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Capítulo 3  Niet zsch e e Scho penh auer A arte responde às questões existenciais de Nietzsche e Schopenhauer. Enquanto Schopenhauer vê na arte um calmante contra a vontade, Nietzsche a encara como uma maneira de expressar a força da vida. Schopenhauer não faz distinção entre conhecimento comum e o conhecimento científico, ele privilegia o conhecimento do gênio que, para ele, é conhecimento puro, atingido por meio da contemplação artística. Nietzsche, como vimos, a princípio dá a arte o mesmo sentido de calmante atribuído por Schopenhauer. Em O Nascimento da Tragédia, o fundamento do mundo, para Nietzsche, era caótico e sem sentido e por isso gerava sofrimento. A arte produzida pelo gênio, através da transfiguração apolínea, poderia aliviar o homem do sofrimento, mostrando de maneira bela o caráter terrível da vida. A aproximação com Schopenhauer, nesta obra, é estreita, por ele considerar que o fundamento do mundo também é caótico, por ser uma vontade cega e arbitrária, e somente através da contemplação artística ser ia possível escapar desta vontade perturbador a, semp re insatisfeita. A diferença é que, posteriormente, Nietzsche não categorizará este  fundame nto caótico como sofrimento, mas sim como vida, pois vida, para Nietzsche, é vontade, von tade de pod er. A ssi m, se vontade é vida, ele deve ser afirmada e não negada, como em Schopenhauer. Se o gênio, em Schopenhauer, deve fugir do mundo da representação; em  Ni etzsche el e assu me u m ca ter de un ião to tal co m este mu ndo, af irmando ne le tudo qu e há de horrível e belo. Tal afirmação só é possível se o homem instigar seu instinto criativo ao extremo criando seus próprios valores. A relação entre os dois que permanece é que é  pr eciso um a no va for ma de en ca ra r o mu nd o, dif er en te do s va lores us ua is mo ld ad os po r uma m etafísica que para Schopenhauer é escrava da vont ade e que para Nietzsche é escrava da moral. 3.1 Princípio de razão e vontade O homem possui algo que o diferencia do animal que é a capacidade de criar conceitos, indispensável para a conservação do indivíduo. Mas tal capacidade acaba por    P    U    C      R    i   o      C   e   r    t    i    f    i   c   a   ç    ã   o    D    i   g    i    t   a    l    N    º    0    2    1    0    5    8    6    /    C    A

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deixar o homem entregue à incerteza, pois fica sem a segurança infalível do instinto, que,

no mundo animal, mantém uma adequação com a vontade. O mundo fenomênico está

submetido a uma necessidade absoluta, pois a natureza está marcada também pela

necessidade. Só a vontade, sem representação, é livre. O homem, em seu caráter inteligível

(essência), é um ato de vontade exterior ao tempo. Porém, essa vontade comanda a conduta

do homem.

A liberdade empírica, portanto, é uma grande ilusão, para Schopenhauer. As

ações autônomas dos humanos não têm nenhuma liberdade, pois é a vontade (inacessível

ao intelecto) e não a razão que escolhe. Intelecto aqui não significa um pensar lógico, mas a

esfera da consciência em que se forma um quadro intuitivo do mundo em geral. A vontade,

com sua força pulsante, nega o livre-arbítrio. Como, para Schopenhauer, a vontade é o

fundamento do mundo, a escolha feita através do conhecimento é impossível. O homem

 primeiro deseja e somente depois conhece o que desejou. Assim, a subordinação da vida

empírica à vontade faz de qualquer conhecimento apenas uma repetição de seu caráter

inteligível, que é imutável.

O caráter inteligível do homem é a vontade que se torna um destino interior,

que constitui animais, minerais e vegetais. O caráter empírico é apenas um desdobramento

da vontade, onde cada um representa suas próprias tendências. Para Schopenhauer a única

liberdade possível é a negação da vontade. Tal negação da vontade é exemplificada por nós

na idéia que Schopenhauer tem do gênio.

Para Schopenhauer existem dois tipos de conhecimento: um que é intuitivo e

outro que é racional. O filósofo não deixou de seguir Kant no que se refere à distinção entre

fenômeno e coisa-em-si. Para Schopenhauer, o mundo como nós vemos é puro fenômeno,

mas a coisa-em-si, que para Kant é inacessível, para ele pode ser atingida. A coisa-em-si é

o fundamento do mundo, e se difere do mundo fenomênico, comandado pela causalidade.

Assim o fundamento do mundo dever ser regido de outra forma que não seja a dacausalidade. A coisa-em-si existe, para Schopenhauer, fora do mundo da representação.

Schopenhauer então pensa em uma forma do ser humano conseguir descobrir

este enigma. Tal forma é possível através do corpo. É através da percepção da vontade

vivida no corpo humano que se pode chegar à essência do mundo, ou seja, vontade. É no

corpo humano o lugar onde o homem faz a experiência de uma força que o domina e a qual

ele obedece maquinalmente1.

1  Brum, José Thomaz. O Pessimismo e suas Vontades – Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro:Rocco Editora,1998,p.23

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O conhecimento científico é, portanto, conhecimento de relações que são

fornecidas por tal princípio (tempo, espaço, causalidade). O princípio da razão coloca os

objetos em relação com o corpo e por conseguinte com a vontade. O conhecimento

científico, ou pragmático, valoriza tais relações. A  forma então distingue o conhecimento

científico racional do conhecimento intuitivo.

O conhecimento científico, porém, está submetido ao princípio da razão que,

 por sua vez, está intimamente ligado à vontade.

“O conhecimento submetido ao princípio de Razão constitui o conhecimentoracional; só tem valor e utilidade na vida prática e na ciência: acontemplação, que se abstrai do princípio da razão, é própria do gênio, ela

 só tem valor e utilidade na arte.”2 

Schopenhauer, ao falar do conhecimento intuitivo, adota uma posiçãoambivalente, ora concorda que tal conhecimento transgride a limitação kantiana espaço-

tempo, ora não concorda que esta transgressão possa ser operada pelo conhecimento

intuitivo. Mas Schopenhauer parece ser mais adepto da idéia de que a coisa-em-si pode ser

dada somente pelo conhecimento objetivo, e não pela experiência subjetiva. O

conhecimento objetivo não é conhecimento do próprio sujeito e portanto não é

conhecimento no sentido de representação. Schopenhauer, ao nosso ver, é um filósofo do

corpo, e portanto não diferencia o “eu transcendental” do “eu empírico”, como fez Kant.Para Kant, existe uma antinomia entre o “eu transcendental” e o “eu empírico”.

O Eu só se conhece com outro (submetido à forma do tempo). Para Kant só temos acesso

ao “eu empírico”. Schopenhauer, por sua vez, diferencia o “eu penso” do “eu quero”. A

experiência, para Schopenhauer, é o conhecimento da vontade. Schopenhauer, por vezes,

concorda com Kant que não temos conhecimento da coisa-em-si, mas, em relação à arte,

ele abre uma exceção, pois o conhecimento que cada um tem do próprio querer é uma

forma de acesso à coisa-em-si.

Schopenhauer faz restrições ao conhecimento interno kantiano, por este

também não poder escapar do tempo. Ele acredita que só pensamos a vontade em atos

isolados ou seja, enquanto manifestação no tempo e não no todo. O todo seria o substrato

 permanente, a unidade. A vontade, para Schopenhauer, é unidade, pois se contrapõe à

 pluralidade do fenômeno (individuação).

2 Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rio de Janeiro: Editora contraponto,2001, p.194.

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A relação entre sujeito e objeto produz o belo que, por sua vez, é diferente do

sublime. O belo e o sublime acontecem somente na idéia, ou melhor, no conhecimento

intuitivo, que é sem relações. O gênio em Schopenhauer está ligado à produção (fazer uma

obra) e também está ligado à contemplação artística. Diferentemente de Kant, não há

separação entre a contemplação artística e a produção. A arte é, para Schopenhauer, a

comunicação de um conhecimento.

Se a contemplação é a intuição maior na filosofia de Schopenhauer, a condição

de gênio é, segundo José Thomaz Brum, condição antropológica fundamental. Para

Schopenhauer somente o artista e o filósofo se assombram diante da própria existência. O

gênio se opõe ao homem comum, pois ele não é escravo da vontade. Tal homem tem

apenas acesso à forma acidental do fenômeno na idéia. Por exemplo, ao vermos fatos como

guerras, brigas políticas, etc, estamos vendo somente a aparência dessas ações, que estão

completamente distantes da idéia que, para Schopenhauer, constitui a objetividade mais

 perfeita da vontade.

“Sob os múltiplos aspectos da vida humana, sob a mudança incessante dosacontecimentos, considerar-se-á apenas a idéia como permanente eessencial; é nela que a vontade de viver atingiu sua objetividade mais

 perfeita; é ela que mostra as diferentes faces nas qualidades, paixões, errose virtudes do gênero humano, no egoísmo, ódio, amor,temor,audácia,temeridade, estupidez,manha, inteligência, gênio, etc, é assim que

continuam sem cessar, a grande e a pequena história do mundo os motivose acontecimentos diferem, é verdade, mas o espírito dos acontecimentos é omesmo.” 3 

Dentro de uma leitura prioritária da arte, podemos dizer que de Platão a

Leibniz houve uma confusão entre razão de juízos e a relação causa-efeito. A razão de

 juízos é dominada pela sensação do que é agradável ou desagradável. Tal sensação, ao

chegar na consciência, passa pelo entendimento e passa a ser questionada pelos ditames da

razão, que se baseiam nas seguintes questões: qual é a causa? ; onde e quando? ; como eusei? (lógica); o que ela quer?

O pensar, portanto, constrói conceitos, categorias, juízos. Existe uma

diferença entre conhecer e pensar. O conhecer relaciona o entendimento com a

sensibilidade. O idealismo alemão, para Schopenhauer, valorizou somente a razão. A

vontade é, para Schopenhauer, fundamental; já a representação é secundária. A vontade é a

chave do aparecimento. A idéia, como já dissemos, é o aspecto inteligível da vontade.

3 Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rio de Janeiro: Editora Contraponto,2001, parágrafo 35, p.192

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O gênio em Schopenhauer é marcado por um conhecimento intuitivo que se

insere dentro de uma concepção da filosofia mais como arte do que como ciência. O

conhecimento das idéias é intuitivo. A relação entre o princípio de razão e vontade pode ser

relacionada com o conhecimento do terceiro gênero em Spinoza (a idéia adequada à

essência, singularidade).

Kant, ao criticar a autonomia do sujeito em Descartes, mostra que entre o

transcendental (pensamento) e o empírico existe o espaço–tempo que regula todas as

nossas relações. Antes de Schopenhauer, Schelling já havia pensado na possibilidade de

uma representação do absoluto a partir dos três níveis do conhecimento propostos por

Spinoza: 1)As afecções: visão física do corpo; modificação de um corpo; 2) As idéias:

conhecimento pela causa e não pelo efeito; 3) Essência: conhecer Deus (absoluto) é

conhecer como ele conhece. Schelling então levanta a questão: De onde poderia Spinoza

ter tido a idéia de intuição intelectual de Deus senão da intuição intelectual de si mesmo?

A arte, para Schopenhauer, reproduz as idéias eternas por meio da

contemplação pura (estética). O verdadeiro objeto é então a idéia. O desinteresse permite à

contemplação estética se libertar da vontade. O gênio é então, para Schopenhauer, a

capacidade de se abstrair da razão.

Embora mais tarde Nietzsche tenha se distanciado da filosofia de

Schopenhauer, é incontestável a influência que O Mundo como Vontade e Representação 

exerceu sobre o nosso filósofo. Schopenhauer, com a idéia de uma vontade cega que rege

tudo, mostrou para Nietzsche um mundo despojado de caráter divino. A vontade como

totalidade do mundo marcou toda a filosofia de Nietzsche. A vontade gerou então uma

 percepção trágica em Nietzsche, onde tudo era comandado pela contingência da vontade.

Ao constatar este sofrimento a Filosofia de Nietzsche acaba também por se tornar uma luta

contra o sofrimento. Assim Nietzsche elabora seus questionamentos sobre o valor da

existência.Se Nietzsche considera Schopenhauer seu educador, como veremos a seguir, é

 porque foi através dele que Nietzsche passou a julgar todas as questões a partir da vida. É

 preciso sempre ter em mente que Nietzsche usa como parâmetro para sua filosofia uma

definição específica de vida. Para ele vida é vontade de poder 4. A vida quer sempre

4  Conforme tradução de Flavio Kothe dos  Fragmentos Finais  (Brasília: Editora UNB, 2002) há umatendência nas traduções de determinados conceitos nietzschianos a procurar um correspondente único e exato

 para tais conceitos como Wille zur macht , geralmente traduzido por vontade de poder. Khote propõediferenciar a tradução conforme o contexto em que a expressão apareça: “A preposição  ‘zu’ corresponde a ‘para’, ‘na direção de’.  Na versão vigente, faz-se de conta que ‘zur’ e ‘de’ são iguais. A preposição ‘zu’

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expandir e nunca estagnar. Os valores metafísicos que devem ser superados são, para o

filósofo, moldados de uma forma que impede que a vida seja expansão e vontade de

domínio. Assim, toda moralidade metafísica é construída para que o homem não se

expanda, mas se conserve. É a partir destes pressupostos que Nietzsche pensa, ao nosso

ver, a transvaloração de todos os valores.

O conceito de vida em Nietzsche mostra a reunião dos fenômenos interiores

em um fim comum, ao qual estão subordinados todos os fins individuais. A vida é mostrada

como um valor absoluto que se evidencia nas diversas manifestações da existência. O

querer (sinônimo de conhecer e sentir) compreende a vida em todas as nossas funções

 particulares.

É interessante notar que se em Nietzsche o processo da vida se apodera da

vontade como seu órgão, em Schopenhauer, ao contrário, a vontade adquire aquele

significado absoluto, no qual a vida não é mais que uma de suas revelações, um meio de

expressar si mesmo e construir seu caminho. Para Nietzsche queremos porque vivemos,

enquanto para Schopenhauer vivemos porque queremos5. Mas em ambos a função

intelectual se subordina a estas determinações. O valor ideal que se atribui à verdade é

 baseado em um impulso prático e que emana da vida e da vontade. É graças a este impulso

 prático que conteúdos do entendimento são objetivados. Assim, tais conteúdos perdem sua

substantividade e seus valores independentes, e a verdade se torna súdita da vontade e se

transforma na forma voluntária da nossa existência.

Estas observações de Schopenhauer constituem uma contribuição para o culto

romântico do  gênio. Schopenhauer enxergou no  gênio  alguém que não operacionalizasse

tudo através dos instrumentos lógicos. O  gênio,  diferentemente do cientista, seria capaz de

demonstrar algo fundamental, além da mera representação.

“Todos estes estudos, cujo nome genérico é ciência, conformam-se, nessaqualidade, com o princípio da razão, considerado nas suas diferentesexpressões; a sua matéria é sempre apenas o fenômeno, considerado nas

 suas leis, na sua dependência e nas relações que daí resultam. Mas não

equivale ao inglês ‘to’, sendo o ‘-r’ equivalente ao artigo ‘the’ na regência do dativo, o que em portuguêsredundaria antes em algo como ‘a vontade voltada para o poder’, ou ‘a vontade direcionada para o poder’.Tomada isoladamente, a expressão ‘vontade para o poder’ pode ter o defeito de significar ‘aquilo que para o poder é vontade’, quando significa antes uma vontade devotada ao poder. Há momentos em que ‘Wille zur Macht’ até pode ser traduzido por ‘vontade de poder’, desde que esteja claro ao leitor que se trata de umavontade que quer ter poder. Tudo depende, portanto, do contexto em que a expressão aparece. Não se pode seguir um sistema mecanicista. Para Nietzsche, devia ser importante que ‘wille’ é uma palavra masculina, e‘Macht’, feminina, mas isso é invertido nos termos ‘equivalentes’ em português, o que perverte o

entendimento da expressão.” ( Fragmentos Finais, Nota do tradutor, pág.17)5  Simmel, George. Schopenhauer y Nietzsche  (tradução para o espanhol de José Pérez-Bances). Madrid:Editora Francisco Beltrán,1963, p.117

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existirá um conhecimento especial que se aplica àquilo que no mundo subsiste fora e independentemente de toda representação àquilo queconstitui, para falar com rigor, a essência do mundo e o verdadeiro

 substrato dos fenômenos, aquilo que está liberto de toda mudança e, porconseguinte, é conhecido como uma verdade igual para todos os tempos, em

uma palavra, às idéias, as quais constituem a objetividade imediata eadequada da coisa em si, da vontade? – Este modo de conhecimento é aarte, é a obra do gênio.A arte reproduz as idéias eternas que concebeu pormeio da contemplação pura, isto é, o essencial e o permanente de todos os

 fenômenos do mundo; aliás, segundo a matéria que emprega para estareprodução, toma o nome de arte plástica, poesia ou música”6 

 Nietzsche também viu no  gênio  o afastamento do procedimento meramente

racional; só que depois de O Nascimento da Tragédia  a idéia schopenhauriana de

objetividade imediata da coisa-em-si já não é tão forte, como veremos melhor no quartocapítulo. O  gênio  não é mais quem transmite determinada verdade, mas quem é capaz de

criar valores que afirmem a vontade, sendo ela satisfeita ou não.

3.2. A Contemplação artística e o homem de gênio

A novidade que Schopenhauer apresenta ao abordar a idéia de gênio é que ele

também o vê no âmbito da contemplação. Schopenhauer mostra que, de vez em quando,

existe a possibilidade do homem se livrar da vontade. Ele argumenta que não se trata de

fundamentar como podemos sepultar na intuição toda representação de um objeto – onde

estão todas as excitações que ordinariamente sentimos e que não são dadas veladamente, ou

seja, os impulsos da vontade.

 No momento de absoluta contemplação estamos, de tal modo, plenamente

saturados da imagem da coisa, que desaparece a condição da vontade e da causa do

tormento que nos proporciona sentir a distância entre o eu e o objeto. Ambos estão

separados por um abismo insondável de caráter especial e temporal. Submergidos

 plenamente na contemplação de um fenômeno, não sentimos um “eu” que estivesse

separado de seu conteúdo, mas nos sentimos perdidos neste.

Com isso desaparece todo egoísmo, pois também desaparece o eu no qual

estava contido todo querer e todo poder. Na intuição plena temos o quanto queremos e o

quanto podemos querer da coisa. A felicidade e a infelicidade, atributos da vontade,

 permanecem além do limite em que começa a pura intuição, em que as coisas não existem

 para nós como excitantes, sendo meramente representações.

6  Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rio de Janeiro: Editora Contraponto,2001, parágrafo 36, Livro III, p.193-194.

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“ É apenas através desta contemplação pura e completamente absorvida noobjeto que se concebem as idéias; a essência do gênio consiste em uma

 preeminente aptidão para esta contemplação; ela exige um esquecimentocompleto da personalidade e das suas relações; assim, a genialidade éapenas a objetividade mais perfeita,isto é, a direção objetiva do espírito,

oposta a direção subjetiva que termina na personalidade, isto é, na vontade. Por conseguinte, a genialidade consiste em uma aptidão para se manter naintuição pura e aí se perder, para libertar da sujeição da vontade oconhecimento que lhe estava originariamente submetido.”7 

Este é o núcleo da situação estética. Ela se dissocia completamente do mundo

enquanto representação – que fora daqui é o que eleva e o que impulsiona. A existência das

coisas em nosso intelecto, que fora dele é colocada a serviço dos fins de nossa vida, se

separa da vontade e vive em uma esfera própria, sem desejar uma existência independente.

O eu também tem que se dissolver na imagem e na representação. Esta é a

inversão radical do homem interior, a salvação pelo estado estético que pode ocorrer

 perante qualquer objeto, sempre que seu conteúdo, refletido em uma representação, não

servir ao interesse da vontade. Ao contrário do gênio, o homem ordinário experimenta uma

satisfação particular com a rotina, com o mundo das relações, onde encontra seus iguais.

Schopenhauer chama de belos aqueles objetos que nos facilitam a

contemplação da imagem, separada de toda vontade. O gênio artístico é o homem que

consegue isto de modo mais pleno e perfeito que os demais. A obra de arte, de certo modo,

nos força à contemplação e nos eleva a uma existência própria do conteúdo das coisas e dos

destinos, destituídos de toda complicação.

Schopenhauer considera a arte como a visão das idéias que são a primeira

“objetivação” da vontade de viver. Ele vê na própria arte a “pura contemplação” e, por isso,

a essência do  gênio na preponderante aptidão a tal contemplação.8 A contemplação, para

Schopenhauer, requer um esquecimento total da própria pessoa e de suas relações. Pois,

segundo ele, a genialidade é a mais completa objetividade, isto é, a direção objetiva doespírito, que se opõe à direção subjetiva que tende à própria pessoa, ou seja, a vontade.

3.3. O Gênio e a Loucura

Para Schopenhauer, a vontade não existe no  gênio. Pois o  gênio não contempla

um objeto baseando-se em relações a fim de situá-lo em determinada categoria e assim

7  Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rio de Janeiro: Editora Contraponto,

2001, parágrafo 36, p. 195.8 Arthur Shopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2001 ,(vol.I, § 36)

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compreendê-lo. O  gênio  contempla o objeto distante das relações, tentando compreender o

 próprio mundo através dele.

“ Para os homens comuns, a faculdade de conhecer é a lanterna que iluminao caminho; para o homem de gênio, é o sol que revela o mundo. Esta

maneira tão diferente de encarar o mundo manifesta-se bem depressa,mesmo fisicamente. O homem em que o gênio respira e trabalha distingue- se facilmente, pelo seu olhar que é igualmente vivo e firme, que traz amarca da intuição, da contemplação; é o que podemos constatar pelosretratos dos poucos homens de gênio que a natureza produz de tempos emtempos entre inumeráveis milhões de indivíduos: pelo contrário, no olhardos outros, se não é insignificante ou átono, vê-se facilmente um carátercompletamente oposto ao da contemplação, quero dizer, a curiosidade, ainvestigação. Conseqüentemente, a expressão genial de uma cabeçaconsiste, portanto, em que aí se pode ver uma preponderância marcada doconhecimento sobre a vontade, em que aí se encontra a expressão de um

conhecimento isento de qualquer relação com uma vontade, isto é, aexpressão de um conhecimento puro. Ao contrário, nas fisionomias comuns,a expressão da vontade é preponderante e vê-se que o conhecimento só seexerce nelas através de um impulso da vontade, isto é, que só se guia

 segundo motivos”.9 

O conhecimento intuitivo das idéias é possível com o gênio, que é uma espécie

de hipertrofia ou seja, uma anomalia: “no homem de gênio, a faculdade de conhecer,

 graças à sua hipertrofia, subtrai-se por algum tempo a serviço da vontade”10  (MVR,

 parágrafo 36 p.197)

Dessa maneira, o conhecimento intuitivo do gênio é completamente oposto ao

 principio de razão que guia o conhecimento discursivo. O homem de gênio raramente tem

faculdade discursiva. Ele é contudo mais freqüentemente ligado à violentas afeições e

 paixões insensatas. Isto acontece não por uma fraqueza da razão, mas devido à sua

constituição própria, onde existe uma energia extraordinária da vontade que se revela na

veemência de todos os seus atos voluntários. Há então a preponderância do conhecimento

intuitivo dos sentidos sobre o conhecimento abstrato, e uma tendência à contemplação,onde a impressão presente se apodera de tal forma dos gênios que os levam a irreflexão, ao

arrebatamento e à paixão.

“ É igualmente por isso, e, em geral, porque o seu conhecimento se subtraiu,em parte, a serviço da vontade, que na conversa pensam menos na pessoaque os escuta do que na coisa de que falam e que evocam vivamente perante

 si; daqui resulta que, para os seus interesses,têm uma maneira de julgarbastante objetiva; eles  tagarelam e não sabem guardar para si o que teria

9

 Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2001, parágrafo 36, Livro III, páginas 197-198.10 Idem op. cit. p. 197.

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 sido mais prudente calar, e assim por diante. São enfim, levados aomonólogo e, em suma, capazes de mostrar muitas fraquezas que beiramverdadeiramente a loucura.” 11 

Como vimos no capítulo 1, gênio e loucura estão relacionados em Aristóteles

assim como também em Schopenhauer. Na Grécia antiga chamou-se o entusiasmo poético

de uma espécie de loucura, pois os poetas separam as idéias eternas das coisas efêmeras. O

filosofo de Dantzig, em suas visitas a sanatórios, observou alguns seres onde o gênio se

manifestava através da loucura. Porém, neles a loucura tinha se tornado completamente

dominante. O caráter de exceção da loucura leva Schopenhauer a associá-la ao indivíduo de

gênio, que também é um ser de exceção, ou seja, um acontecimento raro na natureza.

“ É suficiente, para nos convencermos disto, calcular o número de homens

de gênio que a Europa culta produziu na antiguidade como nos temposmodernos, contando, bem entendido, apenas aqueles que produziram obrasdignas de conservar em todas as épocas um preço imortal aos olhos doshomens; que se compare em seguida esse número com os 250 milhões dehomens que vivem sem cessar na Europa.” 12 

Schopenhauer afirma que percebeu ligeiros índices de loucura nas pessoas

intelectualmente superiores. A capacidade intelectual que supera a dos homens ordinários é

considera assim uma anomalia que predispõe à loucura. Ainda não se conseguiu determinar

claramente o que distinguiria o homem louco do homem sensato, pois não se pode dizerque aos loucos falta razão e entendimento. Eles raciocinam, por vezes, com bastante

 precisão e compreendem o encadeamento das causas e dos efeitos.

É preciso distinguir delírio de loucura pois a primeira falseia a percepção e a

segunda falseia o pensamento. Os loucos raramente se enganam com as coisas que estão à

sua frente. Suas divagações estão sempre presas na relação entre aquilo que é passado e o

 presente, assim a loucura atinge a memória. Mas não a suprime por completo, pois muitos

loucos sabem muitas coisas de cor, o que ela faz é quebrar o encadeamento contínuo

tornando impossível que as lembranças do passado apareçam de forma coordenada.

O louco confere ao passado toda a vivacidade do presente, e as lacunas dessas

lembranças são preenchidas por ficções. Tais ficções podem ser sempre as mesmas e

tornarem-se idéias fixas – o que chamamos de monomania ou melancolia – ou podem

modificaram-se sem cessar, o caracterizaria a demência. O verdadeiro e o falso confundem-

se na memória do louco e, embora o presente imediato seja conhecido, ele é falseado pela

11

 Idem op.cit . p.200.12 Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2001, p.201.

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relação feita entre o presente o passado. Os loucos consideram as outras pessoas como

 personagens do seu passado de fantasia; embora tenham uma percepção exata do presente,

atribuem a este presente relações falsas com o passado.

“O conhecimento do louco e do animal confundem-se na medida em queambos estão restritos ao presente; mais eis o que os distingue: o animal nãotem, para falar com rigor, nenhuma representação do passado consideradocomo tal; ele sofre, sem dúvida, o efeito desta representação por intermédiodo hábito, quando, por exemplo, reconhece após vários anos o seu antigodono, isto é, aquele cuja visão produziu nele uma impressão habitual,

 persistente; o que é verdade é que não existe nenhuma lembrança do tempoque tenha passado desde então: o louco, pelo contrário, conserva sempre na

 sua razão o passado in abstracto; mas é um falso passado que existe apenas para ele e que é um objeto de crença constante ou somente momentânea: ainfluência deste falso passado impede-o, embora conheça exatamente o

 presente, de tirar daí qualquer partido, enquanto que o próprio animal écapaz de utilizá-lo. Eis como explico o fato de que violentas dores morais,acontecimentos terríveis e inesperados ocasionem freqüentemente aloucura.” (idem, p.203)

Tal sentimento de dor ao relembrarmos de algum fato passado é passageiro se

não ultrapassar nossas forças. Porém, se o sentimento as ultrapassa tornando-se

completamente insuportável, a natureza, tomada de angustia, recorre à loucura como seu

último recurso. O indivíduo torturado rompe com sua memória encadeada e a preenche

com ficções. O que há de comum entre o homem de gênio e o louco é que ambos

negligenciam as relações que estão incluídas no princípio de razão.

O homem de gênio vê e procura nas coisas as suas idéias, e apreende a essência

que se manifesta no contemplativo. Ele entende que uma determinada coisa representa toda

a sua espécie. O gênio consegue, através da contemplação, transformar coisas imperfeitas

em idéias, ou seja, em perfeição. O gênio vê em todos os lugares apenas extremos e não

sabe ter moderação. Os gênios conhecem perfeitamente as idéias e não os indivíduos: “Um

 poeta pode conhecer a fundo o homem e conhecer bastante mal os homens; é facilmentemanobrado e torna-se um brinquedo nas mãos de pessoas maldosas” (idem, p.204)

Schopenhauer é, assim, o filósofo da alegria, onde os heróis sacrificam as

alegrias fenomênicas por uma alegria superior. É desta maneira que ele enxerga os heróis

trágicos. Para Schopenhauer, Schiller e Nietzsche a tragédia cura a doença. A música em

Schopenhauer expressa diretamente a idéia, enquanto que as outras artes apenas

representam a idéia. O conhecimento parte do princípio de que vontade é dor e sofrimento.

Assim o conhecimento artístico é a vontade, contra ela própria, libertando o homem de seusdesejos.

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Diz Schopenhauer: “a arte sempre chega ao fim”. Colocada entre o gênio

criador e o indivíduo receptivo, a arte é, ao mesmo tempo, efeito e causa da emancipação

do puro intelecto (da vontade), de onde deriva toda a significação da metafísica de

Schopenhauer. A individualidade e a particularidade do homem no tempo e no espaço

desaparecem diante do sujeito.

3.4. Schopenhauer como educador de Nietzsche

Ainda em 1865, Nietzsche começara estudar Schopenhauer, filósofo que muito

o influenciou o seu conceito de  gênio. O estilo de Schopenhauer o impressionou muito, por

este escrever de forma diferente da erudita, fazendo-o lembrar Goethe, que só diz o que é

 profundo e o que comove. Schopenhauer escreve para si mesmo e se tornou o filósofo

defensor desta máxima: “Não engane ninguém, nem a ti mesmo”.13  Tal autenticidade

marca a idéia que Nietzsche tem de um novo tipo humano onde a criação é imprescindível.

Schopenhauer, ao retirar a razão de seu trono, fornece a Nietzsche as ferramentas para

elaborar seu próprio pensamento. E deste exemplo pessoal Nietzsche modela seu

ensinamento para adquirirmos uma nova forma de sentir o mundo.

Para entendermos como se dá a relação entre obras de Nietzsche escritas em

diferentes períodos, recorremos ao ensaio Schopenhauer como Educador , escrito entre

1873 e 1875. Em  Assim Falou Zaratustra, como veremos no capítulo IV, Nietzsche tentou

 promover algo capaz de realizar o tipo de função “educativa” que ele discutia naquele

ensaio, considerando o que Schopenhauer realizou por ele.

Trata-se de um tipo especial de educação, que requer um tipo especial de

educador, e Nietzsche estava convencido de que a experiência de tal enfrentamento como

educador é completamente essencial para encontrar o caminho para um novo sim para a

vida, que não dependa de comprar as várias formas de ilusão, que ele (em O Nascimento da

Tragédia) acreditava serem os únicos meios de evitar o pessimismo schopenhauriano e acalamidade do fim-mortal niilista.

“Certamente, existem outros meios de se encontrar a sim mesmo...mas nãoconheço coisa melhor do que lembrar nossos mestres e educadores. È porisso que vou lembrar hoje o nome do único professor, o único mestre dequem eu posso me orgulhar, para só me lembrar de outros mais tarde.”14 

13

 Nietzsche, F. Schopenhauer como Educador . Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora PUC-Rio e Loyola, 2003.§7 (20) 3.14 Idem op. cit. p.142

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Em 1868, Nietzsche inicia sua amizade com Richard Wagner, e este, por ser

 profundo conhecedor de Schopenhauer, se torna ainda mais simpático aos olhos do

filósofo. Em Schopenhauer como educador , Wagner aparece como o gênio através do qual

floresce a cultura, que seria o locus  da humanidade elevada, que pode ser alcançada se

todos nos representarmos e sustentarmos nossos papéis. Wagner passa a ser então um

depositário de todas as esperanças nietzschianas de renovação da cultura alemã. Tudo isto

faz Nietzsche acreditar que encontrou um verdadeiro mestre, alguém capaz de guiá-lo.

 Nietzsche via em Wagner, assim como em Schopenhauer, a figura do  gênio, que seria

capaz, através de sua música, de converter a arte em potência educadora da nação.

Mas, em 1876, Nietzsche percebe que Wagner era apenas um homem de teatro.

Sua música servia de narcótico à burguesia, sua arte havia se tornado uma mercadoria de

luxo, e seu público, composto de políticos e gente da sociedade, era medíocre, ávido de

 prazer e de divertimento.

 Nietzsche então propõe uma outra concepção de educação e de cultura. A

cultura não deve estar envolta na educação histórica e tampouco no preparo do “ filisteu da

cultura”. A educação moderna é, para o filósofo, sinônimo de domesticação. O ideal deste

tipo de educação é formar o jovem para ser erudito, comerciante ou funcionário do estado,

transformá-lo em uma criatura dócil, frágil, indolente e obediente aos valores em curso.

Para Nietzsche, a educação devia ser vista como uma espécie de adestramento

seletivo. Adestrar um jovem significa, para o filósofo, fazê-lo obedecer a certas regras e

adquirir novos hábitos, torná-lo senhor de seus instintos e hierarquizá-los, de modo que não

se sobreponha o instinto de saber a qualquer preço. O produto deste adestramento não é um

indivíduo adaptado às condições de seu meio, e sim um ser forte, capaz de crescer a partir

do acúmulo de forças deixadas pelos gregos, sendo capaz de mandar em si mesmo.

“A aspiração por uma natureza mais forte, por uma humanidade mais sadiae mais simples, era em Schopenhauer uma aspiração por si mesmo e logoele tinha de ver em si mesmo com olhos espantados, o gênio.” 15 

Mas, posteriormente, o verdadeiro educador, para Nietzsche, é aquele que se

encontra com quem de fato somos nós – transformados e impelidos na direção da máxima:

 ser o que se é – e contribui para a intensificação da vida. Isto deve ser entendido antes

como um estímulo do que uma liderança a ser seguida ou um paradigma a ser imitado.

15 Nietzsche, F. Schopenhauer como Educador . Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora PUC-Rio e Loyola, 2003, p. 150-162.

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Enquanto educador pode ser um tipo de exemplo, mas nada além de um instrutor, de quem

as informações são recebidas e as regras e procedimentos são apreendidos.

Para Nietzsche, os homens têm uma propensão à preguiça e, por isto, se

encostam aos costumes e opiniões. É o comodismo que impulsiona o homem a pensar e

agir como animal de rebanho. Somente os artistas detestam esta negligência onde

 predominam opiniões postiças. Para Nietzsche, quando Schopenhauer despreza o homem

ordinário é a preguiça deles que ele despreza. A preguiça confere então aos homens o

aspecto indiferente de objetos fabricados em série, impossibilitadas de contato e de ensino.

“O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de serindulgente para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe

 grita: Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas.”16 

Em Schopenhauer como educador , Nietzsche celebra Schopenhauer como seu

educador, mas sem discorrer detalhadamente sobre as opiniões de Schopenhauer. Nietzsche

não supõe que Schopenhauer possa ou deva ser o educador de todos, ele está preocupado

em saber de onde vêm ou virá aquilo de que o educador precisa, para fazer com outros

aquilo que Schopenhauer fez com ele.

"onde estão na verdade para todos nós, eruditos e ignorantes, grandes e pequenos, nossas celebridades e nossos modelos morais entre nossoscontemporâneos, visível encarnação de toda moral criadora nessa

época?(...) Jamais tivemos tanta necessidade de educadores morais e jamais foi tão pouco provável encontrá-los.” 17  

 Nietzsche pretendia chamar a atenção de todas as jovens almas para o que se

 precisa: a coragem e a habilidade para dar ouvidos ao chamado "ser você mesmo" –

entendido não como auto-indulgência, mas em um senso que a " tua essência verdadeira

não está oculta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti  (idem, op.cit .

 p.129). Por eles, ele levantou uma questão e colocou um desafio que conseqüentemente o

levou a uma variedade de caminhos:

“Ora, no meio destes perigos da nossa época, quem então doravanteconsagrará seus serviços de sentinela e cavalheiro à idéia de humanidade,ao tesouro do templo sagrado e inatingível que as várias gerações pouco a

 pouco acumularam? Quem erguerá ainda a imagem do homem, se todos só percebem neles o verme do egoísmo e um medo sórdido, e se desviam tanto

16  Nietzsche, F. Schopenhauer como Educador . Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora PUC-Rio e Loyola, 2003,

 p.145-14617 Idem op. cit . p.139

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dessa imagem, que acabam caindo na animalidade, ou seja, numa rigidezmecânica?” ( idem, p.168)

O protótipo de Nietzsche do espírito livre, em Schopenhauer como Educador, é

o tipo schopenhauriano de humanidade. Ele faz um esboço para distinguir não apenas o

tipo  Humano demasiado humano  ou sócio-animal que ele considera ser a regra humana,

mas também as duas imagens alternativas e paradigmas de uma humanidade mais genuína

que ele chama pelo nome dos mais proeminentes representantes: Rousseau e Goethe. O

homem rousseauriano, para ele, representa a humanidade naturalizada, renovada e

revitalizada através da emancipação das amarras da sociedade e da restauração dos básicos

instintos. O homem goetheano é a imagem da humanidade contemplativa, cultivada e

sofisticada, mas separada do envolvimento ativo na vida. O homem schopenhauriano, para

 Nietzsche, combina elementos de ambos e também os substitui como a imagem da

"verdade ativa": uma humanidade criativa em uma humanidade muito mais vital,

espiritualizada e verdadeira.

O significado dessas imagens para Nietzsche em Schopenhauer como Educador  

é que elas têm poder para liberar, estimular e inspirar – resumindo, para educar. Os dois

modelos de humanidade propostos são diferentes não apenas no tipo mas também no valor.

 Nietzsche defende o que chama de expressão schopenhauriana e evoca a promessa de uma

forma alternativa de humanidade, saudável e suficientemente vital para ser viável neste

mundo; e suficientemente criativa e espiritualizada para se justificar e, junto com isto,

 justificar a vida e o mundo.

A vida cultural pertence a este domínio, então, é pela celebração e o serviço da

cultura que Nietzsche olha para sua responsabilidade de um desafio que estabelece para si

quando escreve:

“O mais difícil está por fazer: dizer como se extrai deste ideal um novociclo de deveres e como se pode, com um propósito além do maistranscendente, colocar-se em contato com uma atividade regular, em suma,mostrar que este ideal educa. Poder-se-ia, ao contrário, achar que não setrata aqui de outra coisa senão da intuição benéfica, ou seja, da intuiçãoembriagadora, que nos oferecem certos instantes, para logo cada vez maisnos deixar e nos abandonar numa lassidão cada vez mais profunda.” (idem,

 p.175)

É claro que a resposta de Nietzsche é afirmativa, e não é de pequena relevância

se observarmos sua elaboração sobre isto: “é preciso que sejamos erguidos – e quem são

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estes que nos erguem? Os homens verdadeiros, aqueles que não são animais, os filósofos,

os artistas e os santos”18.

Ele estava convencido que o objetivo da cultura é "promover o ser humano

verdadeiro e nada além disso" (idem, p.164); então a sua preocupação era com o que seria

 preciso para intensificar esta promoção. Nietzsche tenta resolver a seguinte questão: Como

a vida individual pode adquirir valor mais elevado e como ela seria menos desperdiçada?.

A resposta de Nietzsche é que o homem deveria procurar a cultura. Cultura

entendida como hostilidade em relação às influências, aos hábitos, às leis e as instituições

que não reconhecem o objetivo fundamental da cultura humana, que é o engendramento do

gênio. Os estabelecimentos de ensino reproduzem um modelo de educação onde consiga se

extrair do conhecimento a maior quantidade possível de lucro. A intenção dos

estabelecimentos modernos em relação à cultura é completamente diferente da cultura que

 Nietzsche almeja: “ A mim me parece, às vezes que os homens modernos experimentam um

tédio infinito ao seguirem juntos, e acabam por achar necessário se tornarem interessantes

com a ajuda de todas as artes” (idem, p. 187)

A cultura promotora da ciência só enxerga problemas de conhecimento,

 portanto o sofrimento para os cientistas é algo incompreensível. O erudito não tem

sensibilidade para a angústia do gênio. Os cientistas e eruditos se perdem na utilidade e se

 preocupam com a fama e jamais podem ser considerados homens de gênio. Pois estes

experimentam uma angustia própria ao verem engajados numa luta penosa com perigo de

destruir a si próprio e de serem descartados pelo egoísmo da visão estreita dos

comerciantes e pela presunção dos eruditos.

18 idem op. cit . p.179

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