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Notas para uma discussão: rearticulações sobre o flâneur na sociedade da mobilidade Carlos Alberto Barbosa

Notas para uma discussão: rearticulações sobre o flâneur ... · do texto, que encontra um desenvolvimento também em O flâneur, é, ... o desejo de volta e a impossibilidade

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Notas para uma discussão: rearticulações sobre o flâneur na sociedade da mobilidade

Carlos Alberto Barbosa

“A beleza toda especial de tantos inícios de poemas baudelairianos é: a emergência lá do fundo do abismo”

(Walter Benjamin, Parque Central)

O Flâneur é uma das três partes que compõem o texto A Paris do Segundo Império em Baudelaire, que por sua vez é parte do famoso Trabalho das passagens, de Walter Benjamin. Sobre o conjunto de textos conhecido como Trabalho das passagens, Flávio Kothe (1991) escreve:

“O seu grande projeto teórico é o Trabalho das passagens: além dos ensaios concluídos, restaram anotações próprias e de textos alheios, fragmentos que poderiam vir a ser desenvolvidos. A real importância de Benjamin está exatamente no caráter modelar de certos ensaios e naquilo que a partir de seu impulso pode ser pensado adiante” (p.08)

Luis XVI - 1774 a 1792Rev. Francesa - 1789 a 1799 (Luis XVII 1793 a 1795)Napoleão Bonaparte - 1799 a 1804 (Consulado)Napoleão I - 1804 a 1814 (Primeiro Império)Luis XVIII - 1814 a 1815 Napoleão I - março a junho 1815 (governo dos cem dias)Luis XVIII - 1815 a 1824 (1821 nasc. Baudelaire)

Carlos X - 1824 a 1830 Luis Filipe I - 1830 a 1848Revolução de 1848 (II República - Blanqui)Napoleão III - 1852 a 1870 (II Império) (1867 morre Baudelaire)

Trata-se de um texto de crítica literária, escrito entre os anos de 1937 e 1938, no qual Benjamin discute a literatura de Baudelaire através do confronto com outros tantos literatos de seu tempo. A primeira parte intitula-se A Boêmia, a segunda parte O Flâneur e por fim, a terceira e última, A modernidade. O auge do texto, que encontra um desenvolvimento também em O flâneur, é, segundo Kothe, o trabalho que revela a metamorfose da palavra em mercadoria. Mas aquele não é nosso tema. Nosso tema tem mais a ver com a idéia de flâneur, incluindo-se aí a imagem de um ser inofensivo, alheio ao mundo, onde percorre descompromissadamente caminhos e passagens. O descompromisso é seu compromisso. Ou ainda, para usar a máxima benjaminiana em A origem do drama barroco alemão, seu “método é desvio”.

A Paris do Segundo Império em Baudelaire (parte 2: O Flâneur)

Mas, ao indagar sobre o papel do aparente ingênuo flâneur pintado pelo instigante, intrigante integrante da Escola de Frankfurt (A Escola que nunca foi!), notamos que o flâneur tem diferentes facetas e contradições, que aos poucos se revelam de forma angustiada e tediosa, ao mesmo tempo que inquieta o leitor que ora se sente flutuando sobre um abismo, leve e tranquilo, ora se percebe no fundo desse mesmo abismo, buscando desvelar e entender sua queda enquanto escala o caminho de volta ao topo. São as contradições e a tensão da modernidade presentes não só em Baudelaire e nos diversos flâneurs, mas ecoadas no próprio texto de Benjamin, conforme tão bem apontou Jeanne Marie Gagnebin (1997).

“Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico, que ficaria preso à nostalgia do passado, nem um poeta triunfalista modernoso, que limitar-se-ia à apologia do existente. A sua verdadeira modernidade consiste em ousar afirmar, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade, a força e a fragilidade da lembrança, o desejo de volta e a impossibilidade do retorno, o vigor do presente e a sua morte próxima. Se essa tensão define, na leitura benjaminiana, a modernidade em Baudelaire, talvez possamos afirmar que ela também descreve , na nossa interpretação, a modernidade de Benjamin” (GAGNEBIN, 1997, p.154)

A Paris do Segundo Império em Baudelaire -O Flâneur (passagens selecionadas)

Após apresentar os physiologies, cadernos de desenhos dos anos 1840 que retratavam a Paris cotidiana e prosaica de maneira inofensiva, Benjamin lembra que pouco antes, em 36, os sátiros que evidenciavam as mazelas da sociedade parisiense e da realeza, foram censurados por Luis Filipe I. Entre eles Daumier.

“A pachorra de tais quadros se ajusta ao hábito do flâneur, que vai exercer a sua botânica no asfalto. Mas já naquela época não se podia perambular por toda a cidade [na época de Luis Filipe I]. Antes de Haussmann, eram raras as calçadas largas; as estreitas ofereciam pouca proteção contra os veículos. Sem as passagens, dificilmente a flâneriepoderia ter alcançado a sua relevância” (BENJAMIN, 1991, p.66)

“A passagem ocupa uma posição intermediária entre a rua e o interior de uma residência (...) a rua se torna moradia para o flâneur, que está tão em casa entre as fachadas das casas quanto o burguês entre as suas quatro paredes (...) Que em toda a sua multiplicidade, na inesgotável riqueza de suas variações, a vida medre tão-somente entre os paralelepípedos cinzentos e ante o fundo gris do despotismo - esse era o pensamento secreto dos textos de que os fisiologistas faziam parte” (ibidem, p. 66-67)

“Em pouco tempo, os pequenos calmantes que os fisiologistas preparavam já não valiam mais nada. Pelo contrário, um grande futuro estava destinado à literatura que se atinha aos aspectos inquietantes e ameaçadores da vida citadina” (ibidem, p.69)

“Nas épocas de terror, quando cada um tem em si algo de um conspirador, cada um também chega a ter a oportunidade de desempenhar o papel de detetive. A flânerie é o que lhe dá a melhor chance para isso.” (ibidem, p. 69-

70)

“Se , desse modo, o flâneur chega a ser um detetive contra a sua própria vontade, trata-se de algo que socialmente lhe cai muito bem. Legitima a sua vagabundagem. A sua indolência é apenas aparente. Atrás dela se esconde a vigilância de um observador que não perde o malfeitor de vista. Assim, o detetive vê se abrirem vastos campos à sua sensibilidade. Ele constitui formas de reação adequadas ao ritmo da cidade grande. Colhe as coisas em pleno vôo; com isso, ele pode se imaginar bem próximo do artista. Todo mundo louvou o rápido lápis do desenhista. Balzac em geral quer ligar a maestria artística à rapidez de percepção” (ibidem, p.70)

“Qualquer que seja o rastro que o flâneur venha a seguir, cada um deles há de conduzi-lo a um crime” (ibidem, p. 70)

“Dificilmente se poderia separar da iluminação a gás a aparição da cidade como se fosse o interior de uma casa: nisso é que se sintetiza a fantasmagoria do flâneur. A primeira iluminação a gás refulgiu nas passagens. Na época da infância de Baudelaire é que foi feita a primeira tentativa de usá-la ao ar livre: colocaram-se candelabros na Praça Vendôme. Sob Napoleão III cresceu rapidamente o número de lampiões a gás em Paris. Isso aumentou a segurança da cidade; fazia com que também à noite a multidão se sentisse em casa no meio da rua; suprimia o céu estrelado na paisagem da cidade grande de um modo mais total do que ocorria através dos prédios elevados” (ibidem, p.78)

De que fantasmagoria nos fala o autor? Parecem ser diversas essas fantasmagorias, tais como a vida privada, e seu contrario, ou seja, a sua revelação. A vida pensada, contra a vida vivida, do cotidiano. A exceção que se opõe à regra, à velocidade e ao volume da massa. Os pensamentos íntimos que se revelam quando estamos solitários, anônimos na multidão. São vários os abismos dos quais se emerge.

Na Paris de Baudelaire, segundo Benjamin, “Ainda havia afeição pelas passagens, onde o flâneur escapava ao olhar do veículo, que não tolera a concorrência dos pedestres. Havia o transeunte que se perde na multidão; mas também havia ainda o flâneur, que precisa de espaço para agir e que não quer privar-se de sua privatização. Ocioso, caminhava como se fosse uma personalidade: assim era o seu protesto contra a divisão de trabalho, que transforma as pessoas em especialistas. Assim ele também protestava contra a operosidade e eficiência. Por volta de 1840 fazia parte do bom-tom, por algum tempo, levar tartarugas a passear pelas passagens. O flâneur gostava de deixar que o seu ritmo fosse ditado por elas. Se dependesse dele, o progresso teria de aprender esse pas” (ibidem,

p.81)

“Se a passage é a forma clássica do interieur - e é assim que a rua se apresenta para o flâneur -, a sua forma decadentista é a casa comercial. A casa comercial é a última grande brincadeira do flâneur” (ibidem, p.82)

“A multidão não é só o asilo mais recente do proscrito; é também o mais recente narcótico do abandonado. O flâneur é um abandonado na multidão. Nisso ele compartilha da situação da mercadoria. Tal peculiaridade não lhe é consciente. Mas nem por isso age menos nele. Prazerosamente ela o invade como um narcótico, que pode compensá-lo por muitas humilhações. A ebriedade a que o flâneur se entrega é a da mercadoria rodeada e levada pela torrente de fregueses” (ibidem, p. 82)

“Só na aparência tal ‘insensível isolamento de cada indivíduo em seus interesses privados’ consegue ser quebrado pelo flâneur, à medida que ele preenche o vazio que os seus interesses criaram nele com os serviços prestados e imaginários estranhos” (ibidem, p.85)

“Em Hugo a multidão aparece na poesia como um objeto de contemplação” (ibidem, p. 87)

“Baudelaire não se sentiu movido a acompanhar esse espetáculo da natureza. A sua experiência da multidão trazia os rastros ‘da iniqüidade e dos mil repelões’ que o transeunte sofre no burburinho de uma cidade grande, obrigando-o a manter tanto mais desperta a sua consciência de si mesmo. (No fundo, é exatamente essa consciência de si que ele empresta a essa mercadoria ambulante e flanadora). Para Baudelaire a multidão nunca foi um estímulo que fizesse lançar nas profundidades do mundo a sonda do pensamento” (ibidem, p. 87)

“No mesmo momento em que Victor Hugo celebra a massa enquanto herói da epopéia moderna, Baudelaire busca um refúgio para o herói da epopéia moderna, Baudelaire busca um refúgio para o herói na massa da cidade grande. Enquanto citoyen, Hugo se insere na multidão; enquanto herói, Baudelaire dela se afasta” (ibidem, p. 92)

... e se deu tempo e a paciência ainda se aquieta, um último fragmento.

“Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo, que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão priontas para voar. O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, de acordar os mortos e de reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-las. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade” (BENJAMIN, 1991, p. 157-8)

Referências

BENJAMIN, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: KOTHE, Flávio R. (org.). Walter Benjamin, São Paulo: Ática, 1991, p.44 - 92 (col. Grandes Cientistas Sociais, n. 50)_______________. Teses sobre filosofia da história. In: KOTHE, Flávio R. (org.). Walter Benjamin, São Paulo: Ática, 1991, p. 153 - 164 (col. Grandes Cientistas Sociais, n. 50)_______________. Parque Central. In: KOTHE, Flávio R. (org.). Walter Benjamin, São Paulo: Ática, 1991, p. 123-152 (col. Grandes Cientistas Sociais, n. 50)GAGNEBIN, Jeanne Marie. Baudelaire, Benjamin e o moderno. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história, Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.139 - 154.KOTHE, Flávio R. Poesia e proletariado: ruínas e rumos da história. In: KOTHE, Flávio R. (org.). Walter Benjamin, São Paulo: Ática, 1991, p. 07-27.