Nietzsche Leitor de Shakespeare

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    * Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

    1 Cf. SSSEKIND, P. Shakespeare, o gnio original. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

    Nietzsche leitor de Shakespeare

    Pedro Sssekind*

    Resumo: O artigo analisa, a partir de referncias feitas por Harold Bloom em seu estudo Shakespeare: a inveno do humano, passagens nas quais Nietzsche prope interpretaes de duas tragdias de Shakespeare. Uma dessas passagens, retirada de Aurora, defende uma compreenso de Macbeth que escape da avaliao moralista do protagonista. A outra passagem do primeiro livro de Nietzsche, O nascimento da tragdia, e diz respeito a uma das questes mais debatidas na recepo de Hamlet: o motivo da hesitao do prncipe, sua demora em agir diante das circunstncias que lhe so apresentadas no primeiro ato da tragdia.Palavras-chave: Nietzsche Shakespeare Macbet - Hamlet

    1. Antigos e shakespearianos

    Duas referncias fundamentais demarcaram a poltica cultural na Alemanha a partir de meados do sculo XVIII: os gregos antigos e o teatro shakespeariano. Por um lado, desde Winckelmann, o modelo da Grcia clssica foi considerado como ideal artstico e humanista a ser imitado. Por outro lado, a partir da proposta de um novo paradigma para o teatro nacional, feita por Lessing, a obra de Shakespeare se converteu no impulso para a revoluo promovida pelo Sturm und Drang e pelo movimento romntico.1

    A respeito do peso que teve o helenismo para o desen vol-vimento cultural daquele perodo, considero bastante instrutivo o ttulo de um importante estudo sobre o tema, publicado em 1958:

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    A tirania da Grcia sobre a Alemanha, de Eliza Marion Butler. Com base em suas anlises de Goethe, Schiller, Hlderlin e outros, a autora constata: a Grcia de Winckelmann foi o fator essencial no desenvolvimento da poesia alem ao longo da segunda metade do sculo XVIII e de todo o sculo XIX.2 S que essa tirania ainda mais ampla do que a frase indica, porque a obrigatoriedade do modelo grego no se restringiu poesia; ela se desenvolveu tambm em outras reas da cultura, repercutindo nos desdobramentos da Filosofia da Histria e da Filologia Clssica ao longo do sculo XIX.

    Sob a tica da tradio potica, filosfica e filolgica cons-tituda na Alemanha, Nietzsche certamente pode ser considerado como herdeiro daquele reinado tirnico da Grcia como modelo cultural. Isso fica evidente em seu primeiro livro publicado, alis, quando ele era professor de filologia , no qual ele mencionava a nobilssima luta de Goethe, Schiller e Winckelmann pela cultura como o tempo em que o esprito alemo se esforou com mais vigor para aprender dos gregos (GT/NT 20,KSA1.131).3 Se a aspirao de chegar por uma mesma via cultura e aos gregos tinha se tornado cada vez mais fraca na Alemanha ao longo do sculo XIX, o autor concebia o projeto filosfico de O nascimento da tragdia como um aprofundamento do esforo de seus precursores. Nesse caso, uma crtica do escopo do helenismo alemo sob a responsabilidade dos fillogos do sculo XIX est por trs das teses de Nietzsche, interessado em resgatar a luta pela cultura contida no projeto winckelmanniano de imitao dos antigos.4

    Entretanto, em contraposio ao helenismo que marcou a hito-riografia, a filosofia e a poesia na Alemanha, o modelo shakes-peariano foi proposto justamente como uma ruptura moderna em relao necessidade de imitar os clssicos. Para usar a metfora

    2 Butler, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge: University Press, 1935, p. 6.3 Traduo brasileira, p.121 (vide referncias bibliogrficas). 4 Convm lembrar a polmica despertada pelo livro entre os fillogos da poca. Cf. Nietzsche

    e a polmica sobre O nascimento da tragdia, longo debate entre os fillogos da poca.

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    empregada por Butler, pode-se afirmar, ento, que se trata de uma contestao da tirania do classicismo. Pioneiro nessa proposta, em suas Cartas sobre a nova literatura, de 1759, Lessing considerava que os autores de seu pas se equivocavam ao seguir o ideal de teatro rigoroso importada da Frana e da Itlia. Assim, Shakespeare constitua um antdoto contra a normatividade do teatro clssico, baseado nas regras poticas provenientes da leitura de Aristteles feita por Castelvetro, Boileau e Corneille5. A valorizao do dramaturgo ingls como um poeta moderno que no segue as regras da arte portanto de um gnio artstico definido pela originalidade marcou poca a partir da proposta de Lessing, como constatamos pelos desdobramentos da questo nas obras de Herder e Goethe relacionadas ao Sturm und Drang, nos textos de Friedrich Schlegel e de outros tericos do Romantismo, ou mesmo nas filosofias do trgico desenvolvidas por Schelling, Hegel e Schopenhauer.

    Embora essa referncia no seja, em sua obra, um tema to frequente nem to importante quanto o helenismo, Nietzsche tam -bm pode ser considerado um herdeiro dessa tradio shakes-peariana alem que marcou profundamente o surgimento do Romantismo. H comentrios sobre Hamlet, Macbeth ou Rei Lear espalhadas pelas obras do filsofo, cada um deles subordinado a um contexto e a um objetivo especficos. Mas encontram-se tam bm, igualmente dispersas, algumas breves e contundentes observaes sobre o dramaturgo, expressas num tom que remete s analogias de Lessing, Herder e Goethe, em seus textos de defesa apaixonada do interesse por Shakespeare na Alemanha moderna, contra o privilgio exclusivo do teatro antigo6. A mais digna de nota entre essas observaes gerais feitas por Nietzsche talvez

    5 Apresentei a proposta de Lessing no livro Shakespeare, o gnio original, op.cit., p. 35-44.6 Cf. LESSING, G. E.. De teatro e literatura. So Paulo, Editora Herder, 1964; HEDER.

    Shakespeare. In: ROSENFELD, A. Autores pr-romnticos alemes. Trad. Joo Hamann. So Paulo: EPU, 1992; GOETHE. Para o dia de Shakespeare. In: Escritos sobre literatura. Trad. Pedro Sssekind. Rio de Janeiro: 7letras, 2000.

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    seja a passagem de Alm do bem e do mal em que Shakespeare avaliado como estupenda sntese hispano-moura-sax do gosto, que faria um antigo ateniense das relaes de squilo morrer de riso e de raiva.7 Mas para ns, diz o filsofo, para os alemes, para os homens do sentido histrico, para os homens modernos semi-brbaros, cai bem a selvagem policromia do teatro shakespeariano, essa miscelnea do que mais delicado, mais selvagem e mais artificial (JGB/BM 224, KSA 5.159).

    Considero que as observaes a respeito das peas de Shakespeare na obra de Nietzsche podem ser lidas segundo duas perspectivas distintas: possvel recorrer s questes extradas do universo shakespeariano para delinear, com contornos precisos, as imagens de pensamento elaboradas pelo filsofo; ou possvel descobrir, naqueles comentrios, indicaes que permitem enxer-gar dimenses novas, perspectivas crticas de interpretao e de compreenso das questes apresentadas nos prprios dramas. Segundo a primeira perspectiva, de um leitor de Nietzsche, os trechos sobre Shakespeare no s ilustram, como tambm inten-sificam determinados temas, tomando emprestados o vigor e a complexidade dos personagens das peas. De acordo com a se-gunda perspectiva, de um leitor de Shakespeare, em que pese o estilo polmico e incisivo de Nietzsche como intrprete, os seus comentrios constituem vias de reflexo que pem em xeque toda uma tradio de leitura constituda sobre as bases das concepes morais que articularam e articularam os juzos estticos.

    A segunda perspectiva me interessa mais aqui, pois a proposta deste estudo justamente pensar Nietzsche como leitor de Shakespeare. E um indcio claro da importncia de sua leitura a presena das interpretaes propostas pelo filsofo, ainda hoje, nos estudos shakespearianos. Para exemplificar essa presena, recorro a um dos mais conhecidos e divulgados desses estudos, Shakespeare:

    7 Traduo brasileira, p.129-30 (vide referncias bibliogrficas).

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    a inveno do humano, livro publicado em 1998, no qual Harold Bloom menciona diversas vezes observaes de Nietzsche que so decisivas especialmente para entender a psicologia dos grandes protagonistas trgicos. Comentrios sobre Hamlet e Macbeth extrados de O nascimento da tragdia e de Aurora so usados pelo autor para aprofundar as anlises dessas tragdias, nos captulos do estudo dedicados a elas. E esse uso, da maneira como feito, me parece indicar no s a relevncia e a atualidade, como tambm a profundidade da leitura elaborada nas passagens citadas.

    De um modo geral, quando defende a hiptese de uma inveno do humano ou seja, de que as criaes poticas shakespearianas podem ser lidas como uma espcie de nascimento da compreenso do ser humano tal como o entendemos na poca moderna , Bloom talvez demonstre afinidade com procedimentos genealgicos da filosofia nietzschiana. Mas essa afinidade permanece implcita, e o que chama a ateno nas referncias diretas ao filsofo em Shakes peare: a inveno do humano outro aspecto, que diz res-peito maneira de ler as tragdias. Evidentemente, o propsito original dos trechos citados pelo crtico no era o mesmo de um shakespearianlogo, cujos comentrios minuciosos de cada pea constituem um foco central e um ponto de partida para o desenvolvimento de uma reflexo abrangente sobre a obra do dramaturgo. Trata-se mais de um procedimento de apropriao, pois imagens e personagens shakespearianos so usadas pelo fil sofo para caracterizar ou exemplificar determinadas ideias. Entretanto, os comentrios em questo descortinam elementos das criaes literrias de Shakespeare que permaneciam ocultos, seja por leituras superficiais, seja por uma tradio de avaliaes anteriores qual escapava, muitas vezes, o essencial.

    Nietzsche desafia o leitor a entender as tragdias de Shakespeare para alm de juzos de valor posteriores. Com ele se aprende que a moralidade e a sensibilidade de pocas refinadas podem impedir a interpretao da verdadeira natureza dos grandes protagonistas trgicos. Se, como leitor de Hamlet e Macbeth, ele

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    pode ser considerado um herdeiro do debate alemo em torno do dramaturgo, porque leva s ltimas consequncias esse desafio crtico. Pois, na reviso pela qual a obra shakespeariana passou na Alemanha, a partir do final do sculo XVIII, justamente a noo de uma finalidade moral, ou efeito moral ideia que pautava as poticas classicistas no sculo XVII tinha contribudo para as avaliaes negativas do dramaturgo ingls que ainda dominavam a teoria do teatro quando Lessing passou a valoriz-lo e quando comeou a despontar o movimento romntico.

    2. O demonaco em Macbeth

    O momento em que o apreo de Harold Bloom pelas inter-pretaes propostas por Nietzsche se torna mais evidente , com certeza, a anlise de Macbeth, na Parte VI (As grandes tragdias) de Shakespeare: a inveno do humano. Nesse captulo, ele cita todo o longo pargrafo da seo 240 de Aurora intitulado Da moralidade da cena, no qual o filsofo alemo interpretava a questo da ambio do protagonista Macbeth, portanto o tema central da tragdia. Adotando, no pargrafo citado, a posio de um estudioso de Shakespeare, Nietzsche dialoga diretamente com toda uma tradio de leituras que consideravam o personagem segundo a tica da moralidade: Aquele que imagina que o teatro de Shakespeare produziu efeito moral e que a viso de Macbeth afasta irresistivelmente dos perigos da ambio engana-se (Cf. M/A, KSA 3.201)8.

    Nietzsche contesta a viso de que a pea tem um efeito moral, uma mensagem pedaggica, de acordo com a expectativa horaciana das poticas classistas de que o bom teatro deve unir o til ao

    8 Cf. BLOOM, H. A inveno do humano. Trad. Jos Roberto O Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 651. O trecho citado na edio brasileira da traduo portuguesa de Rui Magalhes (Nietzsche. Aurora. Porto: Rs, s.d., p. 155-6).

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    agradvel.9 A tendncia tradicional seria a de ler a tragdia como se ela veiculasse o ensinamento de que preciso afastar-se dos perigos da ambio desenfreada. Mas, segundo o filsofo, o sentido da fora potica de Macbeth justamente o inverso: quem possui uma ambio furiosa, ainda que velada, contempla no protagonista shakespeariano a sua prpria imagem. O personagem exerceria, assim, uma atrao demonaca capaz de impelir naturezas seme-lhantes a imit-lo, ou seja, a seguir sua obsesso, a tomar o mais condimentado ingrediente na bebida ardente desta volpia que se desenvolve na cena.

    Desse modo, segundo a avaliao de Nietzsche, um poeta trgico como Shakespeare no previne contra os riscos inerente vida, mas considera como o encanto dos encantos essa existncia apaixonada, mutvel, perigosa, sombria, que a prpria vida se mostra. Demonaco significa, aqui, o modo de agir que despreza interesse e sobrevivncia em benefcio de uma ideia e de um instinto. Seria esse o cerne da ambio, como Nietzsche argumenta a partir de outro exemplo literrio: Pensais pois que Tristo e Isolda deram uma lio contra o adultrio porque morreram os dois?, pois muito pelo contrrio. Esse tipo de avaliao moral seria virar os poetas de cabea para baixo, e justamente os poetas, sobretudo grandes criadores como Shakespeare, so apaixonados da paixo em si e de modo algum das disposies mrbidas que acompanham quando o corao no tem na vida mais do que uma gota no fundo do corpo10.

    Do ponto de vista de seu propsito no contexto da filosofia de Nietzsche, esse comentrio tem o sentido de criticar no s a moralidade da nossa tradio, na qual se baseia uma avaliao falsa das situaes humanas, como tambm o tempo presente, no qual essa perspectiva moralista impede a compreenso da fora potica

    9 Segundo a frmula de Horcio: Arrebata todos os sufrgios quem mistura o til e o agradvel, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor. Cf. Horcio. Arte potica. In: A potica clssica, p. 65.

    10 BLOOM, H. A inveno do humano, op. cit., p. 651.

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    de Shakespeare. O final da seo menciona a dimenso temporal, contrapondo viso debilitada do presente (no caso, o final do sculo XIX) o vigor da poca em que a pea foi escrita. Shakespeare nos falaria desde o interior de uma poca agitada e forte que semi-embriaga e atordoa com a sua abundncia de sangue e de energia, de uma poca pior do que a nossa. Por isso, como explica filsofos, ns, os homens modernos civilizados com escrpulos morais da poca de Nietzsche, seramos obrigados a modificar e a adaptar a ns o objetivo de um drama shakespeariano. E isso significa simplesmente no o compreender11.

    Quando Harold Bloom cita essa passagem, ele pretende exa-tamente explicar uma espcie de simpatia irracional que o leitor sente por Macbeth, embora o personagem seja talvez o mais sanguinrio dos tiranos-viles shakespearianos. O mistrio desse protagonista, um heri pico que se torno vilo, estaria ligado ao efeito extraordinrio de identificao com aquilo mesmo que, do ponto de vista moral, aparece como terrvel e condenvel.12 Nessa interpretao da dignidade trgica de Macbeth, Bloom de-mons tra que nossa capacidade de perceb-la depende da capa-cidade que o personagem tem de fazer valer a sua percepo de formas de vida desconhecidas, de foras que esto alm de Hcate e das bruxas. Tais foras diriam respeito tragicidade em sua forma mais pura e assustadora, ligada ao destino. Assim, segundo o crtico, Shakespeare investiga em Macbeth a presena demonaco no prprio homem. maneira de um espelho, como indicava Nietzsche, o absurdo e a falta de sentido da ambio de Macbeth mostram-se demasiadamente humanos, no como traos condenveis de um vilo que o leitor julga distncia, mas como o resultado de foras que assumem o comando da pea e diante das quais os preconceitos da moralidade so irrelevantes. Essas foras

    11 Ibid.12 Ibid., p. 652.

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    nos aterrorizam, mas ao mesmo tempo trazem alegria, um imenso prazer que se deixa contaminar pelo demonaco, como diz Bloom, porque elas se revelam no corao do homem e no em qualquer instncia externa ou transcendente.

    Macbeth deseja demais, e por isso mesmo no deseja nada. a interpretao de Nietzsche que permite ao crtico compreender o personagem para alm de uma leitura moralizante, como essa figurao do homem que exprime uma negatividade radical. Desse modo, a concepo do demonaco indicada por Nietzsche que funciona como uma chave para a compreenso daquela marcha fnebre niilista, como a caracteriza Harold Bloom,13 que se expressa na famosa fala do protagonista aps a morte de Lady Macbeth:

    Amanh, e amanh, e ainda outro amanh arrastam-se nesta passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, at a ltima slaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens no fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao p da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida no passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco faz isso por uma hora e, depois, no se escuta mais sua voz. uma histria contada por um idiota, cheia de som e fria e vazia de significado14 .

    3. Hamlet e o homem dionisaco

    Em Shakespeare: a inveno do humano, Harold Bloom elogia a memorvel interpretao de Hamlet feita por Nietzsche,15 referindo-se ao trecho de O nascimento da tragdia em que o fil-sofo adota a postura do protagonista da pea de Shakespeare como um smbolo de um dos principais elementos da sua concepo do

    13 Ibid., p14 Shakespeare. Macbeth, Ato V, Cena 5.15 BLOOM, H. op. cit., p. 490.

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    trgico. Nietzsche se interessa especialmente pela situao descrita no incio de Hamlet, porque se trata de circunstncias nas quais repousa, sob uma aparente felicidade, uma verdade profunda e terrvel. Por trs das condies exteriores do reino da Dinamarca, por trs da iluso, por trs da beleza e da ordem disfaradas pela festividade das bodas dos soberanos, esconde-se algo podre: o assassinato do rei legtimo por seu prprio irmo usurpador, um regicdio e um fratricdio ao mesmo tempo, o pior crime que se poderia imaginar.

    Segundo a perspectiva de Nietzsche, o lado terrvel da existncia, com suas motivaes violentas, avassaladoras e inconfessveis, sustentaria o mundo das aparncias em que os homens desempenham seus papis. Hamlet, como um personagem altamente filosfico, quem conhece essa verdade mais profunda e, por isso mesmo, encara com enfado ou horror a situao sua volta. Esse carter filosfico se evidencia, em Hamlet, j na primeira ce na em que o protagonista se manifesta, de olhos baixos e com nuvens sombrias em seu semblante, de luto em meio celebrao geral, antes mesmo de ouvir o fantasma de seu pai lhe revelar o que h por trs da situao. No conheo o parece, afirma Hamlet, quando responde rainha, que fizera uma pergunta sobre o fato de a morte, algo natural, parecer-lhe to singular16. Nessa perspectiva melanclica do prncipe, a essncia o lado sombrio e aterrador da existncia, o horror e o absurdo, a atrao do suicdio se ope s iluses da bela aparncia, ordem, aos limites frgeis em que se apiam as convenes humanas.

    Na conhecida caracterizao de Nietzsche em O nascimento da tragdia, o impulso artstico dionisaco, descrito por analogia com a embriaguez, consiste inicialmente num estado de xtase, na harmonia de todos os seres, no esquecimento e na fuso com a natureza, portanto na perda da individualidade que se revela to

    16 Hamlet, Ato I, Cena 2.

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    importante para os valores hericos da arte grega. Esse impulso se ope quele do sonho, que caracteriza por analogia o apolneo como um impulso artstico de formao de imagens, de beleza, de ordenamento. As manifestaes do dionisaco teriam vindo de fora da Grcia, pois estavam presentes nas celebraes asiticas caracterizadas por uma desenfreada licena sexual, pela perda de todo ordenamento social e dos laos familiares, por uma horrvel mistura de volpia e crueldade (GT/NT 2,KSA1.33)17. Trata-se, assim, de um impulso que tende a ser aniquilador e que, depois de ter levado desagregao determinados povos do oriente, ameaava a cultura apolnea da Grcia Antiga. Em A viso dionisaca do mundo, um texto preparatrio para seu livro sobre o nascimento da tragdia, Nietzsche associava o dionisaco ao mundo titnico das Grgonas e Erneas, que na mitologia grega se encontram em conflito com os deuses olmpicos. As divindades dionisacas, titnicas, so pensadas como essencialmente impiedosas, sem trao de compaixo ou reparao, parentes da verdade, da noite, do so frimento e da morte. Numa primeira imagem do efeito que tais divindades produzem, o filsofo afirma que todas elas so como a Medusa, pois contemplar seu aspecto terrvel transforma em pedra (DW/VD 2, KSA 1.560). Com essa metfora, ele procura expressar como a invaso da torrente dionisaca seria algo de insuportvel e aniquilador, algo que paralisa, porque quando algum enxerga o cerne da terrvel ao destrutiva da histria universal e da crueldade insacivel da natureza, toda e qualquer ao se mostra v.

    justamente no trecho de O nascimento da tragdia sobre esse tema que Nietzsche recorre a Hamlet. O prncipe dinamarqus comparado ao homem dionisaco, porque ambos lanaram alguma vez um olhar verdadeiro essncia das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enoja atuar. E o filsofo complementa sua comparao: pois sua atuao no pode modificar em nada a eterna

    17 Traduo brasileira, p.33 (vide referncias bibliogrficas).

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    essncia das coisas, e tanto Hamlet quanto o homem dionisaco, citando a clebre frase acerca do tempo fora dos eixos, sentem como algo ridculo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que est desconjuntado (GT/NT 7,KSA1.57)18.

    Segundo esse argumento, quem olhou na essncia das coisas tem nojo de agir e permanece imobilizado: O conhecimento mata a atuao, para atuar preciso estar velado pela iluso, confirma Nietzsche, expressando a lio hamletiana que est por trs da constatao de que a verdade dionisaca, como a Medusa, ameaa petrificar quem a contempla. Hamlet configuraria assim, como uma espcie de personagem conceitual, a ideia do homem dionisaco que Nietzsche desenvolve em seu primeiro livro. A hesitao do protagonista mais famoso de Shakespeare exemplifica o estado de paralisia associado ao conhecimento de uma verdade por trs do mundo das aparncias.

    Por outro lado, como d a entender Harold Bloom ao recorrer a Nietzsche em sua anlise de Hamlet, na parte VI de Shakespeare: a inveno do humano, o filsofo faz um exerccio de crtica literria ao se posicionar, em seu primeiro livro, em relao a uma das mais polmicas questes discutidas no contexto da recepo da tragdia: o verdadeiro motivo da hesitao do prncipe dinamarqus. Para Nietzsche, em sua memorvel interpretao, preciso descartar a viso do personagem como um sonhador que pensa demais e que, devido ao excesso de opes, no consegue agir. No se trata de pensar demais, como explica Bloom com base em Nietzsche, e sim de pensar com extrema clareza: o prprio conhecimento que mata a ao, pois ela precisa dos vus da iluso para ser realizada, esta a doutrina (GT/NT 7,KSA1.57)19.

    18 Traduo brasileira, p.56 (vide referncias bibliogrficas).19 Ibid., p. 56. Cf. BLOOM, H. op. cit. p. 490

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    4. A filosofia de Hamlet

    Caracterizado como um homem que contempla a verdade, o personagem de Shakespeare pode ser considerado um autntico filsofo, no como smbolo da abstrao que se afasta da realidade, mas como expresso de um contedo mais profundo do saber. Essa interpretao de Hamlet como filsofo no explicitada diretamente no Nascimento da tragdia, mas sim quando Nietzsche volta a avaliar a pea em Ecce Homo, um dos seus ltimos livros, no qual ele faz um balano de sua vida e de sua obra. No captulo Por que sou to esperto, o autor pergunta: Compreende-se Hamlet?. E a resposta para essa pergunta que anuncia uma interpretao a contrapelo vem em seguida, numa nica frase: No a dvida, a certeza que enlouquece (EH/EH, Por que sou to esperto, 4, KSA 6.287)20. assim que Nietzsche compreende Hamlet, con-forme j indicava a leitura feita em O nascimento da tragdia.

    O grande personagem de Shakespeare, apesar de todas as suas hesitaes, reflexes e dvidas sobre o curso das aes, atormentado no pela falta, no pela indeciso, mas justamente pela certeza, ou seja, pela confirmao da verdade. por saber que ele parece insensato, seu conhecimento que o atormenta. Mas preciso ser fundo, ser abismo, filsofo, para assim sentir, Nietzsche diz, pois todos ns tememos a verdade. preciso ser filsofo para assim sentir o Hamlet e, portanto, para compreender a verdade da pea, pois trata-se aqui, em Ecce Homo, do peso e do risco inerentes filosofia. Por outro lado, para quem pretende interpretar a pea de Shakespeare, a passagem indica que o prprio Hamlet precisa ser um filsofo para sentir a verdade desta inverso: no a dvida, a certeza que enlouquece. Afinal, com base nessa convico que o prncipe adotar como lema a ideia de que a prontido tudo

    20 Traduo brasileira, p.143 (vide referncias bibliogrficas).

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    e,21 no ltimo ato, ser capaz de expressar em ao, no desfecho trgico da pea, aquela verdade terrvel que s ele conhecia.

    Como todo protagonista trgico de Shakespeare, Hamlet no um personagem estanque, ele passa por uma mudana ao longo da tragdia. Com isso, depois de confirmar por meio de um artifcio teatral a culpa do rei usurpador, de confrontar sua me e de, sem inteno, sujar suas mos com o sangue de Polnio, o prncipe do ltimo ato j deixou de lado as hesitaes suicidas de seus solilquios anteriores. O Hamlet que retorna de uma aventura com piratas e que contempla o exrcito de Fortimbrs assume, afinal, a realizao da tarefa que lhe fora imposta. De acordo com uma tica nietzschiana, a transformao do personagem no decorrer da pea pode ser interpretada como a aceitao de uma viso dionisaca do mundo, como um gesto afirmativo diante do terror, uma ao capaz de fazer o veneno que corrompia o reino da Dinamarca destronar o prprio agente desse veneno, que usurpava o trono, para dar lugar a um sucessor com a tarefa de restabelecer a ordem. O resto silncio, mas cabe a Horcio transmitir para a posteridade o que ns como espectadores j sabemos: a verdade aterrorizante e imobilizadora que se esconde por trs da cena trgica.

    Abstract: This paper analyzes, based on references made by Harold Bloom in his study Shakespeare: the invention of the human, pas-sages in which Nietzsche proposes ways to read and understand two Shakespearean tragedies. One of these passages, taken from Aurora, jus-tifies an understanding of Macbeth that escapes from the moral evalua-tion of the protagonist. The other passage is from Nietzsches first book, The Birth of Tragedy, and concerns the interpretation of one of the most debated issues in the reception of Hamlet: the reason for the hesitation of the prince, under the circumstances presented in the first act of the tragedy.Keywords: Nietzsche Shakespeare Macbeth - Hamlet

    21 Hamet. Ato V, Cena 2.

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    3. BUTLER, E. M.. The tiranny of Greece over Germany. Cambridge: University Press, 1935.

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    5. HERDER. Shakespeare. In: ROSENFELD, A. Autores pr-romnticos alemes. Trad. Joo Hamann. So Paulo: EPU, 1992.

    6. LESSING, G. E. De teatro e literatura. So Paulo: Editora Herder, 1964.8. MACHADO, R. (org). Nietzsche e a polmica sobre O nascimento da tragdia. Rio de

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    letras, 1992. . Ecce Homo. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das letras, 2007. . Aurora. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das letras, 2008.6. SHAKESPEARE, William. Four great tragedies. Nova York: Signet Classics, 1998. . Teatro completo. Tragdias. Trad. Carlos Alberto Nunes. So Paulo: Ediouro,

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    Artigo recebido em 08/06/2011.Artigo aceito para publicao em 10/08/2011.