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 INSTITUTO DE DIREITO PENAL ECONÓMICO E EUROPEU FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 1387- p r DIREITO PENAL ECONÓMICO E EUROPEU: TEXTOS DOUTRINÁRIOS Vol. III

Nuno Brandao Pessoa Coletivas

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  • INSTITUTO DE DIREITO PENAL ECONMICO E EUROPEU FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    1387-p- r

    DIREITO PENAL ECONMICO E EUROPEU:

    TEXTOS DOUTRINRIOS

    Vol. III

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    O REGIME SANCIONATRIO DAS PESSOAS COLECTIVAS NA REVISO DO CDIGO PENAL (*)

    NUNO BRANDO ( * * )

    1. A reviso do Cdigo Penal determinada pela Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, apresenta como uma das suas principais e mais marcantes novidades a consagrao da responsabilidade criminal das pessoas colectivas no prprio texto do Cdigo Penal.

    Claro que a previso legal de uma tal responsabilidade no constitui pro-priamente um facto novo no sistema penal portugus, que h mais de 20 anos a admite no mbito do direito penal secundrio. Mas, alm do simbolismo associado regulao desta matria no Cdigo Penal ( l). de assinalar a extenso da res-ponsabilidade penal das pessoas colectivas aos domnios do direito penal cls-sico ou de justia.

    Um passo natural num sistema que, ao contrrio de outros (!), de h muito

    (*) O presente texto corresponde comunicao apresentada nas JorniuUtx sobre a Reviso do Cdigo Pendi, promovidas pelo Centro de Estudas Judicirios e realizadas em Lisboa nos dias 27 e 28 de Setembro de 2007.

    (**) Assistente d Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. (') X semelhana do que acontece, V. g na Holanda, em Frana e na Dinamarca, em tjue a res-

    ponsabilidade criminal das pessoas colectivas se encontra prevista nos respectivos cdigos penais Cf. SILVINA BACIGALUPO, La Responsiibitidud Penai de l

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    deu como adquirida a capacidade de aco, de culpa e de punibilidade das pes-soas colectivas (3) e tomou nitida conscincia das instantes necessidades poltico--criminais da responsabilizao penal das pessoas colectivas na sociedade con-tempornea e futura f ) . Um passo preconizado pela doutrina mais credenciada (5) e que tem atrs de si o lastro do labor legislativo, doutrinal e jurisprudencial das ltimas duas dcadas (s).

    A nova disciplina legal eticontra-se prevista no art. 1 1 e nos atts. 90."-A a 90.-M do Cdigo Penal. Regime que se aplica no s aos crimes indicados no n. 2 do art. 11 do Cdigo Penal, como tambm, em virtude da extenso deter-minada pelos arts. 4. a 7. da Lei o. 59/2007, aos delitos tipificados no Cdigo do Trabalho e nos diplomas legais relativos ao trfico de estupefacientes, pro-criao medicamente assistida, ao terrorismo e s armas e munies (7).

    Penai. Parte Ceneru!. 4.J ed.. Tiram lo Blanch. 2000, p. 25i e ss.; contra e em snionia com a posi-(,3o maioritrm, cf. J o s Luis DE LA CUESTA. Una "nueva" lnea de intervencin penal: el deie-cho pena! de las peistvnas jurdicas, i; A, Messoli/J. A. Sanptdio (Comps.), Aitminisirncin de Justicia en lay Mhvres dei Tercer Milnio, Buenos Aires. 2UOI, p. 96" c ss. (disponvel em www.su.ehj/scrwwwiv/WJLDLC).

    Em ItUia. apesar da epgrafe do Decreto Legislativo d." 231, de 8 de Junho de 2001 "Dis-ciplina tlelh rcsptmsabiHt antniinislrtitivn tleile persone giuridiche. delle scietr) e delta associazioni riifte prive.

  • O regime sancionatrio ilns pessoas colectivos nu reviso tio Cdigo Penal 463

    Subsistem, todavia, determinadas reas que mantm autonomia na regula-o dos termos em que se forma a responsabilidade penal das pessoas colectivas e do respectivo regime sancionatrio. o caso das infraces contra a economia e contra a sade pblica, definidas no Decreto-Lei n. 28/84, das infraces tri-butrias contidas no Regime Geral das infraces Tributrias (Lei n. 15/2001. ds 5 de Junho) e da criminalidade informtica (Lei n. 109/91. de 17 de Agosto), s para mencionar os domnios de maior relevo.

    2. A semelhana da estrutura sancionatria estabelecida para as pessoas fsicas no Cdigo Penal e na linha do regime contido no Decreto-Lei n. 28/84, tambm no art. 90.-A e ss. do Cdigo Penal se prevem (rs categorias de penas aplicveis s pessoas colectivas, as principais, as acessrias e as de substituio.

    As penas principais so, por definio, aquelas aplicadas pelo juiz na sentena condenatria independentemente de quaisquer outras C). Quando se trata da res-ponsabilidade penal das pessoas individuais, a pena, para definir-se como princi-pal, dever em regra encontrar-se tipificada no prprio tipo legal de crime. J na disciplina sancionatria das pessoas colectivas o legislador optou pela introduo de uma clusula geral, no art 90.-A, n." 1 (9), de acordo com a qual "pelos crimes pre-vistos no n." 2 do artigo 1 1 s o aplicveis s pessoas colectivas e entidades equiparadas as penas principais de multa ou de dissoluo".

    So previstas como penas de substituio, designadamente da pena de multa, a admoestao (art. 90.-C), a cauo de boa conduta (art. 90.a-D) e a vigilncia judiciria (art, 90.-E). Diferentemente do que sucede no Decreto-Lei n. 28/84, a admoestao no figura aqui como pena principal, mas antes e to-s como pena de substituio da pena de multa. Esta degradao do estatuto da pena de admoestao face quele diploma constitui uma deciso acertada, atenta a sua baixa eficcia preventiva, tanto sob o ponto de vista da preveno geral, como da preveno especial (I0).

    As penas acessrias, constantes dos arts. 90.-G a 90.-M, so a injuno judi-ciria, a proibio de celebrar contratos, a privao do direito a subsdios, subvenes ou incentivos, a interdio do exerccio de actividade, o encerramento de estabeleci-mento e a publicidade da deciso condenatria (' ').

    2.1. Das duas penas principais, multa e dissoluo, aquela que j assume e continuar certamente a assumir maior relevncia a pena de multa.

    (") JORGE DE FIGUEIKEDO DIAS. Direito Peitai. Parte Geral. U: Ar Consequncias Jurdicas do Crime. Aequilan/Editorial Notcias, (993.g 78.

    (') Em diante as referncias a preceitos legais desacompanhadas

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    pena de multa aplicada s pessoas colectivas so frequentemente dirigidas crticas de vria ordem: desde a possibilidade de a pessoa colectiva tomar como factor a ponderar na eventual deciso delitiva a soma pecuniria potencialmente aplicvel pela comisso do crime, num raciocnio de custo/benefcio (I2); at s suas eventuais repercusses sobre terceiros alheios ao cometimento do crime, como os trabalhadores ou os clientes da condenada ( l3).

    Todavia, tal como por vezes se conclui em relao pena de priso aplicada as pessoas fsicas, tambm no domnio da responsabilidade das pessoas colectivas no foi ainda encontrada uma soluo melhor do que a pena de multa com vista ao cumprimento das finalidades sancionatrias. A verdade que a multa con-siderada hoje como a pena por excelncia em matria de responsabilidade crimi-nal das pessoas colectivas (H).

    Como no poderia deixar de ser, por fora do princpio da legalidade criminal, a lei define os limites da pena de multa e os respectivos critrios de determina-o. Secundo o art. 90."-B, a pena deve ser determinada de acordo com o sistema dos dias de multa f15).

    2.2. No que toca determinao dos dias de multa, a lei perfeitamente clara quanto ao modo como dever formar-se a moldura legal abstracta.

    Em primeiro lugar, o juiz dever verificar se para o crime em causa a lei prev a aplicao da pena de multa, de forma isolada ou em alternativa pena de pri-so. Em caso afirmativo, isto , se o tipo legal cominar a muila como pena apli-cvel, o n. 3 do art. 90."-B estabelece que pessoa colectiva ser aplicvel a pena de multa a prevista ( l 6).

    Se, pelo contrrio, o crime for somente punvel com pena de priso, dispe o n. 1 do art. 90.-B que os dias de multa correspondentes moldura abstracta so determinados tendo como referncia a pena de priso prevista para as pes-soas singulares. Assim, de acordo com o n. 2 desse preceito, um ms de pri-

    C :) Cf. os estudos de anlise econmica do direito em matria de responsabilidade criminal da* PE.ssrm enleeiiv.i\ descritos por STEFANIA GIAVAZZJ. La responsabilit penale delle persone jjiu-ridiche: dieci anni di esperienza francesa, Rivisia Trimestral? di Dirino Penaie ileilEconoma, 2005,

    4, p. X99 e ss . ( l ! ) Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS. Breves consideraes sobre o fundamento, o sentido e a

    splicaio das penas em direito pena! econmico (1985). in: Pireiln Penal Econmico e Europeu: Tex-tos Doutrinrios, t, Coimbra Editora. 1998, p. 384.

    F 4 ) PICUEIKEDO DIAS, B r e v e s c o n s i d e r a e s . - . , p . 3 8 4 .

    i l i ) Sobre ssie sislema, desenvolvidamente, FIGUEIREDO QT, Direito PTMI. Parle Geral. II. As Consequncias Jurdicas tio Crime, S 116 e ss.

    (") De modo diferente, o art. 12", n." 3, do ROIT determina que "os limites mnimo e mximo das penas de multa previstas nos diferentes tipos legais de crimes so elevados para o dobro sempre que sejam aplicadas a Uma pessoa colectiva, saciedade, ainda que irregularmente constituda, ou outra entidade fiscalmente equiparada". Parece-me prefervel o novo regime geral, pois no vejo que a circunstncia de o agente do cr ime ser uma pessoa colectiva comporte exigncias acrescidas de pre-veno geral que justifiquem a elevao dos limites das molduras legais aplicveis.

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    so corresponde, para as pessoas colectivas e entidades equiparadas, a 10 dias de multa ( l?).

    2.3. A medida concreta da pena de multa dever ser fixada em dias, de acordo com os critrios estabelecidos non. ' 1 do art. 71." (art. 90.-B, n. 4), ou seja, em funo da culpa e das exigncias de preveno.

    Penso que no h razes para em nome das especificidades prprias das pessoas colectivas nos afastarmos aqui dos termos em que o denominado modelo da moldura da preveno, proposto por Figueiredo Dias (18) e Anabela Rodri-gues ( l9) e que parece hoje perfilhado pela jurisprudncia maioritria, concilia e articula os trs critrios de determinao da medida da pena, preveno geral, pre-veno especial e culpa. Para o efeito, torna-se indispensvel a definio do con-tedo de cada um desses critrios relevantes para a determinao da medida da pena, tomando evidentemente como referncia j no a pessoa singular, mas antes a pessoa colectiva. Contudo, parece-me que tanto na doutrina, como na juris-prudncia nacionais tem sido insuficiente o esforo de densificao do contedo desses critrios, sobretudo em matria de preveno especial e de culpa. Pela prpria natureza das coisas, a perigosidade criminal de uma pessoa colectiva dis-tinta e manifesta-se de modo diferente da perigosidade criminal de uma pessoa fsica. Da mesma forma, a culpa associada prtica de um ilcito penal por uma pessoa colectiva tem natureza diferente da que prpria da pessoa singular

    Este dfice de concretizao do contedo dos critrios de determinao da pena pode, em todo o caso, ser atenuado atravs de uma correcta e criteriosa pondera-o dos factores de medida da pena previstos no n. 2 do art. 71." do Cdigo Penal (2I), naturalmente levada a fundamentao da condenao.

    ( " ) Esta regra de converso converge com o parmetro que desde a reforma do Cdigo Penal de 1995 se vem geralmente estabelecendo na tipificao alternativa das penas de priso e de mulU nos tipos legais de crime: a cada ms de pena priso correspondem, em regra, 10 dias de multa (assim, v. g., nos arts. 137."-!, 139.", 143."-). I 4 8 M , !St .- l , 153."-!, 154., I56.--3, 203. l , 2 3 1 M , 256.-!. ele.). N io se tendo feito sentir, desde aquela reforma de 1995, sitiais de que este pactUr&uo injus-tificado ou conduz a resultados materialmente injustos e considerando que o mesmo j se encontra sufi-cientemente sedimentado e interiorizado pela praxis, parece-me acertada a deciso de o tomar como referncia para definir a converso do lempo de priso em tempo de multa.

    (") FIGUEIREDO DIAS, Direito Peitai. Parte Cerai, II: As Consequncias Jurdicas da Crime, 8 301 e ss.; e, depois, FlGUHREDO DIAS, Direito Penal. Parle Geral, I. 4." Cap., 83 e ss.

    ( " ) ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinao da Medida da Pena Privativa da Liber-dade, Coimbra Editora, 1995, passirn.

    Sabre t s t t questo, em sntese. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, I. 4." Cap., 26 e ss., e. desenvolvidamente, SILVINA BACIGALUPO, La Responsabitidad Penai de las Personal Jur-dicas. pp. 156 e ss. e 398 e s.

    (J1) Na doutrina espanhola, Jos ZUGALDIA ESMNAR, Las penas previstas en el artculo 129 dei Cddigo Penal para las personas jurdicas, p. 342. tomando por referncia os critrios de que a jurisprudncia espanhola, lana m i o para determinar a gravidade da culpa em crime prati-cados por pessoas fsicas, considera que na de te rminado da pena a aplicar & pessoa colectiva devero valofar-se os seguintes factores: gravidade do delito; actuao com dolo ou com negli-

    30 - D. p. . E. . M

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    2.4. No que respeita ao quantitativo dirio da pena de multa, o n." 5 do art. 90."-B indica que "cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 100 e 10.000, que o tribunal fixa em funo da situao econmica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores". O que aqui logo salta vista so os valores definidos como mnimo e mximo, 6 100 e 6 10.000, res-pectivamente. sabido que tanto no direito penal, como no direito contra-orde-naciona] os montantes associados s sanes de natureza pecuniria so, regra geral, mais elevados para as pessoas colectivas do que para as pessoas singulares. Regra aqui confirmada pela definio de limites para a taxa diria da pena de multa 20 vezes superiores para a pessoa colectiva por comparao com os defi-nidos para as pessoas singulares. Esta circunstncia deriva da considerao de que geralmente o poder econmico das pessoas colectivas superior ao das pessoas fsicas e de que s pela previso de limites amplos se possvel adequar o quan-titativo dirio da multa situao econmica e financeira da pessoa colectiva condenada e assim responder s finalidades da punio ().

    Por esta ordem de razes no me suscita qualquer reserva a fixao de um limite mximo de 10.000 para o quantitativo dirio da pena de multa, apesar de esse valor ser cerca de duas vezes superior ao previsto, por exemplo, no mbito das infraces contra a economia e a sade pblica (art. I7."-4 do Decreto-Lei n." 28/84) e das infraces tributrias (ait 15.-1 do RG1T). Este limite mximo defi-nido pelo n,D 5 do art. 90."-B confere pena de multa uma amplitude que na generalidade dos casos lhe permitir responder de forma suficientemente capaz s necessidades preventivas suscitadas pelo crime cometido pela pessoa colectiva. No me parece que pela fixao deste limite em 10.000 haja um risco srio de transformar a multa numa pena sufocante, convertendo-a assim num instrumento de confisco (23). Ponto que a definio do montante concreto do quantitativo di-rio seja criteriosa e realizada com escrupuloso respeito pelo critrio legal definido no art. 90.-B, n 5, que manda atender situao econmica e Financeira do condenado e aos seus encargos com os trabalhadores. O valor de 10.000 cor-responde tao-somente a um tecto mximo at ao qual poder ser fixada a taxa di-ria da pena de multa e que, se atentarmos no poderio econmico de um elevado nmero de grupos empresariais, que registam lucros lquidos anuais na ordem das dezenas e at centenas de milhes de euros, a considerar-se desajustado s o poder ser por defeito e no por excesso.

    6 no valor do limite mnimo, correspondente a uma quantia de 100, e no do limite mximo que, a meu ver, a nova lei poder pecar por excesso. Perante

    gntia; maior ou menoi exigibilidade de fidelidade ao direito; e molios q j e kvaiam a pessoa colec-tiva a tomar a deciso ilcita.

    CF. MMIVKI. LCWES ROCHA. A respcmsabilidaite peno! das pessoas colectivas novas pers-pectivas*, p. 475.

    ( a ) Assim, todawii, PMAJQ PINTO OE ALBUQUERQUE, A responsabilidade criminal das pessoas colectivas ou equiparadas, p. 644 e s.

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    uma estniura empresarial como a nossa, dominada por pequenas e mdias empresas, muitas delas com um volume de negcios anual pouco expressivo, a imposio de uma taxa diria mnima de 100 poder em determinados casos con-duzir aplicao de penas de multa excessivas em face da situao econmica da pessoa colectiva condenada. A sim a pena de multa poder assumir um peso insu-portvel para a pessoa colectiva, aparecendo como uma pena sufocante (24) ou at mesmo como comprometedora da sua subsistncia econmica, podendo, por via disso, eventualmente questionar-se a constitucionalidade da fixao legal de um limite mnimo to elevado, por violao dos princpios constitucionais da igualdade e da proibio do excesso.

    3. Ainda no contexto do procedimento de determinao da pena de multa a aplicar a uma pessoa colectiva, cumpre abordar os casos especiais de determina-o da pena previstos na parte geral do Cdigo Penal.

    Tendo em conta os respectivos fundamentos e pressupostos, so inaplic-veis s pessoas colectivas os regimes da reincidncia (arts. 75." e 76.), da pena relativamente indeterminada (art. 83." e ss.) e do desconto de medidas proces-suais (art. 80.). Muito embora se preveja a criao de um registo criminal de pes-soas colectivas, no se consagra qualquer mecanismo de agravao dos limites da moldura legal fundado na reiterao criminosa pela pessoa colectiva. O que no significa, como vem sendo posto em relevo por quem questiona a figura da rein-cidncia (2), que essa reiterao no deva ser levada em devida conta em sede de fixao concreta da medida da pena, atentos os seus efeitos sobre os vrios cri-trios de determinao da pena, no sentido da agravao do seu quantum concreto.

    A determinao da pena aplicvel pessoa colectiva em caso de concurso de crimes ou de conhecimento superveniente da concurso no foi objecto de qualquer regulamentao especial. A ausncia de um regime especificamente pre-visto para o sancionamento do concurso de infraces cometidas por pessoa colectiva poder suscitar as maiores dificuldades interpretativas a partir do momento em que, como agora sucede, a pena de multa abstractamente aplic-vel a vrios dos crimes previstos no n." 2 do art. 1 1 e x c e d e em muito os 900 dias de multa, fixados pelo art. 77., n." 2, como limite mximo da moldura do concurso. Cam efeito, basta que o crime cometido pela pessoa colectiva seja punvel com pena de priso superior a 7 anos e 6 meses para que lhe corresponda uma pena de multa com limite mximo superior a 900 dias (art. 90.-B, n. 2). certo que, pelo menos no RGIT, j se previa a aplicao s pessoas colecti-

    (M) 24 Cf. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, A responsabilidade criminal das pessoas colec-tivas ov equiparadas, p. 644 e s.

    (W) V G., MARIA JOO ANTUNES, Consequncias Jurdicas do Crime. Notas Complementares para a cadeirtt de Direito e. Processo Penal rfa Faculdade de Direito da Universidude de Comra, Coimbra. 2006-2007, p. 44.

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    vas de penas de multa de imite mximo superior a 900 dias, mas, ainda assim, a sempre se indica que aos crimes tributrios cometidos por pessoas colectivas aplicvel pena de multa at 1920 dias (art. 12., n. 2).

    No me parece defensvel um eventual entendimento de que aos crimes cometidos em concurso efectivo por pessoas colectivas no deveria aplicar-se o regime geral dos arts. 77." e 78. do Cdigo Penal. Desde logo, porque a letra do n. 1 do art. 77 "quando algum tiver praticado vrios crimes" no restringe O seu campo de aplicao s pessoas singulares. Mas tambm e fundamentalmente porque da inaplicabilidade do sistema de cmulo jurdico previsto no art. 77." resultaria uma soluo de acumulao material de penas, em larga medida incom-patvel com o princpio da culpa (26).

    Todavia, mesmo admitindo o funcionamento do sistema do cmulo jurdico, dever considerar-se implicitamente derrogado o referido limite mximo de 900 dias de multa naqueles casos em que, por fora de previso legal expressa (art. 90.-B( n. 2), um dos crimes em concurso cometido pela pessoa colectiva seja punvel com pena de multa superior a esses 900 dias. Caso contrrio, assistiramos situao absurda de a pena abstractamente aplicvel pela prtica isolada de certo crime poder ser superior que resultaria aplicvel no mbito de um concurso de crimes.

    Resta, no entanto, saber se sendo dado sem efeito o limite de 900 dias pre-visto no art. 77., n.D 2, se dever concluir que o ponto mximo da moldura do con-curso coincide de forma irrestrita, i. e., sem qualquer limite mximo inultrapassvel, com a soma das penas concretamente aplicadas aos vrios crimes. Essa uma lei-tura possvel da primeira parte do n.D 2 do art, 77." nos casos em que, como venho referindo, alguma das penas de multa aplicveis pessoa colectiva seja superior a 900 dias. Porm, creio que as razes que militam a favor de uma limitao da pena de multa aplicvel em caso de concurso de crimes praticado por pessoa individual justificam a imposio de um limite tambm no mbito san-cionatrio das pessoas colectivas. A meu ver, poder aqui lanar-se mo de um raciocnio analgico, permitido, porque in bonctm partem, pelo qual o limite mximo de 25 anos previsto para a pena de priso seria objecto de transformao em dias de multa. Para esse efeito, o factor de converso seria o previsto no n. 2 do art. 90.-B "um ms de priso corresponde, para as pessoas colectivas e entidades equiparadas, a 10 dias de multa". Dessa forma, o limite mximo da mol-dura penal conjunta em caso de concurso de crimes punveis com multa superior a 900 dias no poderia ultrapassar 3 000 dias de multa.

    4. Em matria de cumprimento da pena de multa aplicada pessoa colectiva, a lei confere a possibilidade de diferir ou parcelar o pagamento nos mesmos ter-

    (36) Cf. EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II, Almedina, 1965 (reimp. 1996), p. 213: e, de forma mais explicita, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, II: A Consequncias Jurdicas do Crime. S 398.

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    mos previstos nos n.05 3 a 5 do art. 47." (ex vi art. 90,-B, n. 5). Tal como j antes acontecia, o n. 6 do art. 90 -B determina que findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestaes sem que o pagamento seja efectuado, procede-se execuo do patrimnio da pessoa colectiva ou entidade equiparada. Todavia, pela prpria natureza das coisas, a multa que no foy voluntria ou coercivamente paga no pode ser convertida em priso subsidiria (art. 90.-B, n. 7).

    Para reforar a probabilidade de xito na cobrana da quantia pecuniria correspondente pena de multa aplicada pessoa colectiva, o n. 9 do art. [ I e s t a -belece que "sem prejuzo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posio de liderana so subsidiariamente responsveis pelo pagamento das mul-tas e indemnizaes em que a pessoa colectiva ou entidade equiparada for con-denada, relativamente aos crimes*.

    a) Praticados no perodo de exerccio do seu cargo, sem a sua oposio expressa;

    b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o patri-mnio da pessoa colectiva ou entidade equiparada se tornou insufi-ciente para o respectivo pagamento;

    c) Praticados anteriormente, quando a deciso definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o perodo de exerccio do seu cargo e lhes seja imputvel a falia de pagamento".

    Este regime de comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento da pena de multa constitui j regra corrente no direito penal secundrio C37) e passa agora a valer tambm no domnio do direito penal de justia. Disciplina que leva mesmo alguma doutrina a traar uma distino entre uma responsabilidade pelo cometimento da infraco e uma responsabilidade pelo pagamento da sano (M).

    No meu ponto de vista, esta distino nao aceitvel e constitui uma autn-tica burla de etiqueta, ao travestir de responsabilidade pelo cumprimento da san-o aquilo que na realidade uma autntica transmisso da responsabilidade penal, ainda que operada por via legal.

    Essa ciso entre o plano da imputao de um crime e o plano do cumprimento da multa aplicada pela prtica desse delito, que a lei implicitamente realiza, tem em vista fundamentalmente permitir que um terceiro, que no o agente do facto,

    ( "} Cf., v. o& arts. 2 . M t 3,-3 do Decreo-Ui n." 2S64 e o art. a." do RGT. Preceitos que contrariara a natureza pessoalssima da pena de multa, assim caracterizada por FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Cerei, II; As Consequncias Jurdicas do Crime, [22: "a multa, , coma toda. a pena criminal, um efeito de natureza pessoalssima, no podendo ser por ela responsveis os foras da herana nem ser paga por terceiro, ter lugar para o seu pagamento doao ou negcio afim, nem lo-pouco existir contrato de seguro relativamente a ela".

    Assim, no domnio contra-ordenacional, JOO SOARES RIAELRO, Anlise do Novo Regime Geral das Contra-Ordenaes Laborais, p. 19. entende que i necessrio distinguir a responsabilidade pelo cometimento da contia-ordenao, por um lado, e a responsabilidade pelo pagamento da coima, por outro.

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    seja co-responsabilizado pelo pagamento da pena de multa, independentemente da sua participao na comisso da infraco. Por isso que s jogos de palavras conseguem iludir que o que verdadeiramente ocorre uma transmisso da res-ponsabilidade penal do agente da infraco, a pessoa colectiva, para algum, uma pessoa Fsica, que no foi por ela responsabilizada.

    Em sede penal, esse tipo de responsabilizao pelo pagamento de multas aplicadas a terceiras pessoas choca frontalmente com o principio da culpa e com o principio da intransmissibilifade da responsabilidade penal, consagrados, res-pectivamente nos arts. 1 e 30., n." 3, da Constituio, tendo, nessa medida, de reputar-se inconstitucionais (29). Mais ainda, essa imputao de responsabilidade dita civil, quando dirigida a pessoa que j foi tambm ela penalmente responsa-bilizada pelo facto em causa, como potencialmente acontecer com as pessoas referidas na alnea a) do n. 9 do art, 1 1 p o d e r significar uma dupla penaliza-o pelo mesmo crime e coenvolver, assim, uma violao substancial do princ-pio ne bis in idem (30), tutelado pelo art, 29., n. 5, da Constituio (3I).

    Alm destas objeces fundamentais que um tal tipo de responsabilidade suscita, contra a mesma dever ainda opor-se o significado que dela resulta para a compreenso desta sano pecuniria do direito penal (J2), Facilmente se intui que a principal preocupao que motiva estas previses legais a da arrecadao das quantias pecunirias tituladas pelas multas (33) e no a de lhes conferir efec-

    Ao que conseguimos apurar, nunca foi colocada perante o Tribunal Constitucional a ques-to da conformidade constitucional das normas legais que prevem uma responsabilidade civil peio paga-mento de multas aplicadas a terceiras. Na jurisprudncia comum, por entre virias acrdios que nSa questionam a bondade destas solues legais - v. g o Ac. do TRP de 19-09-2001 (Proc. n. 0110190) e os Acs. do TRG de 16-01-2006 (Proc. n." 2042/05-2) e de 06-02-2006 (Proc. n." 2433/05-1), todos em www.dgsi.pl , so de assinalar as reservas levantadas pelo Ac. do TRP de 09-02-2005 (Proc. n." 0445055, www.dgsi.pt): "A isto tudo se soma a ideia, que temos como essencial, que sendo a pena algo de fundado em razes individuais e pessoais, e que em funo disso mesmo determinada e moldaria em relano a um destinatrio concreto, se nos apresentar coma algo de duvidoso cabi-mento com os princpios de direito penal, esta possibilidade de, por assim dizer, se transmitir uma pena, ou que este tipo de considerandos no imponha, pelo menos, uma interpretado mais exigente dos nor-mativos que a contemplem".

    P"t Nesta direco, cf, ANTNIO DE A L M E I D A COSTA, A propsito do novo Cdigp do Tra-balho: bem jurdico e pluralidade de infraces no mbito das contra-ordenes relativas ao "traba-lho suplementar". Subsdio para uma dogmtica do Direito de Mera-Ordenao-Sociat-Laboral, in: Manuel da Costa Andrade et ai. (org,). Lber Discipulontm para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora. 2003, p, 1044, nota 11. J PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, A responsabilidade criminal das pessoas colectivas ou equiparadas, p, 643, faz referncia a questo da responsabilidade, subsidiria ou solidria, pelo pagamento de penas de multa aplicadas a terceiros, sem suscitar o problema da sua conformidade constitucional.

    (3I) Para mais referncias sohre o princpio do caso julgado, cf, Nuno BRANDO, Conheci-mento superveniente do concurso e revogao de penas de substituio, RPCC, 2005, 1 p . 140 e ss.

    (12) Cf., de novo, ANTNIO DE ALMEIDA COSTA, A propsito do novo Cdigo do Trabalho..., p. 1043 e s.

    ( ! J) o que pensa tambm ANTNIO D ALMSDA COSTA. A propsito do novo Cdigo do Tra-balho..., p. 1044.

  • O regime sancionatrio ilns pessoas colectivos nu reviso tio Cdigo Penal 471

    tividade, dado que os efeitos do seu incumprimento no so sentidos pela pessoa condenada, mas por um terceiro. Da resulta uma degradao da sua natureza san-cionatria numa natureza creditcia, pois as multas deixam de ser tratadas como sanes propriamente ditas e passam a ser concebidas como autnticos direitos de crdito titulados pelo Estado.

    Poderia contrapor-se que na ausncia desta responsabilidade subsidiria das pessoas singulares que exercem funes de liderana na pessoa colectiva estaria encontrado o caminho para que esta fosse facilmente subtrada ao cumprimento da pena de muita em que foi condenada. Objeco que no se afigura, todavia, pro-cedente, dado que se encontra sujeita a tutela penal, no mbito dos crimes falen-ciais, a conduta daquele que de forma dolosa ou negligente coloca ou no evita que a pessoa colectiva seja colocada numa situao de insolvncia. Por a sufi-cientemente acautelado o risco de delapidao do patrimnio social com vista ao no cumprimento da pena de multa em que a pessoa colectiva tiver sido conde-nada. O que revela a desnecessidade da previso da responsabilidade subsidiria pelo pagamento da multa constante do n. 9 do art. 1 1 d o Cdigo Penal, em imediata violao do princpio constitucional da intransmissibilidade da respon-sabilidade penal.

    5. Para terminar, s uma breve palavra sobre a outra pena principal aplic-vel s pessoas colectivas, a pena de dissoluo. Pena descrita como a pena capi-tal aplicvel s pessoas colectivas (34), embora radicalmente distinta e nem sequer comparvel pena de morte de uma pessoa fsica. Dado que a dissoluo con-duz prpria extino da pessoa colectiva, a sua aplicao est dependente de deter-minados pressupostos apertados.

    Ao contrrio, porm, do que sucede no diploma referente s infraces con-tra a economia e contra a sade pblica, em que a aplicabilidade da pena de dis-soluo restringida a apenas 3 crimes de especial gravidade (33), os arts. 90.-A, n. 1, e 90.D-F cominam a aplicao da pena de dissoluo a todos os crimes pre-vistos no n." 2 do art. 11." do Cdigo Penal.

    Atenta a sua especial gravidade, a pena de dissoluo est, em todo o caso, reser-vada para a situaes extremas em que a pessoa colectiva instrumentalizada, ab initio ou em momento ulterior, para a prtica dos referidos crimes pelas pessoas que nela exercem a liderana. Com efeito, segundo o art. 90.~F, "a pena de dissoluo decretada pelo tribunal quando a pessoa colectiva ou entidade equiparada tiver sido criada com a inteno exclusiva ou predominante de praticar os crimes indicados no n. 2 do artigo 1 1 o u quando a prtica reiterada de tais crimes mostre que a pes-

    (J

  • 472 Nuno Brando

    soa colectiva ou entidade equiparada est a ser utilizada, exclusiva ou predomi-nantemente, para esse efeito, por quem nela ocupe uma posio de liderana".

    A redaco legal inculca a ideia de uma preferncia pela pena de dissoluo em detrimento da pena de multa nestas situaes em que a pessoa colectiva transformada em instrumento da prtica de crimes s mos daqueles que nela detm uma posio de liderana.

    Ao contrrio da disciplina prevista no Decreto-Lei n. 28/84 ou no RG1T, o novo regime geral no admite a cumulao da pena de multa e da pena de dis-soluo, pelo que, condenando a pessoa colectiva por um dos crimes previstos no art. 11. n." 2, o Tribunal dever optar entre uma ou outra, tendo em conta os pres-supostos definidos para a pena de dissoluo e o critrio de escolha da pena que a vai implcito.

    6. A anlise empreendida - literalmente, por fora do curtssimo perodo decorrido desde a publicao da Lei n." 59/2007, uma primeira anlise permi-tiu perceber, creio, as linhas essenciais do novo regime geral sancionatrio das pes-soas colectivas e pr em destaque alguns dos seus aspectos positivos e negativos.

    O tempo disponvel no deixou espao para uma avaliao detida das penas de substituio da pena de multa (arts. 90.-C a 90.-E) e das penas acessrias (arts. 90.-G a 90.-M). a, todavia, que se joga boa parte da capacidade desse regime sancionatrio para responder s necessidades poltico-criminais colocadas pela actividade criminosa das pessoas colectivas. Apesar das reservas quanto sua amplitude e concreta configurao que naturalmente surgiro (3), o leque san-cionatrio parece-me ser suficientemente amplo para ir de encontro a essas exi-gncias na generalidade dos casos. Para o efeito, e recordando o princpio de coo-perao e repartio de tarefas entre o legislador e o juiz a que alude Figueiredo Dias (17), alm da existncia de meios para as viabilizar e tomai efectiva a sua apli-cao, essencial uma abertura de esprito da jurisprudncia para lanar mo desse catlogo de penas que tem sua disposio.

    ( 3 ) C f . j , v. as obse rvaes per t inen tes de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, A responsa-bilidade criminal pessoas colectivas ou equiparadas, p . 646, acerca da inexistncia de jma pena de suspenso da execuio da pena de multa,

    (") FIGUEIREDO DIAS, Direita Penal, parte Geral, II- AI Consequncias jurdicas da Crime, 245.