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5/20/2018 Notas Vicentinas
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5/20/2018 Notas Vicentinas
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NOTAS
VICENTINAS
Preliminares
duma edio crtica das Obras de
Gil Vicente
5/20/2018 Notas Vicentinas
8/214
**.'.
5/20/2018 Notas Vicentinas
9/214
Carolina
Micliiielis
de
Vasconcellos
Notas
Vicentinas
Preliminares
de
uma
edio crtica das
Obras de Gil
Vicente
I
GIL
VICENTE
EM BRUXELAS
ou
O JUBILEU
DE
AMOR
COIMBRA
IMPRENSA
DA UNIVERSIDADE
1912
5/20/2018 Notas Vicentinas
10/214
Da Revista
da Universidade
de
Coimbra
YOL.
I.
N.'
1
2
5/20/2018 Notas Vicentinas
11/214
NOTAS
VICENTINAS
Preliminares
duma
edio crtica
das Obras
de
Gil Vicente
ttulo
e
subttulo
indicam que
no
farei
apreciaes gerais
da
Obra,
nem
to
pouco
uma
sntese da
Vida
do
maior
gnio
inventivo que
Portugal
produziu.
Restringir-me hei a
ilustrar,
por
meio
de minuciosos
es-
tudos
de
anlise,
pontos
especiais
de
uma
e
outra
coisa, quer
controvertidos,
quer
mal
esclarecidos
at hoje,
quer nunca
exa-
minados.
Tentarei averiguar
factos,
remontando
s
fontes,
sempre
que isso
me seja possvel.
O
tempo,
a
incria dos
epgonos,
e
a
hostilidade
dos
poderes que
no sculo
xvi
superentendiam (de 1 536
em diante)
na divulgao
de
ideias
e
conhecimentos
por
meio
da
imprensa,
dei-
xaram
contudo
perder-se
materiais
muito
importantes
:
as
lacunas
do
nosso
saber
so
por
isso to
numerosas que
no
possvel
passar
sem conjecturas.
Servindo-me
de
indcios
dispersos,
ponderando,
sem
juzo
pre-esta-
belecido,
hipteses
apresentadas
j
por
outrem,
sujeitando
crtica
tradies
e
lendas,
no
dando
f a
nenhumas,
embora
seculares
s
vezes,
exaradas onde
quer
que
seja e por
quem
quer
que
seja,
quando
no forem suficientemente
documentadas, ou
baseadas
em
raciocnios
que
satisfaam, conto
extirpar
erros
velhos,
ratificar
concepes
mal
cimentadas, e substituir
suposies vs por
verdades
autenticadas.
Muito
se
fez
a
favor
de Gil
Vicente
no
sculo
passado,
sobretudo
nos ltimos
decnios, tanto dentro
como fora
do
pas.
Muito
se
est
fazendo
actualmente com
o
nobre
fim
de
nacionalizar
e
vulgarizar
as
5/20/2018 Notas Vicentinas
12/214
6
criaes
do
genial
dramaturgo
que
construiu
os alicerces
do
teatro
peninsular,
erguendo
sobre
eles
os prottipos
tanto
do
Auto simb-
lico,
chamado
calderoniano
por
excelncia, como
do
drama cava-
lheiresco,
da
comdia de
costumes e da
pardia
burlesca.
J
antes
de
Barreto
Feio
e
Gomes
Monteiro
haverem tornado
acessveis
as Obras
Vicentinas, reimprimindo
em
1834
quarenta
e
trs
autos
*
com
quatorze
composies
midas que
perfazem a
Co-
pilao-
de 1
562,
e
ilustrando
tudo
num Ensaio
(com
Advertncia
e
Apndtx)
e
por
meio de
um Glossrio,
vrios investigadores foras-
teiros
haviam
chamado a
ateno do
mundo
culto
para o
sugestivo
e
rico
repertrio do
mais
fecundo
e
mais
individual poeta
cmico pri-
mitivo
da
Pennsula.
Servindo-se
dos
poucos
exemplares
que
da edio
prncipe
sobre-
nadam
3
,
alguns
analisaram
as
peas
mais
caractersticas
4
;
outros
reimprimiram
textos
castelhanos
5
;
ainda
outros os
estudaram todos,
afim
de
dissertarem
sobre
o
teatro
portugus
6
em geral.
Pouqus-
simos
foram
porm
capazes
de
citar,
em
catlogos razoados,
antigas
impresses
avulsas,
porque
essas,
perseguidas
por
no estarem ex-
purgadas,
so
mais
raras
ainda
do
que a
edio completa de i562
e
a
mutilada de i586
7
.
Depois
daquele
servio
relevante,
nunca
assaz
gabado,
a
fama
do
Planto
portugus
e da sua
vis
cmica
intensificou-se poderosa-
mente.
Gil
Vicente
passou
decididamente a
ser
para
os
eruditos
da
especialidade
o
dramaturgo
europeu mais
digno
de
louvores
de
quantos
ganharam
palmas e
louros
na
primeira
metade
do
sculo
xvi
pai
da
comdia
moderna
um
verdadeiro
Lope
de
Vega,
se
nas-
cesse
cem
anos
depois.
Aps
Bouterwek,
F.
Denis,
Sismondi,
o
tradutor alemo da
Os-
mia
8
,
Morvtin,
Boehl
de Faber, Ochoa,
vieram
os
principais
histo-
riadores
das
literaturas
peninsulares, ou do
drama universal. Ne-
nhum
deles
falou
do
teatro
moderno sem
prestar
homenagem
ao
talento
peregrino do
principiador
luso-castelhano
9
.
Clarus
,0
e
Quillinan
,
que
em
1845
e
1846,
desconhecendo
ainda
a
edio
de
Hamburgo,
se
cingiram
s
comunicaes dos ante-
cessores,
foram
depressa excedidos
por
A.
F.
von
Schack
12
,
Jorge
Ticknor
13
,
F.
Wolf
,4
,
Moritz Rapp
u
(cujas
tradues
bilingues
de
alguns
autos
luso-castelhanos
so
tentativas muito
curiosas);
em
Es-
panha por
Barrera
y
Leirado
l6
,
e
dentro do
pas
por
Gosta
e
Silva
*7
.
Nova
poca comeou,
neste
ramo como
em
todos os da
histria
da
literatura
portuguesa,
com
a
actividade assombrosa
de
T.
Braga.
5/20/2018 Notas Vicentinas
13/214
7
Pouco
depois de ele haver
dedicado um volume
inteiro
a Vida
de
Gil
Vicente
e sua
Escola
,s
,
cheio no
s
de
consideraes
e ideias,
mas
tambm
de factos
at ento
desatendidos,
diversos
investigadores
valentes
da
Torre do
Tombo
e de cartrios
de
freguesias
da capital,
descobriram documentos
importantes,
relativos
a
entidades
homni-
mas. Com
esses surgiu a questo da
identidade
ou no-identidade
do
poeta cmico
e
daquele ourives
que, para comemorar
o
descobri-
mento
do
caminho martimo
da
ndia, lavrara
por ordem
de D.
Ma-
nuel
em i5o(>, com
o
primeiro
ouro vindo
de
Quloa,
a
obra-prima
que
se
chama
a
Custdia
de
Belm.
O
problema foi
ventilado
com
vivacidade
durante
anos,
sem
que
aparecessem
argumentos
decisivos
ou
escrituras
em
que
um
Gil
Vi-
cente,
designado
claramente como o
que
fa^ia
os
autos
a
el-rei, fosse
tratado
de ourives
e
autor
da Custdia,
ou
vice-versa
19
.
De
1880
em diante
saram estudos
relativos
principalmente
s
Obras do poeta
:
apreciaes mais
completas
e mais
finamente
ponde-
radas
;
interpretaes
gerais
;
classificaes
fundamentadas
dos
autos
que
o
poeta
chamara
de devoo e
a
servio
de
Deus
enderenados,
das representaes festivas
e
tragicomdias
cavalheirescas,
das
com-
dias
de
costumes
e
faras
populares,
assim
como
das
alegorias
e
s-
tiras
20
;
confrontos
com obras
de
autores
estranjeiros
de
primeira
plana
21
;
tentativas,
vagas
embora,
para
assinar
ao pensador
portugus
lugar conspcuo,
bem
se
v, nos
dois grandes
campos
de
batalha
onde
se
remodelara a vida
e
o
esprito
medieval
2a
: o
da
Reforma
e
o
do
Renascimento.
Vieram
belos ensaios
sobre as partes lricas
dos Autos,
que so
valiosos
espcimes de
poesia popular, no gnero
arcaico
das cantigas
de amigo,
serranilhas, albas,
barcarolas,
cantos de
romaria,
que
co-
nhecemos pelas imitaes
palacianas
dos
trovadores
galego-portugue-
ses
s3
.
Vieram
indagaes
genealgicas
24
e
estudos
histricos
sobre
a Gente
do
Cancioneiro, que em
grande
parte
a
mesma
que na
corte
de D. Manuel
assistiu s
representaes scnicas
de
Gil
Vicente
25
.
Veio
finalmente
como
subsdio
utilssimo um
ndice de
nomes
e
de
coisas nelas
mencionadas
26
.
Com
o
quarto
centenrio
do
teatro
nacional,
o
interesse
pelas
criaes
vicentinas
avivou,
e no mais tornou
a atrouxar-se. Digna-
mente
preparada
por
todos
os
escritos
a
que acabo de
aludir,
e
par-
ticularmente
pela
reelaborao
dos primeiros
volumes da
Histria
do
Teatro
Portugus
que
T. Braga realizou
* ,
aproveitando
e interpre-
tando
sua
maneira,
em combinaes
s
vezes divinatrias,
todos
os
5/20/2018 Notas Vicentinas
14/214
8
achados e
argumentos
dos
colaboradores,
e
tambm
por
uma
home-
nagem
nobilssima do
maior
historiador
vivo das
literaturas peninsu-
lares
28
,
essa
festa
portuguesa ocasionou contribuies
numerosas
de
muito
bom
quilate.
Merecem
aplausos
qusi
incondicionais
as snteses biogrficas,
conscienciosas
de
J.
I. Brito
Rebelo
a)
,
A. Braamcamp
Freire
30
,
e
as
contribuies
de
Sousa
Viterbo
31
,
baseadas
em
documentos,
de
qualquer
modo
vicentinos,
que
se guardam no
Tesouro
do
reino.
Tenho
em
devido
apreo os
opsculos
filolgicos de Leite
de
Vasconcelos
S2
e
Gonalves Viana
33
,
relativos
linguagem
do
poeta
os
de
J.
J. Nunes sobre cantigas
paralelsticas,
quer colhidas
na
boca
do
povo,
quer
compostas
segundo
as
normas
populares,
quanto
ao
texto,
e
quanto
coregrafia
34
',
as dissertaes
que
G.
de
Vasconce-
los
Abreu
35
e
o
ingls
William
E. A. Axen
36
dedicaram
ao
lindo
tema internacional da
Mofina
Mendes;
e
tambm
as
notas crticas
em que
um
historiador
germnico
do drama
italiano
e
das suas
rela-
es
com a
comdia
peninsular se
refere
a
problemas
vicentinos,
ainda
no
suficientemente
esclarecidos
37
.
Acho
digno
de
todo o
elogio o modo como
o Dr. Mendes
dos
Remdios
facilita
o
estudo
do
poeta
a
todos
aqueles
a
quem
o
amor
ou
o dever
profissional
aconselha
ou
impe
o
conhecimento
das
nossas
mais legtimas glrias literrias, oferecendo-lhes
em edio
correcta, econmica,
muito
bem
prefaciada,
a
parte
portuguesa
da
Copilao de
i
52
38
.
Rejubilei,
como
todos os bons
portugueses,
com o achado
duma
comdia
avulsa, inteiramente
desconhecida,
e
com
sua publicao
em
fac-smile,
pelo
feliz
possuidor,
o
Conde
de
Sabugosa,
acompanhada
de
leitura crtica,
e um prembulo
que se
l
com subido
gozo
inte-
lectual
39
.
Agradam-me
sobremaneira as
tradues
em
vernculo, de
peas
originariamente
escritas em castelhano, e
as
resurreies
teatrais,
iniciadas nos
palcos modernos,
de
1898
em
diante, com
o
Auto
Pas-
toril
Portugus
40
,
continuadas depois com
scenas
avulsas
41
,
com
a
encantadora
nacionalizao
do
Monologo do Vaqueiro
4
,
e recente-
mente
com
a
adaptao
da
Barca
do
Inferno
43
empresas
generosas
que,
comentadas
em
conferncias
e
prlogos artsticos
44
,
j
comeam
a sugestionar
a
mocidade,
como se v
no
s
em
impresses
separa-
das de certas
comdias
de
costumes
(por exemplo
do Auto da
ndia)
45
e
de scenas caractersticas como a
do
Fidalgo
Presunoso, mas
tam-
bm em representaes de amadores
46
.
5/20/2018 Notas Vicentinas
15/214
9
Voltando
para
trs,
preciso
registar
ainda
os
artigos
anteriores
a
1800.
Kles
so
muito
poucos. Como
sempre
em
questes de
hist-
ria
de
literatura
peninsular,
Nicolas
Antnio
quem principia
47
,
e
Barbosa
Machado
quem
continua,
ampliando
,,s
.
Kste
hauriu
lendas
e
anedoctas
nas prosas
de
Faria
e
Sousa
4
,
verdadeiro benemrito das
letras
portuguesas,
apesar
de ter
sido
no s
receptador e
propagador
de
todas
quantas
fbulas
engalanaram
a
histria
nacional,
mas
tambm
inventor,
isento de
escrpulos,
de
muitas
outras,
relativas literatura,
e
essas
muita
vez
injustas,
caluniosas,
fantsticas.
Juntamente com esse
polgrafo, figura
na Biblioteca
Lusitana
mais
um
seiscentista
elogiador de Gil
Vicente: Sousa
de Macedo,
autor
das Flores
de
Espana,
e
da
Eva
e
Ave
50
.
Dos
coevos,
que
de passagem
haviam
louvado
o
poeta cmico,
Garcia
de Resende
na
Miscelnea
51
,
J00 de
Barros
32
e
Fernm
de
Oliveira
53
nas
suas
Gramticas, e
Mestre
Andr de
Resende
no
poema latino
relativo
s
festas de
Bruxelas, de
que
logo
falarei
Barbosa
Machado s
cita
este ltimo, encostando-se
porem
a
Severim
de
Faria,
que
j
trasladara
em
1624
o
passo
encomistico
inteiro no
seu
Discurso
da
lngua portuguesa
54
.
Tendo
enumerado tantas e
to valiosas
contribuies
(de prop-
sito,
porque
terei
de
referir-me
a
muitas,
mais de
uma vez),
devo
repetir,
para
explicar
o
fim
e
as tendncias
destas notas, que h ainda
assim
muitssimos
pontos
obscuros
e
duvidosos
tanto
na
biografia
como
na
bibliografia
e
nas
obras de Gil
Vicente,
por
causa
da escassez
de
estu-
dos
especiais,
e
pela
tendncia
dos psteros
para
aceitarem
como
ouro
de
lei
o que
algum predecessor
de
vulto
e fama afirmara, sem o
pro-
var.
A
crtica dos textos
mal est
iniciada. Quanto
intelectualidade
e
psique do
autor,
qusi
tudo est por fazer.
Desconhecemos as
fontes de
onde
emanou e se alimentou a
sua fecunda
veia popular,
o seu lirismo
incomparvel. No sabemos nada
certo
dos seus
estudos,
pouqussimo
da
sua cultura literria, haurida (como,
com
excessiva modstia,
ele ingenuamente confessa) em metros e
prosas
de
antigos e
modernos,
tam
florescidos
de
scientes
matrias, de
graciosas
invenes,
de
doces
eloquncias
e
elegncias .
,
que
no leixaram
cousa
boa por di^er, nem inveno linda por achar, nem graa por desco-
brir
55
.
Ignoramos por
igual
as determinantes
da
sua ndole
to gene-
5/20/2018 Notas Vicentinas
16/214
IO
rosamente
democrtica, do amor
com
que
defende
os
fracos, humildes
e
perseguidos,
e
da
audcia
irreverente
com que castiga
os
tiranos
e
admoesta
juzes
e
prelados,
clrigos
e frades degenerados, sobretudo
os padres
frei-paos
aduladores,
requintadamente
mundanos
e
co-
biosos,
que enxameavam
na
corte de D.
Caterina e D.
Joo
III.
Qualidades
estas
que
maravilham
num poeta
ulico,
cliente
desses
mesmos reis
(aos
quais
distribue,
no
obstante,
s
mos
cheias,
o
incenso
dos seus louvores
entusisticos);
qualidades
que
por isso
le-
varam os
mais
argutos crticos a dehnir judiciosamente
a
sua
posio
na
corte como
a
dum
jogral ou
histrio,
com liberdades
e
licenciosida-
des de
bobo,
de
que
se servia
para
censurar
e
filosofar
impunemente.
Nem
est
bem
definido,
apesar
das
tentativas
a
que
aludi,
o lugar
que
lhe
compete
entre
os
cultos
da
nao na
agitadssima
idade
de
transio
em
que viveu.
No
nestas Notas
(que comeo
a
publicar,
conquanto
nem
de
longe
d por
concludos
os
meus estudos preparatrios
para a
magna
empresa
que
desejo
realizar)
que
poderei expor como Gil
Vicente
sem
estar
enfileirado
em
qualquer
partido
ou
seita,
e
sem ser
huma-
nista
ex
qfficio
era
erasmista,
acrrimo
propugnador duma
reforma
das
almas
e dos
costumes
religiosos, dentro dos
limites
da ortodoxia;
e
que
foram
exactamente
os humanistas
que
o
hostilizavam,
particular-
mente
os
homens
de bom
saber, como
S
de
Miranda:
os
do Estilo
novo
que,
desprezando
a
tcnica
tosca
e
infantil dos
Autos e a indis-
ciplina
da
fantasia
medieval,
divinizavam
em
artes
e
scincias
o
re-
nascimento
do mundo
clssico.
Espero
todavia
esclarecer
alguns
pontos nodais
desse
tema,
espa-
lhando
raios
de
luz
em
diversas
direces.
Como um erro
costuma,
propagando-se,
gerar outros
erros,
assim
tambm a
simples
averiguao
duma data, dum
facto
incgnito,
a
rectificao
dum
passo
deturpado por tipgrafos ou copistas,
a an-
lise minuciosa
de
vocbulos
tcnicos
5
>,
a crtica de lendas
tradi-
cionais,
passa-nos
algumas
vezes
s
mos
o
fio
de
Ariadne
que
conduz
atravs
de um
labirinto
de
suposies arbitrrias e
de
ideias
contraditrias.
Logo na
Nota
I
teremos
um
bom
exemplo
desse
fenmeno.
O
meu
fim
a
apurar
qual
foi
o
auto
de
Gil
Vicente, a cuja
representao
em Bruxelas
assistiu
o
douto
humanista
e
antiqurio
5/20/2018 Notas Vicentinas
17/214
II
Mestre
Lcio Andr
de
Resende;
importantssimo
por
ser
o
auto
nico
de
que consta
fosse
enscenado
fora
da
pennsula
;i7
,
em
vida
do
poeta,
perante
um pblico de
convidados estranjeiros^ e portugueses;
nico
tambm
que
inspirou
ao
patrcio
um
elogio
potico
em
lingua-
gem
internacional,
capaz
portanto
de
ser ouvido pelos
espritos cultos
que
representavam a
opinio
europeia, e
de assim dar ao
poeta
c-
mico
aquele
renome
geral
de
que
falam,
com
exagero,
os
bons
pa-
triotas.
Expondo
que
esse auto no
podia ser
a fara
inocente e incoerente
da
Lusitnia, como
at
h
pouco
todos
pensmos, mas
foi uma
stira
violenta contra
a
Igreja
e os seus
representantes,
ironica-
mente
entitulada
Jubileu
de
amor
(ou
de
amores)*
stira
to
des-
bragada
que o
legado
da
Cria,
presente
festa, julgou
estar
na
Saxonia
e
ouvir
Lutero;
narrando
como
esse
prelado
inculpou o
autor
e
o
auto em
carta
para
Roma ; e como exactamente
esse
auto
incriminado (com mais outros dois,
provavelmente
de
tendncia igual)
foi
condenado
e
exterminado:
derramo
ipso
facto
luz
sobre
o
credo
liberalssimo, anti-clerical, do
poeta, que,
consciente ou instintiva-
mente (repito-o)
lutava
por uma Reforma religiosa
no sentido eras-
mista
das almas,
das
mentalidades
e
dos
costumes,
exactamente
por
ser profundamente religioso,
no
s
cristo,
mas cristianssimo.
Para
frisar
melhor
esses
factos,
tenho de pr em foco os persona-
gens
mais
intimamente
relacionados com
a
representao
em Bruxelas
e
com
a
condenao do
Jubileu de amor, do
Auto
da Aderncia
do
Pao e da
Vida
do
Pao. Dum lado
o
acusador
Aleandro,
um
dos
humanistas mais
eruditos, benemrito renovador
dos estudos
gregos
;
o
revedor
dos
livros
Frei
Jernimo
de
Azambuja
(Oleaster),
que
representou Portugal
no Conclio Tridentino;
o
Inquisidor Geral
destes Reinos, Cardeal Infante
D. Henrique;
Frei
Joo Soares,
Bispo
de
Coimbra e mestre
dos
malogrados
principezinhos
D.
Manuel,
D. Fe-
lipe
e
D.
Joo.
Afastado
desses
ortodoxos,
mas
no muito,
ficar
o
Embaixador
D.
Pedro
Mascarenhas,
estendendo
s uma das
mos
aos
do segundo
grupo.
Neste veremos
um pouco ao fundo Ni-
colau
Clenardo,
chamado
de
Lovina
para ser
professor
de retrica
dos filhos de D.
Manuel,
sobretudo
do
Cardeal D. Henrique;
e ao
p
dele
o seu comensal
e
amigo,
o
escultor
francs
Nicolau
Chatranez.
Em plena luz, perto
do
Embaixador
e
do Cardeal,
Mestre
Andr
Lcfo
de
Resende, na
companhia
de Damio
de
Ges. Ambos em
conversa
com
Erasmo,
o
grande
sbio de Rotterdam
que
eles vene-
ravam
e
preconizavam,
de
i53o
a
1
536,
com entusiasmo indicador
5/20/2018 Notas Vicentinas
18/214
12
de afinidade
electiva
com
o
agudo
esprito crtico,
anti-escolstico e
anti-monacal,
do
grande
sbio
que
a
Igreja
perseguiu
como
precur-
sor
e
principal
culpado
da
scisao religiosa.
Terei de
lembrar que a
este inovador devemos,
alem de
inmeros
trabalhos
filolgicos
greco-latinos,
os
Colquios e
Adgios,
o
notrio
Encmio
da Folia,
ilustrado
por
Hans
Holbein,
e
milhares
de cartas,
entre as
quais
h diversas a
Resende e a
Ges.
Em
uma
delas
gaba
e
agradece
o
poema
latino do
Eborense,
relativo
s
festas
de
Bruxelas,
com
esmerada
cortesia,
naquela
dio
elegantssimamente
familiar
que
o
distingue.
Assim chego a
explicar
tambm
qual
foi
o germe
da lenda,
falsa
mas
significativa,
de
Erasmo
haver aprendido
a
lngua
portuguesa,
para poder
deleitar-se
com a
leitura dos
Autos
do
melhor
poeta
cmico do
seu
tempo,
ao
qual
(dizem) foi ele
que
aps o
sobrenome
de Plauto
portugus,
sem
se lembrarem
de
que
de
Plauto
j
se
falara
no
poema
latino de Mestre
Andr.
Mas
no
antecipemos. Entremos
finalmente
in
medias
res.
Dedico
esta
Nota
I
aos
manes
de
Sousa
Viterbo,
por ser esse
in-
cansvel
trabalhador
quem mais
proficientemente
tocou o mesmo
as-
sunto
59
.
No
o
esgotou
por no ter seguido at
sua
nascente
a
corrente
de
gua
viva que encontrou. Nem
mesmo
elucidou bem
a
parte
principal
do problema,
deixando
tambm sem
soluo
a
secun-
dria,
das
datas.
Na
incerteza,
aventurou,
pelo
contrrio,
conjecturas
novas,
insustentveis,
p.
ex.
a da ida
de
Gil
Vicente
a
Bruxelas, com
a
sua
companhia, para l
exibir
peas
suas,
como
auctor et
actor.
Em
todo o
caso
foi
le
que, inteirando-se,
durante leituras
bem
escolhidas,
de
um
facto
at
l
ignoto
em
Portugal,
reconheceu
e
revelou a
inanidade
da
ideia que
desde
1834
vigorava
a
respeito
do
auto
representado
em
Bruxelas em
casa
do
Embaixador
Mascarenhas,
para
celebrao
solene
do nascimento
dum
herdeiro
presuntivo
da
coroa
de
D.
Joo
III,
sobrinho portanto
do
Csar,
junto
ao
qual
estava
acreditado.
Foi
le
que com
as
suas
afirmaes
e
suposies me
levou
a con-
tinuar com
afinco
maior nas
minhas indagaes
prprias at
chegar
ao fim
almejado.
A
le
pertence de
direito esta Nota
I.
5/20/2018 Notas Vicentinas
19/214
;3
Se
vivesse,
com
que
sincero
regozijo teria
aclamado
e
propagado
as minhas novidades,
filigranando
volta
delas
recamos
delicados.
E
talvez
at descobrisse,
no
seu
riqussimo
tesouro
de
documentos,
algum
que
o
levasse
a
discriminar
pormenores
que no
cheguei
a
fixar,
como a
data
da ida
de
Pedro
Mascarenhas
aos Pases
Baixos,
o
motivo
que
levou
os
reis
de
Portugal
a vila
de Alvito,
a figura
por-
tuguesa de
Speratus
Martianus Ferraria
(filho
dum
feitor),
elogiado
de
Resende, e a
romana
de
Sanga,
o
correspondente
de
Ai.eandro,
que
com Bari
teve
de dar
andamento
s iras
do
Legado,
apontando
aos
censores
peninsulares,
como digno
de condenao
total,
o
Jubileu
de
amor e outros
dois
autos
vicentinos
de
tendncia
anti-clerical.
5/20/2018 Notas Vicentinas
20/214
5/20/2018 Notas Vicentinas
21/214
Oil
Vicente
em
Bruxelas
i.
O
Auto
da Lusitnia,
representao
festiva
e
qusi
tragicom-
dia
(visto
que
se
trata
por altas
figuras
e
com
doce retrica e
escolhido
estilo), colocada
todavia
antre
as Faras
60
por
motivos
que
no
par-
grafo
respectivo
indicarei,
est
precedido duma
cota que,
insuficiente
embora
para a
nossa
curiosidade,
preciosa
como
todas
as que
acom-
panham
as
obras
do Poeta
6I
.
Ela
diz
:
Afara
seguinte
foi
representada ao
muito
alto
e
poderoso Rei
D.
Joo
o
ter-
ceiro
deste
nome em
Portugal, ao
nascimento do
muito desejado
Prncipe
D.
Manuel
seu
filho,
era
do
Senhor
1 532.
O
poema
latino
em
que Andr
de
Resende
descreve
as
festas, cele-
bradas pelo
mesmo
sucesso na
residncia
brabantina
de Carlos
V,
tem
o
ttulo
seguinte
Genetliaco
(Festa
Natalcia)
dum
Prncipe
Lusitano,
como
foi
celebrada
na
Bl-
gica pelo
preclaro D.
Pedro
de
Mascarenhas,
embaixador
rgio,
no ms de
dezem-
bro
de
i532.
L. Andr.
Resendii
Genethliacon
Principis
Lusitani
ut
in
Gallia
Blgica
celebra-
tum
est
a
viro clariss[imo]
D. Petro
Mascaregna
rgio
legato,
Mense
Decembri
MDXXXII.
Do
lugar,
das
datas,
do
Prncipe,
dos
textos,
tratarei
mais
adiante.
A
identificao
da
Fara feita ao
nascimento
do
Prncipe
D.
Ma-
nuel
e da
representada
em
Bruxelas
ao nascimento
dum
Prncipe por-
tugus, sem nome,
mas (aparentemente) no
mesmo
ano
indicado
por
Gil Vicente,
era
naturalssima, forosa.
Para
a
realizar, nem
era
pre-
ciso
estudar
as
obras
ambas,
cuidadosamente.
Bastava
reler os onze
5/20/2018 Notas Vicentinas
22/214
li)
versos
de
Resende
relativos a
Gil
Vicente,
j
reproduzidos, conforme
contei,
por
Severim
de
Faria, e
posteriormente
por
Barbosa Machado.
Assim fez
Gomes
Monteiro,
o
primeiro
escritor que,
repetindo-os,
re-
lacionou
mutuamente
os
dois
textos
62
.
E
verdade,
verdade
:
quem os
conferisse por mido, divertindo-se
com
o
humorstico
Auto,
alegremente
preludiado,
e lutando
corpo a
corpo
com
o
complicado
e
laborioso Genetliaco, no encontrava
ind-
cios
que
desmentissem
formalmente a
hipottica
identidade
dos
Autos.
Antes
encontrava
indcios confirmativos
dela.
Gil
Vicente
fala
no texto
da
Lusitnia
do Prncipe
Nosso
Senhor
63
,
sem
nos
dizer
o
seu
nome,
ao contrrio
do
que
fez pouco
depois,
ao
celebrar o
nascimento
do
Infante
D.
Felipe, outro filhinho
de
D. Cate-
rina
e
D.
Joo
III,
com a
Romagem
dos
Agravados, preludiada
pelo
Prlogo do
Padre
Frei
Pao
6i
.
Compensou
todavia essa omisso,
dando ao
nefito
o
epteto
de
muito desejado, e
designando expressa-
mente a
vila
de Alvito
como
lugar
do
fausto
acontecimento
65
.
Como
as
didasclias
no
so
dignas
sempre de
crdito
inteiro
(na
opinio
de
alguns crticos
modernos, e tambm
na minha
que
tenciono expor e
documentar
no
futuro),
no
alego
como
prova
a
j
citada,
em
que
nos
transmitido
o
nome
D.
Manuel.
Resende,
esse
revela na
Dedicatria a D. Joo
III
o mesmo
porme-
nor
de o
herdeiro da
coroa
ter
sido muito
e
desde longo tempo dese-
jado
:
publicis
omnium
votis
desideratum
et
a
diis
tandem
immortali-
bus
impetratum,
facto que os
Anais
da
historia e
os
da arte
portuguesa
atestam
com relao
a D.
Manuel
66
,
como
vinte
anos depois
o
atestaram
com
relao
a D.
Sebastio,
nico
dos
quatro
desejados
que
todos
conhecem,
por
ter
chegado
a
ocupar
o
trono
e a
perd-lo
tragica-
mente, em
Alcacer-Quebir.
Nos
versos
em que
o
Eborense
fala
de
Gil
Vicente e do seu
Auto,
ele
participa
ao
monarca
o
seguinte
Depois
(i.
-depois
dum
lauto
banquete e
dum entrems
bquico)
foi
repre-
sentada
com
grande aplauso de
todos,
uma
comdia
j
anteriormente enscenada
nos
paos
rgios
lusitanos
por
Gil,
autor
e
tambm
actor
67
,
eloquente
e
habilssimo
em
di\er
verdades
disfaradas
entre
faccias
;
Gil
acostumado a
censurar
[maus]
costumes
entre
leves
gracejos.
Se
no
escrevesse tudo em
romano
vulgar,
servin-
do-se
antes do
idioma
latino,
teria
ganho
renome
no
menor
que o de
Menandro na
Grcia,
ultrapassando
ainda
a graa
maliciosa,
o sal
tico de
Plauto
69
o
Romano,
e
a
lepide\ dos
escritos de Terncio,
tanto
quanto esses
deixaram atrs de si os
res-
tantes
que
em
plpitos
70
,
orvalhados
(unguentados) com a
linfa
do
Parnaso,
mere-
ceram
palmas
festivas.
5/20/2018 Notas Vicentinas
23/214
Frontispcio
do Foema
de
Andr
de
R.
sende,
relativo
s Festas de
Bruxelas.
5/20/2018 Notas Vicentinas
24/214
5/20/2018 Notas Vicentinas
25/214
Em
nota
marginal explica:
Gil Vicente
poeta
cmico, conforme
se v
no
fac-simile
junto
71
.
Cucflor
henc
acfta
magno
comeeda
plaufu,
Gllo
Vin>
Quam Lufitana
Gllo
audtor,et
adoryn
aula
taComicus
Eg
erat
ante
7
dicax
5
arq?
inter
uera
tacetu3.
GllOjocis
leuib.dodus
perftringere
mores.
Qui
f
non
lngua
componeret
omnia
uulg,
Etpotius
Latia,non
Gradeia
dodaMenandrum
Ante
uumferret,nec
tam
Romana
theatra,
Plautinos
ue
alei$,lepidi
uel
cripta
Terent
laftarent.
tanto nam
Gllo
pr^iret
utrifq?,
Quanto
1
11
relquis
}
inter
qui
pulpita
rore
Obhta
CoryciOjdigtum
meruere
fauentem.
Versos de
Andr
de
Resende
relativos a Gil Vicente.
2.
Logo
tornarei ao
Genetlico.
Por
ora
convm
notar apenas
que
a
identificao
de
Gomes
Monteiro
foi
adoptada
por
todos
e
repetida
a miude por nacionais e
estranjeiros.
Por mim tambm
'-.
Ningum
reparou em que a
caracterstica
de Gil como
satrico
mordaz,
habilssima em di\er
verdades
duras disfarando-as
entre
faccias,
no
condiz
com a franca
alegria que
reina
na
fara festiva
da
Lusitnia,
pardia burlesca de manias inocentes de
arquelogos, isso sim;
mas
no
juvenalesca. Creio
que
todos
a
referiram
o
conjunto das
suas
obras,
imaginando
que
Resende
as
podia
e devia conhecer to
bem
como
ns,
ou
melhor
do
que
ns.
Ainda assim,
essa
identificao errnea.
Sousa
Viterbo lanou
o
alamir em
1903.
No artigo citado
mais
acima
ministrou-nos
dois
elementos
para
a
soluo
definitiva.
O
pri-
meiro
uma
carta
indita,
relativa
s
festas
de
Bruxelas,
escrita
pelo
prprio D.
Pedro de Mascarenhas
ao
Secretrio
de
D.
Joo
III,
carta
curiosa
qual
terei
de
dedicar
tambm
um
pargrafo, mas
sem
reve-
laes
que importe
memorar
no
princpio
da
discusso.
O
segundo
elemento,
e esse fundamental,
provm
de uma
obra
onde
ningum
o
procuraria : da Histria da
Reforma
Religiosa
em
Alemanha
de
Fr.
von
Bezold
73
. Nela (entenda-se :
na
sua verso
hespanhola
''*)
2
5/20/2018 Notas Vicentinas
26/214
encontrou
o
solcito
investigador portugus
um
trecho
que
apresento,
transposto por
mim
em
vernculo,
directamente
do
original:
.
..
refere
Aleandro
que
o
embaixador
portugus
tinha
feito
representar
no
in-
verno de 1
53 1
em
Bruxelas perante os
legados
e
os nobres
mais graduados
da
corte
imperial uma
comdia
que,
pelo ttulo, devia ser
Jubileu
de
amor
~'
3
,
mas
que
desde
o principio
at
o
fim
no era
seno
unia srie
de
criticas
acerbas
contra Roma
e
o
Papa.
Para esta
representao
um
dos
actores havia
obtido um
autntico barrete
cardinalcio
:fi
,
da
prpria
casa
do
nncio; todos
(diz
Ai.eandro) riram tanto
que
o
mundo
parecia
desfeito em
jbilo;
mas eu
com
o
corao a
sangrar
julgava
achar-me
na
Saxnia
e
ouvir
a
L
itero,
ou
estar
no
meio dos
horrores do
Saque de
Roma Muitos dos
cortesos (acrescenta o Legado) no
se
atreviam
a
falar
publicamente
de
Lutero;
indemnizavam-sc,
porem,
de
certo
modo
desta
privao,
levantando
a
Erasmo
s
nuvens.
Julgo do meu
dever
comunicar
tambm
o
teor
original.
Aleander
erziihlt
von einer
Komodie,
die im Winter 1 53
1
der portugiesische Ge-
sandte
zu
Brussel vor ihm und
den vornehmsten
Herren
des
kaiserlichen
Hofs
auf-
fuhren
liess. Dem
Namen
nach
solhe es ein
Jubelfest
der Liebe sein; aber von An-
fang
bis
zu
Ende
drngten
sich
die
Ausflle
gegen Rom und
den
Papst
;
und
noch
dazu
hatte
sich
einer
der
Darsteller
ein
wirkliches
Cardinalsbarett aus dem
Haus
des
romischen
Legaten
selbst
verschafft;
alie
lachten
derart dass die
Welt
in
Jubel aufgeliJst schien und
ich,
dem das
Herz blutete glaubte mitten
in
Sachsen
zu
sein,
Luther zu
horen,
oder
mich
in den
Griiueln der
Plunderung Roms
zu
be-
finden
78
.
3.
O
grifo meu. Nem
Bezold,
nem o traduetor
castelhano,
nem Squsa
Viterbo
perceberam
que
Jubileu
de amor
constitue
o
ttulo
da
comdia
representada.
O
ltimo
reconheceu
todavia
que
os
traos
mencionados por
Aleandro no
quadram ao Auto
da
Lusitnia.
Os
amores alegricos da menina
e
princesa Lusitnia
com um
prncipe
hngaro, chamado Portugal,
so francamente
alegres.
No ha neles
diatribes contra
Roma, o
Papa,
a Igreja, os eclesisticos;
nem
figura
alguma
que pudesse
trajar
de
bispo
ou
cardeal.
Ha, isso
sim,
como
interme^o
divertido,
dois
diabos
menores,
que,
funcionando
como capeles de deusas
pagans, arremedam
descara-
damente ofcios
divinos
de
altar
e
escutam
e
assentam
depois
o
dilogo
admirvel entre
Todo
o Mundo
e
Ningum
particularidades que,
por
documentarem
o
esprito livre
e parodstico
de Gil
Vicente, levaram
os Censores
do
Tribunal
Inquisitrio
a
condenar
o
Auto
da
Lusitnia,
condicionalmente.
Em vista dessa desconformidade,
Sousa
Viterbo
comeou a duvidar
5/20/2018 Notas Vicentinas
27/214
io-
da
justeza
da
antiga
interpretao.
Os
seus
clculos
culminam
na
sentena
que
outra
seria
a
comdia.
Hipoteticamente
aponta
o
Auto
da
Feira
e
o
da Barca
do
Inferno,
por
neles
haver
censuras
assaz
violentas
da
corte
pontifcia
e
dos
maus
sacerdotes.
Alem
disso
aventura,
conforme
j
deixei dito,
a suposio
que
Gil
Vicente
fosse
pessoalmente
com a sua companhia a Bruxelas,
deslum-
brando
a a
Resende
com o seu
duplo
talento
de autor
e
actor
'',
e
le-
vando
o grande
Erasmo,
o
qual
imaginava
presente
festa, a aprender
portugus
80
. No
reparou
que
actor
no
original
se
refere
represen-
tao
realizada em
Portugal, onde
seguramente
o
Poeta
se
havia
en-
carregado
do
papel
de
Argumentador ;
nem calculou
que
o
prazo
de
dois
meses
seria
insuficiente para a
composio
e enscenao
do
Auto.
Quanto
mais contando a
viagem
a
Bruxelas.
Expe todavia
essas
conjecturas
com a
reserva
e
o
discernimento
prprio
do
seu esprito
sensato.
4.
Conjectura
diferente foi pouco
depois emitida
pelo
benemrito
apresentador
do
Auto da Festa,
empenhado em conciliar
a
concepo
antiga
com
os
factos
patenteados
de
novo.
O
Conde
de
Sabugosa supe
que haveria duas festas em
casa do
embaixador:
a
primeira para
celebrar
o
nascimento
do
Prncipe D.
Ma-
nuel,
com
a
representao
do
Auto da
Lusitnia,
descrita
por
Mestre
Andr;
a
segunda, a que se alude
na Histria
da
Reforma,
com
qualquer
outra
comdia de
Gil Vicente.
Mas tambm
no
diz
qual, pela
sim-
ples
razo de
no
haver na Copilao de
i52
nenhuma
que
corres-
ponda
aos
sinais
indicados
por
Aleandro
8I
. S
cita,
em
Nota,
umas
consideraes
minhas,
hoje
sem
valor,
conquanto
continue
a
ser
ver-
dade
pura a
afirmao que a
fao
de que um barrete de
cardeal
no
podia
figurar seno na Barca da
Gloria.
De
mais
a
mais, a Barca
da
Gloria (de 1 5
19)
drama belssimo, impressionante, de
profunda
religiosidade
que no
podia
indignar
ningum, nem
condiz com
o
que
Aleandro
conta
das invectivas
contra
Roma
era
imprpria
para
fun-
o
festiva, aps opparos
banquetes e
sacrifcios
repetidos
a
Baco.
Prometi
na
ocasio fazer mais
algumas
declaraes
quando chegasse
a
publicar a Trilogia
das
Barcas, com
a qual
resolvo
iniciar
a
edio
crtica
dos
textos.
O
ttulo Jubileu de
amor, que eu
conhecia como
o
duma comdia
em lngua
lusitana, condenada nos ndices Expurgatrios,
j
havia des-
pertado
em
mim
a esperana
de
encontrar
elementos
elucidativos, se-
guindo
a
pista
aleandrina. Tardou
todavia
a
realizar-se.
*
5/20/2018 Notas Vicentinas
28/214
20
5.
Para
falar com
conhecimento de causa
da concepo
transcen-
dental da
vida de alm-tmulo,
que
Gil Vicente
exteriorizou
nas
trs
partes
da
sua
Divina
Comdia,
estudei dum lado a
literatura
relativa
s
Danas
Macabras
medivicas
em
diversas
histrias
das
religies
(de
Max
Mueller
a
Salomon
Reinach),
e
do
outro
lado
certas
obras
de
Erasmo,
Ulrico
von
Hutten,
Lutero, e
outros reformadores
ou
precursores
da
Reforma,
e
tambm
alguns
dos
principais
escritos
que
lhes
dizem
respeito
82
.
Numerosas
vezes
me
encontrei nessas
pesquisas
com
Aleandro,
no
tanto com
o
eruditssimo fautor
dos
estudos helnicos
como
com
o
antagonista
fantico
dos
dissidentes:
figura
rgida
de
Torquemada,
mais
papista do
que
o
prprio
Papa,
que
pouco
a
pouco
se
foi
dese-
nhando na
minha
retina, no
s como convicto
e
acrrimo
adversrio da
scisso
religiosa,
mas
tambm
como
inimigo
pessoal dos
dois
hericos,
activos,
mas
igualmente
fanticos,
adversrios
principais da
horrenda
dissoluo e
devassido
romana,
que
vira
e
aturara um
Alexandro
Brgia
mas
especialmente de
Erasmo, o
problemtico,
cujo
amigo
e
correspondente
fora
durante
anos.
Sabendo
que
na
sua
vasta
correspondncia
oficial
e
semi-oficial,
guardada
nos
Arquivos do
Vaticano,
existiam
cartas relativas
s
misses
desempenhadas
junto
ao Csar,
em
i52i,
1D26,
1 53
1
e
1
538,
suspeitei
que
em
qualquer
delas
haveria
referncia
comdia de Gil
Vicente,
a
que
assistira.
Se
no nela,;
onde
podia ter
haurido
o
seu
saber
o
historiador da
Reforma?
E
felizmente
no
me
enganei
s3
.
6. Eis o
que
o
Nncio do
Papa
Clemente
VII,
enviado
ao
Norte
afim
de
impedir
o
convnio
entre
Catlicos
e
Protestantes*'* (que
apesar dos
seus
esforos
se realizou
pouco depois,
na
paz
de
Norim-
berga, a
28
de
agosto
de
i532)
relata a um
correligionrio
influente,
indignadssimo pela
extrema
liberdade
com que
em
festa
solene um
sbdito do
Rei
fidelssimo
trovejara
contra Roma:
.
. .
Framos
convidados
para
o
dia
de
Santo
Toms,
o
Reverendo
Legado,
eu
e os
mais
acreditados
Oradores dos
Prncipes,
juntamente
com os
mais
distintos
Conselheiros
do
Imperador
e
muitos
outros bares
e
fidalgos desta
corte, para
assistirmos
a
um
banquete do Embaixador
portugus,
o
qual
fazia
festas
inauditas
por causa do
nascimento
dum
herdeiro do seu
rei,
primeiro
ao
Emperador
e
a
Rainha sua irm,
e
cm seguida
a
ns. A foi representada
perante
toda
a
assem-
bleia uma comdia em
castelhano
e portugus,
de m
espcie, que sob o
ttulo de
Jubileu
de
amor
era
stira
manifesta contra Roma, e
punha pontos
nos
ii (desi-
5/20/2018 Notas Vicentinas
29/214
2
1
gnando as coisas
claramente): que de
Roma e
do
Papa
no
vinham
seno trafkn-
cias
de
indulgncias,
e
quem
no
dava
dinheiro
no
somente
no
era
absolvido,
mas
at
excomungado, sempre
de
novo.
Assim
comeou;
assim
continuou;
e
assim
acabou
a
comdia;
havia
sobretudo
um que
declamava,
vestido
de roquetc
de
bispo,
e
fingia
ser bispo,
e
tinha um
barrete
verdadeiro de
Cardeal
na
cabea,
trazido
de
casa do
Reverendo
Legado que
lho
dera
sem que
os
nossos soubessem
para que
fim. E
todos riram
tanto
que
parecia
que
todo o
mundo se
desfazia
em
jbilo.
A
mim
contudo
estalava-me
o corao.
Julgava
achar-me
dentro da
Saxonia
e
ouvir Lutero ou estar
no
meio dos
horrores
do
Saque de
Roma.
E
no pude
dei-
xar
de
dar, em
voz
baixa,
sinais de enfado
a
Bari,
que
estava
sentado
perto
de
mim.
E
mais
tarde
tambm eu
disse
a
alguns
proeminentes,
de bom modo
embora,
que
esses
actos no eram
prprios
dum
lugar
de
cristos
;
e
muito
menos
na corte
dum
to
alto
e
to virtuoso
e
catlico
Imperador, que
seguramente
o
tomaria
em
m
parte
;
sobretudo
porque
tal
desordem
procedia de uma nao
que
temos
em
conta
de
propugnadora
da f.
Foi-me
respondido
que
com
certeza
no
era
coisa feita
de
propsito, mas
antes
comdia de
tempos
anteriores,
da
qual se
serviram por no
haver
outra
mo
;
a
que
respondi que
quomodocumque
era
coisa feia
;
e
sendo-o
em todo
o
tempo,
agora
era escandalosssima,
e
fora de
toda a
razo. Veja
V.
S.
como
vai
o
mundo.
Peo-lhe
que
guarde
segredo
a
respeito
destas minhas comu-
nicaes,
para que eu no
incorra
na
fama de
maldizente,
o
que no sou.
Mas
contudo
preciso advertir
Nosso Senhor
daquilo
que
passa
;
porque talvez
Sua
San-
tidade
faa
a
esse
respeito qualquer
admoestao paterna.
Admoestao
paterna do
Papa ao
Imperador
e ao
rei de
Por-
tugal
7.
Eis
o
original
italiano:
Fussimo
invitati
il
d
di
santo
thomaso, il
Rev. Legato, ioet
gli precipui Ora-
tori
di
Principi,
insieme
con
gli
primi
consiglieri
Caesarei
et
infiniti altri
Baroni
et
nobili
di
questa
Corte, ad
un banchetto
-oect
85
-r
t
;
XucriTavta?,
il
qual 5t
tv icpcox-
roxov
86
toC
(tannXsc
a-rou ha
fatto feste inaudite primo
a
Csar et
alia
Regina
sorella
et
poi
a
noi;
dove
fu
recitata presente mundo una
comedia
iffepicrct
/.a\
Xuottaviax
87
di
una mala
sorte, che
sotto
nome
di
un Jubileu
d'amor era
manifesta satyra contra
di
Roma, sempre
nominando apertamente ogni
cosa, che da Roma et
dal Papa
non
veniva
se
non
vendition di
Indulgentie,
et chi
non dava danari,
non
era absoluto,
ma
excomunicato
da bel nuovo, et
cosi comminci
et
persevero
et fini la
comedia,
et
era
uno
principal che
parlava,
vestito
cum
un
roechetto da Vescovo et
fingeasiVes-
covo
et
havea
una
baretta
Cardinalesca
in
testa,
havuta
da
casa
dei
Reverends-
simo
Legato,
datali per
ho
senza
che gli
nostri sapessero
per che
fine;
et era
tanto
il riso di tutti, che
parea
tutto il
mondo
iubilasse
;
a
me
veramente crepava
il
cuore
parendomi
esser in meggia Sassonia,
ad
udir Luther, over esser nelle pene dei
sacco
di
Roma;
et
non
potei far
che
sumissa
voc
non
ne facesse
un
cegno di
que-
rela cum bari
che mi sedea
presso
:
et dipoi
etiamdio
1'
ho detto
a
ale
uni dei pre-
cipui
con bel
modo, che questi non
son atti
da
far in luogo di
christiani,
et
tanto
meno
nella corte
d'un
tanto et tam
virtuoso
et
catholico Imperator,
qual certo
s
5/20/2018 Notas Vicentinas
30/214
1*
havra
per
male,
et maxime procedendo tal
desordine
da una natione la qual
te-
nemo per
propugnatrice
de
la fede:
Mi
stato
resposto
che
certo non
cosa fatta
hora,
ma comedia
d altri tempi,
de
la
qual
per non avere
altri, si
sono
serviti
;
res-
posi che
quomodocumque
era
cosa
brutta,
et
se mai
a
tempo
niuno
ai presente
scandalosissima
et
fuor
d'ogni
propsito
et
ragione:
vedi
V.
S.
come
va il
Sculo.
Ben
pregola
che
tenghi
occulte
queste mie accioch
non
incorresse appresso
cos-
toro
in
nome di
uomo che
mette
ai
ponto
;
il
che certo
per
non
faceio,
ma
bisogna
pur
advertire
Nostro
Signore
di quello che
passa
che
forsi
Sua
Santita
ne
far
qual-
che
paterna
ammonitione etc.
etc.
8.
A
Carta
de Aleandro,
sobrescritada a certo
Sanga
88
e
datada
de
Bruxelas,
26
de
dez.
de i53i, provm,
conforme
j
disse, dos
Arquivos
do
Vaticano,
onde
se
guarda
a
correspondncia
do
erudito
e
activo
Legado.
89
Saiu
impressa
nos
Monumentos
Vaticanos,
publicados
pelo
pro-
fessor
Hugo
Laemmer,
telogo
de renome
e
protonotrio
da
Santa
S,
residente
em Munich
90
.
A
autenticidade,
material e
ideal,
da Carta
no padece dvida.
Embora o
Legado
no
achasse digno
de
meno
o nome
do
Embai-
xador
portugus,
e
muito
menos
o
do
autor
execrando da
pea bilin-
gue,
cujas
implacveis zombarias
e
pungentes
ironias
sobre vcios
e
abusos
dos
sacerdotes, e em
especial sobre a
traficncia
com
perdes,
indulgncias
e
jubileus,
dilaceraram
o
corao ardente
do
Prelado
romano,
e
lhe
soavam
como
heresias
abertas,
todos
os
pormenores
da
pgina,
traada poucos
dias
depois
das
festas,
so
evidentemente
verdicas.
Em parte
so
confirmadas pelo Poema latino de
Resende,
como
veremos.
A
expresso
que
no
os
achava
dignos de
meno
no
bem
exacta.
Mais
correcto
seria talvez
dizer
que
o
fino
e
acautelado
diplomata
evitou
de
propsito
nomes
prprios no seu
desabafo,
lem-
brado
dum
conhecido
adgio,
e
certo de
que
em Roma
os
interessados
conheciam
a
uns,
e
facilmente
apurariam a
outros. Nem
mesmo
achava
prudente
escrever
com caracteres
comuns
os
ttulos
hierr-
quicos das
pessoas
indigitadas.
S
lhe importava
que os factos
che-
gassem
aos
ouvidos
das
instncias supremas.
9.
Fica por isso d^ra-avante
estabelecido
que
a
comdia,
represen-
tada em
Bruxelas, em casa
de
D.
Pedro de
Mascarenhas,
a
21 de
de-
zembro de
i53i,
no
o
Auto
da
Lusitnia, composto
(ou
acabado)
por
Gil
Yickntk
depois
de
1 de
novembro
do
mesmo ano, e repre-
sentado
para celebrao
do
nascimento
do
Prncipe
D. Manuel
em
Portugal;
mas
sim
o
Jubileu de
amor, de
data
mais antiga,
j
repre-
5/20/2018 Notas Vicentinas
31/214
23
sentado
anteriormente na
ptria, entrando nela
o
prprio
Gn.
como
actor
9
*.
io.
Jubileu
de
amor
ou
de
amores.
Que
lindo
e
sugestivo
ttulo,
se
no
fosse irnico
Pelos indcios
que o
Legado nos
transmitiu,
e
que
Mestre Andr
confirma
indirectamente,
no
h
que duvidar
de
que
a
comdia era
uma Stira
violenta. Jubileu de rancores.
Come-
morao
festiva
de
dios
seculares
Variando o prolquio a
que
acabo
de
aludir,
costumo dizer
:
Con-
jecturae
odiosae sunt. Ainda
assim,
seja-me
permitido
formular
aqui
uma
que
se
baseia no
sentido
positivo,
medieval
e
catlico,
que
Gil
Vicente
dava
(e
que
todos os
coevos
davam)
ao
vocbulo
Ju-
bileu
Basta
abrirmos
qualquer
Enciclopdia,
ou
mesmo
qualquer
Dicio-
nrio
bom,
para
renovarmos
na
nossa
mente a
noo que
Jubileu
(do
hebraico
jobel-
trombone) designava
na
lei de
Moiss,
o
ano
de graa
e
alegria, em
que,
de
meio
sculo
a
meio
sculo,
os servos recupe-
ravam a
liberdade, eximidos
de
trabalhos
rurais,
as
terras
empenhadas
eram
restitudas
aos donos;
e
as
dvidas
eram perdoadas.
E
tambm
a
segunda noo
que,
evolucionando, jubileu
ficou
sendo
na
idade-
mdia, entre Cristos, um ano-santo
que,
primeiro
de sculo
em
s-
culo (desde
Bonifcio
VIIIj,
posteriormente de
cincoenta
em cincoenta
anos,
e
de
1470
em
diante,
a cada
quarto de
sculo,
servia
para
a
Igreja
conceder
perdo geral,
indulgncia
plenria
de culpas
le
grand pardon
de plenire remission
il
giubileo
em
troca da paga,
j
se v,
de
certas
esmolas, visitas
de certas
igrejas,
e
outras
pr-
ticas
prescritas,
terica
e
aparentemente
virtuosas
:
as
boas
obras
que
tanto
deram
que
scismar
a Lutero
e
provocaram tantos
escritos
De
gratia,
Jide
et
operibus
e
tambm
De
Jubileis.
93
Essas
prticas,
essas boas obras que rendiam remisso
de
pecados
e
graa universal,
so as
que
Gil
Vicente
visava,
indirectamente,
com
a
palavra Jubileu;
directamente,
o
que
j
disse.
Empregou-a
p.
ex.
no
Auto
da
Feira, na vspera
do tristemente
si-
gnificativo
Natal
de
1D27. Nesse
dia
santo, nessa Festa
por
excelncia,
que
sempre
devia
ser Jubileu
de
Graas
da
Virgem
e
do
Menino Jesus,
onde
se
concedesse
de
ano
a
ano
perdo, paz, verdade
e f
a
todos
os
homens
de boa vontade
Gloria
in
excelsis Deo
et
in
terra pax
hominibus
bonae voluntatis
que
no
palco dos
Paos
da
Ribeira
se
armara
uma Feira satrica
com
praa
de
mentiras,
enganos, torpida-
des, invejas
e outras
sujas
mercancias em
que a prpria
Roma apa-
5/20/2018 Notas Vicentinas
32/214
24
receu
como
traficante.
Gabando-se de
alcanar
na
terra
tudo, tudo,
tudo por
dinheiro, Roma
preguntou,
admiradssima por
um
Serafim
se negar
a
vender-lhe
paz
de
alma
:
,;
assi
que
a
paz
no
se
d
a
troco
de
jubileus
?
(I,
i65)
9
*
li. O
nico
desses
Jubileus a
que um
Poeta,
cuja
actividade
dra-
mtica
abrange
o
periodo de
i5o2
a
1
536,
podia
referir-se
na data
indicada,
o
de
i525.
E
esse fora em Portugal particularmente
nefasto.
Verdadeiro Jubileu
de
rancores,
cinco vezes
seculares, da peor
espcie,
refrescados
impiedosamente
sempre
de
novo.
As
Cortes
celebradas
em
i52?
em
Trres-Novas
marcam
poca na
histria
da
intolerncia,
segundo a opinio
insuspeita
de Herculano
95
.
Foi
nelas
que
explodiu
mais
uma vez
a
m
vontade
geral, acumulada
contra
os
homens
de nao
96
por
causa
de
isenes
e
imunidades
e
de
privilgios
concedidos
por D. Manuel
e
revalidados
at 1
534
P
or
D.
Joo
III, logo
nos
princpios
do
seu
reinado.
Foi
nelas que
se
lanaram as sementes da
negra
Inquisio,
que>
sob
pretexto de combater a Reforma
(que
mal
tinha
adeptos
em
Por-
tugal)
se
dirigia
principalmente contra
os Cristos-Novos
e
suas
riquezas.
Foi
de 1
525
em
diante
que
o
prprio
rei
casado
desde
5
de fe-
vereiro com
a enrgica irm de Carlos
V,
em
volta
da
qual
iam
pros-
perar
tantos
hipcritas
dissimulados,
tantos ambiciosos, e tantos aden-
gados
Frei-Paos,
e
portugueses hispanizantes
arrependido daquele
primeiro
passo liberal, e
atemorizado
pelas desgraas
sucessivas
que
feriram
a
sua
prole,
instigado
sempre
de
novo
por
D.
Caterina,
a
castelhanssima,
e
por seus confessores,
capeles
e ministros,
(como
D.
Manuel
fora instigado
no mesmo
sentido
por
outra
castelhana,
sua
mulher)
procurou sem
cessar razes,
em acusaes verdicas
e
delaes
caluniosas,
para
perseguir
os
odiados
Marranos
91
,
como
pseudo-cris-
tos,
malfeitores
e
herejes, e
a requerer
com instncia o
esta-
belecimento do Santo Ofcio,
como tribunal indispensvel
para
a
manuteno da
F.
12. Compreende-se
bem que
nessa
era funesta
o
genial
poeta
uhco,
adversrio
convicto
dos
tais
hipcritas dissimulados,
Frei-Paos
e
acusadores
cubiosos
dos Cristos-Novos, mas sobretudo
da
simonia
pervertedora de Roma
e da venalidade
dos
Cardeais
Protectores,
es-
crevesse
as
suas stiras
mais fulminantes
e
fustigasse
com o ltego
da
5/20/2018 Notas Vicentinas
33/214
ironia,
sempre
a
rir,
mas cada
vez
mais
inexoravelmente,
os vcios
daqueles que
pelo
seu
caracter de sacerdotes
devem
ser
modelos
de
caridade, e
os
desmandos
dos que,
cercando
os
reinantes,
cuidam,
falhos
de
patriotismo desinteressado,
apenas
de
medrar
e
fazer
medrar
parentes e aderentes.
Compreende-se
que as alegorias
satrico-morais
que
ento
conce-
beu,
contivessem reflexos claros
de
alguns
aspectos
da luta
inevitvel
de
ideias
que
originaram
a
Reforma
e
conduziram
contra-reforma,
ao
Jesuitismo, ao
Concilio
de Trento,
e aos
ndices
Expurgatrios.
Compreende-se
que,
levado pelo seu talento
aristofnico,
Gil
Vi-
cente
fosse s vezes
longe
de
mais
com invectivas
directas
e
virulen-
tas
tal
qual
o
prprio
Lutero, Ulrico
von
Hutten,
e
Aleandro no
campo
oposto
98
.
Compreende-se
que deixasse
a corte
e pousasse
a
pena no
mesmo
ano de
i536 em
que, aps
negociaes
vergonhosas
de
parte a parte,
que
custaram rios
de
dinheiro,
foi
promulgada
a Bula
da Inquisio,
a
Bula de sangue, sem esperar mesmo
que
o
irmo
do
reinante,
o
Car-
deal
Infante
D.
Henrique,
se
instalasse
como
Inquisidor
Geral.
Em
i
D2
a
fara
de
folgar
em
que
um
Clrigo
da
Beira
vai,
na
vspera
do
Natal,
rezando
as
Matinas,
caminho
da
caa, sem ter
feito
a coroa,
stira ainda muito branda,
embora no lhe
faltem
aluses
a
clrigos maus e maus
cortesos.
Em 1D27
o
Auto
da
Feira,
a que
j
aludi,
muito
mais
agressivo;
e
ataca Roma
directamente.
Em 1
53
1 Gil
Vicente defendeu
afoitamente, em
prosa nobils-
sima,
os
Cristos-Novos,
ameaados
pela fria popular
e
pelo fanatismo
fradesco,
por causa
do
terremoto
de
26
de
janeiro .
Os
Autos
imediatos sairiam
mais
violentos
ainda.
Oa
da
Adern-
cia
do Pao
e
Vida
do
Pao julgo que no
ficariam
longe,
cronologica-
mente, da criao
do
tipo
de Padre Frei-Pao,
que
de
1
533.
Do Jubileu
j
sabemos
que
fora representado
em Portugal antes
das
festas
de Bruxelas.
Entre 1
525 e
1 53
1
i3.
Aleandro
diz
isso
expressamente,
acrescentando
que assim
lhe
fora
comunicado
por
alguns
dos
assistentes
que
j
o
haviam
visto
nos
Paos
da
Ribeira.
No
creio todavia
que
d'altri
tempi
signifique
que a pea
era
velha.
Nem de
crer
que
o
Embaixador
pegasse
em
coisa
que
realmente
merecesse
esse
qualificativo.
Pelo
contrrio,
suponho
escolheria
uma
das
ltimas
novidades
do alegre
poeta
ulico do
seu
soberano, para
advertir
os
nncios,
legados,
oradores,
5/20/2018 Notas Vicentinas
34/214
26
fidalgos
de
Carlos
V
e os
cincoenta portugueses
convidados, dos
principais que ento
assistiam
nos
Pases
Baixos,
em
Lovaina, An-
turpia, Rotterdam
e
Bruges. A
ltima novidade, quer a
houvesse
trazido
pessoalmente
de
Portugal,
onde
assistiria
a
muitas
represen-
taes
vicentinas,
e
assistiu
provadamente
de i5'2i
nas
festas
da
Infanta
D. Beatriz, quer de
l
lha
mandassem
a
seu pedido,
em
manuscrito
ou,
mais provavelmente,
impressa,
em exemplares
bas-
tantes
para poder
ser
estudada
e
ensaiada pelos
melhores artistas
amadores da
sua
clientela.
14.
Aqui
abro um
breve
parntese para
avisar
o
leitor
de que a
suposio
que
os
executantes
da
representao
de Bruxelas
se
servissem
de exemplares
impressos tem base
slida.
A
hiptese,
muitas vezes
enunciada, de
os
Autos de
Gil
Vicente, todos
ou
em parte,
terem
sido
publicados
em vida
dele pelo
mido,
em
folhetos
avulsos, est
hoje
transformada em
facto
10
.
Um
exemplar
da Barca
do
Inferno
impresso
gtica
com
gravura
feita
ad hoc, do
tempo
de
D. Manuel,
e com
privilgio
seu
subsiste
na Biblioteca Nacional
de
Madrid
101
.
No
fim
dela
l-se
textualmente
:
Auto
102
das
Barcas
q
fe\
Gil
Vicente
per
seu
(sic)
mao.
Corregido
e
emprimido
per seu
mandado. Pra ho
quall e
todas
suas
obras
tem
privilegio deli Rey
nosso
Senhor.
C
as
penas
y
do
tchor que
pra ho
Cancioneyro geeral
portugus se ouve
03
.
Subsistem
alm disso
exemplares
de
duas edies
diversas
da ver-
so
castelhana
da Barca
Primeira
1(H
.
Ha
no
alvar
de privilgio,
concedido
a Paula
Vicente,
aluso
clara
a
essa
maneira
de
divulgar
os
Autos.
Provas
indirectas esto nos elogios tributados
a Gil
Vicente, pelos
trs
coevos cultos que
j
mencionei.
Outras
ha
nas
impresses
avulsas posteriores a
i562
(ou
antes,
a
1572),
incluindo
o
Auto da Festa,
que
todas
so
repeties
de
outras
mais
antigas, e
no
dos
textos da
Copilao.
Ha-as
tambm
nas
proibies,
anteriores
a
1
562,
pois
atestam a
existncia de impresses do
Amadis
e
do D.
Duardos,
do
Auto dos
Fsicos, da Lusitnia, do Clrigo
da
Beira, do
Pranto de
Maria
Parda,
do
Miserere; da
Aderncia do
Pao, da Vida do
Pao,
e
do
Jubileu
de
Amor,
como
passo a demonstrar.
i5.
Mas
;
onde
pra esse
Jubileu, com os
outros dois
Autos
per-
didos
cujo ttulo
citei?
Que
sei
eu deles
?
5/20/2018 Notas Vicentinas
35/214
Em primeiro
lugar: sei
o
que
ningum
ignora :
que
no entraram na
Copilao
de
i52.
Em
segundo
lugar
que foram
submergidos
nas
guas
do
olvido, no
Letes do Oro,
para
onde
o Legado do
Pontfice
quis
arremessar
o
Jubileu,
como
suspeitoso
na
F.
Pregado
no
pelou-
rinho
da
ignomnia, apenas
l
subsiste; e
s
de
nome. Nos
ndices
de
Livros Proibidos e...
na
Carta de Ai.eandro
por
ironia
da
sorte.
Tal foi a
insistncia, com
que
o Imprio
e
a
Cria
o
condenaram
e
exter-
minaram,
que
nem
nas coleces
mais
abundantes
de
raridades biblio-
grficas
se
conservam
exemplares,
nem mesmo
ha
vestgios de l terem
existido.
Os
prprios
filhos
do Poeta, que
cuidaram
da
impresso
de i562,
ignoravam
a sim existncia (ou
fingiam
desconhec-la).
Creio
at
que
quando
o
Poeta, afastado
da
corte,
se
entregou
ao
trabalho
de
coligir
as
suas obras
e de as
transcrever
manu-propria
para
um
cartapcio grande, retocando-as
e
purificando-as
de
alguns excessos
de
linguagem,
j
no
podia
pensar em
admitir nele
o
Jubileu
de
amor,
nem
os Autos
da
Aderncia
do
Pao
e
da
Vida
do
Pao,
por
j
terem
sido
condenados
por
decreto
especial.
16.
Dos
ndices
Expurgatorios
e
da
aco
das
Mesas
Censrias
tem-se escrito
muitssimo; declamatriamente
em
geral,
porque os ori-
ginais
(quinhentistas)
so
pouco
menos raros
que
os livros neles regis-
tados como
dignos
de
destruio. As
reprodues
modernas,
assim
como
as
anlises que
devemos
a
verdadeiros peritos,
so por ora
pouco
conhecidas
em
Portugal
105
.
E
o
que se
v
nas
ltimas
notcias,
em parte
incompletas, em parte errneas, propagadas
em
livros,
alis
muito
proveitosos, por
especialistas
excelentes
como o
continuador
do
Diccionrio
Bibliogrfico
Portugus*
06
;
em
catlogos
de
livrarias
como
a
de
Nepomuceno,
rica na especialidade
107
,
e
tambm ocasionalmente
nas
obras
de
T. Braga
108
.
Um
estudo
pormenorizado do
assunto
preencheria
positivamente
uma
lacuna.
Aqui
s
posso
alinhavar com pontos muito
largos
as
datas
mais
importantes para
o
meu fim
restrito.
Heterodoxos
foram
sempre
perseguidos
pela Igreja
409
. Autos
de
f
parciais
de
escritos
seus so
muito
anteriores
no
s
Reforma
mas
tambm
arte
de
Gutenberg.
Para
no
exorbitar
recordarei
apenas, alm dos
nomes