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Núcleo de Estudantes de Economia da AAC Índice Parte I — O filme e o realizador………………………………..…………………………….…….2 Parte II — Lumumba, alguns estudos…………………………………………..……………….11 Parte III — Lumumba, projecto político……………………………………………………….20 Textos traduzidos, montados e compilados por: Professor Doutor Júlio Mota; Professor Doutor Luís Peres Lopes; Professora Doutora Margarida Antunes. Desenho artístico na capa da autoria do Professor Doutor Jaime Ferreira. O Núcleo de Estudantes agradece a colaboração da Editorial Caminho na cedência de excertos de publicações que compõem parte deste caderno. O Núcleo de Estudantes gostaria de frisar que este caderno e respectivo ciclo de filmes em que se insere, não teriam sido possíveis sem o apoio da instituição bancária Caixa Geral de Depósitos. 1

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Índice

Parte I — O filme e o realizador………………………………..…………………………….…….2

Parte II — Lumumba, alguns estudos…………………………………………..……………….11

Parte III — Lumumba, projecto político……………………………………………………….20

Textos traduzidos, montados e compilados por:

Professor Doutor Júlio Mota;

Professor Doutor Luís Peres Lopes;

Professora Doutora Margarida Antunes.

Desenho artístico na capa da autoria do Professor Doutor Jaime Ferreira. O Núcleo de Estudantes agradece a colaboração da Editorial Caminho na cedência de excertos de

publicações que compõem parte deste caderno.

O Núcleo de Estudantes gostaria de frisar que este caderno e respectivo ciclo de filmes em que se

insere, não teriam sido possíveis sem o apoio da instituição bancária Caixa Geral de Depósitos.

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Parte I – O filme e o Realizador

Lumumba: Crónica Filmada de uma Morte Anunciada Olivia Marsaud

12 Outubro de 2000 Afrik.com

O realizador haitiano Raoul Peck dá-nos um fresco eficaz sobre a ascensão e a queda

inevitável de Patrice Lumumba, o arquitecto da independência do Congo. Em 1991, Raoul Peck já se tinha interessado pelo caso Lumumba com o documentário,

“Lumumba, a morte de um profeta”. Volta agora com “Lumumba”. O acolhimento da imprensa foi mais do que mitigado, acusando o filme de maniqueísmo e ter um conjunto de clichés. No entanto, é necessário constatar que nada ou quase nada foi feito cinematograficamente sobre a tragédia congolesa do início dos anos 60.

Raoul Peck escolheu dirigir-se a um grande público, e a sua realização é, neste sentido, simplíssima. Mas, funciona bem. “Realizo o que me deixam realizar” declarava ao Libération, e “se eu tiver que me americanisar e assim encenar para melhor me fazer compreender, não hesito”. O seu objectivo pedagógico é inegavelmente atingido. Raoul Peck tem o mérito de falar sem rodeios de uma página dolorosa da história congolesa. Da cerveja ao ministério

E se seguir Patrice Lumumba, este passa de vendedor de cerveja em Stanleyville (agora Kisangani), a alguém que se torna um líder nacionalista do mais elevado nível. Símbolo da luta anticolonial, tal como Nkruma, a sua queda será tão fulgurante como terá sido a seu ascensão. Os seus inícios em política são espantosos e exaltantes para toda a gente. O idealismo do jovem congolês encontra um eco na ingenuidade de algumas cenas sobre um lugar arborizado que aparece várias vezes no filme.

Idealista, Lumumba é-o indiscutivelmente, e o filme mostra bem quanto subestimou os desafios internacionais, a cobardia e a corrupção dos seus pares, o poder dos Estados Unidos, a hipocrisia da Bélgica e a passividade da ONU. Autodidacta, é um combatente e de ir sempre até ao fim, mas é também alguém que não aceita nenhum compromisso, mesmo quando se exigia talvez mais cuidado. Eriq Lebouaney encarna com estilo aquele que vai tornar-se o mártir da descolonização no Congo. Forte e radical, o actor representa um personagem que oscila entre a sua função de pai de família e de chefe político. Ao seu lado, Alex Descas dá os seus traços ao futuro general Mobutu. Dois grandes actores para duas figuras emblemáticas. Filme testemunho

A independência do Congo é proclamada a 30 de Junho de 1960. Patrice Lumumba torna-se Primeiro-Ministro. Permanecê-lo-á durante dois meses, no fim dos quais será preso, encarcerado e torturado e, por fim, abatido por um pelotão de execução. Mas, a obstinação não tem limites. “Mesmo morto, eu metia-lhes ainda medo” diz Lebouaney-Lumumba. Mesmo morto, é necessário fazer desaparecer o corpo para deixar o lugar ao mito. O cadáver, por conseguinte, será cortado e dissolvido em ácido sulfúrico. Este assassinato, que contribui para a instalação da ditadura de Mobutu, ensombra ainda hoje a nação belga.

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(…) Qualquer que seja o continente em que seja difundido, este é um filme testemunho e pedagógico que tenta lutar contra a pior das feridas: o esquecimento. Lumumba, filme franco-belga-haitiano de Raoul Peck. Com Eriq Ebouaney, Alex Decas, Maka Kotto. (1h 56m)

Excertos de: http://www.afrik.com/article1214.html

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Raoul Peck Biografia

Wikipédia

Raoul Peck nasceu em Port-au-Prince, Haiti, em 1953. Percurso

Os primeiros anos da sua infância são marcados, durante a ditadura de Duvalier, pelo desaparecimento durante muitos dias do seu pai e pela lembrança da sua mãe a treinar tiro no seu jardim.

Em 1961, o seu pai, engenheiro agrónomo, preferiu afastar-se do país e fez parte do primeiro contingente de professores haitianos recrutados pelo Congo, na ideia de que os “Negros falando francês” seriam mais apropriados para substituir os quadros belgas que tinham fugido à descolonização perdida.

Dezoito meses mais tarde, em 1963, Raoul Peck juntou-se ao seu pai em Léopoldville com o resto da família. Os seus familiares aí permanecerão 28 anos. Quanto a ele, continuou os seus estudos secundários nos Estados Unidos e em França.

Durante os seus estudos de engenharia e de economia na Universidade de Berlim filiou-se na esquerda e encara a hipótese de voltar clandestinamente ao Haiti, como muitos outros estudantes antes dele para se baterem contra a ditadura. “O que cada um de nós não sabia nessa altura era de que seríamos esperados, mesmo antes de termos chegado, e que teríamos sido mortos, pois a CIA denunciava sistematicamente às autoridades no poder todos ‘os potenciais subversivos´”. Jornalismo e cinema

Trabalhou como jornalista e fotógrafo de 1980 a 1985 e realiza diversas curtas-metragens documentais, sempre na Alemanha.

Entra na Academia do Filme e da Televisão em Berlim no seio da qual realiza Leugt, cujo tema é a visita de Reagan a Berlim, que provocou violentas manifestações. Ainda em Berlim realiza a sua primeira longa-metragem, Haitian Corner. Para este filme, volta a Nova Iorque. Aí evoca a dificuldade, para um homem exilado nesta cidade e torturado no seu passado pelos tontons macoutes, de esquecer e de escolher entre a vingança e o perdão no dia em que ele crê reconhecer o seu antigo torcionário. Obtém o diploma da Academia de Berlim em 1988 escrevendo o guião de Missão Técnica com o escritor Jean-Claude Charles, nunca realizado.

Contactado em seguida por um produtor para um projecto sobre um médico suíço em África que faz a “sua descida aos infernos” antes de voltar livre ao seu país natal, Peck faz uma contra-proposta e tenta pela primeira vez lançar um projecto de ficção à volta de Lumumba. Já aí se põe a questão do ponto de vista do herói “negro”, contrariamente à abordagem habitual de contar esse género de história através de uma personagem europeia, melhor aceite pelos financeiros. Diante das dificuldades evidentes, decide realizar, em seu lugar, um documentário de criação que se tornará em 1991 Lumumba, a Morte do Profeta, sobre o líder congolês, pai da independência do antigo Congo belga, assassinado em Janeiro de 1961. Ele deseja dar-lhe um lugar na História do Continente. “Ao trabalhar neste argumento, dei-me conta de que, para além de um documentário biográfico sobre esta personagem, havia aí uma outra história mais íntima que não era visível, a dos meus pais (a minha mãe trabalhava na câmara de Léopoldville e foi a primeira pessoa a falar-me de Lumumba) e a dos haitianos que vieram para o Congo trabalhar. Contar “a grande história através da história pessoal ou

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vice-versa”. De todos os pontos de vista, tratava-se de um projecto complexo. Uma experiência pessoal, artística e política que determinará todos os seus futuros filmes.

Depois, dois anos mais tarde, regressa a um tema mais especificamente haitiano com o Homem no Cais, uma ficção sobre os inícios de Duvallierismo e da sua prática de terror através dos olhos de uma criança de oito anos, numa parábola sobre os efeitos duma ditadura, de uma tensão sobre o corpo social. A história de Sarah, a mulher que aceita os seus demónios do passado e decide viver com eles permite a Peck entrar na competição oficial do Festival de Cannes.

Em 1994, o documentário Desounebn, Diálogo com a Morte, consiste em “uma viagem sobre o território do Haiti que testemunha a extraordinária capacidade do povo do Haiti, graças à criatividade, à sabedoria, e … ao diálogo com a morte”.

Peck obtém em 1994 o prémio Nestor Almendros da organização americana dos direitos do homem “Human Rights Watch” pelo filme Homem no Cais. Seis anos mais tarde, a mesma organização atribui-lhe o prémio Irene Diamond, pelo conjunto do seu trabalho a favor dos Direitos do homem.

Experiência política

Em 1996, enquanto professor de cinema e de escrita de argumentos na escola de cinema na

Universidade de Nova Iorque, pedem-lhe para entrar no governo do Primeiro-Ministro Rosny Smarth, na qualidade de ministro da cultura do Haiti. Num momento em que o meio ambiente do cinema lhe parece cada vez mais longe da “sua” realidade e posto perante a hipótese de trabalhar concreta e colectivamente na mudança do seu país, aceita momentaneamente colocar um parêntesis na sua vida de cineasta e entra no Haiti.

Após 18 meses de luta solidária, o Primeiro-Ministro Rosni Smath recusa a deriva antidemocrática do “bom pai Aristide” e do seu partido Lavalas e demite-se conjuntamente com cinco dos seus ministros, entre os quais Raoul Peck. “No que se refere ao meu trabalho de cineasta, a minha passagem pelas responsabilidades políticas nada mudou de fundamental, salvo o de ter adquirido um pouco de sabedoria. Fiquei antes confortado comigo mesmo por se ter confirmado a visão que tinha do poder e dos seus servidores, na minha convicção da recusa de regras de um jogo truncado, de não aceitar as estruturas e os rituais preconcebidos e considerados imutáveis. Certamente também compreendi que qualquer mudança real se faz na duração e a partir do colectivo consciente”. Adaptação da vida de Patrice Lumumba

Depois de se ter consumado a sua experiência na politica directa, experiência que relatará no seu livro O Senhor Ministro… até ao Máximo da Paciência, Peck decide voltar a um projecto que lhe estava na alma desde há vários anos, abordar a personagem de Lumumba, mas agora numa ficção acessível ao grande público.

“O filme não é uma adaptação, ele quer-se como uma história verdadeira” Eu quis escrever a história cinematográfica situando-me o mais perto possível da realidade. Tinha diante de mim inumeráveis histórias e testemunhos, pilhas de livros e de artigos, frequentemente contraditórios ou paternalistas, sempre inconciliáveis. Uma forma de imensa compilação que teria falado de mim e “dos meus” sem que eu aí me reconheça e que me obrigava a ver a história pelos olhos dos outros.”

No trabalho do argumento é frequentemente necessário “reduzir” a realidade, de tal modo ela é complexa, incrível, louca, e descodificar esta história escrita e vivida contraditoriamente pelos outros. Nisso gastei muito tempo, muitas vezes recuei, escrevi mais de oito versões do argumento até ao que foi realizado, escrito em colaboração com Paul Bonitzer.

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“Eu bem gostaria de ter filmado no Congo, pelo menos certos exteriores que me interessavam particularmente, mas havia a guerra. O Zimbawe foi escolhido porque é um país calmo e tranquilo, a Suíça de África (voltaremos a isto depois). E em Moçambique, na Beira, que se assemelha extraordinariamente a Léopoldville dos anos 60. Uma cidade que não mudou depois dos portugueses terem saído.” Foi Seleccionado na Quinzena dos Realizadores em Cannes. Arte: a carteira ou vida

No ano 2000, Thiery Garreel, responsável dos documentários do canal Arte, inicia uma colecção, A Carteira ou a Vida, em que pediu a cineastas para “restituir” o real em toda a sua complexidade e permitir ao grande público melhor compreender o mundo no qual vivemos e especialmente de explicar as causas dos disfuncionamentos sociais inventando simultaneamente formas de escrita para mostrarem numa hora dados à priori não televisionáveis: o poder do dinheiro, os mercados, a mundialização. Peck realiza o primeiro da série, O Lucro e nada mais. Ruanda: Às vezes em Abril

Na sequência do seu sucesso com Lumumba nos Estados Unidos, a cadeia de televisão por cabo HBO, que comprou e difundiu Lumumba (a primeira difusão dobrada em inglês na televisão americana), ofereceu a Peck o projecto que se iria mais tarde tornar em Hotel Ruanda (United Artist, realizado por Terry George). Peck começa por recusar pensando sinceramente que não somente um genocídio não era filmável, mas que a ideia de um “Schindler list negro”, como lhe era proposto, não explicaria em nada, a um público já saturado de preconceitos relativamente a África, as origens políticas e históricas de tal catástrofe. Peck coloca um conjunto de condições, normalmente inaceitáveis nos Estados Unidos: não fazer um filme americano, ter carta branca política, ter o direito da montagem, poder contar a história do ponto de vista de personagens do Ruanda, poder filmar no Ruanda e, enfim, poder ir ter uma ideia no local antes de se decidir. Contra toda a expectativa, Collin Collander, o Presidente da HBO films, diz que sim a tudo.

Peck vai ao Ruanda em 2001 e volta espantado e convencido da necessidade de reagir face a este genocídio. Sem ter ainda uma ideia bem precisa do que será Sometimes in April, o realizador, decididamente perto da terra africana que considera ser a sua segunda pátria, mergulha na história do Ruanda e tenta compreender o Ruanda de hoje. Estuda vários relatórios, livros e documentos e recolhe inúmeros testemunhos.

O sucesso de Lumumba em África (as televisões locais passam o filme ilegalmente várias vezes por ano) abre-lhe todas as portas e pode mesmo filmar no Ruanda, apesar das dificuldades iniciais (logísticas, seguros, recursos humanos). “Para mim este filme não faria sentido senão filmado neste país, a história não poderia eticamente ser contada que com aqueles que foram os seus principais actores e de outro modo eu me sentiria um usurpador. Depois, como contar uma história não contável? Que imagens? Que histórias? Todo e qualquer esboço me parecia muito limitado, muito incompleto, muito restrito. Daí a ideia de fazer uma escolha entre os vários testemunhos verdadeiros, de os reunir numa mesma família e encontrar as ligações dramáticas entre eles sobre um período de dez anos ⎯ e de escrever uma história fragmentada sobre níveis temporais paralelos.”

Histórias pessoais, tendo como pano de fundo a evocação das responsabilidades internacionais, a cumplicidade da França (pesada), do deixar fazer dos Estados Unidos, do abandono das Nações Unidas” Um leque ambicioso que permite abordar a problemática do genocídio e não deixar de lado a realidade dos ruandeses de hoje.

No quadro do acordo moral que Peck tinha concluído com os ruandeses, estes foram os primeiros a ver o filme. Facto igualmente excepcional, pois é a primeira vez que um estúdio americano

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permitia que a promoção mundial de um filme seu seja feita em África. As duas projecções sobre ecrãs gigantes no estádio de Kigali foram vistas por mais de 40 mil pessoas. “Um momento inesquecível. Uma das raras vezes em que fazer um filme tem verdadeiramente sentido. Palpável, visível, portador de efeitos imediatos”.

Sometimes in April teve enorme sucesso nos Estados Unidos e excepcionalmente foi gratuitamente transmitido pela cadeia pública PBS, com uma única difusão, seguida de debate. O estilo de Raoul Peck

Enfim, para Peck, a abordagem via documentário permanece similar à da ficção (voz off, estrutura fracturada, mistura do político, da história, memória, poesia). “Eu não tenho uma abordagem fundamentalmente diferente do documentário ou da ficção”. Em todos os seus trabalhos cinematográficos o recurso ao real, aos documentos, aos detalhes verídicos e vividos, é uma constante. “Não é suficiente tentar ser exacto e preciso sobre a realidade que estamos a contar, é ainda necessário que tudo isso permaneça cinema. Em nenhum momento a veracidade da intenção pode prejudicar a magia da ficção.”

Excertos de: http://fr.wikipedia.org/wiki/Raoul_Peck

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Patrice Lumumba Biografia

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Patrice Émery Lumumba, “o verbo”, como dizia Aimé Césaire, foi o primeiro homem a ocupar o lugar de Primeiro-Ministro do Congo entre Junho e Setembro de 1960. Nascido a 2 de Junho de 1925 em Onalua no Congo belga (actual República Democrática do Congo), foi assassinado em 17 de Janeiro de 1961 em Katanga. Uma educação privilegiada

Lumumba frequentou a escola católica dos missionários e depois, aluno brilhante, uma escola protestante apoiada pelos suecos. Até 1955 a Bélgica tinha desenvolvido muito pouco o sistema de educação, dando a escola apenas uma formação muito rudimentar e sobretudo visava formar trabalhadores ou o clero, mas Lumumba autodidacta, mergulhará nos manuais de história para estudar em profundidade a Revolução Francesa, a história do Haiti, dos Estados Unidos e da Rússia. Trabalhará como empregado de escritório numa sociedade mineira até 1945, depois como jornalista em Leopoldville (hoje Kinshasa) e Stanleyville (hoje Kisangani), período em que escreveu em vários jornais.

Em Setembro de 1954 recebeu a sua carta de registo, honra concedida pela administração belga a apenas alguns negros (200 em 13 milhões de habitantes, nesta época).

Foi a trabalhar para a sociedade mineira que ele compreendeu que o seu país era um grande fornecedor de matérias-primas e cujo papel era fundamental na economia mundial. Compreendeu também que a administração colonial tentava embrutecer os congoleses para que não tomassem consciência do fabuloso potencial que tinha o seu país e cujas fronteiras foram fixadas ao acaso. Lumumba, tendo compreendido tudo isto, milita então por um Congo unido contrariamente a todos os outros líderes independentistas. Em 1955 cria um associação, a Associação do Pessoal Indígena da Colónia, e terá a ocasião de se encontrar com o rei Balduíno na sua viagem ao Congo e falar sobre a situação dos congoleses.

O ministro do Congo dessa época, Auguste Buisseret, vai fazer evoluir o Congo e especialmente pôr em marcha um ensino público. Lumumba adere ao Partido Liberal conjuntamente com outros notáveis congoleses. Com vários de entre eles, visita a Bélgica a convite do Primeiro-Ministro. O combate pela independência

Em 1957 é preso por um ano por uma questão de desvio de correspondência pertencente a um europeu. Libertado por antecipação, retoma as suas actividades políticas e torna-se director de vendas duma fábrica de cervejas. O governo belga assume algumas medidas de liberalização: sindicatos e partidos políticos vão ser autorizados tendo em vista as eleições municipais que se devem realizar em 1957. Os partidos congoleses são apadrinhados pelos partidos belgas e Lumumba é incluído na Amizade Liberal.

Em 1958, por ocasião da exposição universal, os congoleses são convidados para irem à Bélgica. Ofendidos pela imagem degradante do povo congolês que é veiculada pela exposição, Lumumba e mais alguns companheiros políticos estabelecem contactos com os círculos anti-coloniais. Depois do seu regresso ao Congo, criou o Movimento Nacional Congolês (MNC), em 5 de Outubro de 1958, e nesta condição participou na conferência pan-africana de Accra. Pode organizar uma reunião para dar conta desta conferência no decorrer da qual ele reivindicou a independência

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perante mais de 10.000 pessoas. Primeiros problemas políticos em meados de Outubro de 1959: o MNC e outros partidos independentistas organizam uma reunião em Stanleyville. Apesar do forte apoio popular, as autoridades belgas tentam prender Lumumba, houve distúrbios e dos quais resultaram 30 mortos. Lumumba é preso alguns dias mais tarde, é julgado em Janeiro de 1960 e condenado a 6 meses de prisão em 21 de Janeiro. Ao mesmo tempo as autoridades belgas organizam reuniões com os independentistas nas quais participa finalmente Lumumba, que é libertado a 26 de Janeiro. Com surpresa geral, a Bélgica concede ao Congo a independência que é fixada para 30 de Junho de 1960. Uma breve carreira política

O MNC e seus aliados ganham as eleições organizadas em Maio e, a 23 de Junho de 1960, Patrice Emery Lumumba torna-se o primeiro Primeiro-Ministro do Congo independente. Mas, para as autoridades belgas (e para as companhias mineiras, provavelmente) a independência não se queria inteira e completa. Uma boa parte da administração e de enquadramento do exército permanecem belgas e os soldados negros revoltam-se matando os oficiais brancos e violando as suas mulheres belgas. Praticamente todos os quadros belgas fogem do Congo. Lumumba decreta a africanização do exército e duplica os salários dos soldados. A Bélgica responde com o envio de tropas para proteger os seus naturais no Katanga (a região mineira) e defende a secessão desta região conduzida por Moïse Kapenda Tshombé. Face a tudo isto a União Soviética ameaça intervir, e a tropas belgas devem retirar-se e, no caos generalizado, a Bélgica começa a perder o controle. Porém, a Bélgica é o único país a reconhecer a secessão do Katanga e para aí envia oficiais para formarem os “tigres katangueses” e conselheiros políticos.

Em Setembro de 1960 o presidente Joseph Kasa-Vubu demite Lumumba assim como os ministros nacionalistas. Lumumba declara então que permanecerá em funções. A seu pedido, o Parlamento assume a sua defesa e demite o presidente. Na sequência de um golpe de Estado, Joseph Desiré Mobutu assume o poder, cria o Colégio dos Comissários Gerais e fixa a residência dos dirigentes congoleses. Em Dezembro de 1960, Lumumba foge da capital para tentar chegar a Stanleyville, região onde tem numerosos partidários É preso na fuga e transferido para o campo militar de Thysville sob ordem de Mobutu. A 17 de Janeiro é conduzido de avião até Elisabethville onde é entregue às autoridades do Katanga conjuntamente com outros nacionalistas. Serão depois conduzidos, sob escolta militar, para uma pequena casa onde serão humilhados pelos responsáveis katangueses, como Tshombé, mas também por belgas. Serão nessa noite fuzilados pelos soldados sob o comando de um oficial belga. A Bélgica era, com efeito, o único país a reconhecer o Katanga como estado independente e o seu pequeno exército era dirigido por oficiais belgas. No dia seguinte, agentes secretos belgas realizam uma operação para fazerem desaparecer no ácido os restos das vítimas previamente cortadas aos bocados. Vários dos seus partidários serão executados nos dias seguintes com a participação de oficiais e de mercenários belgas. Tschombé lança então o rumor de que Lumumba teria sido assassinado por aldeões. Isto desencadeia uma insurreição entre a população camponesa que pega em armas sob a direcção de Pierre Mulele: os camponeses conquistam perto de 70% do Congo antes de serem esmagados pelo exército de Mobutu.

Lumumba foi então muito lamentado depois da sua morte por toda a comunidade internacional dos países não alinhados, mesmo pelo seu carrasco, o general Mobutu que o consagra herói em 1966. O regresso do Egipto de sua mulher Pauline e dos seus filhos foi considerado um acontecimento nacional.

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A acção dos antigos colonizadores em plena guerra-fria

Muito se tem questionado sobre o papel das potências ocidentais, dos Estados Unidos em particular, na morte de Lumumba, sob o pretexto de que ele fazia recear uma deriva do Congo belga para a zona de influência da URSS. De facto Lumumba tinha pedido apoio aos soviéticos aquando da guerra do Katanga porque a ONU não respondeu aos seus pedidos de ajuda militar para pôr fim à guerra civil.

Os Estados Unidos e a Bélgica são em grande parte os responsáveis pela morte de Lumumba. Os Estados Unidos de Kennedy queriam eliminá-lo para evitar uma deslocação do gigante africano para o comunismo e a Bélgica via nele e nas suas teses de independência económica uma ameaça para os seus interesses económicos, em especial no sector mineiro. Estes dois países apoiavam o esforço de guerra de Mobutu contra os Mai-Mai. Os mercenários belgas realizaram a operação Omegang para esmagar a resistência Mai-Mai no Kivu. A morte de Lumumba foi esclarecida pela justiça belga sob a impulsão de François Lumumba (o seu filho mais velho) e do sociólogo belga Ludo de Whitte.

O governo belga reconheceu em 2002 uma responsabilidade nos acontecimentos que conduziram Lumumba á morte:

À luz dos critérios aplicados de hoje, certos membros do governo de então e certos autores belgas da época têm uma parte indesmentível de responsabilidade nos acontecimentos que conduziram Lumumba à morte. O governo considera a partir daí que deve apresentar à família de Patrice Lumumba e ao povo congolês os seus profundos e sinceros sentimentos e pedidos de desculpas pela dor que lhes infligiu por esta apatia e esta fria neutralidade.

Patrice Lumumba

Excertos de: http://fr.wikipedia.org/wiki/Patrice_Lumumba

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Parte II – Lumumba, alguns estudos

O Desaparecimento de Patrice Lumumba John Henrik Clarke (John Henrik Clarke foi Correspondente nas Nações Unidas sobre Assuntos Africanos, Intercâmbio Mundial e Novas Realidades Internacionais.)

1961

A vida de Patrice Lumumba provou que ele era um produto do melhor e do pior do domínio colonial Belga. Em circunstâncias mais favoráveis, ele poderia ter-se tornado num dos mais astutos líderes nacionais do Século XX. Foi eliminado muito antes de ter tempo de se tornar no mais estável líder que visivelmente tinha capacidade de vir a ser. Quando o Congo emergiu com toda a clareza na cena da história moderna ele era a sua estrela candente.

O seu herói era o Dr. Kwame Nkrumah e o seu modelo de Estado era o Gana. “Num jovem Estado”, disse ele, parafraseando uma declaração semelhante feita por Nkrumah, “deve ter-se poderes fortes e visíveis”.

No início da sua carreira política mostrava uma visão pró Ocidental. “Foram cometidos erros no passado em África, mas estamos preparados para trabalhar com as potências que estiveram em África para criar um novo bloco poderoso”, disse ele no início de 1960. “Se este esforço falhar, será por falha do Ocidente”.

Como reformador, Lumumba tinha uma visão de tipo republicano. “A nossa necessidade é a de democratizar todas as nossas instituições”, disse noutra ocasião. “Devemos separar a igreja do Estado. Devemos retirar todos os poderes aos chefes tradicionais e eliminar todos os privilégios. Devemos adaptar o socialismo às realidades africanas. A melhoria das condições de vida é o único verdadeiro sentido que se pode dar à independência.”

O seu ressentimento relativamente à autoridade belga era inexaurível em muitos casos. Principalmente porque acreditava que o paternalismo estava na origem desta autoridade. Este resquício do colonialismo nunca deixou de o enfurecer. Por outro lado, a sua reacção à tentativa dos Missionários Belgas de impor o cristianismo no Congo foi de indiferença. Ele tinha sido sujeito à influência missionária, quer Católica quer Protestante, sem mostrar qualquer afeição particular por qualquer uma delas. Os seus pais eram católicos devotos. Não sendo ateu nem anti-cristão, considerava, apesar de tudo, a sujeição a uma religião como um obstáculo para as suas ambições. A rebelião era mais compensadora e menos penalizadora para o seu orgulho. Durante a sua longa e solitária ascensão da obscuridade até se tornar o primeiro dos Primeiro-Ministros do Congo, capacitou-se em nunca confiar totalmente o poder nas mãos de outros. Esta atitude está reflectida na desconfiança que se gerou entre ele e as Forças das Nações Unidas no Congo.

Os seus conflitos com outros políticos congoleses eram devidos principalmente à sua crença absoluta num Estado unitário e, parcialmente, à sua falta de experiência em explicar, organizar e administrar um tal Estado. Apesar disso, era o único líder congolês que não tinha algo como um corpo de correlegionários; um aspecto frequentemente descurado. O seu grande feito nos difíceis primeiros meses da independência do Congo foi em manter, com apenas umas poucas defecções, a solidariedade da sua coligação governamental com tremendas disparidades.

Lumumba fez parte do grupo de políticos como Kwame NKrumah, Julius Nyerere no ex-Tanganica [Tanzânia], Tom Mboya no Quénia, e Sékou Touré. Estes líderes acreditavam que a única forma de criar um verdadeiro Estado moderno, livre dos entraves das redutoras lealdades tribais, consistia em criar um governo central único e forte. Esta posição firme desencadeou o debate no Congo e fez gerar, quer os apoiantes, quer os opositores a Lumumba.

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Ele defendeu a sua posição na Conferência de Mesa Redonda que deu a independência ao Congo, em 1960. Apresentou-a ao eleitorado, em Junho de 1960, e obteve uma vitória tangencial. Finalmente tentou impô-la aos seus opositores Federalistas quando tomou as rédeas do primeiro governo da independência. Muitos dos críticos de Lumumba consideraram este o seu maior erro. Tentou moldar o Congo ao modelo estreito do Gana, mais do que ao modelo mais alargado e mais flexível da Nigéria. O argumento é interessante, mas já não tem hoje qualquer utilidade.

O corpo de Lumumba jaz agora a desvanecer-se numa campa anónima e inglória do Congo…mas, quer a sua verdade, quer o seu espírito continuam a sua caminhada em frente, para grande desconforto dos seus assassinos.

Nenhuma outra personalidade na história Africana passou tão depressa da morte para a condição de mártir. Na morte ele pode ter dado um maior contributo para a libertação e reconhecimento da África do que o que poderia ter feito se tivesse vivido. No seu curto tempo de vida, o selo da sua personalidade ficou profundamente impresso no Continente Africano. Ele era um puro africano dos meados do Século XX. Nenhum outro lugar e nenhuma outra conjugação de circunstâncias poderia ter congeminado a sua vida e também causado a sua morte do modo único e trágico em que o foi. Na morte, ele lançou um espírito político que ecoará pelo Continente Africano por muitos e muitos anos.

Por muito tempo o Congo pareceu ser uma ilha à margem do movimento anti-colonialista Africano. Os belgas, nos seus doze breves anos, entre 1946 e 1958, começaram a perder aquilo que parecia um domínio inexpugnável. Deram-se alguns acontecimentos importantes em África e no resto do mundo, tendo-se quebrado a sacrossanta imagem de uma alegada “colónia perfeita” da Bélgica. A mudança de orientação política em Bruxelas e uma crescente pressão nacionalista vinda de dentro da África ajudaram a destruir a ilusão de que tudo estava bem e tudo continuaria bem no Congo. Os estudantes formados nas Missões fizeram a sua evolução e a supostamente emancipada, a ocidentalizada classe média tinha encontrado as suas vozes.

Certos problemas fundamentais constituíam o âmago do dilema colonial em África; embora os colonialistas belgas tenham optado por ignorar este facto. Existia o mesmo tipo de problemas no Congo, como em qualquer lado em África. Liberdade, auto-determinação, rejeição da discriminação racial e a presença sem assimilação dos europeus, fizeram o povo Congolês sentir-se indesejado no seu próprio país, excepto como criados dos brancos.

Foi por esta ordem de ideias que o Partido Socialista Belga tentou mudar o rumo da política colonial Belga e definir uma perspectiva mais humana para os problemas do povo Congolês. O desenvolvimento económico acelerado do Congo, durante e depois da guerra, tinha alterado a estrutura da comunidade Congolesa. A população negra de Leopoldoville cresceu de 46.900 para 191.000 entre 1940 e 1950. Em 1955, a população negra de Leopoldoville tinha atingido uns 300.000. O êxodo maciço de Congoleses das zonas rurais e a sua concentração nos centros urbanos gerou novos problemas. Os trabalhadores destribalizados não regressaram às suas aldeias de origem quando deixou de haver emprego na cidade.

Recaía sobre o Partido Socialista Belga a responsabilidade de definir a sua posição em relação ao Congo. No que diz respeito às premissas, o Partido reconhecia “a primazia dos interesses autóctones; e o objectivo da sua actividade seria preparar gradualmente a população indígena para controlar os seus próprios interesses políticos, económicos e sociais, no quadro de uma sociedade democrática”. Mais ainda, o Partido expressou a sua “oposição absoluta a qualquer forma de discriminação racial” e aconselhou a um aumento do nível de vida do povo Congolês. Apenas os brancos que estejam preparados para trabalhar para estes objectivos e que façam parte do pessoal administrativo da população indígena é que gozam do apoio do Governo. Esta preparação para a auto-governação pressupõe a organização política do Congo, i.e., a iniciação dos nativos na cidadania. Com esta proposta o Partido Socialista Belga admitia que os Congoleses não eram

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considerados como cidadãos do seu próprio país. Este facto constituiu a causa de uma grande insatisfação entre os Congoleses desde os inícios do Século XX. Com o abrandamento das restrições políticas, esta insatisfação começou a manifestar-se como uma forma embrionária de nacionalismo. Os futuros líderes Congoleses já tinham começado a arregimentar os seus primeiros correlegionários. Todos os primeiros partidos políticos do Congo tiveram origem nas associações regionais e tribais. Patrice Lumumba foi o único líder que, logo desde o início da sua carreira, tentou formar uma organização política abarcando todo o Congo.

Durante a sua carreira de uma curta vida Patrice Lumumba foi o primeiro Primeiro-Ministro de um Governo Congolês eleito por voto popular. Tal como alguns raros homens antes dele, tornou-se quase uma lenda no seu próprio tempo. A influência da sua lenda estendeu-se aos jovens militantes nacionalistas muito para além das fronteiras do Congo e continua ainda a espalhar-se.

De todos os líderes que suportaram a prisão às mãos dos Belgas antes de 1960, Lumumba tinha o maior número de apoiantes entre as massas Congolesas, principalmente porque possuía as qualidades de carácter com as quais gostavam de se identificar. Como orador, ele era igualmente proficiente em Francês, em Suali ou Lingola. A devoção das bases do seu Partido “Movimento Nacional Congolês” (MNC) a Patrice Lumumba não era um fenómeno único. O que tem maior significado é o facto de ele ser capaz de atrair lealdades vigorosas de um grupo de Congoleses tribalmente heterogéneo. Isto tornou-o no único líder político a nível nacional. Enquanto outros políticos tendiam a tirar partido das suas respectivas associações como trampolim para o poder, Lumumba optou pela via mais abrangente e mais nacionalista e envolveu-se noutros movimentos, relacionados apenas indirectamente com a política.

Em 1951, filiou-se na Association des Evolués de Stanleyville (Associação dos Evoluídos de Stanleiville), um dos clubes mais activos e numericamente mais importantes na Província Oriental. Foi, nesse mesmo ano, nomeado Secretário-Geral da Association des Postiers de la Province Orientale (Associação dos Carteiros da Província Oriental) — uma organização profissional composta maioritariamente por trabalhadores dos serviços postais. Dois anos depois tornou-se Vice-Presidente de uma Associação Alumni composta por antigos estudantes das Missões. Em 1956 fundou a Amicale Libérale de Stanleyville.

Patrice Lumumba pertence à tribo Beteteta, um subgrupo Mongo. Nasceu em 2 de Julho de 1925, em Katato-Kombe, no distrito de Sunkuru, na Província de Kasai. Na sua juventude teve apenas educação primária. Muito cedo na vida aprendeu a elevar-se por si próprio para além dos limites da sua educação formal. Escreveu frequentemente para jornais locais como o Stanleyvillois e para publicações com maior audiência como a Vois du Congolais e a Croix du Congo. Contrariamente à grande maioria de escritores Congoleses da época, que colocavam maior ênfase na herança cultural das respectivas tribos, os primeiros escritos de Lumumba enfatizavam — dentro dos limites das restrições oficiais Belgas — os problemas de discriminação racial, social e económica.

Em Julho de 1956, a carreira de Patrice Lumumba foi temporariamente interrompida quando foi preso sob a acusação de desvio de fundos dos Correios, no valor de 126.000 francos (2.200 dólares). Foi condenado a cumprir uma pena de prisão de dois anos. Em 13 de Junho de 1957, a sentença foi comutada, após recurso, para dezoito meses e, finalmente, para doze meses, depois de a Association des Evolués de Stanleyville ter reembolsado a quantia em questão. De seguida, Lumumba deixou Stanleyville e arranjou emprego em Leopoldoville como director comercial da Cervejeira Bracongo.

Leopoldoville tornou-se um local muito vantajoso para as actividades de Lumumba. Tinha agora entrado na fase crucial da sua carreira política. Em 1958, enquanto conciliava as funções de Vice-Presidente de uma sociedade liberal de amizade, o Circle Liberal d’Etudes et d’Agrément com as de Presidente da Association des Batelela, de Leopoldoville, juntou-se a um grupo de estudos democrata cristão, o Centre d’Etudes et de Recherches Sociales, criado em 1955 pelo

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Secretário-Geral das Jeunesses Ouvrières Chrétiennes, Jacques Meert. Entre os mais proeminentes membros desta organização contava-se Joseph Ileo (mais tarde Primeiro-Ministro do Governo de Kasavubu) e Joseph Ngalula.

Joseph Ileo era Chefe de Redacção do bi-mensário Conscience Africaine. E tinha já adquirido uma grande reputação no meio dos Congoleses quando decidiu, em Julho de 1956, publicar um manifesto de teor nacionalista que incluía um arrojado plano de emancipação do Congo no espaço de 30 anos.

Ileo e Ngalula estavam ambos ansiosos por alargar a base do Mouvement National Congolais, uma organização nacionalista moderada criada em 1956. Patrice Lumumba, então considerado um eminente porta-voz das ideias liberais, aderiu ao MNC.

Uma vez filiado neste e noutros agrupamentos, Lumumba rapidamente se impôs e tornou-se a figura dominante. Pouco depois de se ter proclamado a si próprio Presidente do Comité Central do MNC, anunciou formalmente, em 10 de Outubro de 1958, a fundação de um “movimento nacional” dedicado ao objectivo da “libertação nacional”. A sua acção nesse momento foi motivada por dois importantes eventos que se reflectiam no Congo. Um era a visita próxima do comité parlamentar designado pelo antigo Ministro para o Congo, M. Patillon, com o propósito de “conduzir um inquérito relativo à evolução administrativa e política do território”. Outro era a criação do Mouvement Pour le Progrès National Congolais, no fim de Novembro de 1958, pelos delegados Congoleses à Exposição de Bruxelas. Lumumba movimentou-se no seio destes grupos e rapidamente se projectou para o papel de líder nacionalista dinâmico e radical.

Um ponto alto da sua evolução política ocorreu em 1958, quando lhe foi permitido participar na Conferência Pan-Africana em Acra, no Gana. Aí tornou-se membro do Comité Directivo Permanente. Patrice Lumumba tinha-se agora projectado a um nível político de relevância internacional. Para além de quaisquer conselhos pessoais que eventualmente tenha recebido do Primeiro-Ministro do Gana, Nkrumah, há poucas dúvidas de que a Conferência de Acra tenha sido um importante factor para a definição dos objectivos de longo prazo de Lumumba e para uma acrescida sensibilização para a filosofia do Pan-Africanismo.

Quando regressou ao país, a emancipação do Congo da tutela Belga assumiu a primeira prioridade das suas actividades. Em Março de 1959, quando a Bélgica tinha já anunciado a intenção de conduzir o Congo para a auto-governação “sem procrastinação fatal e sem precipitação escusada”, Lumumba foi a Bruxelas onde deu várias conferências sob os auspícios da Présence Congolaise, uma organização Belga dedicada à promoção da cultura Africana. Nessa ocasião, Lumumba chocou os seus anfitriões e patrocinadores deplorando a “bastardização e destruição da arte Negro-Africana”, e “a despersonalização da África”. Reafirmou a determinação do seu Partido em pôr fim à “escravatura camuflada da colonização Belga” e em eleger um governo independente em 1961. Com este acto intrépido, Patrice Lumumba criou o cenário para muitos dos seus problemas futuros e provavelmente para a sua morte.

Depois de ter sido aprovada pelo Mouvement National Congolais a data alvo para a independência, começaram novos problemas para Lumumba e para os seus apoiantes. Agora que os pretendentes ao poder estavam perto dos seus objectivos, a competição entre eles tornou-se mais aguda. Os delegados ao Congresso de Luluabourg, em 1959, concorreram contra as propostas de outros grupos nacionalistas ansiosos em posicionar-se eles próprios como os porta-bandeiras da independência. Diversos apoiantes de Lumumba dos primeiros tempos abandonaram o MNC e formaram os seus próprios partidos. Com a data da independência do Congo a correr praticamente contra si, Lumumba desencadeou a reconstrução do Mouvement National Congolais. Envolveu-se ele próprio em cada uma das fases do trabalho dos activistas do seu partido, organizando secções locais do MNC e recrutando novos aderentes.

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Em Novembro de 1959, pouco depois de a sua facção do MNC ter realizado o seu Congresso em Stanleyville, Lumumba foi preso pela segunda vez e acusado de ter feito declarações sediciosas. Foi condenado a seis meses de cadeia. Depois de ter cumprido quase três meses de pena, foi libertado quando uma delegação de responsáveis do MNC notificou o Governo Belga de que não participariam na Conferência de Mesa Redonda a não ser que Lumumba fosse libertado. Pouco depois da sua libertação, a facção do partido de Lumumba ganhou as eleições em Dezembro. Como era de esperar, Stanleyville provou ser a principal praça — forte de Lumumba no Congo. Em Stanleyville a facção do seu partido ganhou noventa por cento dos votos.

O estatuto e a influência de Lumumba continuaram a crescer. Como representante da Província

Oriental foi nomeado para o Colégio Directivo Geral, um órgão executivo provisório criado após a Conferência da Mesa Redonda de Bruxelas. Os problemas continuaram a fermentar nas alas do seu partido. Victor Nendaka, Vice-Presidente do MNC, rompeu com Lumumba por aquilo que designou como as “tendências de extrema—esquerda” do líder do partido. Em 1960, organizou o seu próprio partido. Uma vez mais, Lumumba remodelou os cargos dirigentes do partido e reforçou a sua posição. O MNC emergiu no acto eleitoral seguinte como o mais forte da Câmara de Representantes, com 34 dos 137 lugares. No Círculo Provincial Oriental o partido de Lumumba obteve 58 dos 70 lugares. Nos círculos das Províncias de Kivu e de Kasai, conseguiu 17 dos 25 lugares.

Lumumba utilizou diversas técnicas para mobilizar os seus apoios e dinamizar as massas rurais. Primeiro houve a selecção cuidadosa dos dirigentes do partido e dos activistas no Congresso de Lodja, realizado de 9 a 12 de Março de 1960. Estes delegados das tribos Bakutshu e Batetela concordaram em confiar a defesa dos seus interesses ao partido político dominante na região. Esse era, propriamente, o partido de Lumumba, o MNC. O sucesso do partido entre as associações tribais Bakutshu e Batetela devia-se principalmente à origem tribal de Lumumba e à orientação anti-Belga inculcada nestas tribos pela resistência à penetração do domínio Europeu.

Lumumba e o MNC aperfeiçoaram as suas técnicas de estruturação de organizações funcionais, a fim de unificar as acções políticas do MNC. Estas redes organizacionais abarcavam uma variedade de grupos de interesse e atravessava as clivagens tribais. Através de uma aliança táctica com as minorias, Lumumba tentou transformar o MNC numa estrutura integradora, em que estivessem representados quer os interesses das secções quer os nacionais. Este programa foi formalmente sancionado no Congresso extraordinário do MNC realizado em Luluabourg, em 3 e 4 de Abril de 1960. Este foi um marco cimeiro na história do partido de Lumumba. Uma vez mais, tinha demonstrado ser o mais apto de todos os líderes Congoleses.

Quando o Congo atravessou o limiar da independência, novos problemas emergiram no seio do MNC. A comunicação entre Lumumba e alguns dos líderes do partido rompeu-se. O mais vital instrumento da estabilidade do Congo, a Force Publique, entrou em colapso. O número e a complexidade dos assuntos com que Lumumba se confrontava agora, absorviam a maior parte do tempo que antes dedicava às actividades do partido. Agora que tinha terminado a pompa e circunstância da transmissão do poder Belga para os líderes Congoleses eleitos, tinha terminado uma batalha para Lumumba, mas uma nova e mais amarga começava.

O seu apego à ideia de um Congo unificado já não era firme. Ele era um dos raros políticos Congoleses que tinham uma concepção do Congo como um Estado centralizado forte. Tshombé pensou antes em demarcar para si próprio um Estado no Katanga onde pudesse ser o chefe, com o apoio Belga. Kasabuvu alimentava o sonho de restaurar o antigo império Bakongo. Outros políticos Congoleses continuavam ainda envolvidos nos seus ideais e hostilidades tribais.

Lumumba não foi agradável nem prudente para com os Belgas durante a cerimónia de independência. Este pode ter sido um dos seus grandes erros. Deu a conhecer demasiado dos seus planos futuros; o que incluía não só a unificação do Congo como a assistência às nações à sua volta

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(especialmente Angola) que estavam ainda sob o domínio Europeu. Quem quer que tenha tomado a decisão de matar Lumumba, decidiu-o provavelmente nesse dia. Ele tinha-se atravessado no caminho dos invisíveis manipuladores do poder que queriam controlar o Congo economicamente, mesmo deixando que Lumumba o controlasse politicamente. Em vez de dizer “Muito obrigado pela nossa independência. Estamos gratos por tudo o que vocês, Belgas, fizeram pelo nosso país”, o que Lumumba disse foi “Já era tempo, também! E é uma pena que em meio século não tenham feito por construir mais hospitais e escolas. Podiam ter feito melhor uso do vosso tempo”.

Por fim, quando a Force Publique se rebelou nos primeiros dias de Julho, Lumumba tentou arduamente enfrentar isso e outras emergências que irrompiam à sua volta. Enfrentou os riscos da sua elevada posição com verdadeira coragem. Freneticamente, desdobrou-se por todo o seu vasto país para tentar restabelecer a ordem. Escapou diversas vezes à morte, por pouco. Uma vez foi salvo por um oficial do Gana. Outra vez o seu carro foi apedrejado por uma multidão. Isto não o deteve na sua tentativa de restabelecer a ordem neste conturbado país. Em meados de Julho, quando a desordem instalada se aproximava do caos, Lumumba partiu de avião para uma excursão grandiosa pelos Estados Unidos, Canadá, e pelo Norte e Ocidente da África. Este foi um outro dos seus erros infelizes. Na sua ausência a confusão tornou-se pior.

Nas suas relações com as Nações Unidas ele nunca sabia exactamente o que queria; demonstrando uma posição política instável em relação à ONU, confundindo quer os seus amigos quer os inimigos, que começaram a ficar impacientes com o seu comportamento errático. Quando a desintegração dentro do país atingiu proporções perigosas, pediu a ajuda militar das Nações Unidas. Em cerca de três dias as tropas da ONU estavam no local. Quando se deu conta de que as tropas da ONU não podiam ser utilizadas a seu bel-prazer para derrotar os seus opositores políticos ficou desencantado com a sua presença no país.

Por essa altura Lumumba já tinha tido desavenças com quase todos os líderes políticos no Congo. A sua contínua acção errática abalou a confiança do mundo exterior e de muitos dos líderes Africanos que lhe queriam bem e que desejavam que ele pudesse restaurar a ordem rapidamente. A disputa pelo poder tinha rebentado no Congo. Paralelamente a esta disputa, os Belgas estavam a manobrar por trás para reconquistar o Congo economicamente; as suas marionetas Congolesas, compradas e pagas adiantadamente, estavam profundamente empenhadas nos seus próprios projectos privados.

Nas derradeiras semanas de vida, quando era arrastado, com uma corda ao pescoço, enquanto os seus captores o agrediam violentamente na cabeça para gáudio das lentes das câmaras de filmar, ele manteve-se numa postura de grande dignidade e também de coragem. Quando foi sovado no avião que o levou para ser entregue ao seu arqui-inimigo, Tshombé, não gritou nem suplicou por misericórdia. Quando as tropas de Tshombé o agrediram novamente no aeroporto de Elizabethville não suplicou pela ajuda ou pena de ninguém. Foi levado por tropas de Tshombé e pelos seus oficiais Belgas numa jornada da qual estava certo que não regressaria com vida. A conduta de Lumumba no âmbito destas cenas ficará sempre a seu crédito na história. Estes traços de independência e de coragem da sua personalidade levaram à formação da sua auréola de mártir — uma estranha e perigosa auréola de mártir que torna Lumumba um nacionalista Africano mais contundente na morte do que foi em vida.

Algumas das pessoas que agora são muito expressivas na glorificação na morte de Lumumba incluem muitos dos que no passado criticaram encarniçadamente algumas das suas acções e discursos quando ele era ainda vivo. Patrice Lumumba foi afastado do poder principalmente pelo seu próprio povo que estava a ser manipulado por forças de mudança e de poder estranhas ao seu entendimento.

Com a morte de Lumumba, os neocolonialistas brancos e as suas marionetas negras frustraram o alastramento para sul dos movimentos de independência. Lumumba tinha-se empenhado em dar

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apoio às nações Africanas para leste e para sul do Congo, que lutavam ainda pela independência, particularmente Angola. Lumumba foi um verdadeiro filho de África e, no seu curto e infeliz tempo de vida, foi considerado como pertencendo a toda a África e não apenas ao Congo.

O aspecto importante da história de Lumumba, brevemente relatada, é este: ele provou que a legitimidade de um regime pós colonial em África depende principalmente do seu mandato legal; mas, mais ainda, a legitimidade depende da acreditação do regime como representativa de um nacionalismo genuíno combatendo as intrigas do neocolonialismo. É por isto que Lumumba foi e continua ainda a ser exaltado como “melhor filho de África”, “Lincoln do Congo”, “Messias Negro”, cuja luta foi enobrecida pelo seu firme propósito de centralismo contra todas as formas de Balcanização e tornada heróica pela sua inquebrantável resistência às forças do neocolonialismo, que acabaram finalmente por matar o seu corpo, mas não o seu espírito. Este homem que agora emerge como uma conjugação estranha de estadista, de sábio e de mártir, gravou o seu nome nos anais da história Africana durante o seu curto e infeliz tempo de vida.

Patrice Lumumba preso

Traduzido de: http://www.nbufront.org/html/MastersMuseums/JHClarke/Contemporaries/LumumbaPassing.html

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Um notável acto de contrição John Matshikiza

8 de Outubro de 2002 Mail & Guardian

O governo belga estabeleceu um precedente extraordinário com o recente reconhecimento de culpa no assassinato de Patrice Lumumba, o primeiro e último líder democraticamente eleito da República Democrática do Congo.

A morte do carismático Lumumba, em 1961, esteve sempre envolvida em mistério. Era um segredo aberto, sabendo-se que a acção tinha sido orquestrada pela CIA americana, e que os governos belga, francês e outros governos ocidentais tinham de alguma forma tido algum papel no caso. Mas a versão oficial de Washington, de Bruxelas, de Paris e de Londres foi sempre a de que a morte de Lumumba tinha sido um desfecho infeliz de rivalidades tribais no cenário de instabilidade política de um Estado Congolês envolto em mortes. Segundo essa história, Lumumba, depois de ter sido derrubado pela força por Joseph Mobutu, tinha sido levado de avião da capital de Leopoldovile (hoje Kinshasa) para a província do Katanga, no sul, morto e esquartejado pelos soldados leais ao líder secessionista Moisés Tshombé. Houve até pequenos excertos de filmes para sustentar esta versão: breves vislumbres de imagens de um Lumumba todo descomposto e brutalmente espancado, mãos amarradas atrás das costas, saindo sob escolta de um avião militar belga para ser entregue a uma multidão ululante de soldados negros, que continuaram a bater-lhe com murros e coronhas das armas, para ser bem visível pelas câmaras de filmar, antes de o retirarem para um local de execução não especificado.

O mistério é saber o que aconteceu a este herói de vida curta do Congo depois de as câmaras terem deixado de filmar o seu suplício. O lugar e a forma como foi executado nunca foram especificados nem nunca o seu corpo foi encontrado.

A cuidadosa orquestração do desaparecimento de qualquer traço de Lumumba da face da terra foi concebida para estimular a imaginação sobre a dimensão do horror a que teria sido presumivelmente sujeito pelos seus selváticos compatriotas. Isto, no fim de contas, era o Congo.

O reconhecimento pelo Governo Belga do seu papel central na morte de Lumumba mostra finalmente a mentira daquela versão cinicamente manipulada dos acontecimentos. Não há aqui grandes novidades; confirma-se simplesmente o que está documentado desde há muitos anos; muito recentemente numa avalanche de livros sobre o martírio de Lumumba; no documentário filmado “Mobutu, Rei de Zaire”, segundo uma investigação meticulosa de Thierry Michel; e no filme épico “Lumumba”, de Raoul Peck, recentemente editado na África do Sul.

Mas há duas coisas que dão ao reconhecimento de culpa Belga um significado sonante: o facto de que um anterior poder colonial deveria ter feito uma confissão de acto tão ignóbil e o facto de que esse reconhecimento tenha sido acompanhado por um pedido de desculpas feito com humildade.

Como é que isto deve ser lido? Por que é que a Bélgica quebrou a conspiração de silêncio enquanto os seus companheiros na acção, na Europa e na América, continuam a manter a sua charada? E que tipo da caixa de Pandora de reconhecimentos de culpa, de pedidos de desculpa e de indemnizações possíveis podia naturalmente este gesto abrir?

O imperador japonês prostrou-se por terra perante o povo de Coreia e desculpou-se pelas atrocidades cometidas pelas tropas japonesas durante a Segunda Guerra Mundial. O governo alemão desculpou-se e predispôs-se a fazer a reparação das atrocidades cometidas no Holocausto. Mas, em geral, as superpotências não julgam necessário pedir desculpa, seja pelo que for.

"De qualquer forma, isso teve lugar antes de nós e, por isso, esqueçamos e continuemos em frente” é quase o máximo que se pode esperar deles.

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O que é engraçado é que a história não passa adiante. Tende a andar às voltas e a assombrar, de igual forma, os descendentes das vítimas e dos perpetradores, até que algum tipo de catarse possa ser arranjada que permita que os fantasmas possam descansar. E, por inverosímil que possa parecer, o coração humano é sempre capaz de alguma forma de redenção.

Ao congratularmo-nos com o pedido formal de desculpas da Bélgica, temos que interrogarmo-nos sobre o seu exacto alcance. O assassinato de Lumumba chocou o mundo, e a continuada negação do papel dos líderes de um conjunto de nações ocidentais neste acontecimento adicionou o insulto às feridas.

Mas a morte de Lumumba foi uma mera cena de uma tragédia que já vinha a desenrolar-se em diversos actos sangrentos e um prelúdio para mais e maiores dramas sangrentos que viriam a acontecer.

Irá agora a Bélgica desculpar-se pelos excessos brutais na propriedade do Rei Leopoldo II designada “Estado Livre do Congo”, onde aproximadamente cinco a oito milhões de congoleses foram massacrados nas plantações de borracha no espaço de poucos anos? Admitindo que o Governo Belga se possa escusar a esta responsabilidade porque a propriedade não era oficialmente da sua responsabilidade, mas sim uma das mais lucrativas propriedades privadas do Rei Leopoldo II, o que dirá sobre sua gestão da colónia após Leopoldo a ter cedido ao Estado Belga depois da sua morte? O que dirá, efectivamente, sobre sua manipulação de rivalidades étnicas nos territórios vizinhos do Ruanda e do Burundi, que conduziram a alguns dos piores genocídios do final do Século XX? E o que dirá sobre sua deliberada destabilização do vasto Congo depois da sua relutante concessão da independência? Actos de destabilização que incluíram a sórdida morte de Lumumba, mas não pararam por aí?

O pedido de desculpas do Governo Belga pelo seu papel nesse crime é um notável e refrescante acto de contrição, e um possível preâmbulo para um espírito de genuína reconciliação entre Europa e a África. Efectivamente, a Bélgica já tinha apontado o caminho com o reconhecimento do seu papel histórico na agudização dos conflitos raciais, durante a inconclusiva Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban em 2001; uma atitude não imitada pelas muitas outras potências imperiais presentes e passadas.

Com o reconhecimento do seu papel na eliminação de Lumumba e na criação de um mártir africano, uma das nações mais pequenas da Europa deu, à escala das coisas, um gigantesco passo em frente. Mas, e o que se segue? O que será preciso para que as grandes potências comecem a seguir o exemplo?

Traduzido de: http://www.mg.co.za/articledirect.aspx?area=mg_flat&articleid=10223

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Parte III – Lumumba, projecto político

O Assassinato de Lumumba Ludo de Witte

2001 Editorial Caminho

Prepara-se o cadafalso Um «negro» à conquista do céu (30 de Junho de 1960)

A 30 de Junho de 1960, dia da independência do Congo, o Palácio da Nação em Léopoldville encheu-se

de personalidades congolesas e estrangeiras. O imponente edifício, situado na margem do rio congolês, foi construído no tempo do governador-geral Pétillon. De acordo com os planos iniciais, o edifício ia servir de residência aos membros da família real durante as suas viagens por África e parcialmente de residência ao próprio governador-geral. Contudo, a descolonização acelerada alterou as coisas e, após algumas obras de adaptação, nele se albergou decentemente o parlamento congolês. À maneira de boas-vindas, a estátua de bronze de Leopoldo II, fundador do Estado independente do Congo, continua de pé à entrada do edifício, como se nada fosse mudar após a transmissão dos poderes. Não só os políticos congoleses recentemente eleitos, parlamentares, senadores e ministros se reúnem no hemiciclo mas também a imprensa nacional e internacional e por fim toda a aristocracia belga.

No início, a cerimónia de transmissão solene da soberania desenrolou-se de maneira satisfatória para Bruxelas. O rei Balduíno traça num discurso fortemente tingido de paternalismo uma imagem elogiosa da colonização e um futuro neocolonial igualmente prometedor. Disse o rei, entre outras coisas: «A independência do Congo constitui o coroar da obra concebida pelo génio do rei Leopoldo II.» E acrescenta:

«Não comprometam o futuro com reformas apressadas, e não substituam os organismos que a Bélgica

vos entrega, enquanto não tiverem a certeza de poderem fazer melhor [...] Não tenham receio de recorrerem a nós. Estamos prontos a permanecer ao vosso lado para vos ajudar com os nossos conselhos, para formar convosco os técnicos e os funcionários de que vierem a necessitar.» 1

Depois do rei belga, foi a vez de Joseph Kasa Vubu, o primeiro presidente congolês, tomar a palavra.

Fez um discurso perfeitamente insignificante. E, ao fazê-lo, ele responde exactamente àquilo que os antigos senhores esperam da nova elite africana: eles serão ministros, conduzirão carros de luxo e viverão em belas residências, mas nos bastidores os europeus continuarão a puxar todos os cordelinhos com total à-vontade. A imagem idílica da época colonial evocada pelo rei contrasta penosamente com as recordações dos eleitos coloniais e os crimes que permaneceram gravados na memória colectiva dos africanos. Mas quem, em Bruxelas, se preocupa em exprimir estas reflexões? Durante décadas, a lei do silêncio foi respeitada em torno dos delitos coloniais. O Congo era «O império do silêncio» (O. P. Gilbert), onde o tabu da repressão colonial permaneceu intacto e a independência não vai alterar nada.

Mas imediatamente após a alocução do presidente congolês, Joseph Kasongo, presidente da Câmara dos Representantes, dá a palavra ao primeiro-ministro Lumumba. Balduíno e Eyskens caem das nuvens: o programa não previa um terceiro discurso e os serviços do Infor Congo não lhes transmitiram o projecto de texto de Lumumba, que contudo foi distribuído à imprensa presente. Mas foi sobretudo o conteúdo da alocução que os deixou petrificados. O primeiro-ministro congolês não se dirige aos senhores de outrora, mas aos «congoleses e congolesas, combatentes da independência hoje vitoriosos». Por consequência, as personalidades estrangeiras desapareceram do centro da atenção política e tornaram-se espectadores da celebração de um movimento nacionalista e dos seus primeiros sucessos. É com estupefacção que eles ouvem o dirigente nacionalista dirigir-se ao povo congolês e responder ao rei, que entretanto ficou completamente lívido. Dirigindo-se directamente ao povo e falando por cima do corpo diplomático reunido, ele explica que a

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concessão da independência não é um presente generosamente oferecido por Bruxelas, como pretendeu o rei Balduíno. A independência foi proclamada de acordo com a Bélgica, mas

«nenhum congolês digno deste nome poderá jamais esquecer que foi pela luta que ela foi conquistada, uma luta de todos os dias, uma luta ardente e idealista, uma luta na qual não poupámos os nossos esforços, nem as nossas privações, nem os nossos sofrimentos, nem o nosso sangue».

Lumumba descreve então abertamente o sistema colonial que Balduíno glorificou como a obra-prima do

seu tio-avô e condena-o como «a humilhante escravatura que nos foi imposta pela força». Lumumba continua assim: «Fomos alvo de ironias, insultos, pancada que tínhamos de sofrer de manhã, à tarde e à noite, porque

éramos negros. Quem esquecerá que um Negro era tratado por “tu”, não por ser um amigo, mas porque o “você” era reservado aos brancos? As nossas terras foram espoliadas em nome de textos pretensamente legais que não faziam mais do que reconhecer o direito do mais forte. A lei nunca era a mesma, conforme se tratava de um branco ou de um negro: complacente para uns, cruel e desumana para os outros. Fomos vítimas dos sofrimentos atrozes dos degredados por opiniões políticas ou crenças religiosas; exilados na sua própria pátria, a sua condição era na verdade pior do que a própria morte [...] Por fim, quem poderá esquecer os tiroteios que mataram tantos dos nossos irmãos, os calabouços para onde foram brutalmente atirados aqueles que não queriam mais submeter-se ao regime de uma justiça de opressão e de exploração?»

Lumumba coloca nas proporções certas o papel que Bruxelas desempenhou no processo de

descolonização: «A Bélgica, compreendendo finalmente o sentido da história, não tentou opor-se à nossa independência.»

O discurso de Lumumba foi interrompido oito vezes pelos aplausos dos congoleses presentes e coroado com uma verdadeira ovação. Num abrir e fechar de olhos, milhares de pessoas que tinham seguido as festividades pela rádio vão espalhar esta acção notável pelos quatro cantos do Congo. Lumumba exprimiu-se numa linguagem que os congoleses julgavam impensável na presença de um europeu. Aqueles poucos minutos de verdade são uma recompensa por oitenta anos de dominação. Pela primeira vez na história do país, um congolês dirige-se à nação e põe em movimento a reconstrução da história congolesa. Com este acto, ele reforça o sentido da dignidade e de confiança em si dos congoleses. Os representantes do colonialismo defunto estão estupefactos. Bruxelas vê-se confrontada com a revolução anticolonial que tanto detesta. Na presença dos europeus, a obra colonial, tão louvada pelo rei, é descrita como uma escravatura humilhante! E tudo isto é trabalho de Patrice Lumumba, o homem que, há apenas algumas semanas, depois da sua vitória eleitoral, foi descrito nos comentários da imprensa belga como um ladrão iletrado, um arrivista, negro içado para o topo! O nacionalismo de Lumumba: uma avaliação provisória

Quase quarenta anos após a sua morte, Patrice Lumumba continua a ser um grande desconhecido na

historiografia política de África. Para a maior parte dos africanistas, Lumumba é um homem que, sem visão clara nem plano de acção muito nítido, levado por um anticolonialismo desenfreado, declarou guerra ao Ocidente e soçobrou muito rapidamente no caos da crise congolesa que em grande parte ele próprio provocou. Estes africanistas servem-se do quadro de referências dos governadores ocidentais da época para abordar a crise congolesa. Cultivam uma visão pouco crítica da intervenção da ONU, subestimam o papel das ingerências ocidentais e caracterizam Lumumba como um homem teimoso, irrealista, que se tornou impossível junto da classe política congolesa em formação e junto dos pontos de apoio ocidentais. Além desta corrente dominante, um pequeno grupo de autores emite um juízo mais matizado sobre o ex-primeiro-ministro assassinado e sobre o papel ocidental na crise congolesa. Para eles, Lumumba é um homem que não defendia

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verdadeiramente uma política concreta e não procurava alcançar objectivos realizáveis. Ele sonhava com um mundo melhor, um mundo que, em 1960, não era realizável. Estes autores vêem nele sobretudo o mártir da independência, crucificado pelo Ocidente, que não queria desfazer-se dos seus bens congoleses. O Lumumba deles é um homem trágico, que se tornou vítima de uma situação que não teria nunca podido controlar. Uma e outra correntes — Jaen-Claude Williame é o porta-voz da primeira e Jean-Paul Sartre da segunda — são menos diferentes do que se pode pensar à primeira vista. Ambas põem com efeito em evidência o papel do indivíduo. As duas acentuam a fraqueza de Lumumba, o seu isolamento, a sua estratégia mal compreendida. Elas partem da ideia de que Lumumba não tinha nenhuma hipótese de ser bem-sucedido. Lumumba é o protagonista e a primeira vítima de uma crise, em que as forças que ele combate, em vez de diminuírem, tinham tendência a amplificarem-se pela sua intervenção 1.

Estas concepções sofrem de graves carências. Elas não permitem responder a uma pergunta crucial: se é certo que Lumumba era um político isolado, por que é que Bruxelas, Washington e Nova Iorque puseram de pé uma operação militar tão vasta, de tão longa duração, que incluía a deslocação de vários milhares de soldados belgas e de Capacetes Azuis, operações de desestabilização, assassinatos e corrupção, assim como uma enorme campanha mediática? Os poderes ocidentais, que conduziram estas intervenções, não desencadearam certamente uma das maiores crises desde a Segunda Guerra Mundial, unicamente para se verem livres de um dirigente político isolado e insólito!

Escusado será dizer que o acesso aos Arquivos das Nações Unidas e do Departamento dos Negócios Estrangeiros ajudou a melhorar a nossa compreensão da crise congolesa e da prática política de Lumumba. Mas a razão pela qual a herança política de Lumumba não é ainda apreciada no seu justo valor não é de modo nenhum de ordem técnica (falta de material de investigação), mas sim de ordem política. A muito curta carreira política de Lumumba, o derrube aparentemente fácil do primeiro-ministro congolês e finalmente o seu assassinato que, durante décadas, não foi elucidado, tiveram um efeito muito desmoralizante no nacionalismo africano. O único acontecimento que sobreviveu foi um crime revoltante: o assassinato de um prisioneiro sem defesa. O facto de a memória política de Lumumba permanecer ligada aos feitos de um indivíduo deve-se à ausência, no decurso das últimas décadas, de um movimento congolês capaz de continuar a luta de Lumumba e de pôr em prática o valor real das suas convicções e da sua atitude política. O que faltou foi um movimento que retomasse a experiência da crise congolesa, integrando-a num novo projecto conduzido por largas camadas de população.

Até hoje, este movimento continua a não existir no Congo, um movimento popular que assimile os objectivos políticos de Lumumba e que coloque bem alto na ordem do dia a libertação do país do jugo neocolonial. A incorporação racional da herança de Lumumba continua a ser um empreendimento delicado em tais condições. Enquanto o processo de libertação nacional não se erguer a um nível mais alto, é difícil julgar essa herança pelo seu justo valor e dar-lhe uma forma integrando-a em lições, estrutura e tradições políticas. Por consequência, o juízo aqui apresentado não é unívoco e definitivo. Por um lado, podemos radicalmente afastar as opiniões dominantes que existem sobre Lumumba, como sendo não científicas: o material de investigação reunido é impiedoso para os africanistas que interpretam a crise congolesa baseando-se em clichés espalhados pela propaganda ocidental de outrora. Por outro, o nosso juízo continua a ser provisório e prudente: quando os povos congoleses tiverem realmente tomado nas suas mãos o seu próprio país, estarão em condições de integrar e de incorporar a sua própria história, incluindo a herança política do pai da independência congolesa.

Enquanto Lumumba foi vivo, os contornos da sua obra política são pouco visíveis. O homem é um meteoro político: totalmente desconhecido no plano nacional em 1955, torna-se em 1958 um dirigente nacionalista capaz de orientar as massas. Primeiro-ministro em 1960, mantém-se durante dez semanas, e depois será assassinado, no início de 1961. Lumumba é o produto de uma transformação fulgurante da vida política congolesa que teve lugar entre 1958 e 1960. A sua evolução política tumultuosa caminha a par da radicalização da política congolesa, que por sua vez é a expressão da decomposição acelerada da ordem colonial. Após décadas de narcose artificial durante a época colonial, a vida política agarra os seus direitos de maneira dramática. A obra que Lumumba escreveu em 1956, que tinha por título Le Congo, terre d’avenir, est-il menacé? demonstra claramente essa evolução. Nesse livro, ele mantém-se nos limites daquilo que o paternalismo colonial prescreve aos congoleses «evoluídos»: «O desejo essencial da elite congolesa [...] é ser “belga” e ter direito ao mesmo desafogo e aos mesmos direitos, tendo em conta evidentemente os méritos de cada um.» É reflexo das aspirações da pequena-burguesia congolesa nas vésperas do processo de

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descolonização. Esta elite congolesa obteve, à margem da ordem colonial, uma situação relativamente privilegiada. Ela não tem imediatamente em vista a libertação do jugo colonial, mas a eliminação de alguns obstáculos, de medidas discriminatórias, que impedem a realização das suas ambições de burguesia embrionária. Dada a desconfiança que ela alimenta em relação às massas congolesas, esta elite limita as suas ambições nacionalistas, reivindicando apenas uma independência puramente forma e gradual, sob a tutela dos poderes coloniais aos quais ela deve o seu estatuto e a sua posição. De facto, esta elite é nacionalista contra a sua vontade. Um ano e meio depois de ter redigido Le Congo, terre d’avenir, est-il menacé?, Lumumba mudou completamente de ideias: o Lumumba de 1956 não tem nada a ver com o de 1958.

Durante estes anos de luta contra o colonizador, Patrice Lumumba rompe totalmente com a elite congolesa e as suas ambições burguesas. Opta decididamente por uma verdadeira descolonização em benefício das massas populares. Durante este período, Lumumba dá forma a um nacionalismo que assenta em três pilares políticos: um nacionalismo revolucionário e coerente, uma prática política que assenta num movimento de massas e uma perspectiva internacionalista. O discurso de Lumumba de 30 de Junho de 1960 simboliza a vitória sobre a ordem antiga desse nacionalismo progressista e dirigido para o futuro. Mais tarde, tentar-se-á recuperar esta vitória simbólica caracterizando o discurso de Lumumba como o golpe de alguns conselheiros europeus rancorosos do círculo do dirigente congolês. Jean Van Lierde, amigo e conselheiro do primeiro-ministro congolês, é todavia formal:

«Não me foi difícil persuadir Patrice a quebrar o protocolo estabelecido e a tomar o microfone diante da

multidão no Parlamento, para dar uma visão não diplomática à esperança do seu povo. A imprensa reaccionária acusou-me de ter redigido esse texto, o que não é exacto, pois os colonos não queriam acreditar que Patrice Lumumba fosse capaz de escrever e de falar durante horas. E foi o seu discurso magnífico de 30 de Junho de 1960, perante o rei e os diplomatas do mundo inteiro que testemunhou a densidade do seu pensamento.» 1

O discurso de Lumumba é impressionante porque as suas palavras dão expressão ao movimento de

massas que tinha destruído o edifício colonial. Cada vez que Lumumba toma a palavra, são no fundo essas massas populares que falam, e que enchem com a sua presença a cena política, reivindicando direitos cada vez mais audaciosos, pondo assim em perigo a recuperação da independência.

Para compreender bem a crise congolesa e o lugar de Lumumba nela e por fim o significado da sua vida e da sua obra, é necessário estudar as relações de forças entre as classes sociais durante a revolução anticolonial. Somente desta maneira se pode compreender por que razão o Ocidente empenhou toda uma máquina de guerra contra o primeiro governo congolês. Não basta fazer referência à biografia dos dirigentes nacionalistas que, numa vida anterior, foram funcionários, professores, empregados ou assistentes médicos. Lumumba e alguns dos seus companheiros romperam com a elite congolesa e ligaram o seu destino ao das largas camadas da população que se puseram em marcha contra o colonizador.

Uma pequena história ilustra bem a diferença de abordagem entre Lumumba e esta elite e representa de algum modo a prefiguração em miniatura do que se iria passar mais tarde no tempo de Mobutu. Poucos dias apenas depois da independência, a comissão parlamentar congolesa adequada promete aos parlamentares uma indemnização de 500 000 francos belgas e toda uma série de benefícios materiais. O embaixador belga, que não está ainda «em guerra» com Lumumba nesse momento, envia um telegrama para Bruxelas no qual descreve a reacção do primeiro-ministro a essa medida da protoburguesia congolesa:

«A decisão [...] causou uma emoção que depressa ultrapassou as fronteiras do Congo, e da qual a

imprensa belga já lhe terá dado alguns ecos. Passei a tarde de ontem com o primeiro-ministro, que se manifestou em termos vivos contra essa decisão, que ele considera prejudicial à economia do país e um grave atentado ao prestígio do jovem Estado. O governo está decidido a combater estas medidas e a fazer voltar a indemnização parlamentar a um nível compatível com o rendimento nacional do Congo. O Sr. Lumumba vê neste caso uma manobra de oposição. Ele parece decidido a contrariá-la.» 1

Lumumba e os seus são nacionalistas coerentes ou radicais. Combateram todas as formas de dominação

colonial ou neocolonial e aspiram construir uma nação unificada no interior das fronteiras do Estado congolês. A revolução anticolonial é, à luz dos seus objectivos, uma revolução burguesa. As tarefas nacionais-

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democráticas consistem em libertar-se da férula imperialista e em instaurar a independência nacional; na constituição de uma república democrática, coroada com uma assembleia nacional; e finalmente no desenvolvimento de uma economia realmente nacional, orientada para as necessidades da população. O objectivo final continua a ser a construção de um Estado-nação unificado: um Estado no qual todas as regiões se considerem como componentes essenciais da sociedade.

Os objectivos desta revolução são os mesmos que os das revoluções europeias e americana que, na segunda metade do século XVIII e na primeira metade do século XX, deram origem aos Estados-nação modernos. A revolução anticolonial no Congo iria por sua vez produzir um Estado burguês clássico? Não era garantido. As revoluções europeias e americana levaram todas ao poder uma burguesia nacional, mesmo que a revolução tenha frequentemente sido conduzida pelas classes populares. A situação no Congo da época é tal, que uma repetição deste cenário é pouco provável. Bruxelas criou, para a exploração da colónia, um grande proletariado congolês que trabalha nas minas, nas fábricas e nas plantações. À medida que este proletariado adquire experiência de luta e confiança em si, este, com outras classes populares, considera a luta pela independência como uma alteração social, como um instrumento que serve para melhorar o seu destino imediato. Além disso, o colonizador explorou o Congo segundo as necessidades da metrópole. Não criou uma economia propriamente nacional e, por consequência, burguesia nacional. Não existe portanto no Congo, na época, uma classe capitalista capaz de desviar o movimento para uma independência puramente formal, sem tocar na dominação colonial. O rei Balduíno previu esse perigo. Em Novembro de 1959, na altura em que os desenvolvimentos pré-revolucionários no Baixo-Congo encostam Bruxelas à parede, ele declara: «Os acontecimentos precipitaram-se a um ritmo que ninguém teria podido suspeitar. Puseram-se em marcha forças tumultuosas, sem que elites sensatas e experientes estivessem presentes em número suficiente para as enquadrar e dirigir.» 1

Neste contexto, Lumumba representa um grande perigo potencial para o Ocidente. O bem-sucedido assalto ao edifício colonial deu oxigénio aos nacionalistas radicais e concedeu-lhes um importante lugar no seio do governo congolês. O anti-imperialismo de Lumumba, a sua solidariedade para com as massas populares que se radicalizaram, o seu internacionalismo e, finalmente, a sua aversão aos métodos administrativos e repressivos favorecem o trabalho de convicção política: tudo isto o predestina a integrar no movimento um máximo de povos e de regiões e de elevar este movimento eventualmente acima dos limites puramente burgueses. A história ensinou-nos que a dinâmica das sociedades pós-coloniais levou mesmo regimes burgueses-nacionalistas moderados, sob o impacte da vitória anticolonial, a exigir o património nacional ao ex-colonizador. Podemos dar como exemplo as nacionalizações da indústria petrolífera efectuadas por Mossadegh (Irão, 1951) e do Canal do Suez por Nasser (Egipto, 1956). Se Mossadegh tinha ousado dar esse passo, por que não haveria Lumumba de o fazer? Se as massas congolesas tomassem o seu destino nas suas próprias mãos e começassem a construir organizações de massas para a defesa dos seus interesses (comité de bairro, sindicatos, organizações para a defesa da mulher e de juventude...) e a considerar-se como motor de progresso social e político em vez de espectadores passivos face às medidas tomadas por uma burocracia de Estado, criar-se-ia então uma situação revolucionária. O governo Lumumba seria então capaz de transgredir a luta pela independência, de organizar a mobilização popular e de colocar na ordem do dia uma luta mais ampla com, em primeiro lugar, medidas contra o domínio dos capitais estrangeiros sobre as riquezas nacionais.

A iminência deste processo de radicalização é a chave que permite compreender por que razão, como diz Sartre, «apesar da moderação do seu programa económico, o líder do MNC era considerado como um irmão de armas pelo revolucionário Fanon, como um inimigo mortal pela Société Générale» 1. Isto explica igualmente por que razão a observação de alguns autores segundo a qual Lumumba não tem «programa político» não é válida. O jacobinismo político de Lumumba — a sua concentração absoluta em adquirir o poder político — responde às exigências da revolução anticolonial no Congo de 1960. Os nacionalistas tinham de obter o poder de Estado: era a condição sine qua non de todo o progresso — a alavanca para acelerar a mobilização política dos povos congoleses e, através desse processo de construção de um Estado-nação, estimular o desenvolvimento económico do país. A base racional de intervenção ocidental no Congo é a sua determinação em querer esmagar no ovo este processo de radicalização. Alguns dias após a alocução de 30 de Junho de 1960, Lumumba junta o acto à palavra e escolhe o lado dos soldados congoleses no seu combate contra a casta revolucionária dos oficiais belgas. A desagregação do exército colonial e a agitação social entre os funcionários, que vêem no sucesso da rebelião dos soldados um encorajamento para

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concretizar a independência por meio de reivindicações sociais, fazem nascer uma dinâmica incontrolável e leva o Ocidente a tomar contramedidas radicais. Quer-se evitar a todo o custo que os pilares de um regime neocolonial no Congo sejam destruídos, ou, como diz Sartre, evitar «a radicalização de Lumumba pelas massas ou a unificação das massas por Lumumba». Surge assim o medo que, como um fio vermelho, se apercebe através das mensagens que o embaixador belga Van den Bosch envia para Bruxelas em meados de Julho de 1960. A 18 de Julho, escreve:

«Os meus telegramas põem em evidência o perigo das situações que não ameaçam apenas a posição

belga no Congo mas toda a posição ocidental na África Central. [...] A guarnição de Léopoldville é comandada há 48 horas por uma criatura de Lumumba que foi nomeado chefe do estado-maior. As tropas da ONU são até agora todas de origem africana e não seriam provavelmente capazes de assegurar a ordem caso uma fracção importante da população civil, que conta actualmente 40 000 desempregados, se sublevasse e se juntasse à guarnição. [...] Parece-me de grande importância que as potências ocidentais principalmente interessadas conferenciem.» 1

Os estrategos ocidentais não têm qualquer dificuldade em reconhecer o perigo potencial que emana dos

desenvolvimentos do Verão de 1960. A dialéctica entre o dirigente revolucionário e as massas que são sensíveis à política é capaz de produzir uma mistura explosiva da envergadura da que, nessa altura, minava os interesses dos Estados Unidos em Cuba. É este facto que fornece em parte a base racional da comparação feita então em certas capitais ocidentais entre Lumumba e Castro. Desde 1 de Janeiro de 1959, momento em que a vitória da revolução cubana foi selada pela queda do ditador Batista, deu-se uma radicalização das classes populares e do seu governo, que ultrapassou em muito os limites iniciais dos programas nacionalistas dos barbudos de Fidel Castro. Durante a primeira metade de 1959, os representantes da burguesia cubana são afastados do governo por pressão de acções de massas. Em Havana e Washington, são tomadas medidas e contramedidas, o que levará em Abril de 1961 à invasão falhada de Playa Girón e à proclamação de carácter socialista da revolução cubana. Neste processo de radicalização em Cuba, a promulgação da lei da reforma agrária, pela qual os grandes proprietários de terras foram expropriados e pequenos terrenos foram distribuídos aos camponeses sem terra (17 de Maio de 1959); a demissão do presidente Urrutia (Julho de 1959); a nacionalização da Texaco, Shell e Esso, que se recusavam a refinar petróleo soviético (29 de Junho-1 de Julho de 1960); a nacionalização de todas as grandes empresas americanas estabelecidas em Cuba, em réplica à recusa de Eisenhower de comprar mais açúcar cubano (6 de Agosto de 1960); a instalação de comités de poder popular servindo de pilar ao Estado cubano com o objectivo de lutar contra as acções de sabotagem (28 de Setembro de 1960); a nacionalização de todo o sector bancário e cerca de 400 empresas cubanas (13 de Outubro de 1960), constituem pontos culminantes. O medo de se verem confrontados com uma variante africana deste processo levou os estrategos de Bruxelas, Washington e Nova Iorque a intervir militarmente no Congo.

Pode-se retorquir que o Congo não é Cuba e que o movimento de 26 de Julho de Castro e do exército dos rebeldes cubanos difere qualitativamente do Movimento Nacional Congolês de Lumumba. É exacto. O governo Eyskens realizou a descolonização com passo acelerado, justamente para cortar rente qualquer processo de radicalização das massas congolesas. Eyskens quis encurtar tanto quanto possível o período de politização a fim de evitar qualquer escalada. Bruxelas esperava assim colocar no poder políticos congoleses inexperientes e fracos e continuar a puxar os cordelinhos nos bastidores. Foi por essa razão que o governo belga decidiu no início de 1960 conceder a independência a 30 de Junho do mesmo ano, quando no início de 1959 Bruxelas continuava convencida de que podia retardar essa data pelo menos vinte anos! Esta passagem de poderes vertiginosa não impediu Lumumba de ficar à frente do governo, mas não deu aos dirigentes nacionalistas tempo para elaborarem um movimento bem estruturado, com uma direcção sólida. As massas congolesas arrancaram a sua independência com as mãos nuas. Conduziram a sua luta sem partidos políticos nem sindicatos ou outras organizações de massa dignas deste nome. E Lumumba não teve tempo nem meios para construir no seio do movimento um quadro sólido: muito poucos dirigentes nacionalistas tinham, no dia da independência, uma visão e um reconhecimento nacionais. O que os críticos do governo Eyskens descreveram, de maneira bastante enganadora, como «uma política de abandonem tudo» produziu apesar de tudo qualquer coisa de substancial, pois sem movimento nacionalista bem organizado iria ser muito difícil levar esta revolução anticolonial a um nível mais elevado. Mas não podemos iludir-nos sobre o que era o

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movimento anticolonial congolês em Julho de 1960; é preciso — como fizeram então os estrategos ocidentais — ter nitidamente em mente o que ele poderia vir a ser, com base nos desenvolvimentos nos primeiros tempos de independência.

O medo ocidental de uma evolução congolesa à cubana tem alguma razão de ser. Basta olhar atentamente para os desenvolvimentos revolucionários que tiveram lugar no Burkina Faso (1983-1987). O derrube do governo neocolonial, pró-francês, do Burkina Faso foi obra de algumas centenas de soldados e civis armados, sob a direcção do capitão Thomas Sankara. A estrutura das classes deste país do Sahel extremamente pobre é menos favorável ainda do que a do Congo de 1960: o país não tem classe operária, tradicionalmente portadora das ideias progressistas e socialistas. Tal como no Congo, os camponeses, que constituem a maior parte da população, vivem em condições sociais arcaicas, sem organizações próprias e sem nenhum passado de luta pela terra contra uma classe de grandes proprietários fundiários capitalistas ou pré-capitalistas. Apesar disto, o governo de Sankara conseguiu dar uma forma duradoura ao entusiasmo inicial da população. Foram formados comités para a defesa da revolução, assim como milícias populares. A campanha de alfabetização, a implicação da população na construção de diques e irrigação do vale do Sourou, assim como a luta contra o desmatamento e a instalação em cada aldeia de um posto sanitário deram forma à revolução nacional-democrática apoiada por largas camadas da população. Vinte anos depois da crise congolesa, Patrice Lumumba reencarnou na pessoa de Thomas Sankara.

A chave que nos permite compreender este processo revolucionário é a mobilização política das classes populares que adquirem uma experiência de luta, ganham confiança em si próprias, marcam o curso dos acontecimentos e desenvolvem uma consciência nacional. Esta consciência nacional não é estritamente nacionalista, mas sim de natureza anti-imperialista. Não dirigida contra «os franceses», «os brancos» ou outros «estrangeiros», mas contra o imperialismo e outros adversários das realizações sociais e políticas da revolução, como a burguesia indígena que, na qualidade de subempreiteiro do capitalismo internacional e mandatado político de Paris, aspira perpetuar o neocolonialismo no país. Em 1987, militares contra-revolucionários assassinaram Thomas Sankara e puseram fim ao processo revolucionário no Burkina Faso 1.

Bastou a tentativa de introduzir uma revolução autenticamente nacional-democrática no solo congolês para colocar Patrice Lumumba no panteão dos defensores universais da emancipação dos povos. Mas as lições políticas da crise congolesa fazem parte, e constituem uma parte substancial, da sua herança política. Vários autores sublinharam que em apenas algumas semanas, Lumumba conseguiu erguer o establishment internacional contra ele e que em consequência disso foi expulso do poder rapidamente. Mas aquilo que muitos consideram ser a obstinação do primeiro-ministro congolês é de facto a expressão de um fenómeno muito mais fundamental. A crise congolesa faz surgir de um só golpe a verdadeira natureza dos poderes que modelaram em grande parte o mundo do pós-guerra. A crise mostra na prática a verdadeira face, não só dos antigos poderes coloniais mas igualmente a das Nações Unidas, dos países recentemente formados independentes e unidos no que se chama o bloco afro-asiático, assim como a de Moscovo e, por fim, no próprio Congo, a da elite nacional. Confrontados com a ofensiva ocidental contra o governo congolês, estes baixaram a cabeça. Todos traíram os seus princípios e os seus ideais, contudo publicamente professado, e igualmente traíram o primeiro-ministro congolês que, numa ou noutra altura, lhes tinha testemunhado a sua confiança. Foi este concurso de circunstâncias excepcional, esta revelação sob a pressão do Ocidente que os obrigou a tomar partido na crise congolesa, que explica o desfecho da crise.

Terá sido por esta razão que Lumumba e os seus não poderiam em caso algum «vencer» a crise congolesa? A situação extremamente crítica em que se encontram, no fim de 1960-começo de 1961, os regimes de Kasa Vubu e de Tchombé, demonstra que uma vitória nacionalista não teria sido impossível. Mas para lá chegar, teria sido preciso não cometer alguns dos erros que Lumumba e os nacionalistas congoleses cometeram e teria sido preciso tirar mais rapidamente as lições dos erros cometidos. A fraqueza política do nacionalismo congolês, incluindo a do seu dirigente central, faz portanto integralmente parte das lições da crise congolesa.

Lumumba criou os seus aliados afro-asiáticos, sobre Moscovo e sobre a ínfima fracção da elite congolesa que tinha escolhido o seu lado no momento supremo da revolução anticolonial. Depois, ele avaliou mal as Nações Unidas, sobretudo de meados de Julho a meados de Agosto de 1960: alimentou a esperança de que as Nações Unidas iam pôr fim à secessão catanguesa. E mais tarde, em Outubro e Novembro de 1960, no momento em que é conduzida uma discussão no seio das Nações Unidas com o fim de escolher uma das duas delegações, a de Kasa Vubu ou a de Patrice Lumumba, como representante legal do Congo, ele acreditou que

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o Terceiro Mundo iria resistir à pressão ocidental e optar por ele. Lumumba desconfia da imagem das Nações Unidas funcionando como instrumento neutro da lei e da ordem internacional, como instrumento capaz de defender a soberania dos países do Terceiro Mundo. Mas ele esperou poder colocar suficientemente sob pressão a opinião pública internacional, por um lado, e os chefes de Estado afro-asiáticos, que esperavam a salvação das Nações Unidas, por outro, com o fim de neutralizar a influência ocidental no seio das Nações Unidas e de obrigar os Capacetes Azuis a realizar os objectivos para os quais o governo congolês os tinha convidado. Isto levou-o a fazer por vezes declarações ambíguas. Por exemplo, reagindo à Resolução da ONU de 9 de Agosto, Lumumba declara:

«O Conselho de Segurança decidiu [...] que as tropas da ONU entrem imediatamente no Catanga para

expulsar as tropas belgas. É uma grande vitória hoje para o povo congolês. [...] Os imperialistas fracassaram. Tchombé, testa-de-ferro, fracassou igualmente. Os vendidos aos colonialistas e aos imperialistas fracassaram. Hoje o povo catanguês [...] está libertado.» 1

Durante este período, a população congolesa, que deu provas de tanta iniciativa, coragem e vontade de

luta até à independência, foi empurrada para o papel de espectador. Lumumba deslocou a arena política do Congo para Nova Iorque, Accra e Conakry. Ele espera nesse momento que a pressão diplomática leve os Capacetes Azuis a pôr-se em acção contra a secessão. Nessa época, ele conta com o apoio de (alguns) contingentes da ONU mais do que com o do ANC e da população congolesa no interior e exterior do Catanga.

Quando em Agosto de 1960 se torna claro que Nkrumah, Nasser e Nehru colocam nas mãos das Nações Unidas o desfecho da crise que Hammarskjöld concede à secessão catanguesa, Lumumba muda de ideias. Dá luz verde a uma acção militar contra as secessões e parte para Stanleyville com o objectivo de mobilizar a população. Mas o dirigente congolês perdeu um tempo precioso, enquanto Washington, Bruxelas e Nova Iorque continuaram entretanto com muita perseverança a reforçar as suas testas-de-ponte. Além disso, ele desorientou a opinião pública congolesa e africana com as suas declarações de amor ambíguas dirigidas às Nações Unidas. A sua esperança, ou melhor, o seu cálculo errado, que consistia em pensar que as Nações Unidas iriam ser obrigadas a contrariar planos ocidentais, vai significar a sua perda. A implantação belga em Elisabethville e em Bakwanga; a colocação dos Capacetes Azuis nestas províncias; os golpes de Setembro e a ofensiva diplomática dos Estados Unidos na Assembleia Geral (15.a sessão), tudo isto conduziu à desorientação das forças nacionalistas, ao assassinato de Lumumba e, finalmente, quebrou o ímpeto da revolução anticolonial no Congo.

Mas, finalmente, as grandes evoluções sociais pesam mais do que as derrotas históricas, como as de 1960-1961. Enquanto as tarefas da revolução nacional-democrática no Congo não forem realizadas, a vida e a obra de Lumumba continuam a ser uma fonte de inspiração para as gerações congolesas de hoje e de amanhã. O fio condutor desta vida política é a sua evolução de nacionalista consequente em revolucionário. Um exemplo para ilustrar esta evolução: durante a época colonial, Patrice Lumumba defende acções maciçamente apoiadas, mas fundamentalmente pacíficas. Dada a supremacia militar da Force publique, tais acções parecem ser o método indicado para desmoralizar o colonizador e neutralizar as suas forças repressivas. Mas os desenvolvimentos após a independência mudaram fundamentalmente as regras do jogo. A contradição entre o colonizador e a população colonizada traduziu-se em luta entre, por um lado, uma coligação internacional neocolonial e, do outro, o Congo nacionalista. Durante os meses de Julho e Agosto de 1960, a balcanização do Congo torna-se um facto. Nestas circunstâncias, Lumumba não hesitou. Escolheu decididamente a acção militar com o objectivo de libertar o Congo do estrangulamento neocolonial. A sua campanha militar contra as secessões do Kasai e do Catanga (fim de Agosto-início de Setembro de 1960); a sua intenção, após o derrube do governo, de repor o seu poder legítimo sobre todo o território congolês a partir de Stanleyville nacionalista (Setembro-Novembro): depois encarcerado na sua cela de morte que lhe foi reservada por Mobutu, a sua rejeição de qualquer compromisso neocolonial (Dezembro-Janeiro de 1961): estes são os exemplos que mostram o caminho que Lumumba seguiu durante o curto período que vai da sua nomeação como primeiro-ministro até à sua morte. Excertos de Ludo de Witte, O Assassinato de Lumumba, Lisboa, Editorial Caminho, 2001.

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