça é chamada de secondo passag3. Costa e Silva explicam que as chamadas passagens que existem entre um registro e outro são zonas de adaptação à nova configu-ração glótica, e, portanto, sujeitas a dificuldades de acoplamento entre a laringe e o trato vocal.

A difícil tarefa do regente é a de orientar seus cantores a respeito de cada um, para que desenvolvam a habilidade de “transitar” de um regis-tro para outro, sem perda da qualidade sonora, evitando eventuais descon-fortos vocais e quebras na igualdade do som. “O bom cantor deve aprender a lidar com a passagem de modo a que ela se torne imperceptível, como se, ao passar de um registro para o outro, tivéssemos a impressão que fosse um registro único” (loc. cit).

Em muitos grupos corais, especialmente no naipe de contraltos, existe uma grande quantidade de cantoras que desconhecem seu registro de cabeça, tendendo a cantar tudo no registro de peito, o que pode causar sérios danos à saúde vocal, prejudicar a afinação e gerar uma sonoridade no mínimo desagradável. Em muitos casos, tais coralistas cantam no naipe de contraltos apenas devido a sua habilidade em utilizar a voz de peito, quan-do, na verdade, são sopranos que não aprenderam a lidar com a região agu-da. Este caso, muito comum nos coros amadores, pode ser trabalhado pelo regente se este está consciente do problema e conhece ferramentas técnicas que possam auxiliar suas cantoras na utilização do registro de cabeça.

Outra questão importante referente à registração vocal é o uso do falsete pelos cantores do naipe de tenores. Nem sempre os coros possuem tenores agudos. Muitas vezes os naipes de tenores são formados por barí-tonos agudos que não possuem a extensão exigida pelas obras do repertó-rio, nem tampouco a sonoridade clara e brilhante pertinente a este naipe. Com a orientação do regente, podem desenvolver a habilidade de utilizar o falsete de forma eficiente e adequada a vários estilos de música coral. Ao contrário do que muitos defendem, a utilização do falsete é uma prática saudável e muito apropriada para obras de todos os períodos, bem como em arranjos de música popular.

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2.1.2 Dicção

Na música vocal, seja ela coral ou não, o trabalho para se alcançar uma boa dicção é fundamental. Regentes e cantores são unânimes ao afir-mar que o trabalho de dicção é essencial para o sucesso de um grupo coral. Isto porque a dicção permite: uma enunciação clara, capaz de proporcio-nar um melhor entendimento do texto; uniformidade sonora das vogais, essencial para uma afinação refinada e para a maior homogeneidade so-nora; uniformidade de articulação consonantal, essencial para o equilíbrio rítmico; e flexibilidade dos lábios, da língua e da garganta, permitindo uma produção vocal eficiente e saudável.

A fim de que o público entenda bem a sonoridade característica e o significado do texto – seja em que idioma for – é necessário, primeira-mente, que se trabalhe a pureza dos sons vocálicos e a clareza das conso-antes. Entretanto, um simples trabalho de enunciação não é o suficiente, sendo necessário combiná-la com a prática insistente de se cantar as pala-vras com a acentuação adequada e dar sentido ao conteúdo poético de cada verso, ajustando-o ao conteúdo musical da obra. Assim, os textos ganham em expressividade e seu significado é melhor comunicado.

Moore ressalta que:

“O ponto de refinamento da qualidade vocal e de unificação sonora do canto grupal está na formação das vogais. Ela determina a qualidade e a maturidade do som e constitui o fator primário na precisão e contro-le da afinação, além de abrir o caminho para que um grande número de cantores possa cantar como uma só voz. [...] Será necessário que o coro identifique e conheça a formação das vogais básicas.” (MOORE, 1999, p. 51)

Para Miller, muitos dos problemas de afinação nos grupos corais são conseqüência da inabilidade dos cantores em diferenciar claramente as vogais. Depois de explicar a formação dos vários sons vocálicos, o autor incentiva o regente a aplicar exercícios de diferenciação das vogais para que seus cantores adquiram maior domínio sobre sua produção:

“Um pequeno número de exercícios de diferenciação das vogais, exe-cutados individualmente ou em grupos, primeiro lentamente e depois rapidamente, traz uma conscientização sobre como as vogais podem ser mudadas sem perda da consistência necessária para se produzir

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um timbre vocal rico em ressonância. Essa consistência do timbre pode ser mantida somente se o trato ressoador é permitido a assumir formas que ‘rastreiem’ a vogal gerada na laringe. É essa habilidade de mudar os contornos do trato ressoador que permitem que o timbre vocal permaneça constante quando as vogais são diferenciadas.” (MIL-LER, 1996, p. 61)

Uma ferramenta vital para regentes e cantores, auxiliando-os na prática da música vocal, é o International Phonetic Alphabet – IPA4, no qual os princípios da dicção são abordados pelo viés científico e técnico da fonética. Planejado e organizado por volta de 1886 por uma associação internacional que se dedicava ao estudo da fonética, o Alfabeto Fonético Internacional sempre teve como objetivo estipular para cada som das vá-rias línguas um símbolo que permaneça constante de uma língua a outra.

Um símbolo do IPA representa um som que é constante, ainda que sua ortografia mude de uma língua para outra, ou até na mesma lín-gua. Em português, por exemplo, o símbolo [S] é utilizado para representar foneticamente o som do x em xadrez e do ch em chá. Este mesmo símbolo é utilizado para o sh de shore (inglês), o sc de víscera (latim) ou de sce-na (italiano), o ch de chose (em francês), o sch de Schubert (alemão) ou de Khrushchev (russo), e assim por diante. Os símbolos são normalmen-te colocados entre colchetes para serem distinguidos das demais letras, principalmente porque vários símbolos fonéticos são as próprias letras do alfabeto romano.

Por se tratar de um alfabeto universal, as várias publicações sobre dicção para o canto (solo ou coral) têm adotado o IPA como referencial teórico.

2.1.3 Timbre

Dos vários aspectos que formam a sonoridade de uma voz e, con-seqüentemente, de um coro, o timbre é dos mais determinantes. Para um trabalho de flexibilidade da sonoridade, a variação timbrística é de grande relevância.

A fim de buscar maiores esclarecimentos sobre o timbre vocal, é de grande importância recorrer ao tratado de canto de Manuel P. R. Gar-cia5. Neste tratado, publicado em meados do séc. XIX, o autor descreveu

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de maneira científica, pela primeira vez na história, aspectos da produção sonora e do estudo do canto que, até então, pertenciam ao terreno do em-pirismo.

GARCIA define timbre como as “características próprias e infinita-mente variáveis que podem tomar cada registro e cada som, sem considerar a intensidade” (1985, p. 8), abordando a existência de diferentes timbres vocais, ressaltando que “a variedade dos timbres resulta, inicialmente, dos diferentes sistemas de vibração da laringe e, em seguida, das modificações que a faringe imprime a esses sons produzidos” (loc.cit.). Para ele, “as mo-dificações de timbre se produzem todas por dois meios opostos, podendo, em última análise, se reduzir a dois principais: o timbre claro e o timbre escuro” (Ibid, p. 9). Segundo Pacheco (2004, p. 94), ao tratar de tal tema, o autor “não toma partido de um tipo específico de timbre, explicando e aconselhando o uso de ambos.” Garcia ainda define e descreve os efeitos dos timbres nos registros vocais e também os explica de forma fisiológica:

“Observemos que a modificação mais sutil no timbre traz necessaria-mente uma mudança na posição da laringe. Alguém pode se conven-cer disto experimentando passar sobre todos os sons alternadamente, desde o timbre mais aberto até o mais escuro, e verá a laringe tomar posições progressivamente mais altas ou mais baixas, em razão da cla-reza ou da escuridão do timbre. Observemos ainda que, nestes dois timbres que nos ocupam, os dife-rentes graus de intensidade adicionados aos sons não trazem nenhu-ma modificação sensível nos movimentos dos órgãos da faringe. O efeito contrário se manifesta desde que o cantor experimente alterar, pouco que seja, a nuance do timbre: no mesmo instante o véu palatino se abaixa para o timbre claro, ao passo que o timbre escuro produz a elevação do véu palatino e a ampliação da faringe. Esta ampliação se torna sensível, sobretudo quando o cantor dá a sua voz todo o volume que ela pode comportar, se bem que, por outro lado, os sons saiam desta forma muito fracos; o que merece ser constatado. Este ato de exagerar do volume só pode ter lugar nas condições do timbre escuro e com esforços violentos.” (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 10)

Na descrição dos efeitos dos timbres nos registros vocais o autor afirma que “o timbre claro comunica ao registro de peito muito metal e brilho” e adverte que neste registro, “este timbre levado ao exagero torna a voz gritada e esganiçada.” Ao contrário, explica o autor, “o timbre escuro, dá a esse registro o mordente e a redondeza do som [embora, se] levado ao exagero, encobre os sons, sufoca-os, torna-os surdos e roucos” (Ibid, p. 9).

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No tocante ao registro de cabeça, Garcia observa que “o timbre escuro o modifica de maneira mais marcante [e] torna esse registro puro e límpido, como os sons de uma harmônica” (loc.cit.). Quanto ao falsete, o autor diz que “neste registro, o efeito dos timbres, ainda que verdadeiro, é, todavia, menos marcante que no registro precedente” (loc.cit.).

O tratadista também explica didaticamente como um cantor pode obter os diversos timbres por meio dos movimentos da laringe e da faringe. Sobre o timbre claro ele diz que:

“Quando se desejar produzir o timbre claro, é preciso primeiramente que a laringe suba proporcionalmente à elevação dos sons e também que o véu palatino seja abaixado e, enfim, que o istmo da garganta se diminua. Assim, ainda que a abertura posterior das fossas nasais se apresente livre, a coluna sonora, devido à direção inclinada que ele recebe da laringe, encontra-se encaminhada em direção à parte óssea e anterior do palato, e a voz, sem tocar as fossas nasais, sai brilhante e pura. É necessário, neste momento, deixar a boca numa forma um pouco horizontal. As vogais a, e, o, abertas à italiana, são modificações do timbre claro que traz esta conformação do órgão [vocal]. O timbre claro é facilitado pela inclinação da cabeça para traz, inclinação que deixa a coluna de ar se direcionar para a saída mais diretamente.” (Ibid, p. 15)

E, a respeito do timbre escuro ele observa que:

“O timbre se torna escuro se o cantor fixa a laringe numa posição bai-xa e levanta horizontalmente o véu do palato. Neste caso, a faringe representa uma abóbada alongada e a coluna de ar que se eleva verti-calmente bate contra a arcada palatina sem entrar na abertura basilar, que permanece fechada. O som torna-se mordente, pleno e coberto. É o que se chama de voz mista, escura. [...] A vogal u dá essa disposição ao órgão. Notem que para produzir os timbres escuros, abaixa-se a base da língua.” (loc. cit.)

Para GARCIA “o timbre claro e o escuro devem ser considerados como os dois principais, mas além deles existem muitos outros que em-prestam do timbre claro ou do escuro o que há de essencial no seu meca-nismo” (apud PACHECO, 2004, p. 99).

No tocante à sonoridade coral, observa-se que o timbre claro dá muito brilho às vozes e ao som do coro como um todo; tem grande poder de alcance; é objetivo e excelente para a afinação. Por outro lado, dificulta a homogeneidade e pode tornar o som áspero em algumas circunstâncias.

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O timbre escuro, por sua vez, facilita a homogeneidade e proporciona um som sensível e pessoal, entretanto, dificulta a afinação e a transparência das várias linhas vocais. Não há certo ou errado; o som resultante da so-matória dos vários timbres dos cantores de um coro é uma das várias es-colhas interpretativas do regente. Entretanto, é importante que o regente esteja atento à saúde vocal de seus cantores e às exigências estilísticas das obras.

2.1.4 O uso do vibrato na música coral: permitir ou não permitir?

Não se pode deixar de abordar neste trabalho, um dos mais polê-micos aspectos referentes à sonoridade coral: o uso do vibrato. Embora não se deva generalizar, há uma tendência atual entre regentes de se usar o mí-nimo de vibrato possível. O que se alega muitas vezes é que o vibrato tira a “pureza” das vozes e dificulta a obtenção da homogeneidade. Tal posição deveria, entretanto, ser tomada com base na fisiologia da voz e no estudo histórico-estilístico.

Miller acredita que a unificação vocálica garante a homogeneidade do coro e que vozes com vibrato podem, sim, ser equilibradas pelo regente. Ressaltando a diferença entre o vibrato natural e outras oscilações, o autor expõe sua opinião afirmando que:

“Um vibrato uniforme, resultado da função relaxada da laringe, é uma característica inerente do som vocal livremente produzido. Não deve-ria ser solicitado aos cantores corais retirar a vibração de suas vozes na expectativa de torná-las homogêneas com vozes sem vibrato. Prefe-rencialmente, o regente deveria auxiliar os amadores sem vibrato, por meio de exercícios de ataque e agilidade a acrescentar a vibração natu-ral do canto ajustado. Vozes com vibrato produzidas apropriadamen-te podem ser equilibradas mais facilmente do que vozes sem vibrato. Naturalmente, se as vozes de um grupo sofrem de oscilação (variação de afinação muito ampla e muito lenta), ou de um trêmolo, [tais] vozes não equilibrarão. Um trabalho técnico adicional particular com tais cantores pode ser necessário.” (MILLER, 1996, p. 63)

É preciso enfatizar que o vibrato é um fenômeno natural da voz. Segundo BRANDVIK, “quando uma pessoa canta livremente com todos os pequenos e grandes músculos do corpo trabalhando juntos para pro-

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duzir um som musical saudável, enérgico e livre, a voz vai produzir uma pulsação leve e regular chamada vibrato” (1993, p. 167). A habilidade de controle do vibrato é uma parte integral de qualquer boa e saudável linha de técnica vocal. Assim, pode-se dizer que um cantor sem a habilidade de controlar o vibrato – se excessivo ou inexistente – provavelmente ainda não desenvolveu uma técnica saudável.

O cuidado que precisa ser tomado em relação ao vibrato é que este não interfira de forma desequilibrada na frase musical, uma vez que esta deve ser bem direcionada e conduzida de forma clara. Entretanto, o vi-brato deve ser desenvolvido pelos cantores e usado como uma importante ferramenta de expressão. Tal aplicação é variável, e o regente deve decidir e orientar seus cantores sobre quando e o quanto o vibrato é apropriado. Brandvik oferece considerações interessantes que podem orientar estudio-sos do assunto:

“1. O vibrato deve variar com as dinâmicas: quanto maior o volume, maior o vibrato; de modo inverso, quando menos volume, menos vi-brato; 2. O vibrato deve variar com a textura da música: quanto mais densa a textura menos vibrato (para possibilitar que a harmonia seja ouvida mais claramente); opostamente, quanto menos densa a textura, mais generoso o vibrato; 3. O vibrato deve ser relacionado ao período ou estilo da música que estiver sendo cantada. A música renascentista com suas linhas claras, texturas esparsas e harmonias abertas requer um controle criterioso do vibrato. A música romântica com harmonias vibrantes e expressões sonoras cheias geralmente permite um vibrato rico e encorpado.” (loc. cit.).

2.2 Técnicas corais

2.2.1 Homogeneidade e equilíbrio: misturando as vozes

A homogeneidade é um dos mais importantes aspectos coletivos da sonoridade coral e, por isso, precisa ser trabalhada incansavelmente. A busca por alcançá-la internamente nos naipes entre si e no coro como um todo é uma constante no trabalho do regente. Swan chega a afirmar que “a homogeneidade é possivelmente a técnica coral mais necessária e im-portante; não dá para imaginar um belo grupo vocal sem homogeneidade” (SWAN, 1998, p. 60).

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Provavelmente, uma das diferenças mais significativas entre o som de dois coros distintos é o nível de homogeneidade adquirido por cada um. Um som coral absolutamente homogêneo é humanamente impossível de ser atingido, embora existam, em todo o mundo, grupos corais, acadêmi-cos e profissionais, que atingiram um alto grau de excelência neste quesito técnico. Entretanto, nos coros amadores há uma grande heterogeneidade entre as características vocais de seus cantores, dificultando enormemente a obtenção da igualdade sonora. Por isso, o regente deve aprender a lidar com essa “matéria prima” e moldá-la segundo suas intenções e possibilida-des. PFAUSTCH diz que:

“[No coro leigo] algumas vozes são fortes enquanto outras são leves; algumas têm uma qualidade agradável enquanto outras são estriden-tes; algumas são flexíveis enquanto outras são indóceis; algumas são bem moduladas enquanto outras são ásperas e roucas; algumas têm um grande alcance enquanto outras tem alcance limitado, umas são musicais enquanto outras não são.” (1988, p. 103)

A heterogeneidade enfrentada por muitos regentes ainda está re-lacionada à diversidade étnica, cultura, intelectual, musical e etária dos vários membros do coro. A tarefa do regente é buscar, em seus conhe-cimentos vocais, elementos que lhe proporcionem uma “mistura sonora” mais homogênea.

PFAUSTCH (1998, p. 103) acredita que a homogeneidade de um coro será alcançada primordialmente como resultado de uma produção vocal refinada. Para o autor, “na medida em que os cantores aprendem a produzir os sons vocálicos corretamente, eles apresentarão um som mais homogêneo em cada naipe” (loc.cit.). O autor ainda ressalta que “as exigên-cias de alcance e tessitura também são fatores que ajudam ou atrapalham a homogeneidade.” O regente deve trabalhar os cantores também nas extre-midades de suas extensões, evitando que forcem sua produção, permitindo que aprendam os ajustes que são necessários para manter a homogeneida-de em passagens distantes do centro vocal.

Para Brandvik (1993), regentes e cantores devem estar constan-temente atentos a quatro elementos: a altura (afinação), a “cor sonora” de cada vogal, a potência e o volume das vozes e a precisão rítmica do todo. Segundo o autor, trata-se de um processo contínuo que não pode ser limi-tado ao planejamento de ensaio da primeira semana e depois esquecido. É

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uma habilidade de escuta, disciplina que deve ser praticada consistente-mente.

De fato, será impossível ao regente conseguir um som homogêneo sem uma afinação refinada. É preciso que os cantores sejam treinados para cantar as freqüências o mais similares possível. Da mesma forma, é preci-so “afinar” as vogais. Os cantores não devem somente enunciar as vogais como estão escritas no texto, mas tentar obter o máximo em igualdade tim-brística, com o mesmo som vocálico.

No tocante ao volume das vozes, Brandvik (Ibid) aconselha que uma voz forte deve exercitar o controle, e uma voz menor deve cantar o mais forte possível com uma produção vocal saudável. O autor ainda chama a atenção do regente para que seja cuidadoso ao posicionar can-tores. Ele acredita que posicionar uma voz com pouco volume próxima de uma voz maior pode não ser saudável para o cantor de voz pequena e causar frustração para o cantor que possui uma voz com mais volu-me.

Apesar dos resultados claros alcançados com o trabalho de homo-geneidade timbrística e vocálica do coro, Miller defende que, uma vez que cada voz tem suas próprias características, é muito mais proveitoso inves-tir num trabalho de equilíbrio dinâmico-musical das vozes do que tentar misturá-las de forma homogênea:

“Cada instrumento vocal possui suas características timbrísticas úni-cas. [...] É tão incoerente para o regente coral exigir de todas as cate-gorias de vozes uma qualidade vocal única, quanto para o regente de orquestra solicitar que todos os instrumentos tenham o mesmo timbre. Equilibrar as vozes é uma técnica coral muito melhor do que a irreali-zável meta de tentar torná-las homogêneas.” (MILLER, 1996, p. 58)

Na verdade, intimamente ligado à busca pela homogeneidade so-nora de um grupo coral, está o trabalho de equilíbrio sonoro do coro. Para se alcançar uma sonoridade equilibrada nas várias obras de seu repertório, o regente deverá considerar uma série de fatores. De início, pode-se afirmar que a citada heterogeneidade das vozes do coro é um fator complicador, assim como as também mencionadas exigências de alcance e tessitura. Mesmo assim, o regente deverá aprender a exigir dos cantores o que deve ser feito para se produzir uma relação balanceada dos naipes, a partir de mudanças de gradações de intensidade e dinâmica.

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Faz-se necessário um bom conhecimento de harmonia e contra-ponto para lidar com possíveis complicações de equilíbrio das partes, conscientizando os cantores de que, hierarquicamente, a “importância” das linhas vocais é variável. O coralista deve aprender a se escutar, a escu-tar seu naipe, os outros naipes e o acompanhamento instrumental, se hou-ver. Neste trabalho de equilíbrio – independente do nível técnico do grupo – será necessário sempre que se façam ajustes na dinâmica para permitir que as linhas mais importantes dominem.

2.2.2 Aentonaçãoemconjunto:afinandoasvozes

Apesar da importância da homogeneidade e do equilíbrio na so-noridade coral, para muitos regentes, a preocupação mais constante é a afinação. Segundo Marvin:

“De todos os desafios associados à arte de cantar em coro, o de con-seguir uma boa afinação é provavelmente o mais fugaz. Enquanto ou-tros objetivos importantes do canto em grupo podem ser atingidos por meios bem diretos e de uma forma relativamente consistente, é geral-mente difícil fazer com que um grupo coral cante afinado.” (MARVIN, 2001, p. 26)

Sendo a música uma arte temporal, a afinação precisa ser recriada a cada execução e, “uma vez que os coros atinjam um padrão de afinação satisfatório [em um dado momento], não há garantias de que o farão nova-mente” (loc.cit.).

A busca por uma constante boa afinação é um trabalho contínuo que deve acontecer no dia-a-dia do coro. Esse processo exige do regente uma melhor preparação dos ensaios, pois “o peso da responsabilidade re-cai primeiro sobre o regente no sentido de motivar e ensinar o coro a cantar afinado” (SILANTIEN, 1999, p. 91).

Muitos são os fatores musicais e não-musicais que levam um coro à desafinação, seja no ensaio ou na performance: o nível de percepção au-ditiva do regente e dos cantores, o grau de preparação do repertório, ca-pacitação técnica variável das vozes, condições climáticas da sala, o am-biente acústico, estado emocional do regente e dos cantores, etc. Silantien (loc.cit.) afirma que “alguns problemas de afinação estão mais ligados a

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questões de conjunto que a questões vocais individuais; por exemplo, o equilíbrio de acordes, a uniformidade vocálica e a colocação temporal de consoantes sonoras e ditongos.” Para MARVIN (2001, p. 26) “tom e timbre, juntos, definem a entonação.” O autor ressalta que:

“Cantar afinado significa unificar o tom – ou seja, levar as vozes a cantar com freqüências similares e timbres compatíveis. No canto co-ral, isto significa que um som unificado está associado a uma emissão unificada das vogais. Um timbre vocal dentro de cada naipe unificado por uma emissão vocálica concorde dá lugar a um continuum sonoro integrado, que serve de base para a boa afinação coral. Portanto, tanto as vogais como as notas devem estar afinadas.” (loc. cit.)

Moore observa que problemas referentes a respiração, produção vo-cálica e afinação precisam ser previstos pelo regente e resolvidos de forma eficaz nos ensaios corais. No que diz respeito à afinação, ele acredita que:

“A solução é que os cantores aprendam as partes vocais tão precisa-mente e ouçam tão cuidadosa e criticamente que a acuidade na en-tonação vá além daquela oferecida pelo piano ou pelo diapasão. Essa habilidade, combinada com um alto nível de produção vocal e edifi-cada sobre hábitos apropriados de respiração e atenção detalhada aos sons vocálicos, pode resultar na aquisição de um ‘som desejado’ e uma ‘sonoridade’ que produza uma excepcional qualidade de conjunto.” (MOORE, 1999, p. 52)

2.2.3 Precisão Rítmica

Assim como a homogeneidade timbrística e vocálica caminha lado a lado com equilíbrio dinâmico-musical, o trabalho por uma afinação efi-ciente, deve estar aliado à busca da precisão rítmica. As idéias musicais de uma obra são construídas dentro de uma organização temporal. Há um mo-vimento seqüencial de tais idéias sonoras, que ordenadas pelo compositor, precisam ser percebidas e controladas pelo regente. Oakley afirma que:

“O regente deve auxiliar o coro a desenvolver um senso comum de ritmo interno que propicie uma organização estrutural ao som do co-ral. Isto não é tão comum quanto se imagina. Na verdade, um peque-no percentual de conjuntos corais consegue de fato obter um senso de completa unidade rítmica. Infelizmente, isso é causado com mais freqüência pelo fato de que pouquíssimos regentes, e eu ressalto ‘pou-

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quíssimos’, possuem um domínio pessoal de ritmo interno, segurança quanto ao tempo e sensibilidade rítmica.” (OAKLEY, 1999, p. 112)

Para este autor, talvez “a melhor maneira de o regente desenvolver seu próprio senso rítmico seja auxiliando o coro a desenvolvê-lo” (Ibid, p. 114). Ele observa que:

“Muitas vezes, erros rítmicos não são pecados ligados à ação, mas sim de omissão, já que a maioria dos coros perde a estabilidade do andamento a cada ponto de respiração ou de mudança de frase. O grande mandamento da execução rítmica é: assim como o som é medido, o silêncio também deve ser medido. Cada ponto da frase e cada respiração devem ter uma atribuição rítmica. Muitos coros che-gam ao fim de uma frase, respiram em conjunto e cantam a próxima entrada atrasados em relação à pulsação, obliterando, assim, o anda-mento. Isto não é rubato, isto é falta de disciplina.” (Ibid, p. 117)

Pfaustch acredita que a precisão rítmica também depende de uma boa dicção. Logo, os problemas rítmicos podem estar relacionados à arti-culação consonantal precária, à duração incorreta do som vocálico e a di-tongos precipitados. Ele aconselha que o regente procure, em consonância com a estruturação musical presente na obra, obter a duração correta dos sons vocálicos, a precisão adequada dos sons consonantais, as nuances sutis de uma seqüência silábica e a reprodução das linhas melódicas com os perfis determinados pelo compositor.

Portanto, na eterna busca pela excelência na performance coral, essa “mistura sonora unificada” pode ser alcançada a partir de uma pro-posta timbrística unificada, baseada num trabalho uniforme dos vários aspectos técnicos individuais, na produção adequada dos sons vocálicos, no equilíbrio dinâmico-musical das vozes e na busca de uma afinação re-finada, por meio da qual, os cantores devem cantar nas freqüências mais similares dentro da maior precisão rítmica possível.

Notas

1 Considerando a abrangência de significados e implicações da palavra “sonoridade” é importante esclarecermos que todo este trabalho é dedicado ao que chamamos, no âmbito da musica coral, de “cor sonora”. Não se trata apenas de questões timbrísticas, embora o

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timbre tenha grande relevância neste contexto. Pretendemos abordar através da referida expressão, o som coral resultante da somatória de elementos técnico-vocais, técnico-corais e estilísticos. Portanto, tanto a expressão “cor sonora” quanto as expressões “qualidade sonora” e “som coral” ou simplesmente a palavra “sonoridade” podem, ao longo deste trabalho, ser empregadas com tal conotação.

2 Lit: “primeira passagem”.3 Lit: “segunda passagem”. 4 Lit.: Alfabeto Fonético Internacional.5 GARCIA, M. Traité complet sur l’art du chant. Parte I, 1841; Parte II, 1847. Paris: Minkoff,

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Angelo José Fernandes – Regente, natural de Itajubá/MG. É mestre em Práticas Interpretativas (regên-cia) pelo Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, especialista em regência coral e bacharel em piano pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atualmente é doutorando em Práticas Interpretativas (regência) pelo mesmo programa, tendo como orientadora a Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama e como co-orientador o Prof. Dr. Eduardo Augusto Östergren. Adriana Giarola Kayama – Doutora em Performance Practice pela University of Washington, EUA; docente da UNICAMP, atuando nas áreas de canto, técnica vocal, dicção e música de câmara; coorde-nou os cursos de Graduação e Pós-Graduação em Música da UNICAMP; atualmente, é presidente da ANPPOM - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Eduardo Augusto Östergren – Maestro e professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. Responsável pelo curso de regência coral e orquestral, atua também como docente nas disciplinas de história da música medieval e de introdução à pesquisa musical. Foi docente das Uni-versidades da Carolina do Norte, em Raleigh, de Indiana e de Purdue, ambas no estado de Indiana. Participou de seminários sobre Regência Coral e Orquestral em diversas universidades brasileiras e americanas, e foi membro de júri em vários concursos internacionais.

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EDUCAÇÃO PIANÍSTICA:O RIGOR PEDAGÓGICO DOS CONSERVATÓRIOS*

Pianistic education: The pedagogic rigour of the conservatories

Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG e UNESP)[email protected]

Resumo: O presente trabalho apresenta reflexões sobre o rigor pedagógico dos conservatórios musicais brasileiros no século XX, enfatizando o Conservatório Musical de São Carlos, instituição que adotou a linha pedagógica do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo – que, por sua vez, estabeleceu um paradigma de educação pianística no Estado de São Paulo. O modelo europeu de ensino do piano foi amplamente divulgado nessas instituições, privilegiando os repertórios musicais dos séculos XVIII e XIX. Alguns aspectos da incorporação e reprodução desse modelo europeu podem ser visualizados: o primeiro está ligado ao conteúdo do ensino e dos métodos, com metas objetivas no processo de aprendizagem; o segundo refere-se ao comportamento social e cultural. O terceiro aspecto está relacionado ao prestígio da instituição ‘conservatório’, seu valor institucional, representado pela expedição de diplomas oficialmente reconhecidos. Palavras-chave: Educação Musical; Pedagogia do Piano; Conservatórios Musicais; Brasil.

Abstract: The present work aims to discuss ideas about the pedagogic rigour of the Brazilian musical conservatories in the 20th Century, emphasizing the ‘Conservatório Musical de São Carlos’, an institution that adopted the pedagogical system of ‘Conservatório Dramático e Musical de São Paulo’ – which, in its turn, established a piano education paradigm for the State of São Paulo. The European piano teaching model was throughly disclosed in these institutions, favoring 18th and 19th-century musical repertoire. Some aspects of the incorporation and reproduction of that European model can be identified, such as: the teaching approach, with its contents and methods; aspects connected to social and cultural behaviors; and aspects related to the prestige of the conservatories, its institutional value, represented by the issuing of officially recognized diplomas.Key-words: Music Education; Piano Pedagogy; Musical Conservatories; Brazil.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo a análise das posturas peda-gógicas referentes ao processo de ensino-aprendizagem do piano adotadas nos conservatórios brasileiros no século XX, com o intuito de alargar a compreensão e vislumbrar as delicadezas e as nuances de tal processo. A instância selecionada para essa investigação foi o Conservatório Musical de São Carlos (CMSC), instituição essencialmente pianística que desenvolveu atividades entre 1947 e 1991, em São Carlos-SP, utilizando-se do programa de ensino do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Esse pro-grama era constituído dos seguintes níveis: Curso Preliminar (onde eram adquiridas noções musicais elementares), Curso Fundamental (do 1° ao 5°

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anos), Curso Geral (6° e 7° anos), Curso Superior (8° e 9° anos do Curso Geral) e Curso de Virtuosidade (com duração de dois anos). Em todos os níveis constavam as matérias complementares, o perfil das provas e o pro-grama mínimo. Eram realizadas provas bimestrais, um exame semestral e outro anual. O aluno apresentava no mínimo 10 exercícios técnicos e 2 peças (todas originais, não eram aceitas transcrições para piano de peças originalmente escritas para outros instrumentos e edições facilitadas) no primeiro semestre e, ao final do ano, 20 exercícios e 4 peças. Os alunos que tocavam nos recitais apresentavam, além do programa, as peças exclusivas para o recital, sempre executadas de memória.

Esse plano estabeleceu uma divisão metodológica no ensino do piano, referente aos estudos técnicos, aos métodos e à execução de obras musicais. A liberdade do professor era respeitada com relação à escolha de números dos estudos e peças, sempre privilegiando a execução de obra de composi-tores europeus, porém compositores brasileiros também faziam parte do re-pertório nacional. A ampliação das opções das peças musicais encontrava-se também registrada no mesmo programa, de acordo com o parecer técnico dos professores do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Na presente análise, o rigor pedagógico incorporado e reproduzido pelos conservatórios será examinado quanto a três aspectos fundamentais: o primeiro está ligado ao conteúdo e aos métodos de ensino; o segundo refere-se ao comportamento social e cultural dos alunos dessas institui-ções; o terceiro aspecto diz respeito ao prestígio dessas instituições e ao seu valor institucional, mensurado pelo diploma reconhecido e talentos vigorosamente desenvolvidos.

A investigação tem, pois, um caráter exploratório, buscando ofere-cer uma visão ampla do objeto de estudo e fornecer subsídios para a aná-lise de instituições educativo-musicais e seus respectivos padrões de ensi-no. Para a realização do estudo, além da análise documental do plano de ensino de piano do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (ado-tado pelo Conservatório Musical de São Carlos - CMSC), foram realizadas entrevistas com onze ex-alunos e ex-professores do CMSC. As entrevistas procuraram abordar ao máximo o período de funcionamento da entidade e os aspectos pedagógico-musicais por ela adotados. A análise dessas fontes de informação deu-se por meio de uma pesquisa bibliográfica pertinente aos temas inventariados e suas inter-relações.

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1. Sobre o Programa de Ensino de Piano

É na abordagem tecnicista da educação que se encontram funda-mentos para entender e refletir sobre o ensino musical realizado nos con-servatórios. Nessa concepção, a aprendizagem é realizada com a perspec-tiva de metas e objetivos a serem alcançados e a avaliação possui extrema relevância no processo. Na pedagogia tecnicista adotada pelos conserva-tórios, a qual não se define como um método de ensino musical criativo e sensível, professor e aluno ocupavam uma posição secundária, de execu-tores de um programa cuja concepção, planejamento, coordenação e con-trole estavam a cargo de especialistas habilitados. Ao professor competia a responsabilidade de transmitir os saberes e conhecimentos durante o processo de aprendizagem e ao aluno competia adquirir as habilidades necessárias para a execução instrumental. Com essa intenção, os progra-mas davam primazia à prática instrumental e os conteúdos eram compar-timentados em disciplinas organizadas de modo linear, em seqüências e fragmentos (Esperidião, 2003).

Nessa perspectiva, fica evidente a constatação de que o currícu-lo, constituído de diretrizes técnicas (harmonia, contraponto, fuga etc.) e repertório situado no barroco, classicismo e romantismo, era priorizava a música européia dos séculos XVIII e XIX. Os conteúdos e repertórios musicais europeus eram os mais executados, em uma atitude de desco-nhecimento ou falta de interesse pela produção musical contemporânea. A ausência de contemporaneidade da perspectiva musical pôde provocar um descolamento da real atividade do músico, que era formado sem uma finalidade definida dentro do tipo de sociedade que a ele se apresentou cotidianamente. A predominância do aspecto técnico-instrumental em re-lação aos demais conteúdos era claramente estabelecida, relevando o papel de destaque que a virtuosidade e a performance possuíam na formação oferecida.

O programa padrão dos estabelecimentos de ensino musical que estavam sob a fiscalização do COA (Conselho de Orientação Artística) foi elaborado pelo professor Samuel Archanjo dos Santos, com a finalidade de padronizar e orientar o currículo destes estabelecimentos em razão da grande expansão musical no estado de São Paulo. Faz-se importante men-cionar que o elenco de disciplinas desse plano já se fazia presente no Con-

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servatório Imperial e, posteriormente, no Instituto Nacional de Música, excetuando-se pequenos ajustes que denotam a influência dos professores italianos na vida musical paulista, em um projeto de europeização do pla-no padrão (Esperidião, 2003).

O programa do ensino de piano analisado foi concebido como uma grade curricular que compartimentava os conhecimentos teóricos e o fazer musical por meio das seguintes subdivisões: estudos1, sonatas e sonatinas, provas de exame e disciplinas complementares.

2. Pedagogia Pianística No início do século XIX, o aumento significativo de pianos e pia-

nistas na Europa e a ampliação das possibilidades técnicas do piano leva-ram a uma reflexão sobre o ensino de piano. Muitos pianistas passaram a se dedicar à educação pianística e a partir dessa busca por metodologias mais eficientes, novas pedagogias pianísticas foram criadas. Muzio Clementi (1752-1832) destacou-se ao a publicar, na Inglaterra, uma Introduction to the art (1801) e, posteriormente, seu Gradus ad Parnassum (1819-1820).

Outro compositor com preocupações pedagógicas foi o alemão Johann Baptist Cramer (1751-1858). Contemporâneo de Beethoven, alu-no de Clementi e dono de uma técnica pianística admirável, Cramer escreveu Estudos para pianoforte em 42 exercícios nos diferentes tons, “calculados para facilitar o progresso dos que se propõem estudar esse instrumento a fundo” (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p.88). Aluno de Beethoven, Hummel e Clementi, Karl Czerny (1791-1857) foi outro pianista cujo enfoque didático levou à composição de estudos técnicos dedicados a todas as faixas etárias. Com uma ampla visão pedagógica, Czerny preocupava-se com a independência dos dedos, com a extensão total das teclas e com a questão do legato, entre outras. As reflexões so-bre os rumos da pedagogia pianística são bem delineadas por Helffer e Michaud-Pradeilles (2003).

A pedagogia do piano lança-se em duas direções: a da tomada de posse de um teclado cada vez mais extenso, o que supõe os deslocamentos mais rápidos possíveis para dar a impressão de estar em todos os re-gistros ao mesmo tempo; e também a de uma luta contra o peso inevi-

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tável da tecla, para conservar, a despeito da força a exercer, o máximo de rapidez e flexibilidade. Eis aí as razões imperativas que fazem aos poucos entrar em jogo não mais apenas o dedo, mas a mão, o antebra-ço, depois o braço e mesmo o resto do corpo. Há portanto ligações ínti-mas entre aperfeiçoamento do instrumento, sua prática e a escrita das obras, sejam estas música pura ou música de aprendizagem. (p. 90)

Esse breve relato das preocupações e das criações pedagógicas é relevante para o entendimento da concepção dos programas de ensino de piano adotados pelos conservatórios, os quais se baseavam na prática de exercícios técnicos para o domínio gradual do instrumento e para o con-trole e conhecimento proprioceptivo do aluno. A proposta da conquista progressiva dos controles de coordenação, leitura musical, agilidade, com-petência muscular, no programa analisado, estava impressa nas páginas do curso fundamental e geral.

3. Análise do Programa: o Repertório Europeu

Como instituições educativo-musicais de influência européia, os conservatórios brasileiros priorizavam o estudo dos compositores daquele continente. Segundo o relato de uma ex-professora do Conservatório Mu-sical de São Carlos, o ensino de piano nessa entidade dava-se da seguinte maneira:

[...] no pré, o aluno tinha que aprender as duas claves de sol na 2° linha e a de fá na 4° linha e ter uma leitura musical razoável. Nos anos se-guintes, tinha que estudar 20 (peças) exercícios, incluindo no mínimo 4 peças originais: 2 brasileiras e 2 estrangeiras. Nesses estudos o aluno tocava: Bach, Czerny, Chopin, Liszt, Mozart, Haydn e outros, além de estudos de velocidade, oitavas, técnicas e escalas. O curso era de 9 anos sem o pré e cada ano com programa específico; eram feitas provas bimestrais e um exame semestral e outro anual. A prova do 1 semestre era feita no início de julho ou no final de junho. O aluno tinha que apresentar no mínimo 10 exercícios e 2 peças, todas originais e no fi-nal do ano, 20 exercícios e 4 peças. Os alunos que tocavam nos recitais teriam que apresentar além do programa, as peças exclusivas para o recital e decoradas (ENTREVISTADA 4 apud Fucci Amato, 2004).

Assim, desde o curso fundamental, a preocupação estava centrada no programa mínimo, que estabelecia 15 estudos, sendo 10 de Czerny (do

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1° ano ao 4°) e 5 outros estudos a escolher. O alemão Cramer era adotado no 5° e no 6° ano, também com 10 estudos. Já no 7° ano, o escolhido era Clementi, com seu Gradus ad Parnassum. No curso superior (8° e 9° anos), a escolha recaia sobre os estudos op. 10 e op. 25 de Chopin e os estudos transcendentais de Liszt.

O entendimento do caráter dos estudos escritos por Chopin e Liszt revela-se com características diferenciadas em relação aos compositores anteriormente citados.

Quando grandes compositores põem-se a escrever Estudos, o aspecto didático é imediatamente esquecido. Pouco importa que, nos “Estu-dos” de Chopin (Op. 10, 1833; Op. 25, 1836), cada Estudo seja dedi-cado a uma dificuldade particular – cromatismos, terças, sextas, oi-tavas etc. –, retém-se apenas o conjunto e o caderno forma um todo compacto, como se fosse uma coletânea de variações. Isso é verdade (talvez em menor grau) em relação a Liszt em seus “Estudos de execu-ção transcendente baseados em Paganini” (1840). Liszt afirma-se um grande músico romântico sobretudo na versão definitiva dos “12 Es-tudos de execução transcendente” (1852), sem esquecer seus “Estudos de Concerto”. (Helffer: Michaud-Pradeilles, 2003, p. 91)

A forma sonata e sonatina (sonata breve, fácil ou “ligeira”) eram contempladas desde o início do curso fundamental e fazem parte de toda estrutura curricular até o 9° ano. As sonatas do austríaco Joseph Haydn (1732-1809) compunham especialmente o programa de piano do 3° e 4° anos, revelando uma atitude pedagógica de contemplar a época clássica da produção pianística. O momento era de transição da escolha entre cravo e o piano, indicada pelo compositor e também referendada pelas notações relativas a um sistema diversificado de dinâmica e de acentos (indicações de valor das intensidades ou de alteração rápida ou lenta das mesmas). Algumas das 17 sonatas do também austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) integravam o currículo do 3° ao 5° anos.

O estilo clássico encontrou nas características do piano o que era ne-cessário ao seu desenvolvimento. Com Mozart, que é virtuose e apai-xonado pelo instrumento, o piano chegou à maturidade. [...] A virtuo-sidade de Mozart é realmente a primeira a ser estritamente pianística. Mozart está atento a toda a extensão do teclado e sabe utilizá-la. Para isso, emprega um mecanismo baseado nas escalas e nos arpejos que Beethoven irá retomar e amplificar. [...] Mas Mozart serve-se da virtu-osidade somente dentro dos limites do plano muito estrito que parece ter estabelecido para cada obra. Ele permanece sempre muito aquém

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das possibilidades do instrumento de sua época. [...] À medida que ele escreve, essa sobriedade aumenta, o que se deve ao aprofundamento de seu universo interior e também à descoberta de Bach e Haendel, descoberta que o leva a introduzir mais contraponto mesmo em suas obras de piano. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 61-2)

Ludwig van Beethoven (1770-1827) era privilegiado com a execu-ção de sua produção de sonatas (32, sendo algumas delas mais executadas que outras) a partir do 3° ano. Esse repertório contribuiu de maneira sig-nificativa para o crescimento das possibilidades do piano pela precisão das indicações e das novas possibilidades de execução desse instrumento, já que, segundo Helffer e Michaud-Pradeilles (2003), Beethoven realizou uma interação entre sua escrita pianística e o avanço no processo de fa-bricação do instrumento, passando a contemplar: a utilização de toda ex-tensão, em especial as notas extremas; a evolução do trinado; a utilização freqüente das possibilidades dos pedais; o aperfeiçoamento do sistema de acentuação (reforço ou não da pulsação do compasso); o aumento das nota-ções qualitativas e de tempo. O compositor passou, a partir de então, a ser reportado como um visionário na escrita pianística.

Por sua vez, as composições de Johann Sebastian Bach (1685-1750) eram exigidas desde o 2° até o 7° ano do curso fundamental: o início era realizado com obras de fácil execução, seguidas de invenções a duas e três vozes, suítes inglesas e francesas, partitas e O Cravo bem temperado (volumes 1 e 2). Ressalta-se que o piano é o instrumento que tanto permite a execução igualitária das vozes quanto a preponderância de uma delas em relação às outras, o que não era tão destacadamente eficiente nos dois te-clados do cravo. Já o estudo das composições bachianas é de notável valor para a independência das mãos (vozes) e para o entendimento do comple-xo jogo polifônico – riqueza ímpar da obra de Bach.

O compositor húngaro Béla Bartók (1881-1945) com seu Mikrokos-mos, distribuídos em 6 livros e compostos entre 1926 e 1939, estava pre-sente desde o 2° até o 9° ano do curso de piano. Esta obra de Bartók guarda semelhanças com a produção de Bach no sentido de que ambas são desti-nadas ao ensino da técnica pianística em um crescendo técnico e estrutu-ral, sendo que no caso do Mikrokosmos, esse crescendo inclui a linguagem musical moderna, com o aproveitamento total do piano e de suas possibi-lidades de expressão.

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A execução de peças de compositores românticos foi decisivamen-te a vertente principal dos concertos e audições patrocinados pela institui-ção analisada, o Conservatório Musical de São Carlos (CMSC). O polonês Frédéric Chopin (1810-1849) teve sua produção pianística muito executa-da e estimada por todos os estudantes, integrados nessa concepção educa-cional inspirada nos moldes europeus. O piano de Chopin foi concebido com a relevância da linha melódica bastante ornada, conjugada ao acom-panhamento de grande significância e sutileza harmônica, com uma fina mistura de romantismo e virtuosidade.

Suas linhas horizontais cantam espontaneamente, pela escolha dos intervalos e das relações de ressonância que se estabelecem entre as notas da melodia e das partes secundárias, como se Chopin sentisse intuitivamente os harmônicos dos sons. [...] Ele age sobre a natureza dos acordes, sobre sua disposição nos diferentes registros, sobre seu desenrolar que tende a ser muito arpejado, enfim sobre repartição entre as duas mãos, eventualmente intercaladas entre si. [...] O resul-tado não é mais apenas uma melodia acompanhada, mas um instru-mento inteiramente melódico e transparente que entra em vibração como um ser vivo, de forma menos ponderada, mais instintiva do que fizera Beethoven. [...] Se o piano de Mozart remete à ópera, o de Beethoven à sinfonia ou ao quarteto, o de Schubert ao “Lied”, uma obra de Chopin remete apenas ao piano. (Helffer; Michaud-Pradeil-les, 2003, p. 78-9)

O húngaro Franz Liszt (1811-1886) foi outro grande compositor romântico e virtuose que associou intimamente a prática do instrumento e a escrita. Elaborou composições com estruturas em grande escala (forma sonata estendida, com peças de vários movimentos sendo unificadas) e condensou uma base temática em uma obra inteira, concebendo o piano como uma orquestra, em uma rica gama sonora, implantando a sua técnica transcendental e inovando com sua criação harmônica.

Liszt sabe escrever passagens de virtuosismo que parecem girar em torno de um eixo de notas, escalonadas em todos os registros, como uma espécie de corrida de revezamento. É preciso ainda notar a abun-dância de saltos (“Mazeppa”, “Primeira Mefisto-valsa”), trinados, “tre-molos”, notas repetidas. Liszt vale-se também de linhas cromáticas ou diatônicas da mão direita ou da mão esquerda, com sucessões de notas duplas em todos os gêneros. [...] a virtuosidade jorra como uma espé-cie de acréscimo, sem ser incompatível com um máximo de expressão e de emoção, o que é sublinhado por numerosas indicações em italia-no. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 80-81)

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Outras grandes expressões do romantismo estavam presentes no programa de ensino, como Felix Mendelssohn (1809-1847), Robert Schu-mann (1810-1856) e Johannes Brahms (1833-1987). O alemão Mendels-sohn mostrou influência de Bach, Haendel, Mozart e Beethoven, respec-tivamente, na técnica fugal, no ritmo e nas progressões harmônicas, na caracterização dramática (formas e texturas) e na técnica instrumental. A partir de 1825, desenvolveu uma percepção própria e original, em uma ligação acentuada com estímulos outros que não os musicais – literários, históricos e emocionais. Já para Schumann, o piano tornou-se seu confi-dente, em que sua produção sonora foi a imagem de um mundo interior conturbado, com buscas de sonoridades, de polirritmias e de polifonias.

A segunda metade do século XIX foi selada com a densa persona-lidade de Brahms, que utilizou a extensão total do piano e o transformou definitivamente em uma orquestra, conservando, no entanto, sua sonori-dade específica. Na produção de Brahms observa-se uma preocupação com a didática do piano, através de exercícios técnicos, como, por exemplo, estudos com notas duplas e para a mão esquerda.

A escola francesa de piano (final do século XIX até 1945) também participava do programa de ensino pianístico, tendo dentre os seus repre-sentantes Gabriel Fauré (1845-1894) e Claude Debussy (1862-1918).

Na história da escrita do piano, das origens até a morte de Brahms, há uma predominância da cultura germânica; isso se reconhece mesmo em Chopin. No final do século XIX, porém, há um deslocamento do centro de gravidade da criação musical, centro que parece se estabe-lecer em Paris mas sem abandonar completamente Viena ou Berlim. [...] A produção pianística de um Fauré inspira-se em Chopin e em Schumann, e é sintomático que ele queira mostrar a Liszt sua primeira obra conseqüente, a “Ballade” cuja versão original é escrita apenas para piano. [...] Em Debussy destaca-se tudo o que é ressonância. Ele parece ter tomado de Chopin a arte das mãos que se sobrepõem para fazer soar os acordes e de Schumann uma maneira de cruzar as mãos que transforma as sonoridades. Sabe também desenvolver harmônicos de modo a fazer ouvir como Chopin, sons não escritos [...]. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 109-111)

A Espanha era representada pelos seus compositores Manuel de Falla (1876-1946), Isaac Albéniz (1860-1909), Joaquín Turina (1882-1949) e Enrique Granados (1867-1916) na educação pianística promovida pelos conservatórios. Falla recebeu influências de Dukas, Debussy, Ravel, Stra-

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vinsky e Albéniz, culminando no desenrolar de seu estilo próprio, o qual utilizava o canto primitivo (cante jondo) da Andaluzia e modernas elabo-rações harmônicas. Um dos expoentes da música espanhola, o composi-tor e pianista Albéniz impulsionou uma escola nativa de piano, com sua maioria de obras dedicada ao instrumento solo. A Suíte Ibéria (1906-8) é sua obra mais apreciada, exigindo técnica refinada numa construção de harmonia ousada e evocações instrumentais. Granados, por sua vez, ob-teve grande sucesso com a suíte para piano Goyescas (1911), que contém uma série de estudos de puro virtuosismo, inspirada em pinturas de Goya. Joaquín Turina, em seu turno, também escreveu canções e inúmeras peças para piano, refletindo delicadeza e espírito sevilhano.

Dois representantes da escola russa eram sugeridos no programa oficial de ensino a partir do 7° ano: Rachmaninov e Prokofieff. Sergei Ra-chmaninov (1873-1943) compôs várias obras para piano fiéis ao mais puro romantismo, herdado de Tchaikovsky e de seus professores (melodia lírica expandida de pequenos motivos, espectro amplo de linhas e formas, nos-talgia e melancolia predominantes). Sergei Prokofiev (1891-1953) escreveu 9 sonatas para piano, além de outras obras para esse instrumento.

O estudo desses compositores reflete a predominância do reper-tório pianístico europeu no estudo de piano promovido pelos conservató-rios no Brasil. A preocupação com o rigor pedagógico no desenvolvimento técnico das habilidades dos estudantes de piano também era um fator de importância para essas instituições, já que o programa de ensino por elas seguido, além de prever um desenvolvimento gradual dessas habilidades, abrangia obras compostas com a finalidade estritamente pedagógica.

4. Análise do programa: o repertório nacional

Apesar da predominância da produção pianística européia nas suas práticas pedagógicas, pode-se constatar que os compositores nacio-nais também ocupavam lugar de destaque no ensino de piano promovido pelos conservatórios no Brasil. Segundo as entrevistas realizadas junto aos docentes e discentes do Conservatório Musical de São Carlos, o repertório era composto principalmente pelos compositores Camargo Guarnieri, Hei-tor Villa-Lobos (1887-1959), Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) e Fran-

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cisco Mignone (1897-1986). Outros compositores presentes com freqüência no repertório dos conservatórios eram Henrique Oswald (1852-1931) e os precursores do nacionalismo musical: Alberto Nepomuceno (1864-1920), Ernesto Nazareth (1863-1934), Francisco Braga (1868-1945) e Barroso Neto (1881-1941).

Heitor Villa-Lobos, criador da música verdadeiramente nacional e sua maior expressão composicional, esteve constantemente presente nos recitais e concertos promovidos pelo conservatório estudado (CMSC). O repertório de obras de Villa-Lobos era executado em todos os anos do cur-so de piano. A sua obra para piano, com destacada solidez, surpreende ao revelar novos modelos de mecânica pianística e dificuldades rítmicas não convencionais, sempre com a intenção de efeitos sonoros ímpares.

Desde as “Danças africanas”, em que seu estilo se concretizou, vemos essa preocupação rítmica se acentuar gradativamente em obras de todos os gêneros. Sempre originalíssimo, evitando a rotina a todo o custo, Villa-Lobos foi muito pessoal em seus primeiros experimentos no terreno pianístico, e já em 1920, ao compor “A lenda do caboclo”, vêmo-lo enveredar decididamente pelo campo da música nacionalista, que abordara na “Prole do bebê nº 1” Desde então, sua obra pianísti-ca adquiriu personalidade inconfundível, conquistando o ouvinte por seus timbres sedutores e ritmos desusados, e interessando o técnico com a feitura arquitetônica complexa e esmagadora do “Rude poema.” (Mariz, 2000, p. 166)

O compositor escreveu grande quantidade de obras com inspira-ção na vida infantil: em 1912, três séries: Brinquedo de roda (6 peças), Petizada (6 peças) e 1ª Suíte infantil (5 peças); em 1913, 2ª Suíte infantil (4 peças); em 1914, Fábulas características (3 peças); em 1918, Prole do bebê n° 1 (8 peças); em 1919, Histórias da carochinha (4 peças) e Carnaval das crianças brasileiras (8 peças); em 1921, Prole do bebê n° 2 (9 peças); em 1925, Cirandinhas (12 peças); em 1926, Prole do bebê n° 3 (9 peças) e Cirandas (16 peças); em 1929, Francette et Piá (9 peças) e Momo precoce, para piano e orquestra; em 1940, Saudades da juventude (10 peças), depois orquestrada.

As três suítes Prole do bebê são de relevância acentuada na obra pianística de Villa-Lobos: a primeira refere-se às bonecas, em seus tempe-ramentos mais contraditórios; a segunda, aos bichinhos; e a terceira, aos esportes. A Lenda do cabloco, escrita em 1920, é um dos seus maiores su-

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cessos e sintetiza toda a atmosfera nacionalista. Rude poema, por sua vez, é uma das obras de maior complexidade da literatura pianística contem-porânea. Saudades das selvas brasileiras, escrita em Paris no ano de 1927, reflete a brasilidade de Villa-Lobos em dois momentos: o primeiro, com um ritmo obstinado do ambiente selvagem, entrecortado com um lamento, e o segundo, mais alegre. Três miniaturas de expressão pianística também integram sua obra: as Três Marias, que formaram uma tríade de atmosfera límpida. Outro conjunto de obras de mérito pianístico é o Ciclo brasileiro, composto por 4 peças datadas de 1936:

Ressaltamos, na série, a excelência da realização de Villa-Lobos ao es-boçar, num desenho rítmico de quiálteras, os golpes compassados da enxada do “Plantio do caboclo”; ao expor, de maneira tão feliz, aquele painel sertanejo, com toda a sua dolência, nas “Impressões serestei-ras”; ao construir uma peça tão variadamente descritiva como a “Festa no sertão”; ao pintar a dança sensual do índio branco. Em ritmo biná-rio, no qual as mãos se intercalam para depois delinear-nos um tema de grande beleza rítmica e melódica, esta peça encerra todo o ciclo com uma modulação ascendente acelerada e brilhantíssima. Esta série tem a mais alta importância e o ciclo é dedicado à Mindinha. (Mariz, 2000, p. 169)

Integrante da segunda geração nacionalista, encontrava-se no pro-

grama de ensino o nome de Oscar Lorenzo Fernandez, fundador do Con-servatório Brasileiro de Música (no Rio de Janeiro, em 1936) e importante colaborador de Villa-Lobos no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Compôs peças para piano solo, das quais de destacaram-se os Três estudos em forma de sonatina, a Valsa suburbana, as três Suítes brasileiras e a So-nata breve. As indicações das obras Lorenzo Fernandez estiveram presen-tes no programa desde o início do curso de piano.

Outro líder da segunda geração nacionalista (indicado a partir do 5° ano) era Francisco Mignone, o qual, nas reflexões de Mariz (2000), pos-sivelmente foi o músico brasileiro mais completo – compositor, professor, regente, virtuose do piano, acompanhador, orquestrador, intérprete de mú-sica de câmara, poeta e intelectual. Sua valorosa contribuição para o piano são as 12 Valsas de esquina (1938-42), as quais retratam muito bem o clima dos chorões das primeiras décadas do século, além de outros tipos de val-sas notadamente brasileiras. Mignone compôs Prelúdios, Lendas sertane-jas, Estudos transcendentais, outra série de 12 Valsas-choro (1946-1955),

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12 Valsas brasileiras e, todas em tons menores e para piano e orquestra, três Fantasias brasileiras e o Concerto (1958).

Pertencente à terceira geração nacionalista, Mozart Camargo Guar-nieri (1907-1993), professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, regente, compositor e, precedido por Villa-Lobos, detentor do maior conjunto de obras musicais, o qual culminou em um alto desenvolvimen-to do movimento nacionalista, encontra-se com destacada importância no programa oficial de ensino de piano. Suas composições, que contêm exem-plares essenciais da arte musical brasileira para o piano, são: 50 Ponteios (1931-1959), Toccata (1935), Dança negra (1946), estudos, valsas, impro-visos, 7 sonatinas e Sonata (1972), sugeridas nos três últimos anos do pro-grama oficial.

Outro nome de destaque presente no programa oficial é César Guerra Peixe (1914-1985), violinista e compositor que escreveu algumas obras para piano: Miniaturas, Prelúdios tropicais e Sugestões poéticas.

O cearense Nepomuceno, principal figura da música brasileira até aproximadamente 1920, compôs a Série brasileira, com vertente naciona-lista considerada pioneira, apesar de todas as críticas que esta recebeu. As composições Confidência, Valsa lenta, Serenata antiga e Romance, de Francisco Braga, integravam o 6° ano do curso de piano. Algumas obras de Barroso Neto (ou Barrozo Netto) também estavam presentes no referido programa.

Outros compositores, tais como Henrique Oswald e João Seppe, também se encontram no programa de ensino, demonstrando a relevância dada ao estudo da produção pianística nacional nos conservatórios musi-cais, os quais, todavia, não priorizavam a produção contemporânea.

Todavia, nenhuma alteração nesse programa estritamente erudito era permitida. Um ex-aluno da instituição declara que “não se incursiona-va, jamais, pelo jazz, pela improvisação, pela música popular de consumo. Quando muito um Ernesto Nazareth e olhe lá!” (ENTREVISTADO 9 apud Fucci Amato, 2004).

Quanto ao compositor Ernesto Nazareth (1863-1934), deve-se men-cionar aqui a discussão sobre sua música ser considerada erudita ou não. Mariz (2000), baseado em afirmações de Mignone e outros compositores, decide incluir Nazareth no rol de clássicos, devido à sua contribuição à ex-pressão nacionalista. Nazareth, porém, não integrava o programa oficial de

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educação pianística, mas era executado, provavelmente fora dos recitais, guardadas as restrições impostas muitas vezes impostas pelos conservató-rios e seus padrões. Sua obra consta de “tangos brasileiros” (mais de 90), com inovações rítmicas e com inovações formais, valsas e polcas.

5. A importância da performance

A complexidade do estudo do piano merece algumas reflexões acerca da necessidade do domínio específico de conhecimentos musicais e técnicos imprescindíveis à execução deste instrumento. A formação de um intérprete é consolidada por matérias teóricas e práticas musicais, em um processo de sofisticação e burilamento concretizado a partir de muitos anos de estudo.

Dominar os conhecimentos musicais, desenvolvê-los na própria ex-periência, vivenciá-los a ponto de poder expressá-los com fluidez ne-cessária à boa interpretação de uma obra, é tarefa bastante complexa. Igualmente difícil é o domínio dos movimentos necessários à execu-ção do instrumento, de acordo com a interpretação desejada. (Azeve-do, 1991, p. 9)

Em relação aos aspectos ligados ao aprendizado do piano, Azeve-do (1991) revela a delicada postura que o professor deve assumir diante de um elenco de importantes considerações e como seu conhecimento, não só musical, é imprescindível para a gestão de alunos capazes:

É no estudo analítico da técnica que não se pode prescindir de um em-basamento adequado em ciências físicas e naturais, em especial a Fi-siologia, a Mecânica e a Acústica. [...] A interpretação musical, por sua vez, não dispensa estudos intelectuais apurados, tais como o estudo das maneiras de se fazer um fraseado num compositor clássico ou num compositor romântico, o que pode significar uma pausa em Beethoven ou em Chopin, a ornamentação característica de diferentes composito-res, as características dos diferentes estilos, e mais uma infinidade de detalhes importantes e indispensáveis. (Azevedo, 1991, p. 12-13)

O autor prossegue suas elaborações acrescentando que o estudo da técnica pianística envolve inegavelmente diversos aspectos filosóficos, so-ciológicos e psicológicos, que, quando estudados, podem fornecer diversos

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subsídios para o estudo do instrumento e para a resolução dos diversos as-pectos técnicos e educacionais que podem se apresentar nessa realidade.

De fato, o mundo da docência pianística é de uma complexidade que muitas vezes foge da compreensão leiga, a qual considera o aprendi-zado artístico como algo fácil, desde que se tenha talento. Discorda-se de tal visão, já que o estudo do piano requer horas e horas de dedicação, o cumprimento de programas, a abstenção de lazer, envolvimento e, prin-cipalmente, a busca de professores competentes, possuidores do “saber/ fazer” musical.

Os conservatórios musicais eram escolas tradicionais de influên-cia européia e revelavam como objetivo, durante toda a sua existência, a qualidade performática de seus alunos, privilegiando uma técnica requin-tada para a interpretação do repertório de grandes mestres da música eru-dita. Os depoimentos de ex-alunos do Conservatório Musical de São Carlos apontam para posturas variáveis quanto às apresentações públicas. Nessa perspectiva, a entrevistada 6 (apud Fucci Amato, 2004) declara:

Eu tocava em tudo que era apresentação. [...] depois de formada, eu fiz mais três anos, que era o aperfeiçoamento. No primeiro ano, eu parti-cipei de um concurso em Campinas. Eu lembro que o ano inteiro foi preparação para esse concerto, porque tinha que tocar tudo de cor.

Já no caso da entrevistada 5 (apud Fucci Amato, 2004), a decla-ração evidencia um certo temor ao se apresentar em público, pois nível de exigência e perfeição mantido pela instituição era muito alto no enten-dimento de alguns alunos: “Mas eu não gostava muito de apresentações, porque ela era muito brava, e tinha que sair tudo perfeito, a gente ficava muito tensa”.

Por outro lado, segundo a entrevistada 3 (apud Fucci Amato, 2004), a severidade presente no preparo para as apresentações era de grande re-levância para o aperfeiçoamento técnico do aluno e proporcionava grande prazer estético quando uma interpretação de qualidade era obtida.

No entendimento de Tagliaferro, citada por Leite (1999), a respon-sabilidade e a intensidade na execução musical (especialmente em recitais) possuem um valor incalculável, tanto no que se refere à idealização correta de um compositor, quanto na sua incompreensão e possível arruinamento de sua obra. Dois caminhos se apresentam ao intérprete; a sua escolha é,

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portanto, fruto de informação e formação musical adequada. Assim, se-gundo a artista, primeiramente o intérprete deve, antes de estudar a obra, definir seu estilo e seu gênero, preparando-se com o “espírito” adequado para a execução de tal peça; segue-se a essa fase o estudo da obra, sem a transgressão de estágios, tomando-se conta das regras de ritmo e compasso e das armações de arquitetura musical, construindo-se, arduamente, o edi-fício sonoro. Desse modo, a pianista conclui, o artista pode enunciar seus sentimentos da forma almejada.

O processo de maturação musical ocorre paulatinamente, dia após dia, envolvendo a elaboração de preciosos detalhes da execução pianística. A assimilação das minúcias musicais requer tempo e silêncio. Leite (1999) coloca que, após a obtenção de uma técnica de interpretação sólida, o ama-durecimento interior do trabalho técnico e da construção musical se torna essencial. O autor acrescenta ainda que, a partir desse período de reflexão subconsciente, pode-se aperfeiçoar a interpretação a fim de torná-la côns-cia e tecnicamente elaborada de maneira global.

Essas concepções acerca da execução musical foram cuidadosa-mente escolhidas no intuito de mostrar o refinamento a que se pode che-gar em uma interpretação pianística e todos os cuidados de preparação a que se submete um artista. Mas fica a pergunta: essa preparação é só para os grandes virtuoses? Acredita-se que não, pois o preparo adequado para uma performance sempre requer ajustes técnico-musicais, independente-mente do nível técnico do intérprete, e o dá a convicção de ser capaz de realizar tal interpretação.

6. O poder institucional no ensino de piano

Os conservatórios, como escolas expedidoras de diplomas regis-trados, permitiam a distinção dos estudantes de piano “oficialmente reco-nhecidos” e o estabelecimento de “taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômico, garantindo o valor em dinheiro de determi-nado capital escolar” (Bourdieu, 1979, p. 78-9). Nesse sentido, a objetiva-ção do capital cultural sob a forma do diploma produz benefícios materiais e simbólicos, que, dependendo de sua raridade, podem ser mais ou menos rentáveis. No caso dos alunos dos conservatórios, a raridade estava ligada

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essencialmente ao prestígio e, no caso das alunas, era tido como um “dote” agregado a outras valorações da época (Fucci Amato, 2005).

Esse grau de coesão é abordado por ELIAS e SCOTSON (2000) como fonte de diferenciais de poder entre grupos inter-relacionados, os es-tabelecidos e os outsiders. Na interpretação dos autores, um establishment é um grupo que se identifica e é reconhecido como uma “boa sociedade”, influente, melhor e construída sobre os pilares da tradição, da autoridade e da influência, presentes decisivamente nessa identidade social. Por outro lado, os outsiders são concebidos como os não membros de tal sociedade, aglutinados num agrupamento heterogêneo e difuso com relações inter-pessoais de menor intensidade que os establishment.

A partir dessa reflexão, é possível classificar os conservatórios e seus alunos como established, naquele momento em que as condições so-ciais foram propícias a incorporá-los como padrão de educação pianística, conferindo prestígio e distinção, em contraposição aos alunos dos profes-sores particulares de piano.

No entanto, a categorização dos grupos estabelecidos passa por um carisma grupal, no qual todos os que estão inseridos nessa relação par-ticipam desse carisma e se submetem às regras mais ou menos rígidas des-se grupo, bem destacadas por Elias e Scotson (2000), com o sacrifício da satisfação pessoal em prol do fortalecimento e coesão da coletividade.

A disciplina rigorosa e o estudo com afinco e dedicação também estão incluídos na participação do carisma grupal, diferindo os alunos dos conservatórios de outros estudantes de música, como, por exemplo, os estudantes de música popular. Para essa categoria − estudantes de música popular − os estudos eram entendidos como amadores, pois os mesmos não necessitavam de conhecimento teórico musical (leitura de partituras), podiam “tocar de ouvido” e improvisar, princípios abominá-veis dentro da cultura musical dos conservatórios àquela época (Fucci Amato, 2005).

O aclaramento da rede de configurações dos alunos dos conserva-tórios pertence a reflexões historicamente datadas, devido à flexibilidade das relações sociais e suas novas e possíveis configurações que se estabele-cem no decorrer do tempo. Uma figuração estabelecidos-outsiders é mutá-vel dependendo da dinâmica da sociedade, a qual pode provocar alternân-cias na forma como os indivíduos estão inseridos nela, o que, nas palavras

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dos autores Elias e Scotson (2000, p. 36), revela “uma complexa polifonia do movimento de ascensão e declínio dos grupos ao longo do tempo”.

Outras mediações lançam intensidade na história dos conserva-tórios, ainda na perspectiva sociológica, com as considerações complexas de Bourdieu (1974, 1983, 1986, 1996, 1998), que concebe a sociedade sob duas formas indivisíveis: por um lado, as instituições revestidas na forma física de monumentos, livros, instrumentos etc. e, por outro lado, as dispo-sições adquiridas, as maneiras duráveis de ser e de fazer que se encarnam nos corpos – habitus. Nessa perspectiva o autor chama atenção para a dificuldade de estabelecer padrões de análise individual, pois esse corpo socializado é uma das existências da sociedade e não se opõe a ela (BOUR-DIEU, 1983).

A exposição temática bourdieuniana principal para o entendimen-to polifônico da trajetória dos alunos e professores dos conservatórios faz referência à transmissão do capital cultural no seio familiar e às suas con-seqüências na vida dos indivíduos. BOURDIEU (1974, 1983, 1986, 1996, 1998) acrescenta que as condições de cultivo de hábitos e atitudes promo-vidas pela família acompanham o desempenho escolar, cultural e profis-sional de seus filhos com acentuada relevância.

Nessa perspectiva, o processo de desigualdade que se estabelece frente à escola e à cultura são, muitas vezes, tratados como naturais e não como socialmente criados. O entendimento de BOURDIEU (1974, 1983, 1986, 1996, 1998) é que a família transmite a seus filhos um sistema de va-lores implícitos e profundamente interiorizados - ethos – e um certo capital cultural que contribui para a definição de atitudes referentes ao capital cultural e à instituição escolar.

7. Consideraçõesfinais

Os conservatórios foram projetos possíveis a partir dos quadros socioculturais estabelecidos principalmente a partir da metade do século XX, pois, como instituições educativas que serviam e recrutavam os seus alunos de forma rigorosa, atendendo aos objetivos das camadas sociais que eram capazes de dar respostas eficazes, estes estabeleceram um dos eixos fundamentais para a construção e permanência de toda instituição pri-

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vada. Evidenciam-se nesse sentido alguns aspectos referentes às redes de configurações sócio-culturais estabelecidas entre os alunos e professores dessas instituições, com âncoras na tradição, na autoridade e na influên-cia, instituindo dessa forma uma sociedade de prestígio e distinção.

Seguindo um plano de ensino de piano que adotava uma postura metodológica austera, com métodos definidos ao longo dos nove anos de estudo de piano, refletindo a densa informação que era passada ao estu-dante, quer abordando aspectos musicais, quer aspectos especificamente relativos à técnica pianística, a pedagogia adotada resultava em uma exe-cução musical de qualidade: grande conquista desejada por todas as esco-las de música.

A referência que o ensino de piano passa a ter com a criação dessas instituições foi alterada no próprio “status” que passou a ser conferido a esse ensino em contrapartida ao proporcionado por professores particula-res. Essas categorias distintivas se constituem em:

• Reconhecimento da instituição nas instâncias superiores da Educação, com a concessão de diplomas registrados;

• Uma nova ordenação e organização do tempo em anos, com cumprimento mínimo de programa, com avaliações regulares dos conteúdos prático-teóricos e ensino de disciplinas comple-mentares;

• Uma nova organização espacial: a entidade passa a ser um pré-dio com endereço definido, salas apropriadas para o ensino de piano e matérias teóricas, sala de administração etc.

Nessa perspectiva, o espaço escolar e o tempo educativo expressam na sua materialidade um sistema de normas reguladoras, como ordem, dis-ciplina, controle e vigilância, que são inerentes ao rito educativo-musical. Todo esse processo permite desvelar as intrincadas redes de configuração socioculturais do mundo do estudo do piano naquele momento histórico, fortemente marcado pela aceitação de padrões musicais europeus.

Todavia, como afirma esperidião (2003), as concepções pedagógi-cas advindas dos padrões europeus acarretaram na formação musical dos alunos nos conservatórios, uma desvinculação da realidade e do mundo do trabalho que: os descontextualiza da contemporaneidade da linguagem musical, estabelece uma dicotomia entre música erudita e popular e uma

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fragmentação do saber musical, separa a prática da teoria e conserva o des-preparo dos professores quanto a concepções educacionais e metodologias inovadoras pertinentes à realidade social e cultural do país.

Já em relação às práticas educativo-pianísticas atuais, cabe reafir-mar que existe uma grande variedade em relação aos conceitos pedagógi-cos, que vêm sendo inovados por algumas entidades e mantidos ou aper-feiçoados por outras. A elaboração metodológica similar àquela utilizada nos conservatórios, baseada na execução (performance), é administrada atualmente nas universidades e nas escolas de música, demonstrando que o “modelo europeu” de ensino pianístico possui seus adeptos.

Um exemplo dessa postura pedagógica é a Escola Nacional de Mú-sica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ENM/UFRJ). Destaca-se que, nesse processo de formação do intérprete, pode existir uma preocu-pação exagerada com o adestramento técnico, e as condições para uma reflexão maior acerca do valor de um concertista como agente cultural fi-cam prejudicadas, inclusive quanto às questões pedagógicas decorrentes dessas performances. Nesse sentido, o objetivo de criar público apreciador e consumidor de música erudita deveria ser encarado com maior atenção e dedicação (Ramalho, 1995).

Outro exemplo atual no ensino pianístico é o Conservatório Brasi-leiro de Música (CBM), uma das mais importantes e antigas escolas parti-culares especializadas no ensino de música do Rio de Janeiro e também de todo o Brasil. Diferentemente da Escola Nacional de Música, o Conservató-rio é pioneiro em cursos de formação de professores de iniciação musical, educação musical e musicoterapia, experimentando novas propostas peda-gógicas, com o intuito de suprir a formação tradicional que era empreendi-da nos conservatórios do passado (ramalho, 1995).

A leitura que se permite realizar diante dessas duas instituições é que o rigor metodológico dos antigos conservatórios traz colaborações eficazes e relevantes na formação do instrumentista. Por outro lado, essa mesma concepção pedagógica não preenche expectativas de outros tipos de músicos, com destinos variados, especialmente no caso de professores dos mais diversos níveis de ensino. Cabe assim destacar a positividade da complementação realizada entre a diversidade do Conservatório Brasileiro de Música e o destino “unívoco” da Escola Nacional de Música com rela-ção aos saberes pedagógico-musicais.

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Notas

* O presente trabalho deriva-se da tese de doutorado: “Memória Musical de São Carlos: retratos de um conservatório”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (PPGE/ UFSCar), área de concentração: Fundamentos da Educação, em março de 2004, contando com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - processo n° 00/02290-6.

1 Segundo Helffer e Michaud-Pradeilles (2003), o estudo é uma peça destinada ao trabalho de uma simples dificuldade técnica e o exercício consiste em repetir essa mesma dificuldade sem uma preocupação compositiva.

Referências

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Rita de Cássia Fucci Amato – Doutora e mestra em Educação pela UFSCar, especialista em Fonoau-diologia pela EPM/ UNIFESP e bacharel em Música com habilitação em Regência pela UNICAMP. Teve a sua dissertação (“Santo Agostinho: ‘De Musica’”) financiada pela CAPES e a sua tese (“Memó-ria musical de São Carlos: Retratos de um Conservatório”) pela FAPESP. Aperfeiçoou-se com Lutero Rodrigues (regência) e Leilah Farah (canto lírico). Estudou piano com Antonio Munhoz, Antonio Bezzan e Amilcar Zani. É professora da Faculdade de Música Carlos Gomes.

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MTV, SUCESSO MUSICAL E CENA ALTERNATIVAMTV, musical success and alternative scene

Valério Cruz Brittos (UNISINOS)[email protected]

Ana Paola de Oliveira (UNISINOS)[email protected]

Resumo: O artigo discute, a partir da Economia Política da Comunicação, a midiatização da produção musical no canal de televisão MTV Brasil, enquanto apresenta a cena alternativa e a pirataria. Esses movimentos relacionam-se com a inovação tecnológica, a qual funciona como reforço do espaço hegemônico. São debatidas as relações das companhias de TV com outras organizações culturais. Identificam-se os processos midiáticos conformados por projetos de marketing, sendo prioritariamente publicizados os interesses musicais de cantores e grupos com forte base de sustentação econômica.Palavras-chave: Economia Política da Comunicação; Processos midiáticos; Políticas de comunicação.

Abstract: The paper argues, from the Political Economy of Communication, about the musical production media processes in the MTV Brazil channel, the alternative scene and the piracy. These movements become related with the technological innovation that works as reinforcement of the hegemonic environment. The relations between the TV companies and other cultural organizations are debated. The article identifies the media processes conformed by projects of marketing, being publicized the musical interests of singers and groups with strong base of economic support.Keywords: Political Economy of Communication; Media processes; Communication policies.

Introdução

Alguns fenômenos relativamente recentes têm incidido sobre o mercado musical internacional, no que se refere ao acesso à música grava-da e à sua execução. Três pontos foram fundamentais para a definição do quadro contemporâneo: o aparecimento do canal televisivo MTV, em 1981, a criação de gravadores de compact discs (CDs), em 1996, e o lançamento, em 1999, da tecnologia MPEG Audio Layer-3 (MP3), um formato de com-pressão de arquivos de som que mantém a qualidade elevada, num espaço físico muito reduzido. Há um interregno mercadologicamente mais amplo – apesar de historicamente curto – entre a primeira e as duas últimas ino-vações; diferença que também se reproduz em sua posição na sociedade: a Music Television (MTV) foi responsável diretamente pela ampliação e o reforço do espaço hegemônico, enquanto o CD gravável domesticamente e o MP3 renovam as possibilidades da cena alternativa. Mas esta situação é

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transitória, numa disputa em que o capitalismo, em regra vitorioso, engen-dra uma regulação pró-capitais.

Sinteticamente, pode-se afirmar que os últimos 50 anos do século XX representam um avanço dos capitais sobre a esfera artístico-musical. Este movimento reproduz resumidamente a própria trajetória do capitalis-mo sobre a cultura em geral, a partir do século XIX: num primeiro momen-to, há unicamente uma apropriação da produção já existente, que passa a circular conforme as regras do mercado, com investimento em divulgação e distribuição; num segundo tempo, cada vez mais as técnicas mercadoló-gicas assumem todo o produto cultural, desde o planejamento. No primei-ro caso, um potencial musical da sociedade é incorporado pela indústria fonográfica, com mínima alteração no conteúdo; no segundo, a fabricação dos artistas inclui seleção dos integrantes (por produtores e até programas de TV), vestuário, coreografia, repertório e outros elementos articuladores de personalidades passíveis de amplo consumo. As duas possibilidades de ação do campo econômico sobre o cultural dialogam. Não raro formas de manifestação cultural das diversas camadas sociais são assumidas e sub-sumidas até o limite possível no modo capitalista, no início ou decorrer do processo.

Na cadeia de valorização da música industrializada, a mídia, de forma particular a televisão e o rádio, desempenha um papel especial, com destaque para a MTV, como espaço de divulgação e praticamente pon-to de venda. No cumprimento dessa função, os canais televisivos contam com total liberdade para midiatizar, no caso, definir o que deve ou não ser publicizado da criatividade musical do brasileiro e do cidadão univer-sal, ainda que existam outros ambientes e territórios para circulação das expressões culturais, inclusive das de ordem da musicalidade. Ou seja, os processos midiáticos, consistente em estratégias e ações da mídia, em suas rotinas de produção, programação e distribuição de bens comunica-cionais, são planejados, processados e guiados precipuamente por lógicas mercadológicas. Constata-se, então, uma inoperância estatal que assiste ao domínio do privado sobre o público, sem reação, quando poderia atacar o problema através de regulamentação e investimento em soluções com controle social. Em meio a isto, o sucesso musical é decidido num conluio entre grandes grupos empresariais e viabilizado por meio de projetos de marketing (o jabá).

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1. Cultura e Economia

A acumulação de capital articula a difusão cultural a amplos pú-blicos, relacionando a circulação de conteúdos midiáticos a lógicas capita-listas, oligopólios mundiais e aparatos tecnológicos. Nesta terceira fase do capitalismo, é intensificado o movimento de internacionalização do mundo simbólico, que segmenta públicos, transformando-os em consumidores, o que implica num reordenamento econômico, cultural e político. Os recur-sos técnicos, como satélites e demais equipamentos comunicacionais, con-tribuem para tal reformatação, pois permitem a distribuição acelerada de vi-deoclipes e de modelos de fazer cultura, como o protagonizado pela MTV.

Tudo isso contribui para que, como ensina Fredric Jameson (2001, p. 142), os campos da cultura e da comunicação sejam cada vez mais con-dicionados pela lógica econômica na pós-modernidade, com “a supressão de tudo que esteja de fora da cultura comercial, a absorção de todas as formas de arte, alta e baixa, pelo processo de produção de imagens. Hoje, a imagem é a mercadoria e é por isso que é inútil esperar dela negação da lógica da produção de mercadorias”.

Se processualidades econômicas são incorporadas pela cultura e pela comunicação (a primeira é mais ampla do que a segunda, havendo intersecções e distinções entre ambas, discussão que extrapola os limites deste texto), a produção de mercadorias em geral é cada vez mais um fe-nômeno com características culturais. Novamente Jameson (2001, p. 22) explica a questão, raciocinando que hoje há toda uma indústria de plane-jamento da imagem das mercadorias e das estratégias de venda: “a propa-ganda tornou-se uma mediação fundamental entre a cultura e a economia, e se inclui certamente entre inúmeras formas da produção estética (ainda que a existência da propaganda possa nos levar a questionar nossas idéias a respeito da estética)”. Dito de outra forma, a comunicação (publicitária) não é somente um suporte de venda para veículos e anunciantes, mas também dissemina padrões de consumo, comportamentos, idéias e formas de fazer e estar no mundo. Como destaca Bolaño (2000, p. 56), “o espaço da cultura é fundamental na concorrência oligopólica que se estabelece em âmbito mundial entre setores da indústria, do comércio e das finanças”, por sua função ideológica, por ser um espaço de acumulação e por disponibilizar canais “para a circulação dos [...] fluxos que irrigam a economia mundial”.

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Nesta dinâmica, o conteúdo musical revela-se desarticulado de sua expressão artística ou desconectado das manifestações culturais advindas do chão social dos atores sociais, sendo selecionado a partir da interferên-cia direta dos meandros capitalistas industriais. É nessa realidade que os acordos comerciais entre megacompanhias do disco e meios de comunica-ção são apenas uma ponta (mais visível) de um amplo sistema de controle do espaço midiático. Assim como a produção e a distribuição, o consumo em ampla escala também se dá através dos meios de comunicação, sendo a produção musical de gerações contínuas validadas por meio de complexos arcabouços conectados globalmente em redes. Este movimento tende a en-volver a produção simbólica em geral, atingindo inclusive as formas ditas alternativas. “Até a música politicamente explícita que fala da longa histó-ria de opressão (como algumas formas de rap e de reggae) se mercantiliza e circula amplamente por todo o mundo”, lembra Harvey (2003, p. 166-167), identificando, na indústria da música dos Estados Unidos (EUA), um enor-me sucesso na “apropriação da incrível criatividade localizada e de raiz de músicos de todas as faixas”.

Foi desenvolvido pelas indústrias culturais um avançado comple-xo técnico-estético que compreende as identificações do público e as suas necessidades de consumo. Estabelecer e descobrir as mediações, unifican-do as diferenças, é um traço fundamental da indústria cultural traduzido no conceito gramsciano de hegemonia (GRAMSCI, 1989) - uma variável construída historicamente, permanentemente reconstruída com o objetivo de assegurar o prosseguimento da supremacia de dominantes sobre do-minados; o que não se dá de forma direta, mas por meio de negociações, seduções e incorporações. Isso não elimina a dominação, somente sofistica o processo, explicitando a presença de outros elementos de imposição. A partir destes, uma das partes sobrepõe-se imensamente na relação, contro-lando os principais meios de produção e de distribuição, com tudo o que isto representa em termos materiais e simbolicamente para a reprodução do sistema. A classe hegemônica torna-se protagonista também de mani-festações e reivindicações de outros extratos sociais, unificando através da ideologia, e mantendo articulado um grupo de forças heterogêneas; re-alizando assim a hegemonia enquanto descobre vínculos e faz valer suas posições (GRUPPI, 1978).

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Tal amálgama envolve o Estado, como expressão da dominação de classe, ao lado de outros agentes - como os econômicos, a exemplo das indústrias culturais, cada um deles com intensidade própria – liderando os processos de definição e manifestação da hegemonia, ao mesmo tempo em que a reflete. A regulamentação acaba sendo reflexo desta dinâmica, traduzindo os consensos (sempre provisórios) possíveis em dados cortes históricos; o que engloba descartes, aproximações, recuos e enganos, ten-do em vista as trocas entre atores públicos e privados, em jogos de poder onde os interesses transnacionais tendem a pactuar com os dos capitais internos, mas onde os desajustes também se sucedem. Então, não se tra-ta unicamente de continuidades, mas ainda de descompassos, inclusive no seio da classe dominante (entre diferentes setores empresariais e entre estes e entes estatais), o que pode implicar em brechas para propostas di-ferenciadas, mais afastadas do projeto hegemônico. Mas os setores tradi-cionalmente dominantes tendem a articular-se em torno da estrutura do Estado, de maneira que seus interesses costumam ser preservados. Tem sido emblemática a dificuldade de mudanças, mesmo quando partidos de esquerda assumem o poder, como no Brasil, onde atestam-se as posições do Governo Luís Inácio Lula da Silva.

A questão da hegemonia e seus rebatimentos sobre a flexível es-trutura do Estado capitalista permite que o núcleo de poder se situe num setor específico, num dado momento, deslocando-se em seguida, de modo a preservar sempre os interesses das frações hegemônicas. A conseqüência é uma cultura midiática que cai no gosto do público, por ser construída numa relação onde a demanda é absorvida a partir da produção, desde opções específicas e visando a máxima lucratividade, o que corresponde ao privilégio dos interesses dos capitais. Esses movimentos, portanto, não constituem a publicização da cultura de uma época, mas midiatizações; o que significa não só a transformação da realidade social, mas a construção de signos a partir da ótica mercadológica, com o mínimo de limitações im-postas pelo Estado; ficando uma ampla gama de sentidos excluída da arena social principal, se não for integrada ao sistema hegemônico, enquanto lugar de acumulação e de indicador de parâmetros sociais das épocas.

Desde as décadas finais do século XX, esta relação Estado-capitais é intensificada, não só pelo gigantismo de muitas companhias que passam a movimentar recursos de maior monta do que muitos países no âmbito

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dos círculos globalizados e globalizantes, mas porque, para o mais livre avanço dessas corporações, o ente estatal abdica de muitas de suas fun-ções tradicionais no bojo de políticas neoliberais adotadas. Diante disso, a implantação de políticas de comunicação, particularmente quanto à te-levisão, tem sido bastante dificultada, frente às crescentes limitações dos poderes estatais, impostas por pressões de grupos econômicos nacionais e internacionais (SMITH, 1991). O resultado é a ampliação da liberdade dos operadores televisivos para midiatizar, escolhendo, essencialmente a par-tir de critérios mercadológicos, o que expor ao consumo dos públicos. No caso musical, isso desemboca num quadro midiático pouco representativo do que é a pluralidade cultural brasileira (e de outras nacionalidades), por-que a maioria desses valores não se adequa à concepção de artistas como mercadorias, concebidos para o consumo, muitas vezes não só de suas músicas, mas ainda de outros produtos e idéias.

2. Música e Indústria

A MTV tornou-se a principal parceira da indústria fonográfica para a difusão da música pop rock. Faz parte do conglomerado midiático norte-americano Viacom (originalmente era propriedade da Warner Amex Satellite Company), e hoje é a grande vitrine para o comércio global da mú-sica jovem. Estar na programação da MTV garante o sucesso artístico, com acesso maior ao público. A questão chave é o modo pelo qual o artista é escolhido para fazer parte da programação. Com seu estilo visual moderno e programação inovadora, a MTV transformou-se na autoridade principal para o acesso à música no fenômeno mundial da cultura pop.

Atualmente existem 23 canais de televisão MTV, alcançando 54 países e 384 milhões de casas em torno do globo. Além dos canais Estados Unidos, Canadá, Brasil e MTV Latina, que cobre integralmente as Améri-cas Central e do Sul; existem as MTVs Espanha, França, Reino Unido, Ho-landa, Alemanha 1 e Alemanha 2, Itália, Nórdica, Polônia, Europa 2 (para os países do leste europeu), Rússia, China, Índia, Ásia (dirigida ao sudeste asiático), Hong Kong e Taiwan, Coréia e Japão (MTV, 2004); também ha-vendo uma infinidade de rádios via web, acessadas via portais da compa-nhia. Mundialmente existem 17 sítios da MTV operados localmente.

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A Viacom inclui, além da MTV, as redes de televisão M2, Nickelo-deon, Showtime, Tvland, Paramount Network e VH1. Seus negócios atin-gem também:

• 50% do canal Comédia Central (com a Time Warner);• Produtoras de filmes, vídeo e televisão, incluindo a Paramount

(Pictures, Television e Home Vídeo) e 75% da Spelling Entertai-nement;

• Blockbuster, a maior cadeia de locação de vídeo do mundo; • 10 editoras de livros (reunidas sob a holding Simon & Schuster); • 50% da rede de cabo USA Network Latin América;• 50% da rede de televisão norte-americana UPN, com Chris-Craft

Industries; • United Cinemas International (UCI), a maior operadora de cine-

mas multiplex dos Estados Unidos, com 120 salas em 12 países, resultado de uma joint-venture com a Universal;

• Cinco parques temáticos - três nos EUA, um no Canadá e um na Austrália - os quais, somados, recebem 11 milhões de visitantes por ano;

Fazem parte de suas alianças empresariais, além da Time Warner: NC, Universal, Sony e EMI Group.

Principal canal global de televisão segmentada, a MTV é hoje um dos maiores sustentáculos do enlace de divulgação da música mundial. Com o crescimento acelerado da indústria do entretenimento, em parte devido às alianças e ao desenvolvimento tecnológico avançado, este setor tem tido uma participação cada vez maior na composição do Produto In-terno Bruto (PIB) de vários países. Segundo Hermann e McChesney (1999, p. 142), a MTV é um importante comércio global de música, mobilizador de US$ 40 bilhões por ano e detentor de um poder quase monopolizador no segmento em que atua. Junto com a Universal, a maior proprietária de salas de cinema da Europa, a Viacom divide com a Bertellsmann e a Time Warner o topo das três maiores empresas do mercado editorial dos conglomerados midiáticos. “Ao incorporar a CBS, uma das quatro maiores redes de televisão (39 emissoras próprias e 200 afiliadas)”, a Viacom, que arrecada US$ 20 bilhões anuais em 100 países, “passou a gerir 40% da TV norte-americana, além de 185 estações de rádio” (Moraes, 2004).

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O telespectador ideal da MTV dispõe freneticamente do controle remoto, e passa por diferentes imagens dos vários canais com tamanha velocidade, que incapacita o encadeamento dos significantes numa nar-rativa dotada de sentido. Ou seja, os sentidos são construídos a partir da superfície das imagens. De certa forma, há, então, um limitador à plena fruição dos conteúdos; mesmo que estes sejam de conteúdo não-hegemô-nico, demonstrando os limites das políticas públicas, e mesmo de qualquer movimento no âmbito do capitalismo.

O controle da MTV Brasil é dividido igualitariamente entre o Gru-po Abril e a Viacom. De 1990 a 1996, a MTV Brasil pertenceu 100% ao Grupo Abril, que apenas pagava royalties à norte-americana. Em 1996, a Viacom comprou metade dos 30% de participação (GAMA, 2003); ou seja, 15% do capital da emissora, presença que cresceu até os atuais 50%.

A concessão do canal gerador da programação - canal 32 de São Paulo - em UHF (Ultra High Frequency), é exclusivamente do Grupo Abril, que atua de forma integrada com várias mídias: revistas, livros, internet ban-da larga, música e TV por assinatura. Entre seus parceiros e associados estão a Warner, a Fox e a Universal Pictures (GRUPO ABRIL, 2003). Está sempre ligada a grandes eventos de música, onde segmenta muitas parcerias, princi-palmente com a indústria de bebidas. Mantém uma revista mensal de circu-lação nacional, com variedades do mundo musical e da moda, que sai sem-pre com algum CD promocional, o que ajuda na captação de publicidade. Além disso, o sítio da MTV Brasil, na internet, tem o domínio da Hotmail.

Uma característica da MTV é investir em parcerias com outras or-ganizações, como é o caso do Acústico MTV, que une empresas do ramo para lançar artistas no mercado de CDs e DVDs (digital video disc). O Acústico MTV é uma das mais rentáveis franquias do mundo da música. Essa é uma batalha para o controle global dos mercados musicais e midiáticos, onde tanto os custos quanto os lucros são divididos, maximizando a produção e a divulgação. Outro produto lançado no final de 2003, através de uma par-ceria com a Sony Music e os Estúdios Mega, foi o DVD Neurônio, um jogo com perguntas e respostas baseado em atração homônima da emissora.

Está em estudo, o lançamento da MTV2 no Brasil, canal que cons-tará de 24 horas de videoclipes, um sucesso nos Estados Unidos. O novo canal foi desenvolvido no Brasil, adaptando o modelo norte-americano, como ocorre com a MTV tradicional, mas sua estréia tem sido adiada. Este

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projeto também é uma associação entre os grupos Abril e Viacom e será disponibilizado exclusivamente aos usuários das operadoras de televisão por assinatura. Com toda a programação digitalizada e um sistema de som com qualidade semelhante à de DVD, o MTV2 utilizará “o acervo de clipes da MTV Brasil [...] e algumas reportagens” (Mattos, 2004).

A música gravada é o mercado cultural com maior concentração mundial. As quatro maiores gravadoras globais (as majors) são: Universal (28%), Sony BMG (20%) (1), WEA (18%) e EMI (15%) (2). Suas vendas alcançam 80 a 90% do mercado global. A música gravada em CD repre-senta 70% do faturamento do setor fonográfico. Alguns conglomerados da área não se restringem à produção musical artística, incluindo a fabricação de aparatos tecnológicos. Além de fornecer infra-estrutura técnica, ainda produzem bens duráveis para a indústria cultural se perpetuar, orientan-do o mercado. Também utilizam o excedente das mercadorias como base material em suas ações de divulgação. A estratégia de crescimento neste mercado oligopolista globalizado consiste em ampliar promoções cruzadas para melhorar as vendas. Quando uma companhia compra outra, a idéia é utilizar a infra-estrutura já existente, tanto de recursos artísticos, quanto de know-how e capacidade instalada.

Essa amplitude de ofertas representa um desenvolvimento técni-co com o objetivo de aproximar uma variedade de públicos do segmento jovem. A MTV Brasil busca particularidades na sua programação, que se converte num produto com características locais, imbricadas a códigos da cultura mundial ocidentalizada, uma marca presente com força no imagi-nário de receptores habituais e eventuais. É um movimento de trocas de referências, um processo que se estabelece dentro do princípio da ação hegemônica, que faz circular os códigos sociais por intermédio de uma mercadoria cultural difundida e reformulada, conforme as mudanças con-temporâneas.

A MTV trabalha sua identidade através de estratégias como o MTV Social Club, onde, assinando a Revista MTV, o leitor participa de promo-ções como ingressos, viagens e prêmios, todos relacionados à indústria mundial do disco. Desta forma, estas estratégias solidificam o mercado oli-gopolizado, criando barreiras à entrada e aprimorando o que se denominou jabá, no início do século passado, e se firma, nos dias de hoje, na condição de extensão da publicidade comercial, como projetos de marketing.

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Em relação aos anunciantes da MTV, a telefonia celular, em 2003, foi uma das suas principais investidoras, mas isso também se estende às demais televisões mundiais. No entanto, há uma peculiaridade nesta rela-ção, que não se restringe à compra de espaço comercial; haja vista o inter-câmbio empresarial e tecnológico entre a Ericsson e a Sony, hoje uma das principais gravadoras mundiais.

3. Programas e Gravadoras

Os gêneros musicais exibidos na MTV são variações do pop rock e suas vertentes classificadas em rap, hip hop, ska, reggae, rock, punk rock melódico, metal, hardrock, canções dançantes e baladas românticas.

Para o presente artigo, dois dos programas da MTV, Top 20 Brasil e Disk MTV, foram selecionados para análise. A escolha de ambos justifi-ca-se por se tratarem de duas paradas de sucessos (a primeira diária e a segunda semanal) listadas previamente pela emissora, e que simbolizam os investimentos das gravadoras e a referência do consumo musical em grande escala.

O Top 20 Brasil foi estudado por meio de oito programas, quatro em fevereiro e quatro em outubro. Já o Disk MTV foi contemplado com 10 edições em fevereiro, quatro dias em agosto e 15 programas em outubro, sempre em 2005. Os períodos representam a rotatividade dos videoclipes e a temporalidade dos artistas na grade de programação, não sendo todo o in-tervalo de tempo investigado exposto neste artigo, por questões de espaço.

Na Ilustração 1 aparecem os grupos que foram escolhidos pela au-diência no Disk MTV em seis de fevereiro de 2004, onde se identifica cla-ramente a prevalência dos artistas ligados às quatro majors da indústria musical.

Artista Gravadora Posição Artista Gravadora PosiçãoSkank Sony 1º lugar Offspring Sony 6º lugarLimp Bizkit Universal 2º lugar O Rappa WEA 7º lugarMarcelo D2 Sony 3º lugar Nickelback Sum Records 8º lugarMadonna WEA 4º lugar Felipe Dylon EMI 9º lugarBeyoncé Sony 5º lugar Blink 182 Universal 10º lugar

Ilustração 1: Quadro Síntese do Disk MTV em 6 de fevereiro de 2004.

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Além das quatro companhias da indústria mundial do disco, que vêem no país uma importante fonte de lucro para os negócios musicais, existem duas gravadoras menores que eventualmente figuram nas paradas da programação: a Deckdisc e Sum Records, que estão associadas às gran-des por acordos de distribuição.

A Deskdisc iniciou suas atividades em 1998, utilizando a distribui-ção da gravadora Universal. Entre seus artistas contratados estão as bandas Ira! e Ultrage a Rigor, e a cantora Pitty. Trabalha com os gêneros forró, rock e reggae. Proprietária da editora Musical Deck, a gravadora é considerada 100% independente por não estar ligada às majors, apesar de igualmente comprometida com a realização da mercadoria (DECKDISC, 2004). A Sum Records é uma gravadora voltada à América Latina, com matriz situada na Espanha. Existe desde 1999, tem licença de 20 selos independentes inter-nacionais para distribuição em países como Brasil, México, Chile e Argen-tina. Seus gêneros musicais são rock, eletrônico, metal, forró, sertanejo e reggae. Entre os grupos nacionais estão Ultramen, Acústicos & Valvulados e Fat Family (OLIVEIRA, 2004e).

Outras gravadoras independentes, a exemplo da Trama, dividem es-paço nos programas de menor audiência, como Nação e Lado B, por apresen-tarem artistas que exploram experimentações: Tom Zé, Otto, Simoninha, Flu e Nação Zumbi. Esta gravadora também distribui o selo americano Matador, no Brasil, e tem no seu quadro Belle & Sebastian, artistas da cena alternativa.

O Quadro 2 mostra como, no Top 20 Brasil, reapresentam-se todos os artistas que constavam na listagem do Disk MTV (novamente sobressain-do-se os artistas associados às grandes gravadoras globais).

Artista Gravadora Posição Artista Gravadora Posição

Madonna WEA 1º lugar Nickelback Sum Records 11º lugar

Offspring BMG 2º lugar Blink 182 Universal 12º lugar

Felipe Dylon EMI 3º lugar Red Hot Chili Peppers WEA 13º lugar

Christina Aguilera BMG 4º lugar Pitty Deckdisc 14º lugar

Skank Sony 5º lugar Iron Maiden EMI 15º lugar

Beyoncé and Sean Paul Sony 6º lugar Titãs BMG 16º lugar

Charlie Brown Jr. EMI 7º lugar Br’Oz Sony 17º lugar

O Rappa WEA 8º lugar Frejat WEA 18º lugar

Limp Bizkit Universal 9º lugar Linking Park Universal 19º lugar

Marcelo D2 Sony 10º lugar Sandy & Junior WEA 20º lugar

Ilustração 2: Quadro Síntese do Top 20 Brasil em 7 de fevereiro de 2004.

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Passados oito meses depois do primeiro estudo, consubstanciado no quadro 1, os artistas em destaque no Disk MTV mudaram (esperado, diante da transitoriedade das produções culturais e mesmo das celebri-dades criadas), mas as gravadoras permaneceram as mesmas, as grandes players do mercado global, retrata a Ilustração 3.

Artista Gravadora Posição Artista Gravadora PosiçãoDead Fish DeckDisc 1º lugar Pitty DeckDisc 6º lugarLinkin Park WEA 2º lugar Wanessa Camargo BMG 7º lugarAvril Lavigne BMG 3º lugar Black Eyed Peas Universal 8º lugarCapital Inicial BMG 4º lugar Green Day WEA 9º lugarThe Calling BMG 5º lugar O Rappa WEA 10º lugar

Ilustração 3: Quadro Síntese do Disk MTV em 07 de outubro de 2004

Todos os artistas presentes no Disk MTV de 7 de outubro de 2004 (Ilustração 3) estão no Top 20 Brasil de 9 de outubro de 2004 (Quadro 4). Alguma semelhança entre os nomes seria até esperado, já que ambos os programas são paradas de sucesso, mas não a coincidência total; pois isto equivale a dizer que os telespectadores (nem todos os mesmos) fizeram pedidos iguais, em ocasiões diferentes, dentro de uma semana. Canclini (1990, p. 159) afirma que 80% da produção e da distribuição musical são manejadas pelas majors. Deste modo, a difusão da produção musical che-gou num patamar onde o que importa é manter um controle do sistema de distribuição no qual a MTV é o principal meio de comunicar a produção ar-tística industrializada, assegurando lucros dentro de uma diversidade con-trolada. Neste sentido a música tornou-se uma atividade estratégica para uma estrutura de mercado mobilizadora de circuitos globais de trocas.

Artista Gravadora Posição Artista Gravadora Posição

Capital Inicial BMG 1º lugar Linkin Park WEA 11º lugar

Dead Fish DeckDisc 2º lugar Ira! Sony 12º lugar

Black Eyed Peas Universal 3º lugar Avril Lavigne BMG 13º lugar

O Rappa WEA 4º lugar Green Day WEA 14º lugar

The Calling BMG 5º lugar Marilyn Manson Universal 15º lugar

D12 Universal 6º lugar Cidade Negra Sony 16º lugar

Pitty DeckDisc 7º lugar Evanescence Sony 17º lugar

Jota Quest Sony 8º lugar Titãs BMG 18º lugar

Marron5 BMG 9º lugar Wanessa Camargo BMG 19º lugar

Hoobastank Universal 10º lugar Dogão Sony 20º lugar

Ilustração 4: Quadro Síntese do Top 20 Brasil em 9 de outubro de 2004.

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Somando informações, a Ilustração 5 expõe os artistas e gravado-ras mais executados no Disk MTV em todo o mês de janeiro de 2004. Neste caso, o domínio das quatro majors é total, não havendo a participação mi-noritária de empresas menores associadas às grandes.

Artista Gravadora Artista GravadoraOffspring Sony Limp Bizkit UniversalChristina Aguilera BMG Charlie Brown Jr. EMIMadonna WEA O Rappa WEAFelipe Dylon EMI Marcelo D2 Sony Skank Sony Beyoncé Sony

Ilustração 5: Quadro Síntese do Disk MTV em fevereiro de 2004.

Em outro quadro totalizador, a Ilustração 6, novamente fica nítida a liderança das grandes representantes da indústria no Disk MTV de agosto e outubro de 2004, com a Sony BMG ocupando 60% do espaço.

Artista Gravadora Artista Gravadora

Linkin Park WEA Dogão Sony

Avril Lavigne BMG Cpm22 Sony

Pitty Deckdisc Jota Quest Sony

Titãs BMG Blink 182 Universal

O Rappa WEA Britney Spears BMG

Ilustração 6: Quadro Artistas mais programados em agosto e outubro de 2004 no Disk MTV.

Por fim, a Ilustração 7 mostra a posição do Top 20 Brasil durante todos os meses de análise, ficando a maior parte das posições, 6 em 10, com artistas contratados da Sony BMG. Registra-se que os dados consoli-dados dos dois programas indicam que esta gravadora ocupa mais de 50% das vagas disponibilizadas para execução musical.

Artista Gravadora Artista Gravadora

Capital Inicial BMG The Calling BMG

Linkin Park WEA Avril Lavigne BMG

Pitty Deckdisc Ira! Sony

Titãs BMG Black Eyed Peas Universal

O Rappa WEA Marron5 BMG

Ilustração 7: Quadro Síntese do Top 20 Brasil em todo o período.

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Estas dinâmicas inserem-se na estruturação de um mercado de di-mensão global. Nota-se que a indústria como meio de entretenimento e co-municação necessita, cada vez mais, de se aproximar de contextos sociais em efervescência para fazer com que o capital cultural circule, nem que para isso alguns setores antes fortalecidos sejam prejudicados, em detri-mento de novos mercados de consumo e lucro. Tudo isso vai depender de cada contexto e da situação em que se encontra a demanda cultural.

4. Jabá e Execução

Redutor do direito à difusão musical, o jabá sempre esteve vincu-lado aos principais programas de rádio e TV. André Midani, um dos ho-mens mais poderosos da indústria fonográfica brasileira entre 1960 e 1990, ex-presidente da Philips e fundador da filial brasileira da Warner, comenta a evolução do jabá, em entrevista à imprensa: “No início do governo FHC, se nos EUA o custo de lançar uma música no rádio era de US$ 100 mil por uma canção, no rádio brasileiro era de R$ 80 a R$ 100 mil [...] Quando isso começou, a verba publicitária era de 5% das vendas. Na época do Chacri-nha era algo como 10%” (Sanches, 2003).

O jabaculê ou payola, originalmente chamado de song plugging, nos Estados Unidos foi uma forma de marketing para a indústria fonográfi-ca. Era uma prática comum em todas as rádios de rock. Em 1960, Alan Fre-ed foi condenado nos EUA por suborno, o que gerou o fim de sua carreira de DJ (disk-jockey, o profissional que seleciona e executa a música gravada primeiramente em festas e, a partir daí, em outros espaços, como rádios) (shuker, 1999, p. 180). No Brasil, um projeto de lei do deputado Fernando Ferro (PT-PE) transita no Congresso Nacional, criminalizando o jabá; en-quanto isso, esta prática continua sendo usada livremente, apesar de não ser assumida pelas entidades envolvidas.

No plano nacional, a história do jabá pode ser dividida em três fases. Na primeira, no decênio de 40 do século XX, em troca de espaço nas rádios, os caititus (3) assinavam músicas sem participarem do processo de criação autoral, tornando-se parceiros de compositores, como Ary Barroso e Lamartine Babo. A segunda fase abre-se na seqüência, quando o radialis-ta (posteriormente também o apresentador de TV) passa a receber dinheiro

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e presentes, ao garantir a execução de alguma música. O jabá vai aparecer formalmente na terceira fase, com os representantes de gravadoras ou em-presários de músicos oferecendo favores materiais às próprias emissoras.

Segundo Roberto Menescal, diretor artístico da gravadora Poly-gram, hoje Universal, o processo para massificar um artista na década de 80, do século XX, consistia na compra de produtos para produtores e apre-sentadores: “Para o pianista e cantor Eduardo Dusek aparecer no programa da TV Bandeirantes, Buzina do Chacrinha, foi necessária a compra de uma TV estéreo importada para o apresentador” (cardoso, 2004).

Tubarão (oliveira, 2004c), músico de uma banda gaúcha integran-te da cena rock Brasil da década de 1980, assim denominado para não ser identificado, afirma que em 1985, quando o grupo foi ao Rio de Janeiro, o jabá se estruturava de duas formas dentro da então RCA/BMG Ariola:

Eram festas promovidas pela gravadora que envolviam todos os radialistas. Eles ganhavam carro, mulher, cocaína. Para a banda aparecer no programa do Chacrinha, tínhamos que tocar em shows produzidos pelo Leleco (filho do Chacrinha), fazíamos três shows na mesma noite, tudo playback, apresentávamos cinco ou quatro músicas em cada local. Eram uns barracões que tocavam funk, funk americano. Ficava lotado, cabiam umas duas mil pessoas, cobra-va-se ingresso. Nós ganhávamos um quarto do cachê da banda, que era muito pouco. Nesses lugares encontrei Lulu Santos, Lobão, Luis Caldas, Capital Inicial e o Barão Vermelho. Tocamos em todos os programas de TV na época, como Bolinha, Viva a noite e Clô para os Íntimos, cada um tinha um esquema diferente.

Conforme um diretor artístico de uma gravadora do Rio Grande do Sul, que será identificado como Tom (oliveira, 2003), existe ônus para tocar música nova, ligado a uma promoção sugerida pelas próprias rádios: “São enviados materiais para sorteio [...]. Esse é um raciocínio sadio. O brabo é quando se chega numa rádio em São Paulo, e eles pedem 20 mil reais para tocar duas vezes por dia a música. [...] O problema é enquadrar como crime. Ninguém passa recibo de jabá”.

Hoje o jabá não deve ser pensado apenas como pagamento de men-salidades das gravadoras para as emissoras (de rádio e TV), mas como todo um sistema de controle de mercado, aprimorado através de um processo de alianças empresarias entre firmas líderes. Até o final do decênio de 80 do século XX, o rádio se manteve como o quase exclusivo difusor da música

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pop no Brasil; com a inauguração da MTV no país, em 1990, a divulgação da música pop rock sedimenta-se, o canal se torna o único aberto, segmen-tado e exclusivo à execução musical em televisão.

A execução musical através do jabá é uma realidade que se mani-festa através de diversas formas de atuação: pagamento em dinheiro, brin-des, troca de favores ou processos associados entre empresas, numa forma de sinergia. Uma das práticas comuns em editorias de carros e motos são as assessorias de imprensa das montadoras de automóveis que convidam jornalistas para realizarem test driver, dispondo de um carro gratuitamen-te durante um dado período; e outra modalidade são os pagamentos de viagens e passagens aéreas. No caso específico do mercado musical, as gravadoras suprem as estações de TV e rádio de recursos financeiros ou produtos que possam ser úteis às suas rotinas operacionais ou estratégias de captação do receptor, através das seguintes práticas:

a) compra de aparelhos conforme a necessidade dos programado-res, como televisor, videocassete e DVD, entre outros;

b) apresentação gratuita, ou com cachê reduzido, de grupos musi-cais em eventos promovidos por emissoras;

c) pagamento de mensalidades às empresas de radiodifusão, por parte das gravadoras;

d) distribuição de produtos promocionais das gravadoras para se-rem sorteados em programas, mantendo a audiência fiel;

e) aquisição de equipamentos e carros, conforme a necessidade da emissora;

Especialmente tratando-se das majors, o pagamento do jabá – hoje configurado como projeto de marketing – é sustentado pelas próprias gra-vadoras, que abrem rubricas especialmente para tal, em seus orçamentos. Eventualmente, em especial nas gravadoras de menor porte, os custos são bancados parcialmente pelos artistas. Uma ação desenvolvida é a banda ou cantor redistribuir o cachê de sua apresentação, destinando-o total ou par-cialmente à gravadora, para esta utilizar em investimentos de marketing, num sistema de trocas de produtos, favores e serviços.

Com a crise do mercado fonográfico mundial, especialmente devi-do ao aumento da pirataria, as gravadoras passaram a enfrentar dificulda-des para cumprir os compromissos de seus investimentos em divulgação.

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Mesmo assim, as emissoras não reduziram o valor do espaço para a execu-ção musical, levando a indústria a buscar novas formas de custear o jabá, onde se insere a Síndrome de Detonautas: “O contrato Detonautas, relativo à banda Detonautas Roque Clube, prevê um percentual do cachê de cada show do grupo revertido à gravadora, que será utilizado em promoções” (Oliveira, 2003).

De acordo com Fábio Massari (2004), que trabalhou na rádio 89 FM e na MTV Brasil nos anos de 1990, o jabá oferece várias possibilidades:

Nos anos 80 o clichê básico era a gravadora pagar para o chefe de rádio tocar a música na programação. Muita gente enriqueceu através deste processo. Particularmente não tive esta experiência, o jabá mais gros-seiro, como coordenador da rádio 89 FM em São Paulo. O que é sabido são as gravadoras comprarem equipamentos ou carros para uma rádio, em troca da veiculação dos seus artistas. Esquemas foram armados através destes benefícios; tem uma sutil diferença entre você oferecer uma grana ou trocar favores, dentro de um mesmo universo.

Em relação à programação da MTV, que prioriza artistas das maio-res empresas fonográficas mundiais, Massari (2004) afirma que existe uma ligação entre estas peças da indústria, gravadoras e meios de comunicação: “Eles trabalham entre eles, as prioridades das gravadoras são seus artistas, que vão preencher o espaço de jornais, revistas e TV. São sempre as mes-mas cartas. Mas [...] nem todo o grande investimento dá certo, embora na maioria das vezes esses esquemas [...] acabem funcionando [...]”.

Essa legitimação do produto cultural através de grandes investi-mentos traz ao debate, o quanto o acesso à cultura depende fundamental-mente do campo econômico para se tornar público. O diretor da rádio Po-prock (que atua no segmento jovem, na Grande Porto Alegre), Mauro Borba (oliveira, 2004b), afirma que, nos últimos anos, o marketing promocional utilizado pelas gravadoras mantém a mesma forma, mas com uma inten-sidade menor: “As gravadoras deixam uma grande quantidade de material para sorteio. Hoje, para a rádio, é muito importante esse brinde. Todas as rádios dão presentes, oriundos das gravadoras. É o marketing de produtos das gravadoras”.

As trocas de favores entre gravadoras e mídia atingem também as apresentações de bandas em eventos das rádios, bem como a oferta de gen-tilezas aos diretores das emissoras:

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As bandas novas tocam de graça nas festas produzidas pela rádio. Às vezes trocam por mídia de um determinado show. Tem alguns casos que se paga cachê, isso acontece com bandas mais conhecidas. [...] As gravadoras acenam com presentes caros como passagens aéreas. Mas nunca me condicionei a tocar uma determinada música. Isso seria um pagamento se a gravadora impusesse; te dou tal viagem e você toca mi-nha música. Já fui a Londres ver o Oásis por conta da gravadora, mas não me comprometi em fazer nada. (OLIVEIRA, 2004b)

Então, na contemporaneidade, pode-se posicionar o jabá – pensa-do como a imposição de conteúdos midiáticos, a partir de lógicas merca-dológicas e em detrimento de interesses jornalísticos ou artísticos – como um processo ligado a importantes acordos intrafirmas, onde, através de sistema de trocas de serviços e tecnologias, a produção musical deságua no interior de uma operação administrativa sem precedentes. Se os artistas que mais aparecem na MTV fazem parte das maiores empresas fonográfi-cas mundiais, esta é uma forma fechada de agendamento da programação musical. Os canais empresariais afiliados priorizam seus produtos dentro dos meios de comunicação, que também controlam, e constituem as pró-prias barreiras à entrada em sua programação. A mercadoria cultural apre-senta-se como um micropoder que sustenta um macropoder, representado pela rede global de info-comunicação e suas corporações. A tendência das operadoras de audiovisual é a de promoverem o que as suas alianças pro-duzem.

No caso da difusão musical, há um elevado grau de concentração e uma nova composição da produção cultural, tendo a circulação das idéias se tornado propriedade privada, vendida nestes canais de comunicação. São circos empresariais que dominam todo o processo, da produção ao consumo, direcionado às novas tecnologias. Essas empresas criaram ca-nais para a difusão de seus produtos musicais e a MTV encaixa-se neste propósito.

O produto musical, para se tornar um fenômeno, precisa fazer parte de um agendamento. Segundo Calabrese (1987, p. 20), os fenôme-nos já não falam por si sós e pela evidência: “É preciso provocá-los, o que equivale a dizer que é preciso construí-los”. Nesse sentido as formas mais variadas de fazer jabá aparecem como uma dimensão de uma estrutura ligada a interesses industriais, tendo por objetivo influenciar a decisão do consumidor e produzir lucro às empresas afins.

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Por este caminho, o jabá ou projeto de marketing não pode ser pen-sado longe do capitalismo, “onde os meios de produção e difusão dispõem de forças econômicas e de acesso comunicacional capazes de impor condi-ções que restringem a circulação da livre produção cultural. [...] Além da dimensão econômica, o jabá reafirma padrões estéticos configuradores de uma exclusão da diversidade cultural musical [...]” (Oliveira, 2004d, p. 48).

As paradas de sucessos refletem e moldam a música popular, defi-nindo o que é relevante para o mercado, inserindo-se entre os instrumen-tos das estruturas de mercado que viabilizam os interesses de companhias oligopolistas. Percebem-se alianças entre os ramos do entretenimento em geral e das comunicações em particular, impondo produtos e definindo a grade de programação, num mercado concentrado.

5. Espaços e Mercados

Mas é claro que nem tudo é apropriado pela indústria. Ao mesmo tempo em que permitiu a solidificação de lideranças e o surgimento de novos conglomerados, nos marcos de um mercado global, a tecnologia, em suas brechas, foi incorporada pela sociedade para que a produção musical não ficasse restrita apenas às majors. A cena independente brasileira, na sua grande maioria, tem sobrevivido através do uso dos mesmos suportes tecnológicos que a indústria cultural propõe, como internet – distribuição por MP3, divulgação via e-mail ou criação de páginas da web – e estúdios digitais para gravações. Também o público pode utilizar os novos recursos, disponibilizando seus acervos, capturando músicas e trocando dados, o que traz sérios problemas para a indústria, obrigada a buscar novas formas de controle para continuar operando no mercado da música comercial. Aparece um novo quadro, pautado nas corporações que alargam suas bases de pesquisas e atuação, exigindo ações emergenciais.

A criação de gravadores de CDs e aparelhos de MP3 gerou um mercado paralelo de reproduções autônomas, onde, além de gravações ca-seiras, aparecem produtos falsificados, produzidos sem autorização, co-nhecidos como “piratas”, vendidos com baixo custo ao consumidor, por não pagarem direitos e impostos. A pirataria pode ser pensada como uma descentralização no controle sobre a produção e consumo, e está intima-

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mente ligada às condições de países pobres ou em recessão. Ao mesmo tempo gera uma economia informal como fonte de renda e emprego, o que não pode ser encarado como uma alternativa ao capitalismo, mas um acirramento das condições subalternas do trabalhador, já que a ausência de direitos sociais, trabalho escravo e a prática de crimes não raro acom-panham a pirataria.

A palavra bootlegs, utilizada originalmente na história da pirataria sonora pela revista Variety, em 1929, refere-se às gravações ilegais e faz analogia à venda ilegal de bebidas alcoólicas durante os 13 anos da Lei Seca, nos Estados Unidos (o termo é referência ao ato de esconder frascos de bebidas em canos de botas). A história da pirataria não é recente e tem início no início do século XX, quando o inglês Lionel Mapleson, radicado em Nova York, adquire um fonógrafo gravador e cilindros virgens com a capacidade de dois ou três minutos cada. Com o equipamento, ele come-çou a registrar, às escondidas, as apresentações de óperas na Metropolitan Opera House, que se tornaram documentos históricos do canto lírico: “Os primeiros discos piratas, tanto os patriarcas 78 RPM quanto os primeiros LPs, foram de música erudita e jazz, reproduzindo gravações raras ou iné-ditas que haviam caído em domínio público [...]. Em quase um século, os pirateiros fizeram a festa – basta lembrar ‘Crazy Blues’, do disco de 1920 da blueswoman Mamie Smith [...]” (Mugnaini, 2004).

A indústria reclama da pirataria, mas é ela que produz os equipa-mentos para a gravação e reprodução. A gravadora Sony é um bom exem-plo desta realidade: trabalha como empresa fonográfica e produz eletroe-letrônicos que gravam CDs e MP3. A popularidade destes equipamentos também ampliou a divulgação da música alternativa, pois o acesso a esses dispositivos tecnológicos gerou uma maior oferta no mercado. Além do mais, a indústria abre mercado para os piratas, ao trabalhar com margens de lucro muito elevadas (e investir em processos como o jabá), gerando altos preços finais ao consumidor final. Em relação ao mercado brasileiro, os lançamentos oficiais em CDs chegam às prateleiras variando entre R$ 35,00 e R$ 45,00, o que torna o consumo inviável para a grande parcela da população. Segundo a Federação Internacional de Produtores Fonográficos e Videográficos, em 1993, a pirataria em CDs atingiu 75 milhões de unida-des (Shuker, 1999, p. 211). No Brasil, a pirataria já consome 60% do mer-cado de discos, ficando em segundo lugar no ranking, só atrás da China.

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Apesar disso, em 2004, o crescimento do mercado do áudio e ví-deo chegou a 20%. Para o vice-presidente artístico e de marketing da Sony, Alexandre Schiavo, este crescimento não está nos lançamentos, mas sim nos catálogos, nas regravações, nas séries econômicas. “No caso do produto novo, a gente sua a camisa para vender 100 mil discos e comemora como se fosse meio milhão. O público está comprando mais produto barato. Precisa-mos então de mais oferta de produtos neste segmento” (Laurindo, 2004).

Com este processo instaurado, a indústria parece não experimen-tar tanto, buscando assim dar tiros certeiros, quando da contratação ou lançamento de produtos e artistas. Por isso, só uma ínfima parte da ex-pressão artística das sociedades é absorvida e transformada em produto cultural. Isto torna a cena musical comercial limitada a um dado padrão estético, ficando uma imensa legião de criadores e manifestações musicais isoladas, sem acesso às mídias, as principais formas de ofertar sentidos co-letivamente. Durante um período, de um a dois anos, há uma repetição in-cessante de um dado estilo musical, até que sejam demandadas inovações pelo mercado. É interessante pensar que o mercado fonográfico lançou, em 2003, o Detonautas Roque Clube como a novidade do ano; espaço que já foi ocupado por Charlie Brown Jr. No caso, mudaram as caras e as letras, mas o conceito melódico se assemelha e se confunde.

A indústria investe essencialmente nas tendências que têm a rá-pida aderência do público: se a preferência é dirigida a um tipo musical, como o rock street ou o rock melódico de beira de praia, então são buscados grupos da mesma categoria. Isso vale também para a popularização do re-ggae nacional, que traz canções românticas, com apologia às drogas e sem contestações sociais. Este gênero dominou principalmente as rádios do Sul do país e foi um mercado lucrativo para a indústria fonográfica brasileira.

Ao mesmo tempo em que os recursos tecnológicos trouxeram no-vas dinâmicas e ampliaram contatos, máxima válida para o mercado musi-cal dominante e alternativo, reservaram o direito de uso aos que possuíam sua gramática e, principalmente, seu controle. Para René Dreifuss (2004, p. 131), o século XX foi um marco para a civilização: “Cada vez mais as diferenças foram afirmadas e legitimadas, embora seja imperativo lembrar que nunca, como nesse século, se fez tal matança daquilo que é diferente, distinto e diverso, nem houve uma política tão brutal exercida sobre as diferenças”.

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Revela-se, neste momento, que as diferenças, ao serem realçadas, são focalizadas como matrizes consumidoras. Visto por outro ângulo, o discurso da diversidade inclui interesses econômicos e políticos desenvol-vidos no cultural, controlados e gerenciados por uma lógica mercadológica transnacional.

Paralelamente ao fenômeno industrial, é relevante pensar que a tendência é de que os grupos que aparecem na grande mídia nasçam de uma cena alternativa e se moldem conforme a estética midiática. “O âma-go histórico da música alternativa foi sua rejeição à indústria fonográfica comercial e a ênfase ao rock como arte em vez de um produto vendável para a obtenção de lucro” (Shuker, 1999, p. 240). O termo “alternativo” foi usado originalmente para se referir à música underground produzida nos anos 1960. Hoje, a indústria não mede forças para capitalizar também este mercado, que vai sendo apropriado pelas majors, através da distribuição de selos independentes, concentrando ainda mais o mercado. Nota-se que são os selos independentes os principais responsáveis pelas descobertas de novos talentos, às grandes companhias cabe apenas a distribuição.

A música alternativa ainda representa o principal foco de origina-lidade, atitude e confrontação da produção musical. Dentro deste mercado disperso, devido principalmente às distâncias geográficas de um país ex-tenso como o Brasil, existem enormes variações quanto à qualidade, pro-pósito, grau de inovação e descomprometimento da cena alternativa; seja como for, é através desta que as grandes gravadoras buscam as novidades que tanto necessitam para sua manutenção. Afinal, este é um processo dinâmico, onde a inovação desempenha um papel fundamental, dialetica-mente com a padronização.

Neste sentido, as pequenas gravadoras seguidamente funcionam como laboratórios das grandes; fenômeno típico das indústrias culturais, a exemplo da televisão. Explicitamente, um pequeno grupo, ao alcançar grandes públicos, é assumido por uma major; a partir daí ganha grande di-vulgação, passando a tocar nas principais emissoras de rádio e TV (graças aos amplos recursos para ousados projetos de marketing) e com freqüência tendo seu repertório alterado, além de outros elementos.

Deve ser discutido o que é concebido por independente. São aque-les artistas e companhias fonográficas que não atuam ligados ao padrão estético dominante ou aos grandes capitais. As gravadoras denominadas

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independentes não pertencem a conglomerados empresariais, intra ou ex-tramídia e, em regra, abrem espaço para músicos, cantores e grupos com-prometidos com estéticas ou propostas diferenciadas. Já os artistas musicais independentes, em geral produzem e executam cultura não relacionada ao sucesso momentâneo, propondo expressões ligadas a modos de viver e temporalidades diversas. Esta independência, contudo, não é generalizada: realiza-se em relação com alguns caracteres da cultura hegemônica, não implicando em uma desconexão do capitalismo global e sua sociedade de consumo. “Ao lado disso, há casos em que pequenas gravadoras reiteram as práticas das grandes, inclusive atuando como reprodutores do padrão estético dominante, só não dispondo de iguais recursos para o desenvolvi-mento de suas ações, em especial de divulgação” (Brittos; Oliveira, 2005, p. 57). Além de nem sempre estar ligada ao processo de renovação, a pro-dução alternativa pode trazer conceitos conservadores, repetindo valores e estéticas já estabelecidas.

Consoantes ao padrão estético, há variantes e experimentações que incorporam elementos regionais e globais. As influências de grupos norte-americanos e europeus são infindáveis na cena alternativa brasileira. Esta estética se apresenta como um reconhecimento que se estrutura através de variações locais, e compartilha referências que tendem a ser globalizantes. A produção alternativa deve ser aqui localizada fora da grande mídia, e se apresenta entre a imitação e a busca de um estilo próprio. Mas o con-ceito alternativo se dá na medida em que não é apropriado pela indústria, enquanto o padrão dominante dá o tom da cultura, dentro de uma noção de unidade e sistematicidade ordenada. Não obstante, a questão relevante para a discussão “alternativo” e “dominante” está no lugar que a produção musical ocupa; pois nesta localização encontram-se respostas, afinal sem-pre transitória, dentro do princípio de que tudo é efêmero para a indústria cultural.

Outro ponto é que o caráter comercial não inviabiliza totalmente um padrão de qualidade, algumas vezes podendo representar vanguardas. A música deve aqui ser pensada em termos de forma e conteúdo e não ape-nas como conseqüência do esquema produção e consumo. Notam-se even-tualmente grupos que fazem parte do mainstream e, ainda assim, misturam tradições e influências musicais, sem perder sua viabilidade comercial. Outra questão é a particularidade da produção musical, cuja subsunção no

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capitalismo é menor do que outras indústrias, como a cinematográfica, jus-tamente pela possibilidade de criação individual ou em pequenos grupos, com um mínimo de tecnologia.

Paralelamente, a cena alternativa pode ser vista como uma nova tendência dominante no mercado da música jovem e é ela que ajuda a cha-mar atenção às inovações. Isso reflete as heterogeneidades que se formam numa sociedade e se transformam em tribos distintas, as quais buscam variações de consumo. Essa ampliação de mercado demonstra a capacida-de da grande indústria mundial do disco de se aproximar de um mercado emergente para manter o controle.

Um bom exemplo do processo de apropriação está no fenômeno Nirvana, no início do decênio de 90 do século XX. A banda de punk rock saiu dos porões imundos de Seattle (EUA), através do selo Sub Pop e tor-nou-se o maior fenômeno da música pop mundial daquele momento, che-gando ao topo das paradas de sucesso da época. Além de suas canções, o estilo Nirvana ou grunge virou moda; camisas xadrez e calças rasgadas marcaram a estética rock de uma geração.

No Brasil, alguns grupos, como o The Butchers’ Orquestra, obtive-ram o respaldo do relevante e disperso público alternativo, cantando em inglês; o que demonstra uma influência direta da música norte-americana. Também vale ressaltar o gaúcho Júpiter Apple com suas referências ingle-sas, o hardcore dos Ratos de Porão e o rap dos Racionais MCs; esses dois últimos trazendo letras em português. A cena do Norte do país ainda man-tém características regionais e de folclore, misturando ritmos nordestinos a conceitos globais da produção musical. Este é o caso da Nação Zumbi, grupo pernambucano que apresenta um som globalizado, híbrido e reter-ritorializado.

Nesta moldura, deve ser resgatado o conceito de hibridização, como uma reorganização das formas culturais através da desterritorializa-ção dos processos simbólicos. Com a proposta de Culturas híbridas, Can-clini (1992, p. 11-12.) procura elaborar uma noção de hibridização que abarque, dinamicamente, “os diversos processos em que o culto, o popular e o massivo se inter-relacionam, se mesclam; o tradicional se intercepta com o moderno, distintas culturas de países e regiões diferentes também entram em relação”. A hibridização é processada e intensificada no inte-rior do capitalismo, por ser um fenômeno urbano que, através de técnicas

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de expansão dos bens culturais e do alcance de uma variedade de produ-tos, faz com que as interações circulem do local para o global, criando uma estrutura heterogênea de referências materiais e culturais.

A arte aqui deve ser pensada como uma articulação entre os vários referenciais culturais, uma reformulação e um cruzamento intercultural, onde o regional se articula com o tecnológico. Entre os fatores que inten-sificaram a hibridação estão a expansão urbana e a ampliação da oferta cultural através dos meios de comunicação. Segundo Brittos (2001, p. 43), há um reordenamento da cultura sobre a ação dos meios: “As ações dos meios estão presentes em grande parte das cenas sociais e envolvem tudo e a todos. Só que isso não implica na total destruição das culturas populares locais. Ocorre é que essas manifestações passam a ocupar um outro espaço ou acabam assimilando dados do massivo”.

A principal dificuldade da cena alternativa está representada nos obstáculos para a publicização de seus conteúdos. Todavia, é importante ressaltar que a cena alternativa se mantém através de gravadoras e selos independentes, festivais e um público fiel, que pesquisa e está atento às novidades, antes que estas sejam absorvidas pelas indústrias culturais. En-tre os festivais alternativos brasileiros estão o Abril Prorock (Recife), Mada (Natal), Paraibatuque (João Pessoa), Goiânia Noise (Goiânia) e Curitiba Pop Festival (Curitiba).

As gravadoras independentes hoje ocupam cerca de 15% da pro-dução fonográfica nacional e representam cerca de 400 selos musicais (Fe-lippe, 2004). As produções vão de gravações caseiras até materiais com qualidade similar à das maiores distribuidoras do mercado. O aumento do número de discos independentes nos últimos anos deve-se à maior facili-dade de acesso a equipamentos de gravações e à tecnologia digital. Com a criação da Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), aparece uma alternativa para a difusão da sonoridade que corre paralela à grande indústria. A ABMI foi composta por 30 gravadoras, a maioria sediada em São Paulo, mas há também selos do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul.

A MTV, como difusora da música jovem, apresenta uma progra-mação vinculada à grande indústria mundial do disco, mas ao mesmo tem-po procura estar próxima da cena alternativa mundial. Na programação de 2004, a MTV Brasil apresentou quadros com as bandas novas brasileiras,

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o que abriu algum espaço para o não convencional, embora o dominante seja o padrão hegemônico. Entre os programas estavam o Jornal da MTV (quadro Bandas Novas), Banda MTV, Gordo a Go Go, Lado B, Riff e Nação. A emissora também tem procurado estar presente em festivais alternativos, sendo uma importante divulgadora destes eventos para todo o Brasil.

Considerações conclusivas

Onde ficam a expressão da sociedade e a liberdade para manifes-tar-se artisticamente de forma partilhada, se a mídia acaba sendo o elo fun-damental neste processo de publicização e compartilhamento? A MTV e toda a indústria midiática promovem um agendamento musical aos diver-sos grupamentos sociais, sendo difícil aos não ligados a este ciclo ingressa-rem na pauta do que vai ser consumido no país ou não. Este processo está intimamente ligado aos importantes mecanismos da distribuição cultural, onde se organizam interesses econômicos através de uma produção artísti-ca autoreferenciada e mundializada.

Ante a ausência de ação do Estado neste tópico que, por estar a serviço destes mesmos interesses capitalistas, não regulamenta a mi-diatização da diversidade artístico-cultural brasileira, a decisão sobre a execução da produção musical fica a cargo unicamente dos complexos de comunicação industriais. Com isso, as políticas de difusão da música pop rock no Brasil ficam atreladas precipuamente às lógicas capitalistas, in-cluindo estratégias e competitividade industrial. Neste sentido, a produ-ção e distribuição da cultura se apresentam sobre decisões centralizadas e organizadas conforme critérios empresariais. A questão não é a força da orientação mercadológica na publicização da música no Brasil, já que esta é a regra no capitalismo. Está na ausência de outras lógicas ligadas aos ditames de espaço público, cidadania e pluralidade, para minimamente atenuar os efeitos da ação dos capitais, o que deve ser efetuado através de avançadas políticas públicas.

Pelas condições que permeiam a execução na mídia comercial, em especial a televisão, hoje o meio de maior integração e dinamização da so-ciabilidade, a viabilidade artística de uma produção musical, em termos de repercussão junto a amplos públicos, depende de sua relação com as prin-

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cipais gravadoras transnacionais, o que pressupõe uma imposição de bens simbólicos. Há uma crescente transformação da cultura em mercadoria, com o sistema capitalista expandido utilizando a produção cultural como uma das mais lucrativas relações do mundo contemporâneo.

É notório que, paralelamente a estes setores oligopolistas, há uma cultura de resistência, atuante em diferentes níveis sociais, mas, ao mes-mo tempo, essa produção cultural é parcialmente apropriada pela indús-tria cultural. Um exemplo distingue-se na música jovem, no caso o rock, que deixou de ser uma postura de rebeldia para se transformar num estilo de vida. Ele se converteu num importante filão no mercado de consumo. Seus signos representam uma multiplicidade de relações dentro de uma dinâmica que opera sobre a produção cultural e o consumo. Desta forma, a indústria cultural fornece um modelo que configura sua estabilidade dentro do âmbito global da difusão e da desterritorialização de bens sim-bólicos.

Há uma definição de mundo social de acordo com cada interesse envolvido no processo. Assim, as culturas locais são fundamentais para a indústria cultural, onde seu repertório simbólico é apropriado e recons-truído conforme as regras gramaticais da mídia, dentro de experiências multiculturais sobre conexões econômicas e tecnológicas. A expansão da indústria cultural e a aceleração da globalização vêm reordenar a produ-ção e a circulação de bens, correspondendo, assim, a uma relação de base econômica, de estrutura social e de dimensão simbólica, onde o cidadão é transformado em consumidor.

Deste modo, a informação midiática chegou num patamar onde o que importa não são as formas artísticas, mas assegurar o controle dos lu-cros, dentro de uma diversidade controlada. As atividades industriais e os bens culturais fluem no mercado, paralelamente, dentro de um território comunicativo demarcado pelo consumo e o entretenimento.

Notas

1 Em agosto de 2004, a Sony Music Enternainment e a BMG anunciaram a fusão das duas empresas na agora denominada Sony BMG Music Entertainment, tornando cada vez mais concentrado, o mercado da música gravada mundial. A nova Sony BMG Music Entertainment está dividida em cotas de 50% da Bertelsmann e 50% da Sony Corporation of American (Sony BMG, 2004). Estas associações mundiais, ao atingirem as filiais de outros países, têm que ser aprovadas em cada um deles. No Brasil, os processos de fusão são examinados e decididos

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pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A união das duas corporações reúne alguns dos mais importantes artistas do mundo, como Santana, Aerosmith, Britney Spears e Avril Lavigne. Entre os selos estão Arista, Columbia Records, Epic Records, Jive, J Records, RCA Records, RLG-Nashville, Sony Music Nashville, Sony Classical, BMG UK, BMG Japão, BMG Ricordi e Sony Music Internacional.

2 As denominações das gravadoras, no decorrer do texto, inclusive na análise empírica e retroativa, foram atualizadas pelos autores com base nos resultados das diversas associações, conforme registros do início de 2005.

3 Os caititus eram profissionais especializados em fazer propaganda de música, originando a primeira forma de denominar o jabá.

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Valério Cruz Brittos – Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutor em Comunicação e Cultura Contempo-râneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ana Paola de Oliveira – Mestre em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Rese

nha

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A BARCA: TRILHA, TOADA E TRUPÉA Barca: Trilha, Toada and Trupé

Sonia Ray (UFG)[email protected]

A BARCA é um grupo paulista que pesquisa gêneros tradicionais brasileiros desde 1998. “O trabalho da Barca partiu do estudo da obra de Mário de Andrade, particularmente do material musical recolhido por ele em suas diversas viagens, além das gravações feitas em 1938 pela Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto idealizado por ele quando chefe do De-partamento de Cultura de São Paulo”, afirma Renata Amaral, contrabai-xista do grupo. O trabalho inclui coletar material musical nos locais onde as manifestações acontecem Brasil adentro, analisá-lo, criar arranjos e até mesmo composições inéditas inspiradas por este material. O grupo divulga os resultados de suas pesquisas através de gravações e realização de espe-táculos, além de manter um amplo acervo com toda a documentação de seu trabalho de campo. O trabalho da Barca já rendeu vários frutos, entre eles a participação no Projeto Rumos do Itaú Cultural.

Resenha (p. 129-131)130 MÚSICA HODIE

O TURISTA APRENDIZ foi um projeto da Barca no qual o grupo se propôs a percorrer 21 municípios carentes e periferias de capitais em 9 es-tados brasileiros realizando shows, oficinas de criação musical e vivências, tendo como base material coletado. O grupo tem a preocupação constante de contribuir para a continuidade das tradições musicais nacionais, bem como reverter frutos de seu trabalho em recursos que promovam melho-rias na qualidade de vida das comunidades carentes envolvidas. A viagem teve 50 dias de duração, nos quais músicos e equipe produtora viajaram num ônibus/estúdio/palco adaptável a espaços e condições diversos. Os pesquisadores da Barca realizaram registros inéditos em áudio e vídeo de cerca de trinta grupos tradicionais. Esse material foi organizado em uma caixa com 3 CDs e um DVD, acompanhados de um encarte de 120 páginas. O encarte detalha as comunidades visitadas, as manifestações registradas (como o Tambor de Crioula e o Boi de Cururupu - do Maranhão, o Reisado, o Guerreiro e a Banda Cabaçal - do Ceará, entre outros), as letras das mú-sicas gravadas, e textos bibligues com informações raras sobre os gêneros, depoimentos dos mestres populares e um diário de viagem que, somente quem assistiu as festas e rituais e conviveu com os membros das comuni-dades, poderia descrever. O encarte traz também um ensaio fotográfico.

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A BARCA: TRILHA, TOADA e TRUPÉ é o título da caixa com 1 DVD e 3 CDs recém lançada pelo grupo. O DVD é um documentário de 86 minutos que registra momentos da viagem ilustrando com qualidade e res-peito aspectos da música e do cotidiano das comunidades visitadas. Trilha é o CD que traz músicas gravadas pela Barca em estúdio (antes e depois da viagem), além de algumas faixas gravadas ao vivo durante os shows apre-sentados na viagem, com participação de músicos locais. Toada e Trupé são os CDs que reúnem músicas selecionadas dentre as gravações com os próprios membros dos 30 grupos visitados. Completando a caixa, o DVD documentário Turista Aprendiz.

Esta caixa, sintetiza uma experiência única que a Barca teve por 9 estados brasileiros inspirados pelas idéias de Mário de Andrade. Os relatos presentes no diário de viagem, somados aos depoimentos dos membros das comunidades visitadas e as gravações das músicas em si, revelam a riqueza da cultura musical brasileira de que tanto nos falou Mário de Andrade, e nos aproxima desta riqueza a medida em que mergulhamos na apreciação do trabalho da Barca.

Acredito que este trabalho, além de merecer prestígio, deve se fir-mar como uma fonte de referências tanto para pesquisadores interessados na produção artística regional, estudantes de música, compositores, arran-jadores e performers, quanto, certamente, para as comunidades e músicos participantes. A Barca ainda deve nos surpreender com mais registros cria-tivos da cultura musical brasileira, visto que outros projetos derivados do Turista Aprendiz continuam em andamento. Neste semestre, membros da equipe estão no Maranhão gravando a festa do Boi de Maracanã na totali-dade (música e dança) numa produção que prevê gravação em CD e DVD. Para maiores informações sobre as gravações e outros projetos da Barca, vale a pena visitar o sítio do grupo na internet (www.barca.com.br). Veja também uma seleção de músicas que o grupo preparou especialmente para esta edição de Música Hodie na seção Primeira Audição.

A BARCA – Formada por André Magalhães (bateria e percussão), Ari Colares (percussão), Chico Saraiva (violão), Juçara Marçal (voz), Lincoln Antonio (Piano), Marcelo Pretto (voz), Renata Amaral (contrabaixo elétrico), Sandra Ximenez (voz) e Thomas Rohrer (rabeca e saxofone). Visite o site: www.barca.com.br. Projeto Turista Aprendiz – Renata Amaral (coordenação), Lincoln Antonio e Renata Amaral (direção musical), André Magalhães (produção musical), Patricia Ferraz (direção de produção), Ernani Napo-litano (engenheiro de som), Angélica Del Nery e Olindo Estevan (vídeo e fotografia) e Flecha e Bessa (motoristas). Produção Nordeste – Amélia Cunha; Designer gráfico – André Hosoi; Assessoria de imprensa – ECOAR.

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ToCatchitaToCatchita

Daniel Wolff (UFRGS)[email protected]

O título ToCatchita é um jogo de palavras. A peça, composta em 2003, é dedicada à pianista Catarina Domenici, cujo apelido é Catita (optei pela grafia com “tch” por parecer-me mais próxima da maneira como se pronuncia). O prefixo “to” vem do inglês “para”, ou seja, ToCatchita quer dizer “para Catita”. Ao mesmo tempo, o título coincide com o diminutivo de Tocata, gênero desta obra.

ToCathita está dividida em três seções. A primeira seção, calma e lenta, ronda continuamente a nota fá-sustenido, primeiramente como nota pedal, passando a seguir a ser ouvida subliminarmente, como nota inte-grante de todos os acordes. Após uma curta insistência na quinta superior dó-sustenido, a seção é finalizada com a quinta inferior si. A segunda seção caracteriza-se pelo movimento escalar constante na mão esquerda e com o movimento harmônico resultante do uso de diferentes tipos de escalas. A terceira seção, com forma ABA, está novamente centrada em fá-sustenido. O ostinato da parte A é contrastado pelo ritmo de baião da parte B.

ToCatchita foi gravada por Catarina Domenici no CD Porto 60. Para saber mais sobre as obras de Daniel Wolff, acesse www.danielwolff.com.br

* * *

The title ToCatchita is a play on words. The piece, composed in 2003, is dedicated to pianist Catarina Domenici, whose nickname is Ca-tchita. As the piece was written to Catchita, I decided to name it ToCatchi-ta, a title which at the same time represents the diminutive of toccata, the genre of this work.

ToCatchita is divided in three sections. The first section, calm and slow, orbits the note F-sharp, first as a pedal tone, then more subliminally as a chord member. After a short insistence on the upper fifth C-sharp, the section ends on the lower fifth B. The second section is characterized by the constant scale passagework in the left hand, with the harmonic move-

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ment resulting from the use of different types of scales. The third section, in ABA form, is again centered on the note F-sharp. The ostinato of the A part is contrasted by the baião of the B part. Baião is a typical rhythm of the northeast region of Brazil.

Catarina Domenici recorded ToCatchita in her CD Porto 60. To find out more about Daniel Wolff visit www.danielwolff.com

Daniel Wolff – Professor do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS. É Doutor e Mestre em Música (violão) pela Manhattan School of Music de Nova Iorque (bol-sas CNPq e Capes), e Bacharel em Música (violão) pela Escuela Universitária de Música de Montevi-déu. Vencedor de concursos nacionais e internacionais de violão, sua carreira inclui apresentações na América do Sul, Estados Unidos e Europa, tendo já diversos discos gravados. Como compositor e arranjador, teve suas obras executadas ou gravadas por orquestras e grupos do Brasil, EUA, Argentina, Itália, Alemanha e Inglaterra. Para maiores informações, ver www.danielwolff.com.br.

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MÁRIO DE ANDRADE: DUAS ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS

Mário de Andrade: two contemporary views

Sonia Ray (Ed. - UFG)[email protected]

Primeira Audição apresenta duas faces contemporâneas da produção musical brasileira: a música tradicional coletada in loco em três regiões do país (Sudeste, Nordeste e Norte) pelo grupo A BARCA e a canção brasileira composta por Camargo Guarnieri na interpretação de Ângela Barra (canto) e Marina Machado (piano). Ambos os trabalhos inspirados pela obra de Mário de Andrade (1893-1945).

***

Primeira Audição (Premiere) presents two contemporary sides of Brazilian Musical production: traditional music recorded in loco in three different regions of the country (Southeast, Northeast and North) by the group A BARCA, and Camargo Guarnieri´s Brazilian songs performed by Ângela Barra (voice) and Marina Machado (piano). Both works were inspired by the legacy of Brazilian poet, musician and writer Mário de Andrade (1893-1945).

1. O Grupo “A Barca”

A viagem da Barca pelo Brasil envolveu uma longa preparação dos músicos do grupo e da equipe de suporte, além de muitas equipes de pro-dução local. Por dois meses (dezembro de 2004 a fevereiro de 2005), a Bar-ca viajou mais de 10.000 km por 9 estados brasileiros, do Pará a São Pau-lo, através do Projeto Turista Aprendiz, patrocinado pela Petrobras. Cerca de 30 comunidades foram visitadas, desde quilombos e aldeias indígenas até periferias das grandes capitais, passando por pequenas cidades ribeiri-nhas, litorâneas e sertanejas. O projeto foi inspirado em relatos de viagem e depoimentos de Mário de Andrade. As faixas aqui apresentadas são al-gumas entre as centenas de raras peças musicais do acervo da Barca que não compuseram a primeira coletânea recém lançada pelo grupo. (Vide a seção resenha) As notas sobre estas faixas foram extraídas do diário de via-gem da Barca, gentilmente cedidos pela coordenadora do Projeto Turista Aprendiz, Renata Amaral, para a Música Hodie. A ficha técnica completa das faixas 1 a 13 pode ser acessada no site www.musicahodie.mus.br ou www.barca.com.br

Primeira Audição (p. 149-157)150 MÚSICA HODIE

2. Marina Machado e Ângela Barra

A coletânea de 12 poemas intitulados Os Poemas da Negra (1929), de Mário de Andrade inspiraram e serviram de matéria prima para Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) compor o ciclo de canções homônimo para canto (soprano) e piano no período entre 1934 e 1975. Os poemas re-velam a preocupação constante de Mário em explorar o Brasil (a natureza, o povo, as peculiaridades regionais) e a escrita poética. Guarnieri conhe-ceu Mário em 1928 e desde então passou a reverenciá-lo como seu mestre. Mais tarde se tornariam amigos e parceiros. A gravação aqui apresentada foi feita do Auditório Belkiss Carneiro de Mendonça, na Escola de Mú-sica e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, dia 29 de março de 2004, durante o recital de defesa de Mestrado em Música da pianista Marina Machado.

3. Faixas do CD / CD Tracks

ACERVO BARCA PROJETO TURISTA APRENDIZ: EXCERTOS SELECIONADOS PARA MÚSICA HODIE

1. Carimbó - Os Quentes da Madrugada da Irmandade de São Benedito, de Santarém Novo - PA

21/12/04 - Alvorada. 5 da manhã. Início oficial da Festa do Carimbó da Irmandade de São Benedito. Chegamos à casa do festeiro do primeiro dia, que será juiz do mastro e da bandeira. Choupaninha avarandada na palhoça, na mesa o café doce, o beiju chica e cachaça, gengibre e batidas em garrafão de cinco litros esvaziado rapidamente, simétricos à animação crescente e o giro das saias. Quase nenhum porre, as vozes boas, as mãos plenas. Primeiro dia é de promessa precisada de cumprir, não entra no pilouro, filho de um caboquinho caprichoso curado pelas graças do santo preto... E os tambores soberanos.

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 151MÚSICA HODIE

2. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, de Ribeirão das Neves - MG

30/1/05 - Festa de aniversário congadeira. Na hora de guardar os tambores, Dirceu me chamou pra perto dele. Fiquei lá, sem saber pra o quê ele tinha me chamado. Puxou um canto de parabéns. Adelmo puxou outro, o capitão mais novo... Edinha, Nenzinha e Luíza trouxeram um rosário e me vestiram com ele. Por último, seu Zezé me abençoou. Me senti sendo batizada no Rosário. É sem nenhuma possibilidade de dúvida a maior emoção que senti nos últimos anos. Não lembro de outro momento que tenha me deixado tão comovida. A comunidade é mesmo um fenômeno, faixas, panfletos, comida, alta produção e o povo mais animado e caprichoso do mundo. Dia de emoção, o presente lindo para a Ju, todos chorando com o canto ancestral do seu Zezé, o agudo lâmina do congo entrando direto no coração.

3. Redandá - Candomblé Angola, de Embu Guaçu - SP

12/2/05 - Chegamos ao Redandá às 22h30. A casa é uma beleza. Uma sala grande enfeitada com gravuras acima das janelas e portas, cadeiras de palha, os tambores. Um corredor, todo enfeitado de palha verde e flores, sai da lateral direita da sala, uma singeleza e um capricho que já dão a medida do cuidado com as coisas dos santos nesse lugar... Fomos recebidos por Exu Onan, anfitrião poliglota de olhos muito vivos, mas quem viria gravar era seu Marujo, caboclo chefe da casa, guerreiro quilombola que viveu em Palmares, trazendo histórias e cantigas. Demoramos a começar, embalados na prosa e no pirão de banana delicioso que prepararam para nós. O pequeno Ramsés coordenava tudo, dando instruções e explicando a todos – esta é a máquina de voz... De início ressabiado com os microfones, seu Marujo por fim se esqueceu deles e cantou com a voz de seus 400 anos, luminosa, inquebrável. Certa hora mandou parar tudo, cantou uma cantiga longa sobre gerar e parir, olhando no olho de cada mulher, e a casa toda veio abaixo em lágrimas. A cantoria entrou pela madrugada, chegou seu Araribóia, outros caboclos foram vindo, e lá pelas tantas o jeito foi desligar tudo e cair na dança, e o samba na senzala continuou até a barra do dia.

Primeira Audição (p. 149-157)152 MÚSICA HODIE

4. Reisado dos Irmãos, de Juazeiro - CE

06/01/05 - Foi uma surpresa a força daquilo, o Quilombo. Acertamos em cheio nesse Dia de Reis. Esse Quilombo é festa rochedo, páreo para carnaval e São João, vários grupos na rua naquele solão de matar, desde bem cedo. A melhor parte foi o Reisado dos Irmãos. O maior agito na rua, as ‘almas’ fazendo estardalhaço. De repente, o Cícero bota fogo na zabumba e só ele instaurava um clima furioso de excitação. Avante! Me sinto num filme de guerra medieval, meio sobrenatural, com aquelas figuras negras e mascaradas abrindo caminho a golpes de chicote, os guerreiros correndo com seus peitorais e espadas, era guerra, não tinha dúvida. Avançávamos em tensão rumo ao trono da rainha, aos gritos e estalos de chicote. O cenário era um capricho só, vários andares de palhas, plantas e cetim, para onde sobem a rainha e a pequeníssima princesa. O grupo se divide entre os que defenderiam a rainha e os que iriam raptá-la, e a briga foi feia. Duelavam de verdade batendo as espadas com ritmo e violência, e a assistência torcia nervosa palpitando na luta. Enfim raptam a rainha, era o jeito, e todos então cantam e dançam juntos, reisado é bom...

5. Povo Kariri Xocó, de Porto Real do Colégio - AL

22/01/05 - Chegamos à aldeia dos Kariri-Xocó e estamos num quintal delicioso com cerquinha de galhos de árvores, mangueiras, muitas plantas. Eles estão se arrumando, com pinturas diferenciadas no corpo, cada um faz a sua. Gravação meio às pressas, pois eles precisavam voltar para o ritual do Ouricuri, de onde não poderiam ter saído. Mas vieram para cantar, e cantaram mesmo. Os torés foram fortes, coisa séria. O canto das mulheres é bem agudo e sai totalmente sem força, por cima da cabeça, vertical. Parece mesmo um agudo da coluna pra cima. As vozes sempre abertas procuram nas pareias aquela textura de harmônicos que encaixa os timbres, sempre muito agudo para puxar potência, e da gama toda das pareias femininas e masculinas vem um som muito poderoso. Thomas observou que eles parecem procurar os batimentos de afinação que produzem como que um zumbido que dá o maior barato. A ressonância das vozes é poderosa, incisiva, atua como se fosse tambor nos nossos esqueletos ouvintes.

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 153MÚSICA HODIE

6. Tambor de Taboca da Casa Fanti Ashanti, de São Luís - MA

29/12/04 - Pai Euclides, produtor artístico experiente, já tinha as dezesseis músicas do repertório do tambor de taboca selecionadas, datilografadas e em ordem... Ô gente boa de música! Em uma hora tínhamos um disco pronto sem mais. Dentre todos os mestres que convivo, Pai Euclides é dos que mais me impressiona. A vocação plena do sacerdote, a memória assombrosa, o talento de artista demais. Dançarino de graça e elegância, artesão refinado, figurinista, bordador, compositor inspirado, e a voz... Meu Deus! Onde vibra tanto harmônico naquela caixa torácica tão pequena? O jeito com que ele lança a frase para o agudo e vai deixando as notas caírem dançando que nem folha no vento, num dengo de matar! Repete nunca do mesmo jeito, alonga a nota, pairando sobre o pulso. Respiro sua voz e me sinto plena. (Penso que são vários artistas: ele, seu Tabajara, Balanço, Corre Beira, o temível Jaguarema... talvez carregar muitos espíritos marque na memória corporal um repertório mais vasto, e exercite ferramentas outras que o artista de uma alma só não pode experimentar).

7. Samba de Roda e Boi de Roça da Quixabeira, de Lagoa da Camisa - BA

23/1/05 - Depois do almoço apimentado na casa do Véio, fomos para casa de dona Budu, sua mãe, para a gravação do samba de roda. Dona Budu dá um show de samba no pé. Ela tem um jeitinho diferente de dançar, uma puxadinha de pé pra trás que ninguém tem. Ela e sua companheira de microfone têm um jeito especial de bater palma. Quando não estão batendo, ficam roçando uma mão na outra. Espera, ritmo, atenção. Coro feminino cantando “amor de longe, benzinho”. Muitas quadrinhas... Uma das coisas mais lindas nas pareias, além do próprio correr das vozes, são os espaços de silêncio, de suspensão entre uma estrofe e outra. Eles esperam calmos até o momento de cantar de novo. E demoram para isso o tempo que for necessário.

Primeira Audição (p. 149-157)154 MÚSICA HODIE

8. Cantadeiras do Souza, de Jequitibá - MG

28/01/05 - Aquela casa da Dona Marli parecia um cenário. Uma locação de casa de fazenda, os arreios, ferramentas, varandinha, fogão a lenha. Tudo ali era bem acabado e harmonioso. Sitiozinho de sonho para preguiçar macio, samambaia na varanda, roseiras no jardim mimado, o riachinho manso. Uma delicadeza, como a música delas. Impressionava como fazia sentido, estava tudo no lugar. Aquelas senhorinhas fazendo uma coisa muito sofisticada com uma naturalidade absoluta. Todas irmãs e primas, as vozes timbradas desde o útero. Tudo pleno. Ali deu muito dó de sair correndo. As encomendações de alma eram de prender a respiração, não dava para entender de onde saía aquele som de órgão que ia se transformando no ar, entrecortada pela voz espectral do seu Juvercino, que aumentava mais ainda a tensão. (Imaginava a própria alma encomendada pelas trombetas dos anjos)...

9. Sítio de Pai Adão, Xangô do Recife - PE

16/01/05 - Manuel Papai apresenta a casa pra gente num longo passeio pelo lugar. Primeiro nos levou até Iroko, a árvore sagrada que protege o sítio. Uma gameleira imensa, de mais de 150 anos, frondosa e cheia de histórias. Um tronco que vai crescendo de forma que parecem que são vários troncos retorcidos que saem do chão e vão se torcendo e assim se apoiando pra poder ir mais alto. A gravação começou às 13h. Mãezinha começa puxando os cantos e Manuel Papai vai sutilmente regendo a entrada do coro e dos ilus. Maria do Bonfim dança. Dá pra ver o que era ela dançando quando moça. Concentrada em seu passo, do qual só vemos hoje o gesto leve dos braços... dançantes, divinos.O toque dos ilús é de uma força descomunal. Assusta, vibra os ossos de um jeito que as elocubrações espirituais ficam para depois, tão intensa é a sensação física. Seu Malaquias dobrando o ilu grave é de chorar. Uma elegância, força, maestria, coisa de vida inteira e mais outras, ali, concentradas. Fico hipnotizada com aquele improviso tocado de corpo inteiro, certeiro, dança de árvore enraizada fundo. Só isso já tinha valido a viagem.

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 155MÚSICA HODIE

10. Cocos da Paraíba, Pilar e Alagoa Grande - PB

08/01/05 - No começo muitíssimo tímidos, os dois irmãos. De repente chegou de enxurrada, uma paixão com que eles fizeram esse som que não faziam há tempos! Ela com a necessidade do canto como o que mais sabe e gosta de fazer. A partir de um momento fica doida pra dançar, começa a se mostrar. “Eu saí de casa pra cantar / Deixa o sol descer / Eu saí de casa pra cantar”. Mas se cansa. Senta, respira e recomeça com o canto forte igual. Parece que na próxima ela não terá mais voz, tamanho é o canto. Mas isso não acontece e ela canta infinitamente! “Tenho 55 anos e não sinto uma dor no corpo. E olha que eu tive 24 filhos”. Dona Odete é bonita, corpo todo certinho e forte. Braços, peitos, “quando a gente sua é que a saúde chega”. Dona Odete continua impressionando a todos que estão ali. Ela mantém o registro rascante da voz no grave e no agudo. Isso torna o agudo algo poderosíssimo. No talo. Quando conversa, muda. É toda recatada, lacônica, não se alonga na prosa, mas vai lá adiante na poesia. Conta do marido atual, que a deixou porque ela foi lá cantar. Ele é neto do outro que morreu. Não sabe ler nem escrever, aprendeu a cantar coco com o pai, “de pequena”.

11. Cocos da Paraíba, Pilar e Alagoa Grande - PB

09/01/05 - Caiana dos Crioulos é uma beleza. Montanhas pra todo lado, roças e casinhas pregadas em vários pontos dessa paisagem: uma azulzinha lá embaixo, uma branca lá no alto, láááá longe outra. Descemos o morro para chegar na sede da associação organizada pelas mulheres da comunidade. Elza e Cida na coordenação. Nos esperavam com a comida pronta e curiosidade. Cada um falou de si, sentados assim em bancos à volta da sala. Tentei dizer a importância que tinha pra mim visitar aquela comunidade. Só tentei... A apresentação começou por volta das 19h30. Elas cantaram cocos pra gente. Depois cantamos alguns cocos e forrós pra elas dançarem animadíssimas umas com as outras. Saímos de lá às 22h. Chegada em João Pessoa, 1h45. Pessoal ainda foi jantar. Preferi ir dormir. Sonhar com uma Caiana melhor ainda, com água, mais escolas, saneamento básico, fartura...

Primeira Audição (p. 149-157)156 MÚSICA HODIE

12. Bumba Boi de Costa de Mão Brilho da Sociedade, de Cururupu - MA

25/12/04 – NATAL - A forma de posicionar o pandeirão e o jeito de bater são o que diferencia em primeiro lugar a história do toque de costa de mão. Mas, além disso, ele é mais cadenciado. E a voz de seu Edmundo nesse universo sonoro que junta de uma maneira singular a precisão da batida com a constante impressão de que o tempo foi deixado de lado. A voz de seu Edmundo é isso, a suspensão no tempo, ela vai, vai, vai... Seu Edmundo é de fato dos maiores artistas que conheço, toadas lindas, um coro masculino denso e firmado, cheio de harmônicos, a batucada lenta e vigorosa, toda terra, toda chão, que vai organizando a gente por dentro, e a voz dele passeando em toda tessitura, serenando acima do bem e do mal, encanto total.

13. A Barca, de São Paulo - SP

31/01/05 - Todos sabíamos que aquilo não se repetiria, e o alívio e a saudade já batiam, juntos. Conversamos muito, nos gostando, rindo, lembrando belezas e trapalhadas. Lembrei do Dirceu do congado falando da falta que sente dos companheiros quando não estão em festa, e do peso que isso tem. Elemi Oxum é uma toada do candomblé do Maranhão para Oxum, a deusa da fertilidade e das águas doces, aprendida pelo grupo na Casa Fanti Ashanti.

CICLO OS POEMAS DA NEGRA (1929)Camargo Guarnieri (1907-1993) e Mário de Andrade (1893-1945)

Ângela Barra, canto e Marina Machado, piano

14. Não sei porque espírito antigo

15. Não sei se estou vivo

16. Você é tão suave

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 157MÚSICA HODIE

A Barca – Formada por André Magalhães (bateria e percussão), Ari Colares (percussão), Chico Saraiva (violão), Juçara Marçal (voz), Lincoln Antonio (piano), Marcelo Pretto (voz), Renata Amaral (contra-baixo elétrico), Sandra Ximenez (voz) e Thomas Rohrer (rabeca e saxofone). www.barca.com.br Projeto Turista Aprendiz – Renata Amaral (coordenação), Lincoln Antonio e Renata Amaral (direção musical), André Magalhães (produção musical), Patricia Ferraz (direção de produção), Ernani Napo-litano (engenheiro de som), Angélica Del Nery e Olindo Estevan (vídeo e fotografia) e Flecha e Bessa (motoristas). Marina Machado – Mestre em Música - Performance em Piano pela Universidade Federal de Goiás. É professora de acompanhamento ao piano na mesma instituição. Ângela Barra – Doutora em Música - Performance em Canto pela Indiana University, EUA. É profes-sora de Canto na EMAC-UFG.

17. Estou com medo

18. Lá longe no sul...

19. Quando

20. Não sei porquê os tetéus

21. Nega em teu ser primário

22. Na zona da mata

23. Há o mutismo exaltado dos astros

24. Ai momentos de físico amor

25. Lembrança boa...

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Vol. 6 - Nº 1 - 2006 161MÚSICA HODIE

CHAMADA PARA ARTIGOS, GRAVAÇÕES E PARTITURAS

REVISTA MÚSICA HODIEPublicação do Programa de Pós-graduação - Mestrado em Música

Escola de Música e Artes Cênicas da UFG

Próximo fechamento / next deadline 2006:Vol. 6 n. 2: 1/Outubro

A publicação visa incentivar a produção científica e artística relacio-nada à Performance Musical e suas Interfaces, Composição e Novas Tecno-logias, Educação Musical, Música e Interdisciplinaridade, Musicoterapia, Linguagem Sonora e Intersemiose, Musicologia, concentrando-se na produ-ção musical mais recente.

Normas para envio de artigos e resumos para publicação

1. Os artigos ou resumos, além de inéditos, devem abordar um tema re-lacionado àqueles mencionados acima como objetivos da publicação. Os textos podem estar redigidos em português, inglês ou espanhol e devem ser apresentados no editor Word 6.0 ou acima, sempre em fonte Times New Roman.

2. O autor deve incluir o seguinte cabeçalho no topo da primeira página, antecedendo o título do artigo:

3. “Submeto este artigo/resumo para apreciação do Conselho Editorial da Hodie”. No caso de aprovação do meu trabalho, autorizo Musica Hodie a publicá-lo de forma impressa e on-line no portal do periódico.

Dados dos autores: 1º autor (nome em publicações): _________________________________ Endereço completo: ____________________________________________ Telefone: (___) __________________ e-mail: ________________________ 2º autor (nome em publicações): ________________________________ Endereço completo: ____________________________________________ Telefone: (___) ___________________ e-mail: _______________________

Chamada para Artigos (p. 159-168)162 MÚSICA HODIE

4. Logo abaixo do cabeçalho, deverá ser incluída síntese da atuação pro-fissional ou formação acadêmica (até 5 linhas fonte Times New Roman tamanho 10, espaço simples)

5. O texto a ser publicado como artigo deverá ter entre 7 e 20 páginas (in-cluindo resumo, abstract, exemplos, notas e referências bibliográficas), e deverá ser apresentado em fonte Times New Roman tamanho 12 e espaço 1,5; exceções serão apreciadas pelo Conselho Editorial.

6. Para artigo será exigido um resumo com cerca de 100 palavras (tama-nho 10, espaço simples), e indicação de palavras-chave (de três a seis) que devem ser apresentadas no início do texto na língua utilizada no artigo, seguido do abstract, título e keywords, para os trabalhos em português e espanhol. (OBS: os trabalhos redigidos em inglês devem apresentar o resumo, título e palavras-chave em português logo após o abstract e keywords).

7. Para a seção resumos serão aceitas sínteses de teses defendidas, pes-quisas em andamento e monografias, desde que se enquadrem na pro-posta da publicação, apresentadas em texto com cerca de 250 palavras, tamanho 12, espaço 1,5.

8. Exemplos musicais (Ex.), figuras (Fig.), tabelas (Tab.) etc. devem ser in-seridos no texto como figura com resolução baixa para internet (72dpi), numerados e acompanhados de legenda explicativa clara e objetiva de no máximo 3 linhas em fonte Times New Roman tamanho 10, espaço simples, e devem também ser enviados em arquivo separado com re-solução de 300 dpi.

9. As notas de texto deverão ser colocadas manualmente no final do texto (como endnotes), precedendo a bibliografia;

10. As normas de editoração devem estar conforme o detalhamento abaixo. O que não estiver previsto abaixo deve seguir as normas da ABNT;

11. Artigos e resumos devem ser enviados exclusivamente por e-mail para [email protected]

12. A aprovação do artigo ou resumo é de inteira responsabilidade do Con-selho Editorial, ouvidos o Conselho Consultivo e os consultores ad-hoc.

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 163MÚSICA HODIE

Normas para envio de gravações

1. As gravações devem contemplar obras inéditas (preferencialmente iné-ditas) as quais serão oferecidas em formato de CD como encarte da Revista Música Hodie.

2. As gravações podem ser enviadas nos formatos: DAT (44.100 SR, 16 bits) AUDIO CD ou arquivo AIFF, com duração máxima de 10 minutos.

3. A submissão de gravações devem ser acompanhadas de uma decla-ração do/s autor/es da/s obra/s cedendo os direitos de publicação da mesma para a Revista Música Hodie de forma impressa e on-line.

4. A submissão de gravações devem incluir ainda:4.1. Identificação do/s interprete/s ou responsável pelo grupo (como

no item 2 das normas para envio de artigos e resumos acima)4.2. Informações sucintas sobre a obra (aproximadamente 200 pala-

vras)4.3. Breve curriculum do/s compositor/es (aproximadamente 100 pala-

vras)5. A aprovação da gravação é de inteira responsabilidade da Conselho

Editorial, ouvidos o Conselho Consultivo e os consultores ad-hoc.

OBS: Maiores detalhes sobre as submissões de gravações devem ser soli-citadas ao Prof. Dr. Anselmo Guerra (co-editor da seção) [email protected]

Envio de Partituras

A sessão Primeira Impressão é destinada à apresentação de novos tra-balhos e/ou de novos compositores. Envie sua proposta com a partitura (completa ou trecho) a ser publicada em formato Finale ou PDF, juntamen-te com sua biografia (150 palavras) e um texto analítico sobre a obra a ser publicada (aprox. 500 palavras). Maiores informações com a editora.

Sônia RayPresidente do Conselho Editorial

[email protected]

Chamada para Artigos (p. 159-168)164 MÚSICA HODIE

CALL FOR ARTICLES, RECORDINGS AND SCORESREVISTA MÚSICA HODIEwww.musicahodie.mus.br

Call for articles, recordings and scores

Next Deadline: Vol. 6 n. 2: October 1st 2006

Revista Música Hodie is a Brazilian scholarly journal, which publishes articles in Portuguese, English and Spanish on music performance, musical analysis, music theory, composition, music and technology, music therapy, esthetics and musicology as well as interdisciplinary works evolving music.

Música Hodie´s Editorial Guidelines

1. The papers should be in Microsoft Word for Windows (or compatible), Times font, 12 size, space 1,5, with 8 to 20 pages (exceptions will be evaluated by the Editorial Committee), musical examples, figures, tables, abstract, vitae, footnotes and bibliographic references included.

2. Examples (musical examples, tables and figures are all called Ex.) should be numbered and have a clear and concise heading with 3 lines at most (Times, size 10, single-spaced), presented in the text and in separate files.

3. For additional information, comments or references to quotations ONLY ENDNOTES (Times, size 10, single-spaced) should be used. The complete bibliographical references should be placed at the end of the text (e.g., GRIFFITHS, Paul. The String quartet. New York: Thames & Hudson, 1983).

4. An abstract with about 100 words (Times, size 10, single-spaced) and keywords (3-6) should be presented in both Portuguese and English before the complete bibliographic references, after which should come the author´s vitae (Times, size 10, single-spaced, up to 10 lines).

5. After being proofread, the originals should be submitted to Revista

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 165MÚSICA HODIE

MUSICA HODIE (e-mail only) to the editor at [email protected], containing the title and author´s name, address, telephone, fax and e-mail.

6. Scores submissions to the review section (Primeira Impressão) should be sent in Finale Format (or pdf) via e-mail to the editor. Composer should also send a short bio (approx. 150 words) and a text about the work (approx. 500 words).

7. Recording Submissions information should be asked directly to Professor Anselmo Guerra at [email protected]

Formatação da bibliografia (p. 126-128)166 MÚSICA HODIE

NORMAS PARA FORMATAÇÃO DAS REFERÊNCIAS

REVISTA MÚSICA HODIEPublicação do Programa de Pós-graduação - Mestrado em Música

Escola de Música e Artes Cênicas da UFG

Somente as obras citadas no corpo do artigo. Devem ser apresenta-das em espaço simples, com alinhamento justificado e seguindo as normas da ABNT/2000 (NBR 6023) e do Manual da PRPPG (Cegraf, 2005), abaixo exemplificadas. Fonte Times New Roman, tamanho 12. Margens: dir 2,0 cm; esq 3,0cm, sup 3,0cm e inf 2,0 cm.

Livros: SOBRENOME, Prenome(s) do Autor. Título do Trabalho: subtítulo [se houver]. Edição [se não for a primeira]. Local de publicação: Editora, ano.MEYER, Leonard B. Music, the Arts, and Ideas: patterns and predictions in twentieth-century culture. 2. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1994. COHEN, Louis; MANION, Laurence. Research methods in education. 4. ed. London: Routledge, 1994.

Partes de livros (capítulos, artigos em coletâneas, etc.)SOBRENOME, Prenome(s) do Autor da Parte da Obra. Título da parte. In: SOBRENOME, Prenome(s) do Autor da Obra. Título do Trabalho: subtítu-lo [se houver]. Edição [se não for a primeira]. Local de publicação: Editora, ano. Capítulo ou páginas inicial-final da parte.WEBSTER, Peter. R. Research on creative thinking in music: the assessment literature. In: COLWELL, Richard (Ed.). Handbook of Research on Music Teaching and Learning. New York: Schirmer Books, 1992. p. 266-280.

Artigos em periódicos: SOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Artigo. Título do Artigo. Título do Periódico, Local de publicação, número do volume, número do fascículo, página inicial-final do artigo, data.

Vol. 6 - Nº 1 - 2006 167MÚSICA HODIE

LOANE, Brian. Thinking about children’s compositions. British Journal of Music Education, Cambridge, v. 1, n. 3, p. 205-231, 1984.

Trabalhos em anais de eventos científicos:SOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Trabalho. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO, número do evento, ano de realização, local. Título. Local de publicação: Editora, ano de publicação. página inicial-final do trabalho. DELALANDE, François. A criança do sonoro ao musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 8, 1999, Curitiba. Anais... Salvador: ABEM, 2000. p.48-51.

Partituras publicadasSOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Trabalho. Título da obra. Identifi-cação. Local de publicação: Editora, ano de publicação. MOZART, Wolfgang Amadeus. Don Giovanni. Libretto por Lorenzo da Ponte com versão em inglês de W. H. Auden e Chester Kallman. New York: G. Schimer, 1961.

Partituras não publicadasSOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Trabalho. Título da obra. Identifi-cação. Local de publicação: informação sobre o tipo de registro gráfico da obra (informar o editor e ano da edição, se houver), ano da composição. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Casulo. Para violoncelo, piano e soprano. Partitura. São Paulo: manuscrito, 1992.CUNHA, Estércio Marquez. Movimento para contrabaixo e orquestra. Partitura. Goiânia: Finale (ed. Sonia Ray, 2003), 2000.

Gravações em CD e CasseteSOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Trabalho. Título da gravação. Tipo de gravação. CD número de série (ou informe a origem da gravação. Ex: independente, caseira). Identificação da Gravadora [se houver], ano [obrigatório. Se incerto, acrescente uma interrogação no último dígito. Ex: 198?].EVORA, Cesaria. Café Atlantico. CD 74321678022. BMG Brasil, 1999.

Formatação da bibliografia (p. 126-128)168 MÚSICA HODIE

Gravações em VídeoSOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Trabalho. Título do video. Produ-ção (direção, regência...) de Nome do Responsável. Tipo de fita, duração da gravação. Local de publicação: Editora ou Gravadora, ano de publicação. PERLMAN, Itzak. Itzak Perlman: in My Case Music. Produzido e dirigido por Tony DeNonno. Videocassete, 10 min. New York: DeNonno Pix, 1985]

Entrevistas Não PublicadasSOBRENOME, Prenome(s) do Autor do Trabalho. Entrevista de Nome e Sobrenome do entrevistador em data da entrevista. Cidade. Tipo de regis-tro. Local. NORMAN, Jesse. Entrevista de José da Silva em 20 de novembro de 1998. Chicago. Gravação em cassete. Chicago Symphony Hall.

Sítios pesquisados na RedeSOBRENOME, Prenome(s) do Autor. Título do Trabalho: subtítulo [se houver]. Disponível em <endereço do sítio> . Data do acesso.ONOFRE, Cíntia C. de. Música por computador: novas possibilidades de criação e profissionalização. Disponível em <http://www.iar.unicamp.br/disciplinas/am625_2003/Cintia_artigo.html>. Acesso em 14/08/2004.

Para notas no corpo do texto com Citação DiretaSobrenome (ano de publicação, página de onde foi tirada a citação) - Neste caso a citação deve vir com aspas e traduzida (se em língua estrangeira)De acordo com Silva (2005, p. 47), “o fazer musical está associado...”“O fazer musical está associado...”, afirma Silva (2005, p. 47).

Para notas no corpo do texto com Citação Indireta(SOBRENOME, ano de publicação. Página) – Neste caso o número de pági-nas opcional, porém, recomendada.A música de câmera tem recebido significativa atenção de pesquisadores na área de psicologia da performance nos últimos cinco anos. (SILVA, 2005, p. 236) De acordo com SILVA (2005, p. 236), a música de câmera tem recebido sig-nificativa atenção de pesquisadores na área de psicologia da performance nos últimos cinco anos.

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Música Hodie, Revista

Sonia Ray e Silvana Andrade

FGA Editoração Eletrônica

Sonia Ray

Franco Jr.

Franco Jr.

16,5 x 240 cm

13,5 x 20,5 cm

ZapfEllipt BT

Sulfite 75 g/m2 (miolo)

Cart3549

168

150 unidades

DocuTech 135

Título

Preparação de originais

e revisão de textos

Normalização

Produção de arte gráfica e capa

Arte final de capa

Editoração eletrônica

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