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Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher Rua Boa Vista, 103 – 10º andar – São Paulo/SP – CEP: 01014-000 – Tel: (11) 3101-0155 ramais 233 e 238 Email: [email protected] São Paulo, 30 de setembro de 2019 Assunto: Manifestação Técnica em relação ao P.L. 2.538/2019 O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NUDEM), por meio de sua Coordenação, nos termos do artigo 5º e 53 da Lei Complementar nº 988/2006 e do artigo 7º inciso IV da Deliberação CSDP nº 127/2006, vem apresentar PARECER TÉCNICO, após analisar o projeto de Lei nº 2538/2019. I – OBJETO DO PROJETO DE LEI O Projeto de Lei em referência tem por objetivo alterar a Lei Federal nº 10.778/2003 para dispor sobre a notificação compulsória, nos casos de indícios ou confirmação de violência contra a mulher, em serviços de saúde públicos ou privados, impondo, ainda, a obrigatoriedade de comunicação à autoridade policial, no prazo de 24 horas, para adoção de medidas cabíveis. Sendo sua redação final a seguir exposta: REDAÇÃO FINAL PROJETO DE LEI Nº 2.538-C DE 2019

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São Paulo, 30 de setembro de 2019

Assunto: Manifestação Técnica em relação ao P.L. 2.538/2019

O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos

Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

(NUDEM), por meio de sua Coordenação, nos termos do artigo 5º e 53 da Lei

Complementar nº 988/2006 e do artigo 7º inciso IV da Deliberação CSDP nº

127/2006, vem apresentar PARECER TÉCNICO, após analisar o projeto de Lei

nº 2538/2019.

I – OBJETO DO PROJETO DE LEI

O Projeto de Lei em referência tem por objetivo alterar

a Lei Federal nº 10.778/2003 para dispor sobre a notificação compulsória, nos

casos de indícios ou confirmação de violência contra a mulher, em serviços de

saúde públicos ou privados, impondo, ainda, a obrigatoriedade de

comunicação à autoridade policial, no prazo de 24 horas, para adoção de

medidas cabíveis.

Sendo sua redação final a seguir exposta:

REDAÇÃO FINAL

PROJETO DE LEI Nº 2.538-C DE 2019

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Altera a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º O art. 1º da Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 1º Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. ...................................................

§ 4º Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.”(NR)

Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial.

Sala das Sessões, em 12 de setembro de 2019.

Deputada MARA ROCHA Relatora.

II- DO PARECER DO NUDEM

a) DO DIREITO À INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E SIGILO MÉDICO.

Inicialmente, deve-se destacar que a proteção à

intimidade e vida privada se efetiva em nível internacional, perante os

Sistemas de Proteção Global- ONU- e Regional-OEA- de proteção, bem como

em um nível nacional, sendo os direitos à intimidade e vida privada, direitos

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assegurados constitucionalmente, e o sigilo médico uma decorrência lógica

destes direitos.

Nesse esteio, a Declaração Universal dos Direitos

Humanos (DUDH) traz a seguinte previsão de proteção à privacidade:

“Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no

seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda

pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.

No âmbito da Organização dos Estados Americanos

(OEA), o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos

(CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que, no

tocante à privacidade, também proíbe a prática de qualquer ingerência

arbitrária ou abusiva na vida privada (artigo 11).

No âmbito nacional, a Constituição da República de

1988, sagrou o direito à intimidade (artigo 5º, inciso X) de forma autônoma

dentre os direitos da personalidade, concedendo a este direito valor

significativo dentre os direitos subjetivos, que possibilitam o desenvolvimento

da identidade individual e estão ligados ao exercício da liberdade individual.

Ao definir este direito Gilmar Ferreira mendes, em seu

livro Curso de Direito Constitucional, pág., 282 destaca que “ de modo geral, há

consenso em que o direito à privacidade tem por característica básica a pretensão de

estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras

pessoas. Confunde-se com o direito ao anonimato- que será respeitado quando o

indivíduo estiver livre de identificação e fiscalização. ”

A partir dessas diretrizes se desenvolve juridicamente o

sigilo profissional. No âmbito do sigilo profissional convergem disposições

de direito material e processual, v.g. artigos 388, II e 448, II do Código de

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Processo Civil, artigo 154 do Código Penal e artigo 207 do Código de Processo

Penal.

Dentre todas as hipóteses do sigilo profissional, talvez a

mais enraizada e relevante à sociedade seja a do segredo médico. Presente

desde o juramento de Hipócrates e equiparado ao segredo do confessionário

pelo Direito Canônico, o sigilo médico foi abraçado pelo ordenamento jurídico

como um dos pilares de eficiência e dignidade do exercício desta profissão de

interesse público.

Tal instituto transferiu-se do campo moral e ético para

ganhar status de direito individual, ligado aos direitos fundamentais à

intimidade, à vida privada e à dignidade da pessoa humana. O direito ao

segredo médico, garante o livre e amplo desenvolvimento da personalidade

individual – o que, por si só, já carrega forte relevância social –, além de

funcionar como um imprescindível instrumento de garantia do interesse

público, em especial interesse na vida e na saúde pública.

O médico se encaixa dentre as categorias profissionais

que ostentam natureza de confidentes necessários, constituindo o segredo

médico matéria de ordem pública. Nas palavras de Jorge Alcibíades Perrone de

Oliveira, que foi Desembargador do TJRS e consultor jurídico do CREMERS:

“Embora, sem sombra de dúvida, o segredo seja um

direito do paciente, integrando o seu patrimônio ético-

jurídico, do qual o médico é apenas o depositário, o

segredo não tem caráter puramente privado. Ao

contrário, corresponde também a um patrimônio ou

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interesse público, pois interessa igualmente à

coletividade que o indivíduo possa confiar sua vida

privada a alguém e não a veja exposta à publicidade. A

prova do interesse do Estado é a proteção penal dada ao

segredo, que define como crime sua violação – art. 154 do

Código Penal”1.

Novamente valem as palavras do autor referido acima:

“Embora, sem sombra de dúvida, o segredo seja um

direito do paciente, integrando o seu patrimônio ético-

jurídico, do qual o médico é apenas o depositário, o

segredo não tem caráter puramente privado. Ao

contrário, corresponde também a um patrimônio ou

interesse público, pois interessa igualmente à

coletividade que o indivíduo possa confiar sua vida

privada a alguém e não a veja exposta à publicidade. A

prova do interesse do Estado é a proteção penal dada ao

segredo, que define como crime sua violação – art. 154 do

Código Penal”2.

Luiz Francisco Torquato Avolio igualmente enxerga

valores constitucionais na proteção ao sigilo profissional:

1 Sigilo ou segredo médico – A Ética e o Direito. Revista Bioética, n. 2, v. 9, 2001, p. 142. 2 Idem, ibidem.

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“Tamanha é a relevância do instituto do sigilo, que de há

muito enseja tutela penal, ora alcançando relevo

constitucional, por indissociavelmente ligado à tutela da

intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das

pessoas, assim como da indevassabilidade de suas

comunicações e dados (CF, art. 5º, incisos X e XII)”3.

Qual é a sociedade que deseja viver perante um Estado

sem freios na invasão à intimidade dos indivíduos? Cabendo ainda outra

pergunta quando se trata de segredo médico: qual sociedade colocaria em

risco a vida e a saúde de seus indivíduos, cedendo a garantia da relação de

confiança entre médico e paciente em nome da perseguição criminal?4

Evidentemente, os direitos fundamentais,

constitucionalmente assegurados, são passiveis de limitações e que estas

limitações encontram freios, ante a necessidade de preservação do núcleo

essencial dos direitos fundamentais, sob pena de esvaziamento dos direitos

assegurados constitucionalmente por ação do legislador ordinário.

3 Anotações sobre o sigilo médico na esfera do processo judicial e do procedimento administrativo

e suas consequências processuais: provas ilegítimas e ilícitas. Revista EPD - Escola Paulista de

Direito, São Paulo, v. 2, n. 3, out./nov. 2006, p. 356.

4 Abordando o sigilo que envolve os prontuários dos pacientes, inclusive perante requisições

judiciais, Jorge Alcibiades Perrone de Oliveira sublinha os riscos sociais que derivariam da

flexibilização excessiva do dever de sigilo: “Nisso há também um aspecto social de todo

importante, especialmente nos dias que correm, além da questão do direito individual. É que se

tornar rotineiro que por requisição judicial possa ser requisitado o prontuário médico de alguém,

o paciente; este, sabedor disso, poderá deixar de revelar a seu médico assistente aspectos

importantes de sua vida (certas patologias), ante o receio de vê-los revelados. Isto causa, na

verdade, situações de risco, pois a omissão de certos pormenores de saúde podem se transformar

em grave perigo social (ex. o paciente pode não revelar ser portador de HIV, de tuberculose, etc.,

quando estiver sendo tratado de outra doença). Ob. cit., p. 145.

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Assim, a alteração legislativa que impõe a

obrigatoriedade dos/as profissionais de saúde notificarem autoridades

policiais, em se tratando de violência contra a mulher, viola as garantias da

intimidade, vida privada e do sigilo médico- paciente, uma vez que impõe o

compartilhamento de informações de caráter pessoal para destinatários

diversos dos escolhidos pela mulher.

b)- DO ENFRENTAMENTO À VIOLENCIA DE GÊNERO. DO RESPEITO À

AUTONOMIA DA MULHER. DA NÃO OBJETIFICAÇÃO DA MULHER EM

SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA.

Não se pretende aqui reduzir a importância da

responsabilização criminal de autores de violência, como estratégia para

erradicação da violência contra as mulheres no Brasil. Obviamente, a redução

da impunidade possui importância significativa para o enfrentamento à

violência contra a mulher, na medida em que se confere significação social ao

fenômeno da violência que vitima milhares de mulheres por ano no Brasil.

Nada obstante, não se pode ignorar que a violência

sofrida por mulheres ou dito de outra forma, a violência de gênero, possui

especificidades, dentre as quais se pode destacar: a) centra-se no desvalor da

figura feminina, ou seja, na existência de relações assimétricas entre homens e

mulheres, no contexto de uma sociedade fundamentada sobre as bases de uma

ideologia sexista5; b) o local mais inseguro para as mulheres é a própria

5 Em sua Recomendação Geral n. 19 (1992) sobre a violência contra as mulheres, adotada em sua

décima primeira sessão,1 o Comitê CEDAW esclarece que a discriminação contra as mulheres,

como definido no artigo 1.º da Convenção, inclui a violência de gênero, ou seja, a “violência que é

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casa/família, na medida em que a violência de gênero sofrida possui o traço da

domesticidade/afetividade6. Em razão destes fatores é desafiador o

enfrentamento a violência contra a mulher.

O fenômeno da violência contra a mulher é

multifacetado. Nesse esteio, é correto afirmar que existem diversos obstáculos,

de ordem interna e externa, que impedem as mulheres em situação de

violência de romperem o ciclo de violência que, eventualmente, podem se

encontrar inseridas.

O Projeto de Lei, que é objeto de análise, simplifica o

fenômeno da violência contra a mulher, ao reduzir ao “medo”, como único fator

que impede a mulher de formular denúncias. Em relação ao tema Maria

Claudia Girotto do Couto, em dissertação intitulada “Lei maria da Penha e

Principio da Subsidiariedade: dialogo entre um direito penal mínimo e as

demandas de proteção contra a violência de gênero no Brasil” ressalta o

seguinte:

“ (...) a culpa, vergonha, dependência financeira,

existência de laços afetivos com agressor, falta de

credibilidade às denúncias, acesso dificultado às

instâncias de ajuda, entre tantos outros- interagem entre

dirigida contra uma mulher porque ela é mulher ou que afeta as mulheres desproporcionalmente”,

e que se constitui violação de seus direitos humanos.

6 O Atlas de Violência de 2019, publicado recentemente, pelo Fórum Brasileiro de Segurança

Pública revela que em 51% dos casos de feminicidio analisados, conseguiu-se estabelecer a

existência de relação intima de afeto entre autor e vitima em 88,8% destes casos. No mesmo

sentido, a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, 2º edição” destaca que

quando se observa o perfil do agressor, permanece o padrão de pessoas conhecidas da vítima em

sua grande maioria (76,4%).

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si fazendo com que a mulher permaneça em uma relação

abusiva. 7”

Destacando outros fatores que influem na decisão da

mulher em efetuar ou manter denúncias relativas a situação de violência

Saffioti assevera o seguinte:

“i) Em primeiro lugar, trata-se de uma relação afetiva,

com múltiplas dependências recíprocas. ii) Em segundo

lugar, raras são as mulheres que constroem sua própria

independência ou que pertencem a grupos dominantes.

Seguramente, o gênero feminino não constitui uma

categoria social dominante. Independência é diferente de

autonomia. As pessoas, sobretudo vinculadas por laços

afetivos, dependem umas das outras. Não há, pois, para

ninguém, total independência. (...) iii) Em terceiro lugar,

na maioria das vezes, o homem é o único provedor do

grupo domiciliar. Uma vez preso, deixa de sê-lo,

configurando-se um problema sem solução, quando a

mulher tem muitos filhos pequenos, ficando impedida de

trabalhar fora. Iv) Entre outras muitas razões, cabe

mencionar, em quarto lugar, a pressão que fazem a

família extensa, os amigos, a Igreja etc., no sentido da

preservação da sagrada família. Importa menos o que se

passa em seu seio do que sua preservação como

7 Disponível em:

file:///C:/Users/nmonte/Downloads/MariaClaudiaGirottodoCouto_LeiMariadaPenhaePrincipioda

Subsidiariedade.pdf, acesso em 01/10/2019.

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instituição. Há, pois, razões suficientes para justificar a

ambiguidade da mulher, que num dia apresentava a

queixa e, no seguinte, solicitava sua retirada. Isto para

não mencionar as ameaças de novas agressões e até de

morte que as mulheres recebiam de companheiros

violentos8”.

Conforme se observa pela argumentação acima

expendida, não se pode concluir que o fator preponderante ou que impede a

mulher de formular de denúncias contra o agressor é o “medo” como o Projeto

de Lei ressalta em sua justificação. A decisão da mulher em manter ou não uma

denúncia em relação ao agressor pressupõe a prestação de vários serviços

públicos para a mulher em situação e violência, que lhe permitam o

fortalecimento de sua autonomia e exercício de sua cidadania.

Não se pode olvidar, ainda, o contexto de violência

institucional a que as mulheres se encontram submetidas, como fator

desencorajador para efetivação de denúncias. Assim, a violência institucional-

entendida como aquela praticada, por ação e/ou omissão, nas instituições

prestadoras de serviços públicos - mulheres em situação de violência são, por

vezes, ‘revitimizadas’ nos serviços quando: são julgadas; não têm sua

autonomia respeitada; são forçadas a contar a história de violência inúmeras

vezes; são discriminadas em função de questões de raça/etnia, de classe e

geracionais de prisão, que são privadas de seus direitos humanos, em especial

de seus direitos sexuais e reprodutivos- ainda é uma realidade9.

8 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu

Abramo, 2004.

9 http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/politica-nacional

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No ponto, deve-se destacar que dentre os principais

resultados divulgados pela Comissão Mista Parlamentar de Inquérito,

instaurada pelo Congresso Nacional, no ano de 2012 estão a conclusão de que:

i) outros equipamentos atendem de forma mais adequada o fenômeno da

violência contra as mulheres, ou seja, para além a perspectiva repressiva; ii) as

delegacias estão sucateadas e as mulheres estão submetidas a procedimentos

demorados e agendamentos para registro de ocorrência; iii) os inquéritos

policiais não são concluídos. A seguir segue as conclusões da CPMI:

“Paralelamente ao fortalecimento do polo repressivo, foram sendo

criados novos serviços, como casas-abrigo e centros de referência,

com atendimento psicológico e social, bem como foi trabalhada a

reforma da legislação penal. Esses novos serviços atendiam à

perspectiva complexa do fenômeno da violência contra as

mulheres, constatando que em alguns casos a punição não era

o desejo das mulheres ou nem sempre a medida mais eficaz.

Embora seja representativo o crescimento, as delegacias em

todo o país estão em processo de sucateamento, conforme

constatou a CPMI nas diligências realizadas.( ) A situação de

abandono vivida pelas DEAMs não é privilégio destas, pois se

estende a todo o sistema de segurança pública.( )

A falta de estrutura das DEAMs reflete-se na ausência de servidores,

na estrutura física inadequada, na ausência de plantões 24 horas,

nas licenças médicas em excesso, na existência de profissionais

desmotivados/as, dentre outros problemas.

Não bastasse isso, foi identificado que, em alguns estados, os

boletins de ocorrência não possuem campo específico para crimes

da lei Maria da Penha e, em outros, praticam o "agendamento", isto

é, a oitiva completa do depoimento da vítima, em outro momento.

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A inexistência de campo específico compromete a obtenção de

dados estatísticos confiáveis. No entanto, esse não é o único

problema. A CPMI também constatou que nem todos os estados

possuem um sistema informatizado, especialmente no interior,

onde o registro é feito manualmente.

Além disto, observou-se demora na investigação policial devido a

despachos burocráticos nos inquéritos policiais que não atendem

aos requisitos de uma ágil investigação. Na DEAM de Manaus, a

CPMI constatou a existência de 4.500 inquéritos parados desde

2006, fato que estava sendo apurado pela Corregedoria da

Polícia.”10

Perceba-se, portanto, que um dos fatores que podem

fazer com que a mulher não procure as delegacias de polícia é a violência

institucional que é reproduzida nestes ambientes, de forma que a alteração

legislativa que ora se analisa, não vai ser suficiente para altera este cenário.

Por este motivo, a Recomendação nº 33/2015 do

Comitê sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as

Mulheres (CEDAW), referente ao acesso à justiça das mulheres, adverte acerca

da não efetividade de remédios jurídicos para grupos específicos de mulheres,

destacando-se mulheres negras e imigrantes, que “não reportam violações de

seus direitos às autoridades pelo temor de serem humilhadas, estigmatizadas,

presas, deportadas, torturadas ou submetidas a outras formas de violência,

inclusive por agentes encarregados de fazer cumprir a lei”11.

10 Disponivel em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

026X2015000200519, acesso em 01/10/2019.

11Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-

content/uploads/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-CEDAW.pdf

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Não bastasse isso, pode-se, ainda, afirmar que o registro

da ocorrência, por si só, não é garantia de responsabilização do agressor e este

motivo- descrença no sistema de justiça- também contribui para que a mulher

não procure a segurança pública quando sofre violação de direitos.

Não por outro motivo, o Conselho Nacional de Justiça, ao

traçar um Panorama da Política Judiciária de Enfrentamento à Violência

Doméstica contra a Mulher, revelou que tramitaram na Justiça estadual 1,2

milhão de processos referentes à violência doméstica e familiar, o que

corresponde, em média, a 11 processos a cada mil mulheres brasileiras e que

foram concedidas, no ano de 2016, 195.038 medidas protetivas de urgência12.

A despeito disso, a Pesquisa do Senado Sobre o Poder

Judiciário na Lei Maria da Penha, concluiu que em 2016 para cada 10

inquéritos policiais relacionados a violência doméstica e familiar, mais de 7

foram arquivados sem ensejar o início de processos de conhecimento

criminais e que no mesmo ano, em todo Brasil, para cada 100 sentenças

proferidas em casos de violência doméstica, apenas 7 estipularam a

condenação do agressor. A mesma pesquisa demonstra que para cada grupo

de cem mil mulheres foram concedidas 184 medidas protetivas de urgência e

para este mesmo grupo somente foram iniciados 13 processos de execução

penal13, demonstrando que o Sistema de Justiça falha e não proporciona às

mulheres em situação de violência um efetivo acesso à justiça. Ademais, não

12 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85640-cnj-publica-dados-sobre-violencia-

contra-a-mulher-no-judiciario acesso em 18/06/2019.

13 Disponível em:

http://www.senado.gov.br/institucional/datasenado/omv/indicadores/relatorios/BR-2018.pdf acesso

em 06/06/2019

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há mecanismos que sejam capazes de garantir a efetividade das medidas

protetivas concedidas e a Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica é

insuficiente para as mulheres que a buscam.

O que se pretende demonstrar com a argumentação

acima exposta é que o rompimento do sigilo médico e o desrespeito a

intimidade, vida privada e autonomia da mulher não serão garantias de que o

enfrentamento à violência de gênero ocorrerá de forma satisfatória.

Trata-se, portanto, de uma opção legislativa

desproporcional para atingir os fins pretendidos.

Nesse sentido, no âmbito do exercício do poder

normativo é preciso considerar que “ os meios utilizados pelo legislador devem

ser adequados e necessários à consecução dos fins visados. O meio é adequado se,

com sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o

legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos

fundamentais. 14” Nesse caso, o princípio da adequação pressupõe que a

medida adotada seja apta para atingir o fim pretendido. Já em relação a

necessidade, deve-se observar se há meios menos gravosos, para a garantia da

finalidade pretendida. Dessa forma, para que o poder regulamentador seja

exercido, legitimamente, deve-se considerar as desvantagens para os/as

cidadãos/ãs dos meios empregados com as vantagens a serem alcançadas ante

a finalidade pretendida.

No caso que se analisa, a normativa não se mostra

adequada para alcançar a finalidade pretendida, ou seja, o enfrentamento à

14 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito

Constitucional. -12 ed. São Paulo, Saraiva,2017.

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violência de gênero, na medida em que são diversos os fatores internos e

externos que impedem as mulheres de realizarem denúncias, conforme já

demonstrado acima.

Afirmar que a mulher deixa de efetuar a denúncia

somente por “medo” é tratar o fenômeno da violência de gênero de forma

simplória e unidimensional. Nesse sentido, ao vincular o oferecimento de

serviços de saúde aos serviços de segurança pública ou a persecução penal do

autor das agressões, a nova legislação pode contribuir para que mulheres

deixem de acessar os serviços de saúde. Da mesma forma, a legislação que se

analisa não é necessária, uma vez que a lei Federal 10.778/2003 e Portaria

GM/MS nº 1271/2014- que estabelece a obrigatoriedade da notificação

compulsória para casos de violência contra a mulher atendidas no sistema

público ou privado de saúde- já cumpre a função de tornar obrigatória a

notificação de violência contra as mulheres para fins de controle

epidemiológico. Em se tratando da ocorrência de violência contra a mulher o

Ministério da Saúde orienta acerca da necessidade dos/as médicos/as

aconselharem à vítima a procurar a Delegacia de Mulheres ou a outros

serviços de atendimento15. Dessa forma, já havia normativas que eram

capazes de atingir a finalidade pretendida com a modificação legislativa.

Imperioso destacar, ainda, que o Pacto Nacional pelo

Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres e a Política Nacional de

Enfrentamento à Violência contra as Mulheres possuem como princípios a

serem respeitados autonomia das mulheres16, universalidade das políticas e

15 Disponivel em: http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/acidentes-e-violencias/notificacao-de-

violencia-interpessoal, acesso em 30/09/2019.

16 Na casa-abrigo, a mulher encontra-se sob proteção do Estado. É importante diferenciar proteção

(que implica autonomia, liberdade de escolha e garantia do direito de ir e vir) de tutela que diz

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participação e controle social. Nesse esteio, a autonomia das mulheres e gestão

democrática são princípios ou diretrizes orientadoras do atendimento à

mulher em situação de violência. Isso significa que a mulher deve ser encarada

como sujeito de direitos, de modo que a mulher deve fazer parte da construção

do seu plano de atendimento. Todas as decisões de caráter processual ou

extraprocessual devem ser construídas de forma conjunta com a mulher a ser

atendida. A mulher deve ter em mente que tem poder de decisão sobre sua

vida e destino.

Por fim, e não menos importante, se a violência contra

a mulher pode ser entendida como forma de objetificação extrema da mulher,

de retirada de sua humanidade, de privação de sua autonomia e do seu

direito de autodeterminação, é correto afirmar que o projeto de lei é

igualmente violento, na medida em que reduz a capacidade da mulher vítima

de violência, uma vez que a impede de tomar suas próprias decisões. Neste

processo de “tutela” da mulher em situação de violência, o Estado, da mesma

forma que o homem agressor, ignora a condição da mulher de sujeito de

direitos e a reduz a condição de objeto de intervenção.

Não se pode perder de vista que as mulheres devem ser

compreendias como protagonistas de suas histórias.

II) DO PARECER

respeito ao “encargo ou autoridade que se confere a alguém, por lei ou por testamento, para

administrar os bens e dirigir e proteger a pessoa de um menor que se acha fora do pátrio poder,

bem como para representá-lo ou assistir-lhe nos atos da vida civil; defesa, amparo, proteção;

tutoria; dependência ou sujeição vexatória”(http://www. notadez.com.br/content/

dicionario_juridico. asp). Assim, a proteção à mulher em situação de violência deve ter por base o

princípio da “autonomia das mulheres”, previsto nos I e II Planos Nacionais de Políticas para as

Mulheres e na Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

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Desse modo, o Núcleo Especializado de Promoção e

Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São

Paulo, vem apresentar PARECER PELA NÃO APROVAÇÃO do Projeto de Lei

da 2.538/2019, considerando que:

a) a alteração legislativa que impõe a

obrigatoriedade dos/as profissionais de saúde notificarem autoridades

policiais, em se tratando de violência contra a mulher, viola as garantias da

intimidade, vida privada e do sigilo médico- paciente, uma vez que impõe o

compartilhamento de informações de caráter pessoal para destinatários/as

diversos/as dos/as escolhidos/as pela mulher;

b) a normativa não se mostra adequada para

alcançar a finalidade pretendida, ou seja, o enfrentamento à violência de

gênero, na medida em que são diversos os fatores internos e externos que

impedem as mulheres de realizarem denúncias;

Sem mais, enviamos nossos protestos de estima e

consideração.

PAULA SANT’ANNA MACHADO DE SOUZA

Defensora Pública do Estado de São Paulo

Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos

das Mulheres

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NALIDA COELHO MONTE

Defensora Pública do Estado de São Paulo

Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos

Direitos das Mulheres