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NÊMESIS

Nêmesis Reboot

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  • NMESIS

  • CAPITULO 01

    Depois de vrias tentativas, finalmente o barulho do vidro

    se quebrando interrompe o silncio da madrugada nesse

    fim de mundo. Os cacos se espalham pelo cho de

    madeira da choupana de frias de algum ricao da cidade

    e em seguida minhas mos tremulas atravessam a

    abertura e alcanam a maaneta para destrancar a janela.

    Alguns minutos depois, l estava eu, com o corao ainda

    batendo em velocidade extremamente acelerada

    enquanto tentava me acalmar tomando um banho frio. J

    fazia mais de um ano que eu no sentia a agua

    percorrendo meu corpo. J fazia mais de um ano que meu

    corao tinha parado de bater.

    A maior parte do banho foi usada para tentar retirar os

    restos da carnificina que eu havia produzido horas atrs.

    Antes, eu nunca havia matado nem mesmo um cachorro

    sarnento. Agora, eu j estava com treze assassinatos

    brutais em minha ficha. Uma bela estreia eu e meu

    sarcasmo inconveniente tentvamos aliviar um pouco a

    situao insana na quo havamos entrado.

    Em apenas uma noite toda a minha vida, e minha morte,

    haviam mudado. Era uma overdose de sentimentos

    opostos que me consumiam enquanto a agua se

    misturava com o sangue que saia da minha testa

    cirurgicamente cortada. Eu estava tremendamente

    orgulhoso e ao mesmo tempo se sentindo extremamente

    culpado. Eu estava eufrico e ao mesmo tempo

    profundamente deprimido. Eu estava prestes a entrar em

    colapso. Ou eu j havia entrado, s estava enganando a

    mim mesmo at aquele momento.

  • Desliguei o chuveiro, sequei meu corpo, fiquei apenas de

    toalha e comecei a procurar alguma coisa que servisse de

    curativo. No armrio logo abaixo da pia encontrei rolos de

    papeis higinicos empoeirados, outras toalhas e, pareceu

    mentira, um kit de primeiros socorros.

    Com a cabea devidamente tratada e protegida com o

    curativo caseiro, bati com a toalha molhada por toda a

    enorme cama box de casal no andar superior para

    amenizar a poeira que estava no dormitrio. Mais alguns

    minutos depois e no consegui aguentar mais a exausto.

    Cai sobre o lenol azul beb como um paraquedista

    pulando na imensido dos cus e praticamente desmaiei;

    e dormir ou desmaiar era tudo o que eu no queria fazer

    to cedo naquela madrugada, pois eu sabia o que viria

    depois.

    Assim como eu previ, l estava ela em meu desprotegido

    subconsciente. Vestida com o conjunto social bem

    costurado de sempre e apoiada em sua foice, tambm

    como sempre, ela me olhava com olhos de quem est

    prestes a dar uma bronca daquelas.

    - Vance Stevens... ela dizia meu nome completo

    lentamente, enquanto movia seu corpo magro e definido

    para mais perto de mim - Qual a parte de seja stil em

    nosso acordo que voc no entendeu?

    - Voc viu tudo no viu? eu tinha que tentar justificar,

    mesmo sabendo que ela no iria ceder Voc sabe muito

    bem que eu no tinha escolha!

    - Sim, eu sei. Mas voc realmente precisa arrancar a

    cabea daquela estudante com o machado de incndio? E

    realmente era preciso deixar as tripas daquele outro aluno

    espalhadas pela mesa? Ela gritava e balanava a foice

  • freneticamente, por sorte, no o bastante para acabar me

    acertando.

    - Eles me viram! Voc sabe que eles me viram e que fazia

    parte do nosso acordo que ningum soubesse da verdade

    era hora de usar o nosso acordo como um libi - Voc

    queria o qu? Que eu simplesmente senta-se naquela

    maca de necropsia e dissesse Boa noite calouros, finjam

    que vocs no viram que eu estive morto por um ano e

    acabei de reviver bem na frente de vocs? finalizei

    minha realista, cruel, mas realista defesa.

    Ela enfia a foice no piso que meu subconsciente havia

    criado como cenrio para meu sonho com tamanha fora

    que me faz recuar dois passos. No piscar de olhos

    seguintes, ela agarra meu pescoo com a mo direita,

    ergue meu corpo com a facilidade de quem levanta um

    copo vazio e rebate, dizendo:

    - Na prxima vez melhor que voc faa duas coisas:

    primeira, me consulte antes de agir e segundo, controle

    todo esse poder que eu te dei, ou ento eu mesma te mato

    de novo. Estamos entendidos?

    Os olhos dela estavam fervendo de raiva. No era pra

    menos. Ela sempre me pedia que, caso a situao ficasse

    extrema demais, eu devia chama-la imediatamente, para

    no jogar a minha chance de vingana no lixo.

    Aparentemente, ela realmente me conhecia bem e sabia

    que eu faria besteira logo nos primeiros minutos ao voltar

    para este plano.

    - E-E-Estamos s-sim aquilo doa. Doa bastante. De fato,

    era um sonho. Mas para ceifadores como ela, no

    importava onde sua alma estava, eles tinham autorizao

  • especial para aplicar tortura quando necessrio. E

    infelizmente pra mim, aquele era um momento necessrio.

    - E mais uma coisa Vance ela afrouxa os dedos e me solta

    lentamente tome outro banho. Voc ainda est fedendo

    a formol.

    No mesmo instante, acordo na cabana que invadi na

    madrugada levando as mos ao pescoo. Ele ainda estava

    dolorido, mas nada grave demais. Os raios do sol me

    segaram nos segundos seguintes e a nica coisa que eu

    esperava era no ter sido seguido pelos capangas da

    Orgnicos. O silncio era dividido com a brisa movendo os

    galhos e o canto dos pssaros que estavam acordado, isso

    indicava que, provavelmente, eu ainda estava em

    segurana naquele quarto empoeirado. E eu ainda estava

    realmente cheirando a formol.

    Junto todos os produtos de limpeza que encontro pela

    choupana requintada de madeira, que por enquanto me

    servia de abrigo, e vou para o meu segundo banho. Desta

    vez, eu no estava aquela pilha de nervos de horas atrs.

    Agora eu podia raciocinar direito e pensar em como eu iria

    conseguir minha to desejada vingana. A vingana contra

    aqueles que tiraram o pouco que eu ainda tinha em vida.

    A vingana que eu j havia comeado a colocar em pratica

    ao assassinar brutalmente aquelas treze pessoas na noite

    passada.

    Certa vez ouvi dizer que, para entender o presente,

    precisamos conhecer o passado. Dali em diante, me

    acostumei a fazer um tour mental quando a coisa ficava

    feia demais, tentando entender como tudo foi ficar

    daquele jeito. Enquanto eu esfregava ferozmente a l de

    ao em minha pele na tentativa de retirar aquele maldito

    cheiro de necrotrio, minha mente comeou retroceder,

  • como em um filme sendo rebobinado, e comecei a

    relembrar todos os fatos que me trouxeram at aqui.

  • Captulo DOIS

    Vejamos, onde tudo comeou a dar errado?

    Ah sim!

    No dia em que meu pai descobriu que eu estava na barriga

    da minha me...

    Segundo as poucas conversas que tive com a mulher que

    me colocou no mundo, minha concepo no havia sido

    das mais desejadas, longe disso. Ela era uma mulher vinda

    do interior. Dessas inocentes e sedentas por um bad boy

    demais. E foi exatamente um desses bad boys que ela

    encontrou em uma noite de servio, quando trabalhava

    como garonete em uma lanchonete de beira de rodovia.

    Meu velho s queria usar alguma mulher que estivesse

    disposta a aguentar seu hlito de cigarro e dormir nos

    fundos da sua van enferrujada, j que estava no bar para

    afogar a tristeza por no ter pago o aluguel, pelo terceiro

    ms seguido. Minha velha s queria algum que pudesse

    oferecer o fruto proibido que a vida na cidade pacata a

    havia reprimido. O casal perfeito. Pelo menos na primeira

    noite.

    Quando algo comea errado, termina errado. Algum velho

    sbio do quo no me importava o nome havia dito isso. E

    esse maldito velho sbio estava certo. O relacionamento

    dos meus pais comeou errado, foi errado durante toda a

    sua durao e continua errado at hoje. Meu pai no

    queria ser pai, ele tinha suas razes: no tinha dinheiro,

    nunca cuidou de uma criana na vida, nunca cuidou nem

    de um animal na vida e no tinha realmente um tosto

    furado no bolso. Minha me teve um choque de realidade

  • quando soube que eu estava dentro dela. Pelo menos era

    o que ela dizia. Talvez para no assumir toda a culpa pela

    burrada que ela fez com esse tal choque.

    Os dois recorreram a bondade, ou burrice, da minha v,

    que espero que tenha reencarnado em uma vida melhor,

    Passaram a morar nos fundos da cada da pobre coitada.

    Que de pobre no tinha nada. Ela no podia recusar ajudar

    sua filhinha carregando o seu futuro neto, mas deveria ter

    feito isso.

    A burrada da minha me comeou logo nos primeiros dias.

    Era domingo de manh, o horrio predileto de pessoas que

    vagavam pela cidade, chamando de porto em porto em

    busca de pessoas vazias, precisando iluses ou com um

    beb que ela no queria crescendo no tero, que era o

    caso da minha velha. At hoje no sei que tipo de hipnose

    ou chantagens emocionais aqueles engravatados usaram,

    mas funcionou. Ela se converteu ali mesmo no porto e,

    dali pra frente, se tornou uma boa cordeirinha que tentava

    redimir sua promiscuidade e pelas tentaes carnais.

    Meu pai, obviamente, no gostou nada de perder a

    cozinheira, faxineira e copeira que ele tinha para um cara

    pendurado em toras de madeira cruzadas. No, isso ainda

    pouco. Ele realmente no gostou nem um pouco. As

    provas de todo esse desgosto comearam a aparecer,

    aparecendo na cor roxa nos olhos, no pescoo e por todo

    o corpo na minha me.

    Os dois pareciam disputar quem se intensificava mais,

    como dois irmos rabugentos querendo provar que um o

    melhor e o outro, o segundo melhor. Ele j bebia e fumava,

    passou a beber e fumar muito mais. Ela j ia para a igreja

    frequentemente e se fazia de santa, passou a aumentar

    seus teatrinhos ainda mais.

  • A rotina dos dois se resumia a noites acordadas por trs

    motivos: brigas intensas quando meu pai chegava bbado,

    chapado ou qualquer motivo que acendesse seu pavio

    curto; reconciliaes com muito suor sexual, que at hoje

    eu nunca entendi porque ela transava com aquele traste

    de homem; e, no caso da minha me, oraes para

    implorar por perdo a qualquer um que a ouvisse, ou que

    fingisse ouvir, ou que ela queria se enganar achando que

    ouvia.

    Eu cresci dessa forma. Desde o comeo eu sabia que eu

    no era desejado. No sabia como eu sabia, mas eu sabia.

    Faziam questo de me ocupar o dia todo, sempre da forma

    em que eu ficasse o mais longe possvel deles. Semanas

    com a tia, meses na fazenda do av e, quando a minha v

    bateu as botas e eles ficaram com a herana, quase

    noventa dias em um acampamento de frias.

    Das poucas vezes que fiquei com meu pai, ele me falava

    sobre o mundo o mundo uma desgraa, filho ainda

    ouo a voz dele dizendo isso, com a cerveja caindo pelo

    queixo enquanto ele encarava o jogo de futebol na TV. Ele

    tambm tinha sua viso bem definida quanto aos

    relacionamentos no seja idiota de ter filhos antes de ter

    muito dinheiro, d um jeito de ficar rico, muito rico, antes

    de pegar qualquer vadiazinha que se abrir pra voc -, na

    poca eu no entedia a indireta, mesmo sendo bastante

    direta por sinal, e tambm tinha opinies bem intensas

    sobre tudo. Vote nulo, No confie em ningum, Os

    bonzinhos sempre se ferram... Coisas desse tipo.

    Por sorte e com apenas 11 anos, eu apenas concordava

    com a cabea, torcendo para que ele parasse de falar

    aquelas besteiras, ao invs de absorve-las e seguir os seus

    ensinamentos, como ele queria. Minha me j fazia o

    contrrio, pra ela eu s devia fazer a lio de casa, no

  • falar palavres, louvar no grupo de jovens e, a nica coisa

    que eu no conseguia fazer, ser apenas mais um no

    mundo.

    Provavelmente eu puxei essa parte narcisista do meu pai.

    Assim como puxei o corpo pouco musculoso, o olhar de

    serial killer, a falta de empatia, a m sorte com finanas e

    o desejo insacivel por mulheres do estilo de shopping,

    aquelas com a pele plida por viver no ar condicionado,

    cabelos lisos e rosto de garota levada e comportada ao

    mesmo tempo. J da minha me, puxei apenas os cabelos

    ruivos e o rosto de mocinha que meu pai vivia dizendo

    quando estava bbado, ou seja, quase todos os dias.

    Minha vida at ai j no era das melhores. No existia uma

    famlia de verdade, eu no sabia o que era afeto, carinho

    ou essas coisas que passavam nos filmes e novelas que

    eu odiava, mas pelo menos eu tinha comida, um teto e um

    chuveiro com agua quente. Foi ento que chegou a minha

    vez de fazer a burrada e jogar tudo isso pelo ralo.

    Certa noite, por volta dos meus 12 ou 13 anos, meu pai

    chegou em casa mais bbado e mais chapado que o

    normal (sendo que o normal dele j era mais bbado e

    mais chapado que muitos bbados e muitos chapados), eu

    no estava dormindo, eu j sabia que ele ia chegar e

    querer espancar minha me. Fazia algumas semanas que,

    em uma conversa com o pessoal da igreja, eu descobri que

    pessoas como meu pai deveriam ir pra cadeia, que bater

    nos outros, principalmente nas mulheres, era coisa de

    covardes e eles no mereciam misericrdia. Mas a

    descoberta que me fez esperar ele chegar aquela noite foi

    que pessoas como meu pai deveriam ser castigadas

    severamente.

  • Quando eu ouvi essas coisas, demorei um tempo para

    processar. Como eu iria castiga-lo? Ele j fazia aquilo

    desde que eu nasci (e at antes), eu realmente precisava

    faze-lo pagar? Cabia a mim aplicar aquele castigo?

    Eu fiz essas perguntas para um dos lderes da igreja, um

    moreno alto, com cara de quem acabou de chupar limo,

    obvio que ele disse coisas como: deus est te testando,

    seja forte e continue orando, e claro, no se esquea das

    ofertas. Sempre fui um pouco maduro demais para a idade

    que eu tinha, ou sou narcisista o suficiente para achar

    isso, mas de qualquer forma, mesmo com 12 ou 13 anos

    eu j no engolia mais essas historinhas de amigo

    imaginrio e sabia que, se ele realmente existisse e fosse

    to onisciente quanto tentavam me fazer acreditar, j

    sabia o quanto minha me estava sendo feita de sacos de

    pancada para meu pai e o teria jogado no inferno.

    Semanas depois eu conclui que, se ele no queria castigar

    meu pai depois de tantos anos e ningum tambm iria

    fazer isso, eu devia fazer. Era meu dever como filho

    proteger minha me. Naquela noite eu descobri que meu

    pai estava certo os bonzinhos sempre se ferram.

    Ele subia as escadas cambaleando, derrubando os poucos

    quadros da parede e gritando pelo o nome da minha me,

    nome do qual jurei nunca mais pronunciar ou pensar

    depois daquela noite. A porta do quarto dela facilmente

    aberta, mesmo bbado ele forte o suficiente para

    arrastar o armrio que ela havia colocado atrs da porta e

    entrar. Eu estava no corredor, de pijamas e com a maior

    faca que eu havia achado na cozinha na mo. As brigas

    eram to frequentes que eu sabia que, em alguns minutos

    minha me iria escapar dos murros e sair pela mesma

    porta que meu pai havia entrado, correria para a escada e

  • ele a perseguiria para continuar a sesso teraputica de

    bater na esposa. Esse seria o momento do castigo.

    Como previsto, l estava ela, com sangue nos lbios e

    novas marcas vermelhas em um dos braos, descendo as

    escadas correndo e terminando de quebrar os quadros

    nos degraus. Tambm como previsto, ele saiu do quarto e

    comeou a fazer o mesmo trajeto. Mas, essa noite algo o

    fez parar, algo o fez interromper sua rotina de violncia e

    o fez erguer a cabea e olhar para o garoto que estava o

    estava encarando no andar de cima.

    Sempre tive uma enorme facilidade, ou me acho demais

    para admitir isso, em aprender coisas s por observa-las.

    Uma dessas coisas era os assassinatos que eu assistia

    nos filmes de ao que eu via escondido nas noites de

    segunda feira, depois da novela. Eu estava esttico,

    encarando meu pai, parado como uma esttua na beira de

    um prdio, apreciando o nico momento em minha curta

    existncia de 12 ou 13 anos em que eu estava fazendo

    algo que eu realmente queria fazer.

    Minha me parou de correr no mesmo instante que ouviu

    meu pai sendo interrompido quando dizia solta essa faca

    garo... -, quando ela voltou para ver o que havia acontecido

    eu j estava na terceira facada no peito dele. Eu era o

    castigo dele. Eu queria ser o inferno dele. E eu estava

    adorando isso.

    - Ele nunca mais vai te machucar, me. Eu dizia sem tirar

    os olhos daquele corpo que estava sendo aberto a

    movimento do meu brao.

    - V-vance... VANCE! Ela gritou meu nome, como quem

    grita MONSTRO nos filmes de terror. Ela nunca havia

    usado essa entonao com meu pai. Nem mesmo quando

  • ele quebrou o brao dela em duas partes. Por que agora?

    Por que comigo?

    No tive tempo suficiente para processar uma resposta.

    No tive tempo para mais uma facada. S tive tempo de

    ver ela se aproximando pelo canto do olho e me acertando

    com um antigo vaso da minha v bem na cabea. Minha

    viso ficou escura e s fui recobrar a conscincia algumas

    horas depois.

    Quando finalmente consegui focar algo ntido, o claro

    branco das luzes no teto do hospital me fizeram querer

    colocar as mos sobre os olhos. Mas no podia. Meus

    braos estavam algemados na maca. Um policial gordo

    percebeu que eu havia acordado e veio at mim:

    - Como est a cabea, garoto?

    - Onde t minha me? Ela t bem guarda?

    S a expresso daquele gordo j fez um frio passar por

    minha espinha naquela hora. O que aconteceu com ela?

    Meu pai estava vivo e fez algum mal pra ela? Eu precisava

    saber.

    - Descanse garoto. Voc precisa se recuperar. Dizia ele, em

    tom evasivo.

    - CAD MINHA ME? Eu precisava gritar, no queria

    descansar ou dormir. Eu queria saber o que aconteceu

    depois que aquele vazo bateu na parte de trs do meu

    crnio. Meu questionamento ecoou por toda a ala de

    recuperao, chamando a ateno de todos ali.

    - Voc precisa ser forte... ele pousou sua mo grande no

    meu ombro, como quem sabia que teria que segurar uma

    criana descontrolada em seguida sua me se foi.

  • Nos primeiros segundos eu no entendi o se foi. Ela

    viajou? Ela saiu do hospital? Ela se foi pra onde? E ento

    caiu a ficha. Ela tinha morrido. No adiantou eu abrir o

    peito do meu pai com aquela faca. No adiantou castiga-

    lo e puni-lo. Meu pai tinha matado minha me.

    Eu gritei bastante, fiz um escndalo daqueles. O policial

    at que tentava me acalmar e me manter em cima da

    maca com suas mos grandes me segurando. Depois de

    alguns minutos de pura histeria a segunda ficha caiu:

    como diabos ela havia morrido? Fiz a mesma pergunta

    para o guarda e, novamente, percebi que ele queria estar

    em qualquer outro emprego que no fosse aquele de me

    responder a pergunta.

    - Ela... E-ela...

    - Ela se suicidou por sua causa. Uma terceira voz, grossa e

    rouca, responde a pergunta. A resposta veio de outro

    policial, outro gordo mas com a cara fechada que surgiu

    de trs das divisrias de plstico.

    Aquele policial no tinha um pingo de sensibilidade. Mas

    foi bom assim. Eu no chorei, no gritei, no fiz escndalo

    ou nada do tipo. Eu simplesmente aceitei a verdade.

    Minha me gostava de apanhar. Ela gostava de tomar uma

    boa surra e gostava de se fingir de santa coitada pra todos

    terem pena dela. Quando eu tirei isso dela, matando o

    homem que dava o que ela gostava, ela no conseguiu

    pensar em viver sem ele e se matou. Ou ela estava

    inundada de desgosto por ter tido um filho assassino que

    acabou tirando a prpria vida. No importava o motivo que

    ela teve, ela escolheu se suicidar s por que eu havia feito

    o que achava ser o certo. S por que eu estava castigando

    um covarde. S por isso eu me tornei rfo.

  • Por mais que eu esfregasse a l de ao, o maldito cheiro

    de morto no saia da minha pele. Provavelmente aquele

    seria um dos longos mais longos que eu j havia tomado.

    Espero que tenha bastante gua na represa.

  • Capitulo TRS

    Onde eu estava mesmo no meu tour da desgraa?

    Lembrei... Quando todos da minha famlia fingiram que eu

    no existia.

    Ficar sozinho pra mim nunca foi sinnimo de algo ruim. Na

    verdade, sempre gostei mais da minha companhia ao

    invs de aturar pessoas idiotas dividindo o mesmo ar que

    eu. Talvez por meus pais terem me dado a criao que eu

    tive, ou por que sempre me achei superior a todos em

    minha volta, ou por que eu nasci com defeito de fbrica.

    Quem sabe.

    Minhas tias no foram na delegacia quando convocaram

    elas. O delegado entendeu, afinal, quem iria querer cuidar

    de uma criana que no fosse filho, sem receber um tosto

    e ainda uma criana assassina? Na verdade, elas

    receberam sim alguns tostes com a morte da minha me,

    j que eu fui deserdado no momento que atravessei a

    lamina da faca no peito do meu pai.

    Meu av, que tinha uma fazenda enorme o suficiente para

    que eu morasse l sem que ele tivesse que olhar pra mim

    por semanas, disse que no queria olhar na minha cara e

    encenou uma queda de presso, ou teve mesmo, nunca

    soube. Da em diante me transformei em um indigente. Eu

    nunca tive uma famlia de verdade, e agora, menos ainda.

    Fui encaminhado para um reformatrio. Eles diziam que

    eu fui encaminhado, mas sempre achei que a palavra

    arremessado ou jogado se encaixava melhor no que de

    fato aconteceu. Sempre gostei de saber o conceito das

    coisas. O conceito de reformatrio , ou essa era a ideia,

  • um local para reformar pessoas desajustadas.

    Teoricamente, at que algo bonitinho de querer fazer. Na

    pratica, era justamente o oposto.

    Eu fiquei l at completar 18 anos. Nunca entendi por que

    eles achavam que uma idade no RG seria o suficiente para

    dizer voc est apto para voltar pra sociedade com a

    ficha limpa, mesmo tendo matado seus pais mas no

    posso reclamar, afinal, eu sobrevivi e fui liberto.

    Liberto entre aspas. O que aconteceu naquele lugar

    ajudou a me deixar do jeito que foi hoje, somando com a

    minha criao e o que aconteceu no orfanato... Que vou

    relembrar em seguida. Eu era temido no reformatrio,

    primeiro: todos ali sentiam saudades dos pais, e eu havia

    enfiado uma faca no peito do meu velho e feito minha

    velha se suicidar; segundo: minha personalidade era, e

    continua sendo, algo no muito agradvel. Pelo menos era

    o que a maioria l dizia; terceiro: eu sabia que se eu no

    fosse temido, eu seria usado como uma garota ou seria

    morto, depois de algumas horas no banheiro, alguns

    cortes no rosto e sengue na pia, consegui um rosto que,

    assim como minha personalidade, algo no muito

    agradvel e afastava a maioria dos outros garotos.

    Foi ali que fiquei parecido com meu pai. Conheci os

    prazeres e desprazeres da bebida e do cigarro, alm de

    outras drogas que hoje nem sinto vontade de citar a

    nomenclatura. Tudo para tentar me socializar com os

    outros reformados, inutilmente, claro. Todos ali eram

    indivduos inferiores, desde a pseudo-gangue que roubava

    mulheres gravidas antes de serem pegos, os guardas que

    viviam assistindo pornografia e at o dono do lugar, um

    cara que aparecia algumas vezes e sempre que ele ia

    embora, algum garoto afeminado, geralmente de pele

    branca, acabava sumindo. Mesmo com o rostinho de

  • mocinha que tenho, ele nunca tentou a sorte comigo.

    Talvez pelo meu belo histrico com homens que abusavam

    dos outros.

    Eu poderia ter fugido daquele lugar inmeras vezes. Era

    fcil demais, parecia at com o acampamento de frias,

    onde eu sempre acabava no dormitrio das garotas,

    espiando pela janela em busca de alguma menina de

    shopping para apreciar. Mas eu no fugi, muito pelo

    contrrio, eu queria ficar l. Afinal, eu no tinha ningum

    l fora, no tinha ningum l dentro tambm, mas tinha

    teto e comido, coisa que do outro lado daqueles muros

    com ourios pontudos eu no teria.

    Mas eu sabia, sabia que quando completasse 18 anos eu

    iria sair e teria que me virar, assim como inmeros

    reformados fizeram. Alguns se converteram como minha

    me havia feito, outros curtiram a ideia de ser a mocinha

    de algum e seguiram carreira e a maior parte voltou para

    o crime, dessa vez mais focados e com mais sede de

    ostentao. No meu caso, decidi procurar algum lugar pra

    ficar enquanto ainda estava l e enquanto ainda tinha

    acesso gratuito internet.

    Sou bom em muitas coisas e uma delas com as palavras.

    Aprendi isso na biblioteca do reformatrio, onde eu era

    responsvel pela organizao e distribuio dos livros nas

    mais diversas ordem, dependendo do humor dos gestores.

    Usando essa habilidade, encontrei um orfanato chamado

    Filhos do Vento. No comeo eu achei o nome engraado e

    no levei a srio. Horas depois, por no achar nada

    melhor, voltei para ver o site deles.

    Na opo de Fale Conosco, escrevi uma mensagem digna

    de prmios da literatura. Tinha tudo, desde o relato

    melodramtico da minha concepo, o modo como fui

  • erroneamente criado, o que me levou a enfiar a faca no

    peito do meu pai (obviamente, pulei a parte que eu tinha

    adorado fazer aquilo), como era difcil a vida no

    reformatrio (mesmo no sendo) e como eu no tinha

    ningum esperando por mim quando eu sasse de l.

    Foi batata. Dias depois recebi o e-mail de uma das

    pastoras do orfanato. Sim, aquilo era um orfanato cristo,

    mas cavalo dado no se olha os dentes. Continuando, Ela

    escreveu que havia se comovido com minha histria e que

    acreditava que tudo o que faltava para mim era o amor da

    divindade dela e que, para minha sorte, eu poderia ter

    embaixo do teto dos Filhos do Vento.

    Perto de atingir a maioridade e de me mudar para o

    orfanato, houve uma recolocao dos carcerrios do

    reformatrio, coisa de crise. Meu relacionamento com os

    guardas antigos era timo: eu no dava trabalho pra eles

    e eles no me enchiam o saco, perfeito. Mas os novos

    tinham um problema srio, eles eram novos e achavam

    que o lugar no tinha regras. Explicitamente, no tinha

    regras mesmo, mas quem viveu l por alguns anos sabia

    exatamente o que fazer, o que no fazer, com quem mexer

    e com quem no mexer.

    Eles leram meu histrico e no entenderam como algum

    que assassinou os pais poderia ter uma conduta to boa,

    digo, to no problemtica, durante a maior parte do

    tempo em que ficou preso naquele lugar. E por isso

    decidiram ir at o meu dormitrio e interromper minha

    sesso de musculao caseira, coisa que eu fazia visando

    ser desejado pelas meninas de shopping quando sasse

    dali.

    Meu encontro com os trs guardas novatos, mas cheios de

    vontade de mostrar servio, no foi dos mais pacficos.

  • Tudo estava timo. Eles estavam falando e eu consegui

    ignorar todas as palavras que eles diziam com maestria.

    At o maldito momento em que um deles, o mais grande

    dos trs, disse que, por mais que eu quisesse, eu era

    apenas como todos os outros lixos que estavam trancados

    naquele reformatrio.

    Foi ai que eu percebi que, por mais que eu fosse bom em

    muitas coisas, eu era ruim em uma: em ser comparado

    com algo, principalmente, com quem eu julgo ser inferior.

    Nos meus primeiros dias no reformatrio eu precisei

    aprender a lutar, a lutar pela vida, algo que os guardas

    provavelmente nunca haviam feito antes. E tambm foi ai

    que eu percebi que a musculao caseira que eu estava

    fazendo a bastante tempo servia para mais coisa alm de

    ter algo para mostrar para as meninas de shopping. E os

    guardas tambm perceberam isso.

    Foram apenas seis movimentos. Comeando com a batida

    do haltere feito de concreto, que eu usava para fortificar o

    brao, bem na testa do guarda menor, que caiu na hora.

    Depois, a cotovelada no queixo do guarda grande,

    enquanto me movia para o guarda mediano e o asfixiava

    com as duas mos quase como a ceifadora, mas eu no

    era forte como ela naquela poca e tive que usar as duas

    mos, ao invs de s uma finalizando com uma testada

    bem no centro das sobrancelhas dele, que tambm caiu.

    Os outros dois movimentos foram os melhores. O guarda

    grande, que agora estava assustado demais e buscava a

    sada do meu dormitrio, teve o p direito agarrado por

    mim e, segundos depois, tudo o que eu ouvi foi o som

    daquele mesmo p sendo torcido com a mesma facilidade

    que amassar uma lata de refrigerante.

  • Eu quase perdi o meu convite para ir morar no Filhos do

    Vento. Mas os trs guardas foram espertos o suficiente

    para entender meu recado se algum de vocs contar que

    eu fiz isso, eu fujo daqui, encontro a famlia de vocs e fao

    o mesmo que fiz com meu pai, fui claro? -, no momento em

    que disse isso no soube se eles concordaram ou no.

    Mas quando fiz 18 anos e sai do reformatrio, tive certeza

    que eles deixaram os bicos bem fechados sobre o pequeno

    incidente que, segundo eles, foi jogando futebol.

    Saindo do reformatrio, a pastora estava me aguardando,

    recostada no seu Corsa cinza com adesivos de peixe no

    porta-malas.

    - Voc deve ser o Vance, certo? Ela diz e estende o brao

    para me cumprimentar.

    - Sou sim, e voc deve ser a minha salvadora... Digo, Sarah,

    certo? Enceno a alegria por v-la. De fato, eu estava

    contente, mas no com ela, mas pelo o que ela me traria.

    Teto e comida.

    Finalmente, o cheiro de formol estava se diluindo. Desligo

    o chuveiro e jogo todos os tipos de produtos de limpeza

    que eu havia encontrado na choupana em mim. Meu corpo

    ainda est com pouca sensibilidade devido ao longo

    tempo que ele passou em conservao na clnica da

    Orgnicos. Falando neles, agora que o meu tour chega

    no desfecho, onde tudo de mais influente na minha

    situao atual aconteceu.

  • Captulo QUATRO

    Ligo novamente o chuveiro, imaginando o quanto o dono

    daquela cabana iria ter de pagar na conta de gua. O calor

    que percorria meu corpo me fez voltar ao passeio pelas

    memorias. O passei para recapitular tudo e todos que me

    fizeram chegar at esse momento. Recapitulando para

    saber quem eu deveria deixar viver e quem eu deveria

    matar.

    - Posso te pedir um favor? Eu dizia dentro do Corsa cinza

    da Sarah. A ltima vez que eu havia andado de carro foi

    em um da polcia, algemado e com 12 ou 13 anos.

    - Pode sim. Ela era tmida. Dava pra perceber que no

    estava nada confortvel s pelo jeito que ela no desviava

    os olhos da estrada, mesmo nos sinais vermelhos. E eu

    sabia exatamente o porqu.

    - Posso recomear? Fao uma pausa, at que ela

    finalmente olha pra mim e continuo digo, no queria que

    ningum nesse novo lugar saiba do meu passado. Seria

    possvel?

    Ela d um sorriso de canto de boca e volta a encarar o

    asfalto. Ela no era o tipo menina de shopping que eu

    gosto, mas tinha um charme nela. Pena que agora tarde

    demais pra dizer isso a ela.

    - S eu e a minha lder sabemos tudo sobre voc Vance. L

    um orfanato cristo, no seria bom que logo de cara

    todos soubessem o que voc fez e de onde veio. naquele

    momento, no consegui entender o porqu de elas

    estarem me dando abrigo, j que eu no era nenhuma flor

    que se cheire. Ela percebeu as engrenagens girando na

  • minha cabea e voltou a explicar vimos potencial em

    voc. Voc teve uma infncia difcil, passou por muitas

    dificuldades, quis proteger sua me e mesmo tudo dando

    errado, foi um dos reformados com maior ndice de boa

    conduta no histrico.

    - Ento... Vida nova?

    - Sim. Vida nova.

    Depois que chegamos eu fui entender os motivos de

    tamanha boa ao: primeiro, mesmo sendo um rfo

    como os outros meninos e meninas dali, eu era um

    empregado e caseiro do lugar, era praticamente algo como

    deu problema? Chama o Vance -, em troca, eu tinha teto,

    comida e ganhava alguns trocados no fim do ms;

    segundo: eu era o brinquedinho da Sarah, no no sentido

    que eu queria ser, mas no sentido de que, eu me

    comportando bem (ou fingindo me comportar bem), dava

    crditos de boa samaritana pra ela, o que em um lugar

    como aquele, era algo bem bacana.

    No comeo era tudo encenao minha, eu era bom nisso.

    Fingir ser um cara bacana, moleza. Fingir rezar para uma

    imagem pregada na parede, sem problemas. Fingir no

    querer levar vrias irms ali para o meu colcho, isso era

    difcil, mas consegui me conter.

    Passaram-se os meses e eu j no estava fingindo mais.

    Nos meus 18 anos de vida eu soube que no tinha vivido

    nada. Vivido de verdade. S ali, no orfanato Filhos do

    Vento, eu realmente descobri coisas que eu j no

    esperava mais descobrir. Descobri como era morar em um

    lugar pacifico e no catico. Descobri como existem

    pessoas boas que no se ferravam (apenas naquele

    momento eu achei isso, mais tarde descobri que meu pai

  • continuava acertando). Descobri que era preciso me

    esforar para conseguir o que eu queria conquistar, como

    o meu antigo mp3 lotado de msicas, que demorei dois

    meses pra conseguir comprar. Descobri o que era uma

    famlia de verdade, que mesmo percebendo que eu no

    acreditava em absolutamente nada daquilo que era

    pregado na capela, respeitaram e continuaram me

    acolhendo calorosamente.

    Eu era feliz l. Tinha amigos, agora amigos de verdade e

    no pessoas das quais eu apenas usava como meios para

    conseguir outras coisas. Tinha um trabalho. Tinha um lugar

    pra chamar de casa. Tive a motivao que eu precisava

    para no fumar e nem beber mais. Tinha pessoas pra

    chamar de famlia. Tinha uma vida de verdade. Sem contar

    os casos secretos e casuais com as meninas de l ou as

    mulheres que visitavam, um pouco frequentemente

    demais, o orfanato. Mas no hora de lembrar dessas

    coisas.

    E tinha o Gato... Ah que saudades daquele bichano

    pulguento. Lembro perfeitamente o dia em que achei ele

    na garagem da adoes do orfanato. Eu tinha feito uma

    faixa para chamar ateno das pessoas que passavam por

    l, Filhotes do Vento O seu melhor amigo est aqui. O

    Gato era um filhotinho que mais parecia um rato preto,

    com mais pelos faltando do que cobrindo o couro, ele

    miava alto e parecia uma sirene desafinada. Ningum

    queria adota-lo e era natural que isso ocorresse.

    Ele era parecido comigo. No que eu tivesse mais pelos

    faltando do que cobrindo o couro, mas porque, assim

    como ele, eu era aquele que ningum queria adotar.

    Aquele que era tudo o que ningum merecia ser. Aquele

    que as pessoas tinham pena e diziam espero que

    algum leve esse, eu realmente no posso, desculpe.

  • Mas, diferente do Gato, eu tive a sorte de ter algum que

    mesmo com o meu pssimo histrico, mesmo com todos

    as minhas falhas e defeitos me adotou. Eu sempre soube

    que a Sarah me ajudava s porque achava que assim teria

    uma nuvem l no cu esperando por ela, mas

    independente do motivo, ela estava me ajudando. Por isso

    decidi retribuir o favor passando o gesto de bom

    samaritano para o Gato e adotando ele.

    Sempre ouvi que o co era o melhor amigo do homem, mas

    se as pessoas que achavam isso me vissem com o Gato,

    provavelmente mudariam de ideia. Assim como eu estava

    me cuidando mais, o Gato tambm estava evoluindo e

    ficando um belo felino com pelos negros como a noite e

    olhos amarelos como um sinal de transito. Eu e ele sempre

    estvamos na companhia um do outro. Comamos juntos.

    Dormamos juntos. Espivamos as irms juntos.

    Era tudo perfeito, finalmente. Mesmo no acreditando nos

    ensinamentos que os pastores ali passavam, eu no podia

    deixar de sentir uma aura de acolhimento, misericrdia e

    amor naquele lugar. A felicidade dos meninos e meninas

    quando descobriam que iriam ser adotadas por uma

    famlia bacana, a vontade de fazer tudo bem feito dos

    voluntrios do orfanato ou o clima sempre agradvel que

    a brisa das arvores ns presenteava, na poca no sabia

    ao certo o que fazia aquele lugar ser especial. Agora que

    eu o perdi, sei que era todo o conjunto. Todos os pequenos

    detalhes que agora so apenas lembranas dolorosas.

    Depois de dois anos, os dois anos mais felizes que eu tive,

    o meu fim teve incio. Foi na noite que eu no queria ter

    acordado. Foi na noite que conheci o segundo homem que

    eu j quis matar na vida, depois do meu pai. Bennett, o

    nome dele era Bennett.

  • Captulo CINCO

    Finalmente minha pele estava parecendo com uma pele

    de algum vivo. Deu trabalho e tive que usar quase todos

    os lquidos perfumados que tinha na cabana. Volto a ligar

    o chuveiro e agora tomo um banho de verdade, com

    sabonete, shampoo e sentindo a gua escorrer da cabea

    at os ps.

    Era agora que o tour comeava a ficar interessante. Tudo

    o que a minha recapitulao mental havia recordado tinha

    sim cooperado para a minha vida ter ficado do jeito que

    ficou, mas aquele dia, aquele maldito dia, o maior

    responsvel, sem dvidas.

    Eu estava no meu dormitrio, que ficava no poro, como

    fazia (quase) todas as noites desde que cheguei ao

    orfanato, dormindo. O Gato estava deitado em cima do

    meu peito e assim que o som de algo pesado caindo no

    andar de cima ecoou de tal forma que ns dois acordamos

    instantaneamente. Eu conhecia bem o bichano e sabia

    quando ele estava assustado. Mas dessa vez, os olhos

    amarelos daquela bola de pelos estava vidrada no teto.

    Como se ele tivesse viso raio X e estivesse vendo aquilo

    que eu veria poucos segundos depois.

    Depois de subir as escadas de modo que nenhum rudo

    fosse emitido, afinal, no queria perder a chance de pegar

    a Sarah roubando a geladeira s de camisola, encontrei o

    orfanato mais sombrio que comparado com minhas outras

    saidinhas s 3 horas da manh. Aquele cheiro. Eu me

    lembrei daquele cheiro assim que cheguei perto da ala dos

    funcionrios/pastores. Era o mesmo cheiro de quando eu

    tinha 12 ou 13 anos.

  • Logo no corredor repleto de sombras com formas

    abstratas, possas de sangue fresco formavam uma trilha

    que comeava do banheiro e ia at o dormitrio. O Gato

    estava atrs de mim. Mesmo com o medo congelando

    meus ossos, pude notar que os olhos dele continuavam

    vidrados e to arregalados quanto os meus. E aquilo era

    s o aperitivo do que estava por vir.

    A pouca luz que saia das lmpadas externas e

    sorrateiramente iluminavam as camas me fez no precisar

    entrar no local em que os responsveis pelo Filhos do

    Vento dormiam para ver que eles estavam em um outro

    tipo de repouso. Um repouso forado. Um repouso

    acompanhado de sangue e de corpos sem vida.

    Era impossvel algum ali ainda estar respirando com os

    ferimentos distribudos insanamente em cada um. A

    maioria com a garganta quase completamente aberta,

    com uma preciso aparentemente cirrgica, outros

    estavam com uma perfurao grande no peito, sem

    dvidas, diretamente no corao. E tinha a Sarah, a eterna

    minha salvadora, que naquele momento era apenas mais

    um nmero na chacina que estava sendo produzida.

    Tentei correr dali, mas minhas pernas simplesmente no

    obedeciam meus comandos. Pensei em gritar, mas todos

    que poderiam me ajudar j estavam mortos naquelas

    camas. Pela primeira vez na vida, mesmo j tendo

    assistido outros assassinatos no reformatrio (e j tendo

    cometido um), eu me senti desesperado. Era como se eu

    pudesse prever o futuro. Como se eu estivesse prevendo

    que eu seria o prximo da fila de abate. Como um misero

    porco, s era questo de tempo.

    Eu e o Gato fomos lembrados do obvio, de que havia

    algum ali fazendo aquilo, no mesmo momento em que

  • nossa ateno foi desviada para o som de passos

    rangendo a madeira de segunda mo do lobby. No mesmo

    segundo, no sei se por instinto ou por querer adiar o

    inadivel, se escondemos no vo entre o armrio e a

    parede ao lado da mesma porta que usamos para entrar

    naquele inferno. Me esforcei ao mximo para segurar a

    respirao conforme o som dos passos ficavam mais

    prximos. Mas foi intil.

    Dois braos enormes atravessaram a parede de concreto,

    com uma facilidade e um barulho enorme que me fez ficar

    sem ar. No segundo seguinte, as mos seguraram meus

    ombros e me foraram contra a parede que acabou

    cedendo com a fora desumana daquele monstro.

    O lobby estava inundado de poeira e escurido. S pude

    ver a enorme silhueta de um homem contra a luz que

    entrava pelas janelas de vidro. Meus ouvidos estavam

    lentejando, mas pude ouvir a respirao animalesca

    daquela figura que ficava ali, parada enquanto eu tentava

    me recompor aps ter sido prensado e quase esmagado.

    - Finalmente o ltimo da lista apareceu... sua voz era

    grossa e rouca, demorei alguns segundos para processar

    o que ele havia dito vou ser bem rpido com voc garoto,

    j estou um pouco cansado de tanto trabalho que tive aqui.

    Eu ainda estava no cho. O que diabos estava

    acontecendo? Aquilo era alguma pegadinha de mal gosto?

    Era tudo um pesadelo que tive por dormir de barriga pra

    cima? Eu simplesmente negava acreditar no que estava

    bem na minha frente. Aquele homem havia matado todos

    os funcionrios, pastores e voluntrios que estavam

    dormindo e, sem dvidas, tambm tinha matado todos os

    meninos e meninas que estavam nos dormitrios

    sonhando com famlias perfeitas. E segundo aquele

  • mesmo homem, eu era o ltimo a deixar de respirar

    naquela madrugada.

    O bico da bota que ele estava usando se encontra com

    violncia contra minha barriga. Eu j havia tomado uma

    surra de vrias pessoas: do meu pai, dos valentes da

    escola, dos reformados, dos guardas e at de meninas que

    eu acabei traindo no orfanato. Mas aquele chute era mais

    forte do que tudo o que eu j havia experimentado. No

    mesmo instante, quando acabei batendo as no balco

    principal devido ao impulso, j soube que algumas

    costelas se quebraram e que eu estava sangrando por

    dentro.

    - Matar pessoas dormindo entediante sabia? Pude ver

    uma lamina reluzindo nas enormes mos daquele

    monstro. Uma enorme faca de caa igual quela que meu

    pai costumava ter no porta-malas. A calma com que as

    palavras saiam da boca dele era insanamente

    assustadora voc salvou minha noite, garoto.

    Cada respirao era mais difcil que a ltima. Tudo

    indicava que meu pulmo havia sido danificado. Bastante

    danificado. Por sorte, ou azar, eu ainda podia tentar falar:

    - Q-Q-Quem - v-v-voc?

    Ela solta uma risada baixa e com entonao de deboche.

    - Por que todos perguntam isso pra mim?

    No digo nada enquanto espero uma resposta melhor e

    tento respirar o mnimo possvel para amenizar a dor

    intensa. Ele continua:

    - No bvio? Eu sou o cara que vai matar voc u ele

    percebe que sua brincadeira no iria tirar nenhum riso de

    mim Ok, ok. Meu nome Bennett, muito prazer ele

  • estende a mo que no est com a faca em sinal de

    cumprimento, que tambm no gera nenhuma reao

    minha. Eu precisa perguntar o motivo. Se que havia

    algum:

    - P-or Q-Q-Qu?

    Ele para pr um momento. No sei ao certo se ouvi um

    Hmmm... saindo dele ou se a hemorragia interna j

    estava me fazendo alucinar. Uma cadeira de espera

    puxada com facilidade pelo enorme homem que se senta

    e comea a dizer:

    - Voc vai morrer mesmo... Ento no tem problema se eu

    te contar, certo? Eu aceno com a cabea, ou melhor,

    tento acenar com a cabea Minha filhinha... Eles

    sequestraram minha filhinha... o jeito que ele falava

    dessa tal filhinha no combinava com quem acabou de

    matar mais de 50 pessoas em apenas algumas horas

    Eles disseram que s vou ver ela respirando de novo se

    fizesse esse massacre hoje. E aqui estou eu.

    Ele estava falando a verdade ou blefando? Nunca tive pais

    de verdade, mas sempre soube que pais de verdade fazem

    de tudo pelos seus filhos... Mas aquilo tudo? At agora no

    sei a verdade, mas vou procurar um jeito de descobrir

    assim que eu sair dessa cabana empoeirada.

    Continuando, a dor naquele momento era tanta que eu

    estava perguntando as coisas no automtico, tanto que

    acabei fazendo a seguinte pergunta:

    - Q-Q-Quem s-so e-e-eles?

    A postura dele mudou. Parecia que ele realmente queria

    se abrir pra mim. Ou se confessar. Um dos dois.

  • - Eu sou um homem com muitos inimigos garotos por que

    ser, n? algum desses inimigos decidiu me machucar e

    soube exatamente como conseguir isso, sequestrando

    meu anjinho o interior da minha barriga estava

    queimando de dor, me contorci em meio aos entulhos mas

    ele pareceu nem ligar eles fizeram acidentes em todo o

    percurso que eu fazia para busca-la no colgio e usaram

    um carro idntico ao meu. Cheguei tarde demais e s pude

    ver eles colocando um saco na cabea dela e

    desaparecendo da minha vista.

    Encontrei uma posio que no machucava tanto e tentei

    me manter nela, ele continuou sua triste histria, no triste

    o suficiente pra justificar nada do que ele estava fazendo

    e iria fazer:

    - Cerca de uma hora depois, recebo um vdeo pelo celular.

    Um vdeo com a minha princesa... Eles estavam... Eles...

    ele estava realmente chorando nessa parte, eu quase (eu

    disse quase) senti pena dele AQUELES MALDITOS

    ESTAVAM ESTUPRANDO MINHA FILHA!

    O grito dele fez com que o Gato sasse de trs da parede

    perfurada e corresse pra fora em poucos saltos. Isso me

    aliviou, ele estaria salvo l. Pelo menos algum iria sair

    com vida daquele inferno. Ele ficou chorando por alguns

    segundos, se eu no estivesse to debilitado poderia ter

    aproveitado o sentimentalismo dele e ter fugido junto com

    o meu amigo peludo. Mas eu estava imobilizado e

    vomitando sangue, ou seja, era questo de tempo para

    descobrir se realmente existia paraso e inferno como os

    pastores mortos pregavam.

    - C-c-como v-v-voc s-s-sabe... (sangue subindo pela

    garganta) q-q-que el-e-es v-vo s-solta-ar e-ela? A dor que

    senti pra perguntar isso foi imensa.

  • - Se fosse sua filha voc faria o mesmo ele se levanta,

    enxuga os olhos e volta para a postura de assassino - voc

    at entenderia se tivesse uma famlia de verdade e no

    fosse apenas mais um rfo nessa droga de lugar.

    Foi nessa parte. Eu me lembro muito bem que foi nessa

    parte em que eu parei de sentir dor, porque a dor foi

    substituda por dio extremo. Isso por trs motivos:

    primeiro, eu tive uma famlia de verdade, a famlia de

    verdade que vivia comigo naquele orfanato, a famlia que

    ele tinha transformado em uma pilha de corpos sem vida;

    segundo, por que ele simplesmente no tinha me matado

    enquanto eu dormia como todos os outros? Seria to mais

    fcil e menos dolorido; e terceiro: ele me comparou outras

    pessoas, e eu odeio isso.

    - Bennett... Sua filha deve estar se divertindo bea agora

    mesmo... a raiva fez o Vance voltar, o Vance de boca

    solta e que, quando sabe que vai morrer, prefere morrer

    provocando, mostrando que no como os outros que se

    foram enquanto contavam carneirinhos se ela for grande

    como voc, vai dar trabalho pros sequestradores...

    Meu plano idiota de irritar aquele brutamontes e faze-lo

    me matar rpido funcionou. Em partes. S a parte de

    irritar, no a de me matar rpido.

    - ARGHHH! ele agarra meu calcanhar direito, me levanta

    como quem ergue um travesseiro e arremessa meu corpo

    que quebra a enorme janela de vidro da entrada do lobby.

    Os cacos de vidro cortaram meu corpo e meu rosto, que j

    era cortado desde a poca em que eu queria causar medo

    no reformatrio. A grama estava molhada pelo sereno da

    madrugada e eu s pude aguardar aquela figura que se

    aproximava bufando como um touro raivoso.

  • - V-vamos l Benzinho... eu continuava provocando-o

    Termine o que voc comeou e v ver sua filhinha rodada.

    Ele juntou as duas mos, ergueu ambas em cima da

    cabea e desceu como um martelo em cima do meu p,

    que foi triturado no mesmo instante. O grito que soltei fez

    a hemorragia interna ficar mais intensa, principalmente

    quando ele apertou forte o que restou do meu calcanhar.

    Depois ele fechou o punho e posicionou meu corpo no

    cho com a outra mo. Como quem mantem um prego na

    mira. Ele gritou,

    - MEU... Um soco na minha barriga, sangue saindo da

    minha boca e manchando todo o gramado.

    - NOME... Outro soco. Mais sangue.

    - NO ... Mais um soco. Pouco sangue, eu j estava

    quase sem.

    - BNEZINHO! Ele finaliza me arremessando para mais

    longe com as duas mos. Meu corpo gira algumas vezes

    antes de bater na rvore que eu costumava usar como

    sombra para as tardes de domingo.

    Minha viso estava quase completamente embaada. S

    pude v-lo pegando a faca de caa e andando lentamente

    em minha direo. No piscar de olhos seguintes, senti a

    sua respirao forte bem na frente do meu rosto e a lamina

    posicionada sobre meu peito. Era fria e afiadssima.

    - Diga ltimas palavras garoto idiota.

    Movi meus lbios como quem quer demostrar que tem

    algo a dizer, mas esta aparentemente sem foras e que

    precisa que a outra pessoa chegue mais perto para ouvir.

    Ele entendeu o recado e se aproximou, mais, mais um

  • pouquinho... E quando estava na distncia certa, dei o

    grand finalle, pois eu no podia partir sem estilo.

    A cara dele ficou tima com o meu cuspe de sangue.

    Ele recua, posso ver sua expresso perplexa e naquela

    hora eu, no fao a menor ideia do porqu, me senti

    orgulhoso (e relembrando agora, me sinto um idiota).

    No segundo seguinte, a faca atravessa meu peito, perfura

    meu corao, me mata e ainda cravada na rvore atrs

    de mim. Meu corpo fica l. Como uma marionete que teve

    as cordas de nylon cortadas, mas com um sorriso de quem

    acabou de aprontar no rosto. O Bennett se levanta,

    comea a caminhar para dentro do orfanato e sai da minha

    vista.

    Foi ento que eu percebi. Percebi que eu estava olhando

    pra mim mesmo morto. Percebi que eu no estava mais no

    meu corpo todo machucado, ensanguentado e retalhado.

    Eu estava me assistindo de fora. Ou melhor, minha alma

    estava assistindo meu corpo fora dele.

    Eu no sentia as dores. No sentia o vento. No sentia a

    garoa. No sentia nada alm de dio.

    Eu amava minha vida no orfanato. Amava viver naquele

    lugar. Amava ajudar sempre que precisavam de mim.

    Amava as refeies sempre acompanhadas de muita

    conversa. Amava observar a felicidade das crianas que

    brincavam sem se preocupar com nada. Amava consolar

    as crianas que se despediam dos amigos que foram

    adotados, mas que ficavam felizes por eles. Amava ser

    acolhido por todas aquelas pessoas que davam a vida por

    aquele lugar. Amava ouvir minhas msicas e me imaginar

    ficando rico e famoso sendo DJ em raves mundo a fora,

    Amava o jeito que as garotas ficavam soltas quando

  • estavam sozinhas comigo. Amava a comida fresquinha

    que o pessoal da cozinha sempre fazia. Amava todos os

    momentos em que o Gato estava me acompanhando.

    Amava, principalmente, finalmente ter tido uma vida e

    famlia de verdade.

    E naquele momento, quando eu morri e fiquei olhando

    para o meu corpo sem vida no cho, eu soube que nunca

    mais eu recuperaria minha vida. Mesmo sendo apenas

    uma alma eu acabei chorando, chorando de raiva

    direcionada ao Bennett.

    Quebrando meu momento depresso, uma voz feminina

    diz:

    - Para de viadagem garoto eu seco meus olhos, que

    mesmo sendo um espirito ficaram embaados (como, eu

    no sei) e focalizo a figura da qual aquelas palavras

    haviam sado eu preciso que voc se recomponha para

    que eu possa fazer meu servio, ento, engole o choro vai.

    Chega de banho, j estou novinho em folha. Tirando esse

    enorme Y no meu peito que foi feito na minha necropsia

    e esse corte na testa que preciso urgentemente colocar

    pontos, de resto, est tudo cem por cento em forma.

    Reviro o guarda-roupas e separo uma camisa branca,

    cala jeans slim, cueca box, meias e um moletom marrom.

    Encontro em baixo da cama dois pares de tnis com uma

    colorao chamativa demais, mas servem perfeitamente

    em mim. Coloco um dos pares e guardo o outro na mochila

    velha, mas usvel, que encontrei em cima do armrio.

    Comeo a procurar tudo o que for til na cabana para a

    minha caminhada em busca de respostas sobre o

    paradeiro do Bennett e sobre tudo que explique o que

    aconteceu no Filhos do Vento. Sei que no vai ser algo

  • fcil, mas eu preciso fazer isso. Afinal, eu voltei ao mundo

    dos vivos por causa disso e eu no seria louco de deixar a

    Nameless decepcionada depois de todo o trabalho que dei

    pra ela.

    E justamente dela que meu tour vai se lembrar agora.

  • Capitulo SEIS

    Supreendentemente, encontro um kit de pesca na

    garagem abandonada. Linhas velhas, anzis enferrujados

    e bastante lcool, tudo o que eu preciso para a pequena

    operao no corte em minha testa, que j estava

    encharcando a quinta bandagem que eu coloquei sobre

    ele. Enquanto fao uma esterilizao caseira para (tentar)

    limpar os equipamentos cirrgicos, volto a relembrar os

    fatos que me trouxeram at aqui. E agora seria sobre ela.

    - Quem .. Quem voc? digo enquanto soluo,

    tentando parar de chorar naquela madrugada sangrenta.

    - Isso no importa a figura que agora consigo focalizar

    mostra ser uma jovem vestida com camisa branca social,

    calas justas e uma enorme foice na mo direita O que

    importa que voc morreu.

    Na hora eu ainda estava em choque, mas sabia que eu

    tinha batido as botas. Eu sempre acreditei que quando

    algum morria seria game over, no teria um cu cheio

    de anjinhas virgens ou um inferno com churrasco

    humano pela eternidade. Naquele momento percebi que

    tanto eu quanto os pastores da Filhos do Vento

    estvamos errados quando o assunto era o alm.

    - Deu pra perceber, mas o que acontece agora?

    novamente eu estava no automtico, fazendo perguntas

    por fazer.

    - Ai vem a parte chata ela se apoiou na foice com as

    duas mos e suspirou, como os trabalhadores de obras

    na estrada faziam quando estavam com preguia de

    asfaltar ruas ou arrumar encanamentos meu trabalho

  • levar todas essas almas de volta ao mundo dos vivos...

    Como vocs chamam isso mesmo? ela ficou pensativa

    por alguns segundos Ah sim! Reencarnao.

    - Ahn?! Quer dizer que os orientais estavam certos? Eu

    perguntei. Pelo menos o meu sarcasmo no tinha morrido

    junto com meu corpo. A expresso de tdio da garota

    com a foice mudou para algumas risadas, em seguida ela

    responde:

    - Ai ai... Sim, quem votou em reencarnao acertou ela

    comeou a se aproximar, desfilando como s ela sabia

    fazer todos os seus amiguinhos que morreram hoje j

    esto nascendo de novo nesse mesmo instante. Pode

    no parecer mas, eu sou boa no meu servio.

    - Mas j? Duvidei.

    - Deixa eu te explicar como as coisas funcionam na morte

    ela comea a girar a foice e andar em crculos

    quando pessoas morrem em paz, dormindo, de causas

    naturais, com bala perdida, tanto faz, eu e os outros

    ceifadores reencarnamos essas almas

    instantaneamente. Existem bilhes de pessoas no

    mundo. Daria muito trabalho para a Criadora ficar

    fazendo almas novas e originais pra cada um, n?

    Aquilo era doido demais para acreditar. Mas que escolha

    eu tinha? Afinal, eu estava vendo meu corpo com um

    enorme buraco no peito e totalmente sem vida bem na

    minha frente. Eu no tinha escolha a no ser aceitar que

    aquilo era realmente verdade. Comecei a raciocinar e

    ento perguntei:

    - Instantaneamente? Ento por que eu estou aqui

    conversando com voc e no estou saindo de algum

    tero agora?

  • - Voc um caso diferente... ela balana o brao que

    no estava ocupado com a foice e no mesmo momento

    surge um pedao de papel, ela fora a vista e continua

    Vance! Vance seu nome n?

    - Er... Sim...

    - Ento, com voc diferente Vance... ela retoma a

    explicao quando pessoas morrem com muita dor,

    muito arrependimento ou, no seu caso, com muita raiva,

    temos que dar um brinde ela realmente faz o sinal de

    aspas com os dedos -, talvez seja um jeito que a Criadora

    achou de amenizar a tragdia que foi a morte desse tipo

    de gente, coitadinhos...

    - Er... Que tipo Brinde? eu pergunto, tambm fazendo

    o sinal de aspas.

    - o direito a um pedido. Qualquer coisa que voc quiser,

    s pedir e puf, ns fazemos. Desde que s envolva voc

    mesmo, claro.

    - Q-qualquer pedido? eu questiono, parecia bom demais

    pra ser verdade - tipo aquelas histrias de gnios e tal?

    - Mais ou menos... ela voltou a se apoiar na foice

    vamos, voc pode pedir pra reencarnar em uma famlia

    rica, nascer como mulher dessa vez, ou branco, ou bem

    dotado... S seja rpido, tive muitas almas em um dia s

    e estou exausta.

    Eu sou bom e muitas coisas, uma delas sempre buscar

    um jeito de tirar proveito das condies. Foi ali que percebi

    uma boa oportunidade para aplicar isso.

    - Qualquer coisa mesmo? ela concordou com a cabea,

    com a expresso novamente de tdio Tem certeza? ela

  • concorda de novo, seguido de um bocejo Ok, ento j sei

    o que eu quero.

    - timo! ela se animou e ficou em postura de quem

    aguarda resposta, ou quem quer sair logo dali o que vai

    ser? Nascer no Hava? Ser filho de estrelas do rock? Ter

    uma cicatriz de raio na cabea? Diz logo!

    - Eu quero voltar.

    Ela ficou paralisada. Dava pra ver a fumaa saindo da

    cabea dela.

    - QU?! T LOUCO?! ela jogou a foice no cho e ficou

    mexendo os braos freneticamente COMO ASSIM CARA?

    - Voc disse que eu tinha direito a qualquer coisa. E eu

    quero ressuscitar no meu prprio corpo u. eu sabia que

    aquele pedido era insano, mas no custava nada tentar,

    afinal, ela realmente havia concordou que era qualquer

    coisa, trs vezes ainda.

    - NO CARA! ela estava histrica DA ULTIMA VEZ QUE

    UM CEIFEIRO FEZ ISSO DEU TUDO ERRADO E AT

    ESCREVERAM UM LIVRO SOBRE ISSO! agora que estou

    lembrando acho que entendi a referncia... Se for quem eu

    estou pensando...

    - Ento eu no posso pedir qualquer coisa?

    - PODE! Mas por que no pede algo bacana como todo

    mundo? Uma vida legal e fcil? Uma famlia podre de rica?

    Por que diabos voc quer voltar pra esse mundo depois de

    tudo o que aconteceu hoje e no resto da sua existncia?

    Se voc reencarnar vai se esquecer de tudo seu idiota!

    Ela estava certa, seria realmente bem mais fcil pedir para

    reencarnar e esquecer aquilo tudo. Mas a voz do meu pai

  • dizendo que os bonzinhos sempre se ferram ficava

    martelando na minha cabea. Ele tinha acertado at ali,

    aquele espancador de esposas estava certo at no final.

    S que naquele instante eu tive a primeira, e

    provavelmente nica chance, de provar que eu podia fazer

    os caras maus tambm se ferrarem.

    - Eu quero por que preciso fazer um certo algum sofrer

    bastante eu at pareci um heri de revistas em

    quadrinho falando, naquela hora eu mal sabia que de

    heri eu no teria nada quando voltasse ao mundo dos

    vivos.

    - Voc? Vai querer se vingar daquele cara enorme que

    matou todo mundo aqui? ela pergunta com um tom de

    sarcasmo e ironia.

    - Se voc me fizer voltar, sim.

    Ela d risada. No, ela se joga no cho e comea a rir

    exageradamente. Eu at torci pra ela se engasgar e

    morrer. Mas lembrei que seria meio impossvel ela, que

    certamente no estava viva, morrer.

    - Huuuf~ Voc muito engraado cara... ela se recompe

    agora para de brincar e pede logo pra eu te reencarnar

    vai.

    - No. J fiz meu pedido. Eu quero que voc me coloque de

    volta no meu prprio corpo e me ressuscite.

    A expresso dela volta a ficar de quem no queria estar ali.

    - Maldito... Voc no vai mesmo mudar de opinio n?

    - No mesmo gata por que diabos eu disse gata nessa

    parte? vai fazer isso ou no?

  • Ela ficou surpresa, primeiro pelo gata e, segundo, pelo

    meu jeito folgado mesmo estando no territrio dela.

    - Posso fazer sim mocinho. Mas...

    - Mas...?

    - Com duas condies.

    - Quais so?

    - Primeiro, se algum descobrir que voc voltou da morte,

    essa pessoa precisa morrer. Ok? ela realmente no

    queria um super star como o ultimo cara que fez esse

    pedido.

    - Sem problemas. Qual a segunda condio? na verdade,

    tinha problema sim, na poca eu s tinha matado meu pai

    (s isso n?), mas fingi poder dar conta dessa condio

    de se eu te contar, vou precisar te matar.

    - Segundo, nesse seu estado voc no vai chegar nem

    perto de tocar aquele tal Bennett, vai acabar morrendo

    bem rpido e jogando fora esse pedido que vou te

    conceder ela estava certa, apenas um chute dele

    quebrou minhas costelas e, provavelmente, ele estava

    pegando leve comigo naquela hora ento, se realmente

    quiser voltar, vai ter que ser do meu jeito.

    - Seu jeito? perguntei.

    - Sim, meu jeito.

    - Defina seu jeito novamente usando o sinal de aspas

    com o dedo.

    - Isso no uma negociao. Ou voc aceita que seja do

    meu jeito ou eu estalo os dedos e fao voc nascer na

    frica agora mesmo isso foi apelao dela.

  • Eu no tinha escolha. Ela no aparentava ser m, mas

    tambm no aparentava ser boazinha (no sentido

    figurado, porque de corpo, ela boazinha sim...).

    - Ok, combinado.

    - Certeza? concordo com a cabea Certeza mesmo?

    concordo mais uma vez, agora com cara de deboche, como

    ela fez minutos atrs Isso vai ser bem divertido

    Vancinho!

    - Meu nome no ... ela coloca o dedo na minha boca,

    interrompendo minha fala e diz:

    - Do meu jeito, lembra Vancinho?

    CAPITULO 01Captulo DOISCapitulo TRSCaptulo QUATROCaptulo CINCOCapitulo SEIS