72
Immanuel KANT O CONFLITO DAS FACULDADES Textos Filosóficos edições 70

O-Conflito-Das-Faculdades kant 2.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • Immanuel KANT

    O CONFLITO DAS FACULDADES

    Textos Filosficos edies 70

  • Pr o leitor directamente em contacto com textos marcantes da histria da filosofia

    atravs de tradues feitas a partir dos respectivos originais,

    por tradutores responsveis, acompanhadas de introdues e

    notas explicativas foi o ponto de partida para esta coleco.

    O seu mbito estender-se- a todas as pocas e a todos os tipos

    e estilos de filosofia, procurando incluir os testos

    mais significativos do pensamento filosfico na sua multiplicidade e riqueza.

    Ser assim um reflexo da vibratilidade do esprito filosfico perante o seu tempo:

    perante a cincia e o problema do homem

    e do mundo.

  • Textos Filosficos Director da Coleco:

    ARTUR MORAO Professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Cincias

    Humanas da Universidade Catlica Portuguesa 1. Critica da Razio Pratica

    Immanuel Kant 2. investigao sobre o Entendimento Humano

    David Hume 3. Crepsculo dos dolos

    Friedrich Nietzche 4. Discurso de Metafsica Gottfried Whilheim Leibniz

    5. Os Progressos da Metafsica Immanuel Kant

    6. Regras para a Direco do Esprito Ren Descartes

    7. Fundamentao da Metafsica dos Costumes Immanuel Kant

    8. A Ideia da Fenomenologia Edmund Husserl

    9. Discurso do Mtodo Ren Descartes

    10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor Soren Kierkegaard

    11. A Filosofia na Idade Trgica dos Gregos Friedrich Nietzche

    12. Carta sobre Tolerncia John Locke

    13. Prolegmenos a Toda a Metafsica Pura Immanuel Kant

    14. Tratado da Reforma do Entendimento Bento de Espinosa

    15. Simbolismo: Seu Significado e Efeito Alfred North Whitehead

    16. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Conscincia Henri Bergson

    17. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. I) Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    18. A Paz Perptua e Outros Opsculos Immanuel Kant

    19. Dilogo sobre a Felicidade Santo Agostinho

    20. Princpios sobre a Felicidade Ludwig Feurbach

    21. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. Ill Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    22. Manuscritos Econmico-FUosficos Karl Marx

    23. Propedutica Filosfica Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    24. O Anticristo Friedrich Nietzche

    25. Discurso sobre a Dignidade do Homem Giovanni Pico delia Mirandola

    26. EcceHomo Friedrich Nietzche

    27. O Materialismo Racionai Gaston Bachelard

    28. Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza Immanuel Kant

    29. Dilogo de um Filsofo Cristo edeum Filsofo Chins Nicolas Malebranche

    30. O Sistema da Vida tica Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    31. Introduo Histria da Filosofia Oeorg Wilhelm Friedrich Hegel 32. As Conferncias de Paris

    Edmund Husserl 33. Teoria das Concepes do Mundo

    Wilhelm Dilthey 34. A Religio nos Limites da Simples Razo

    Immanuel Kant 35. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. Ill)

    Georg Wilhelm Friedrich Hegel 36. Investigaes Filosficas Sobre a Essncia da Liberdade Humana

    F.W.J. Schilling

    O CONFLITO DAS FACULDADES

  • Titulo original: Der Streit der Fakultten

    desta traduo: Artur Moro e Edies 70, 1993

    Traduo: Artur Moro

    Capa de Edies 70

    Reviso tipogrfica dos servios de Edies 70

    Depsito Legal n? 67101/93

    ISBN 972-44-0883-3

    Todos os direitos reservados para lingua portuguesa por Edies 70, Lda., Lisboa PORTUGAL

    EDIES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123-2? 1000 Lisboa Telefs.: 315 87 52 / 315 87 53

    Fax: 315 84 29

    Esta obra est protegida pela Lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte,

    qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso Lei dos Direitos de Autor ser

    passvel de procedimento judicial.

    Immanuel KANT

    O CONFLITO DAS FACULDADES

    edies 70

  • Dedicado pelo autor ao Senhor Cari Friedrich Studlin

    Doutor e Professor em Gotinga

    PREFCIO

    Que as pginas presentes, a que um governo ilus-trado, libertando o esprito humano das suas cadeias e, justamente graas a esta liberdade de pensar, quali-ficado para suscitar uma obedincia tanto mais pron-ta, possam tambm justificar ao mesmo tempo a liberdade, que o autor para si toma, de as fazer pre-ceder por um curto relato do que lhe diz respeito nesta alterao das coisas.

    O rei Frederico Guilherme II, soberano corajoso, honesto, filantropo e abstraindo de certas proprie-dades temperamentais de todo excelente, que tam-bm conhecia pessoalmente e me fazia chegar de tempos a tempos manifestaes da sua benevolncia, tinha publicado em 1788, por sugesto de um eclesis-tico promovido ulteriormente a ministro no mbito religioso, a quem no h em toda a justia nenhuma razo para atribuir outras intenes a no ser boas, fundadas na sua convico interior, um edito de reli-gio e, logo a seguir, um edito de censura que em geral limitava muito a actividade literria e, por con-seguinte, reforava tambm aquele. No pode negar-se que certos sinais precursores, que precederam a exploso ocorrida em seguida, devem ter recomendado ao governo a necessidade de uma reforma naquele

    9

  • campo; o que se deveria alcanar pela via pacfica da formao acadmica dos futuros mestres pblicos do povo, pois estes, como jovens eclesisticos, tinham elevado o seu discurso no plpito a um tom tal que quem compreende o chiste no se deixar decerto converter por semelhantes mestres.

    Ora no momento em que o edito de religio exercia uma viva influncia tanto sobre autores autctones como estrangeiros apareceu tambm o meu tratado intitulado A Religio nos Limites da Simples Ra-zox; e visto que eu, para no ser acusado de utilizar sendas secretas, ponho o meu nome em todos os meus escritos, foi-me dirigido, no ano de 1794, o seguinte rescrito real a cujo respeito estranho que, tendo eu feito conhecer a sua existncia apenas ao meu mais ntimo amigo, s agora, e no antes, foi conhecido do pblico.

    Frederico Guilherme, pela graa de Deus rei da Prssia, etc., etc. Antes de mais, a nossa graciosa saudao. Digno e muito erudito, caro sbdito! A nossa suprema pessoa constatou j h longo tempo com grande desgosto que fazeis um mau uso da vossa filosofia para deformar e degradar as doutrinas capi-tais e fundamentais da Sagrada Escritura e do cristia-nismo; que fizestes tal sobretudo no vosso livro A Religio nos Limites da Simples Razo, bem como noutros tratados mais pequenos. Espervamos melhor da Vossa parte; pois Vs mesmo deveis reconhecer de que modo irresponsvel agis assim contra o vosso dever, enquanto mestre da juventude, e contra as nossas intenes soberanas, que Vos so muito conhecidas.

    1 Este ttulo foi, pois, intencionalmente dado, para que o tratado no

    fosse interpretado como se houvesse de considerar a religio a partir da simples razo (sem revelao). Teria sido, de facto, uma pretenso dema-siada, porque poderia muito bem acontecer que as suas doutrinas ema-nassem de homens sobrenaturalmente inspirados; quis apenas apresentar numa conexo o que, no texto, da religio tida por revelada, a Bblia, po-de ser reconhecido tambm pela simples razo.

    10

    Exigimos quanto antes a mais escrupulosa justificao e esperamos de Vs, para evitar o nosso supremo desfa-vor, que no futuro no Vos torneis culpado de coisas semelhantes mas, ao invs, de harmonia com o vosso dever, utilizeis a vossa considerao e os vossos talentos para realizar cada vez mais a nossa inteno soberana; caso contrrio, e se persistirdes em ser refractrio, te-reis de esperar infalivelmente medidas desagradveis.

    Vosso afectuoso Rei. _ _, \J3H

    Berlim, 1 de Outubro de 1974 Por ordem especial muito graciosa de sua Majes-

    tade real: Wllner

    Ab extra Ao nosso digno e muito erudito Pro-fessor, o caro sbdito Kant, em Knigsberg na Prs-sia, praesentat. d. 12 de Outubro de 1794.

    A tal respeito enviei, da minha parte, a humlima resposta seguinte.

    Muito gracioso, etc., etc. A ordem suprema de Vossa Majestade real, que

    me foi dirigida a 1 de Outubro e me chegou a 12, im-pe-se como mais submisso dever, primeiro, fornecer uma justificao escrupulosa de ter utilizado abusi-vamente a minha filosofia para deformar e degradar muitas doutrinas capitais e fundamentais da Sagrada Escritura e do cristianismo, sobretudo no meu livro A Religio nos Limites da Simples Razo, bem como noutros tratados mais pequenos, e ainda da culpa em que teria incorrido por ter transgredido o meu dever, enquanto mestre da juventude, e contrariamente s intenes do soberano, de mim muito conhecidas.

    Em segundo lugar, tambm no incorrer no futuro em culpas semelhantes. Quanto aos dois

    11

  • pontos, no deixo de pr aos ps de Vossa Majestade a prova da minha mais humilde submisso na decla-rao seguinte:

    No tocante ao primeiro, a saber, a acusao contra mim levantada, eis a minha justificao escru-pulosa:

    Enquanto mestre da juventude, i.e., tanto quanto entendo, jamais interpolei ou me foi possvel interpo-lar, em lies acadmicas, uma apreciao da Sagrada Escritura e do cristianismo; o que j demons-tram os manuais de Baumgarten que tomei como base, os nicos que poderiam ter alguma relao com semelhante exposio. Neles no se inclui sequer um ttulo que se refira Bblia e ao cristianismo e, enquanto filosofia pura, tambm o no poderiam incluir; menos ainda me pode ser censurado o erro de divagar para l dos limites da cincia proposta, ou de os confundir, pois sempre o denunciei e contra ele admoestei.

    Como educador do povo, em escritos, sobretudo no livro A Religio nos Limites, etc., nunca fui con-tra as intenes supremas e soberanas, de mim muito conhecidas, i.e., no causei dano religio pblica do pas; o que j evidente em virtude de esse livro no ser para tal apropriado, antes um livro ininteli-gvel e ocluso para o pblico e representa somente uma disputa entre eruditos da Faculdade, disputa de que o povo nada sabe; mas, a este respeito, as pr-prias Faculdades permanecem livres para publicamen-te julgar, segundo o seu melhor saber e conscincia; e que s os mestres populares constitudos (nas escolas e nos plpitos) esto vinculados ao resultado destas discusses que a autoridade do pas sanciona em vista da exposio pblica; e, sem dvida, porque a ltima no inventou ela prpria a sua f religiosa peculiar, mas conseguiu obt-la apenas pelo mesmo caminho, a saber, o exame e a rectificao pelas Faculdades com-petentes (a teolgica e a filosfica), por conseguinte, o poder soberano no s est autorizado a admitir

    12

    estas, mas tambm a delas exigir que, pelos seus es-critos, tragam ao conhecimento do governo tudo o que elas acham benfico para uma religio pblica do pas.

    No livro supra mencionado, porque no contm qualquer apreciao do cristianismo, no, pude tor-nar-me culpado de uma sua depreciao: com efeito, ele s encerra, em vigor, a apreciao da religio na-tural. A semelhante falsa interpretao apenas pode ter dado aso a citao de algumas passagens bblicas, para confirmar certas doutrinas puramente racionais da religio. Mas o falecido Michaelis, que assim pro-cedia na sua moral filosfica, explicou-se j a este respeito, ao afirmar que de nenhum modo intentava introduzir assim algo de bblico na filosofia nem de extrair algo de filosfico da Bblia, mas conferir somente s suas proposies racionais claridade e cor-roborao mediante a consonncia verdadeira ou pre-tensa com outros juzos (talvez de poetas e oradores). Mas se a razo se expressa ento como se a si mesma se bastasse e a Revelao fosse, portanto, suprflua (o que a entender de modo objectivo se deveria realmente considerar como depreciao do cristianismo), tal nada mais seria do que a expresso da sua prpria valorao; no quanto ao seu poder, segundo o que ela prescreve fazer; mas enquanto dela apenas brota a universalidade, a unidade e a necessi-dade das doutrinas de f que constituem em geral o essencial de uma religio, a saber, o moralmente pr-tico (o que devemos fazer); em contrapartida, aquilo de que por argumentos histricos temos motivo para acreditar (pois no impera aqui qualquer dever), i.e., a Revelao enquanto doutrina de f em si contingen-te, considerado como no essencial, no porm, como desnecessrio e suprfluo; a Revelao , de facto, til para suprir a deficincia terica da pura f racional, carncia que esta no nega, por exemplo, nas questes sobre a origem do mal, a passagem deste ao bem, a certeza do homem de estar no derradeiro esta-

    13

  • do, etc., e porque contribui mais ou menos, de acor-do com a diversidade das circunstncias de tempo e de pessoas, enquanto satisfao de uma necessidade da razo.

    Demonstrei, ademais, a minha grande e elevada estima pelas doutrinas bblicas de f no cristianismo entre outras coisas tambm pela declarao, no livro supra mencionado, de que a Bblia por mim louva-da como o melhor guia da instruo religiosa pblica, til para a fundao e a conservao, por tempos incontveis, de uma religio nacional verdadeiramente restauradora das almas, e onde censuro e considero prejudicial a presuno de levantar objeces e dvi-das contra as suas doutrinas, que encerram mistrios, nas escolas ou nos plpitos ou em escritos populares (pois tal deve ser permitido nas Faculdades); no en-tanto, no se trata ainda da maior demonstrao de reverncia pelo cristianismo. Com efeito, a sua con-sonncia aqui aduzida, com a mais pura f moral da razo constitui o seu melhor e mais duradoiro enc-mio; porque justamente assim, e no pela erudio histrica, que o cristianismo, tantas vezes degenera-do, sempre de novo se restabelece em fadrios seme-lhantes, que no deixaro no futuro de surgir.

    Por fim, como sempre e acima de tudo recomendei a outros adeptos da f uma sinceridade escrupulosa, para no asserir e impor a outros como artigos de f mais do que aquilo de que eles esto certos, sempre imaginei em mim mesmo, na redaco dos meus escri-tos, este juiz como estando a meu lado para me desviar no s de todo o erro prejudicial alma, mas at de to-do o mpeto que gerasse imprudncia no estilo; por is-so, agora nos meus 71 anos de idade, em que facilmente desponta o pensamento de que pode muito bem aconte-cer ter eu de responder em breve por tudo isto perante um juiz do mundo como perscrutador dos coraes, posso entregar a presente justificao de mim exigida a propsito da minha doutrina, como redigida candida-mente com toda a rectido.

    14

    No tocante ao segundo ponto, de no futuro no vir a ser inculpado de semelhante deformao e de-preciao (incriminada) do cristianismo tenho por mais seguro, para prevenir a tal respeito tambm a mnima suspeita, declarar aqui do modo mais solene, como o mais fiel sbdito de Vossa Majestade2, que doravante me absterei inteiramente de toda a exposi-o pblica concernente religio, quer a natural quer a revelada, tanto nas lies como nos escritos.

    Na mais profunda devoo esmoreo, etc.

    conhecida a ulterior histria do impulso cont-nuo para uma f que se afasta sempre mais da razo.

    O exame dos candidatos aos empregos eclesisti-cos foi doravante confiado a uma comisso de f, que se apoiava num schema examination^ de recorte pietista, comisso que afugentou em chusma srios candidatos em teologia dos empregos eclesisticos e sobrepovoou a Faculdade de direito; uma espcie de emigrao que, por acaso, tambm conseguiu ter a sua utilidade. Para dar uma pequena ideia do esp-rito desta comisso, aps a exigncia de uma contri-o que precedia necessariamente o perdo, requeria--se ainda uma profunda dor compungida (maeror animi), e perguntava-se ento a seu respeito se o homem tambm a si mesmo a poderia proporcionar. Quod negandum ac pernegandum era a resposta; o pecador arrependido deve suplicar em especial ao cu este arrependimento. Mas salta aos olhos que quem tem de implorar o arrependimento (pela sua transgresso) no se arrepende verdadeiramente do seu acto; o que parece to contraditrio como quando se diz da orao que, para ser ouvida, deve ter lugar na f. De facto, se o orante tem f, ento no precisa de a pedir; mas se a no tem, no pode orar de modo a ser ouvido.

    2 Escolhi cuidadosamente esta expresso a fim de no renunciar

    para sempre liberdade do meu juzo neste processo de religio, mas apenas enquanto Sua Majestade vivesse.

    15

  • Presentemente, j se ps cobro a este dislate. Com efeito, no s para o bem cvico da coisa pbli-ca em geral, para o qual a religio uma necessidade pblica muito importante, mas sobretudo para vanta-gem das cincias, graas a uma comisso superior das escolas instituda para o seu fomento produziu-se h pouco o evento feliz de a escolha de um sbio go-verno ter incidido num homem de Estado ilustrado que possui a vocao, o talento e a vontade, no em virtude de uma preferncia exclusiva por uma disci-plina particular (a teologia), mas em vista do interes-se geral de todo o corpo docente, para seu respectivo fomento, e assegurar assim o desenvolvimento da cultura no campo das cincias contra todos os novos ataques dos obscurantistas.

    Sob o ttulo geral O Conflito das Faculdades aparecem aqui trs dissertaes por mim redigidas com propsito diverso, e tambm em pocas diferen-tes; so, no entanto, graas sua reunio numa obra, apropriadas para formar uma unidade sistemtica. S mais tarde me dei conta de que elas, enquanto dispu-ta da Faculdade inferior com as trs Faculdades supe-riores, se poderiam muito bem reunir (a fim de evitar a disperso) num s volume.

    16

    PRIMEIRA PARTE

    O Conflito da Faculdade de Filosofia com a Teolgica

  • INTRODUO

    No foi uma inspirao calamitosa a de quem pri-meiro concebeu o pensamento e o props realizao pblica de tratar todo o conjunto do saber (em rigor, das cabeas a ele votadas) por assim dizer industrial-mente em que, graas diviso do trabalho, se no-meariam tantos mestres pblicos, professores, quan-tos os ramos das cincias; seriam eles como os seus depositrios, formariam em conjunto uma espcie de entidade colectiva erudita, chamada universidade (ou escola superior), que teria a sua autonomia (pois s eruditos podem, enquanto tais, julgar eruditos); por conseguinte, a universidade, graas s suas Faculda-des3 (pequenas sociedades diferentes, segundo a di-versidade dos principais ramos da erudio em que se dividem os outros universitrios), autorizada quer a admitir os alunos das escolas inferiores que a ela aspiram, quer a fornecer mestres livres (que no consti-

    3 Cada uma delas tem o seu Decano, como director da Faculdade.

    Este titulo, tirado da astrologia, que designava originariamente um dos trs gnios astrais que presidiam a um signo do Zodaco (de 30?), cada um dos quais governa 10 graus, foi transportado, primeiro, dos astros para os acampamentos (ab astris ad castra). Ver Salmasius, De annis climacteriis, p. S61) e, por fim, at para as universidades; sem se ter em conta o nmero 10 (dos professores), no h que levar a mal aos eruditos por de tal no se terem esquecido, eles que foram os primeiros a imaginar quase todos os titulos honorficos com que se adornam hoje os homens de Estado.

    19

  • tuem membros seus), chamados doutores, aps exa-me prvio e por poder prprio, com uma categoria universalmente reconhecida (para lhes conferir um grau), i.e., os criar.

    Alm destes eruditos corporativos, pode ainda ha-ver independentes, que no pertencem universidade; mas, ao cultivarem simplesmente uma parte do gran-de conjunto do saber, constituem certas corporaes livres (chamadas Academias, e tambm Sociedades das Cincias) como outras tantas oficinas ou vivem, por assim dizer, no estado de natureza da erudio, ocupando-se cada qual por si, sem prescrio e regu-lamento pblicos, do seu aumento ou difuso, como amador.

    Importa ainda distinguir dos autnticos eruditos os letrados (pessoas que fizeram estudos), os quais, como instrumentos do governo, por este investidos num cargo pblico para um fim peculiar seu (no precisamente para o maior bem da cincia), devem decerto ter estudado na universidade mas, em todo o caso, podem igualmente j muito ter esquecido (no tocante teoria); basta-lhes ter retido o que neces-srio para cumprir uma funo pblica que, segundo os seus princpios fundamentais, pode emanar apenas dos sbios, a saber, o conhecimento emprico dos es-tatutos da sua funo (portanto, no tocante prti-ca); podem, pois, denominar homens de afazeres ou tcnicos do saber. Enquanto instrumento do governo (eclesisticos, magistrados e mdicos) tm uma influn-cia legal sobre o pblico e formam uma classe parti-cular de letrados que no so livres de fazer um uso pblico do saber, de acordo com a sua sabedoria peculiar, mas apenas sob a censura das Faculdades; porque se dirigem directamente ao povo, composto de ignorantes (como, porventura, o clero aos leigos) e detm em parte, na sua especialidade, o poder executi-vo, se no legislativo, devem ser muito rigorosamente mantidos na ordem pelo governo, a fim de no descura-rem o poder judicial, que cabe s Faculdades.

    20

    DIVISO DAS FACULDADES EM GERAL

    Segundo o uso adoptado, elas dividem-se em duas classes: a das trs Faculdades superiores e a da Facul-dade inferior. V-se bem que, nesta diviso e denomi-nao, no foi consultada a ordem dos eruditos, mas o governo. Com efeito, entre as Faculdades superio-res contam-se somente aquelas em cujas doutrinas o governo est interessado, se elas devem ser constitu-das assim ou assado ou publicamente expostas; pelo contrrio, aquela que unicamente tem de velar pelo interesse da cincia diz-se inferior, porque pode lidar com as suas proposies como lhe aprouver. O que mais interessa ao governo o meio de ele manter a mais forte e duradoira influncia sobre o povo.e desta natureza so os objectos das Faculdades superiores. Por isso, reserva-se o direito de ele prprio sancio-nar as doutrinas das Faculdades superiores; quanto s da Faculdade inferior, deixa-as para a razo peculiar do povo erudito. Embora sancione tais dou-trinas, ele (o governo) no ensina, mas pretende ape-nas que certas doutrinas sejam acolhidas pelas respec-tivas Faculdades na sua exposio pblica, com excluso das doutrinas contrrias. De facto, ele no ensina, mas ordena somente aos que ensinam (lide-se com que verdade se quiser), porque, ao tomar posse do seu cargo4, concordaram com isso mediante um contrato com o governo. Um governo que se

    4 preciso confessar que o principio do Parlamento britnico de

    considerar o discurso do trono do rei como uma obra do seu ministro (pois seria contrario dignidade de um monarca deixar-se censurar pe-los erros, pela ignorncia ou falsidade, embora a Cmara deva ter, por seu lado, o direito de julgar o contedo do discurso, de o examinar e contestar), que este principio, digo eu, est excogitado com muita fine-za e correco. A seleco de certas doutrinas que o governo sanciona exclusivamente para a exposio pblica deve tambm permanecer su-jeita ao exame dos peritos, porque no se deve considerar como o pro-duto do monarca, mas de um funcionrio para tal indigitado, acerca do qual se supe que poderia muito bem no ter entendido correcta-mente, ou at teria deturpado, a vontade do seu senhor.

    21

  • ocupasse das doutrinas, portanto, da ampliao ou melhoria das cincias, por conseguinte, ele prprio, na suprema pessoa, pretendesse brincar aos sbios, per-deria apenas, graas a tal pedantismo, o respeito que lhe devido, e est abaixo da sua dignidade tornar-se ntimo do povo (com a sua classe de eruditos) que no compreende nenhum chiste e trata de modo an-logo todos os que se ocupam de cincia.

    Importa absolutamente que, na universidade, se d ainda comunidade erudita uma Faculdade que, independente das ordens do governo quanto s suas doutrinas5, tenha a liberdade, no de proferir ordens, mas pelo menos de julgar todas as que tm a ver com o interesse cientfico, i.e., com o da verdade, em que a razo deve estar autorizada a publicamente falar; porque, sem semelhante liberdade, a verdade no viria luz (para dano do prprio governo), mas a razo livre por sua natureza e no acolhe nenhuma ordem para aceitar algo como verdadeiro (nenhum crede, mas apenas um credo livre). Reside, porm, na natureza do homem a causa por que semelhante Faculdade, no obstante esta grande vantagem (da li-berdade), denominada inferior; com efeito, quem pode mandar embora seja um humilde servo de ou-trem, imagina-se superior a outro que , sem dvida, livre, mas a ningum tem de dar ordens.

    5 Um ministro francs mandou vir junto de si alguns dos mais

    conceituados comerciantes e pediu-lhes sugestes sobre a maneira de promover o comrcio, como se delas pretendesse escolher a melhor. Aps um ter proposto isto, e outro aquilo, um velho comerciante que estivera calado durante muito tempo disse: Criai boas estradas, cunhai boa moeda, institui um pronto direito cambial, e coisas semelhantes. Quanto ao mais, porm, deixai-nos a ns fazer. Seria esta, mais ou menos, a resposta que a Faculdade filosfica teria para dar, se o Governo a consultasse sobre as doutrinas que em geral haveria de pres-crever aos eruditos: unicamente no impedir o progresso dos conheci-mentos e das cincias.

    22

    I Da Condio das Faculdades

    Seco I CONCEITO E DIVISO

    DAS FACULDADES SUPERIORES

    Pode supor-se que todas as instituies artificiais que tm por fundamento uma ideia da razo (como a de um governo) que se deve demonstrar praticamente num objecto da experincia (como, por exemplo, todo o campo actual do saber) foram testadas, no pela acu-mulao simplesmente casual e pela justaposio arbi-trria dos factos ocorridos, mas segundo um qualquer princpio nsito, ainda que s de modo obscuro, na ra-zo e de acordo com um plano nele fundado, que torna necessria uma certa espcie de diviso.

    Por este motivo, pode admitir-se que a organizao de uma universidade, quanto s suas classes e Faculda-des, no dependeu de todo do acaso, mas que o gover-no, sem lhe atribuir justamente por isso uma sabedoria e um saber precoces, j em virtude da sua peculiar ne-cessidade sentida (de agir sobre o povo mediante certas doutrinas), conseguiu chegar a priori a um princpio de diviso que, alis, parece ser de origem emprica, prin-cpio que afortunadamente se harmoniza com o princ-pio agora adoptado; se bem que eu nem por isso preten-da defend-la, como se estivesse isenta de defeitos.

    23

  • Segundo a razo (i.e., objectivamente), os moti-vos que o governo pode utilizar para o seu fim (ter influncia sobre o povo) encontram-se na ordem seguinte: em primeiro lugar, o bem eterno de cada um; em seguida, o bem civil como membro da sociedade; por fim, o bem corporal (viver longamente e ter sa-de). Mediante as doutrinas pblicas em relao ao primeiro, o prprio governo pode ter a mxima in-fluncia sobre o intimo dos pensamentos e os mais recnditos desgnios da vontade dos seus sbditos, a fim de descobrir aqueles e dirigir estes; graas s que se referem ao segundo, pode manter o seu comporta-mento externo sob o freio das leis pblicas; por meio do terceiro, assegurar a existncia de um povo forte e numeroso que achar utilizvel para os seus propsi-tos. Segundo a razo, pois, descobrir-se-ia, sem dvida, a ordem de precedncia habitualmente adop-tada entre as Faculdades superiores; a saber, primeiro, a Faculdade teolgica, a seguir, a dos Juristas e, em ltimo lugar, a Faculdade de medicina. Pelo con-trrio, de acordo com o instinto natural, o mdico seria para o homem o de maior importncia, porque lhe conserva a sua vida; em seguida, o jurista, que promete preservar-lhe os seus bens contingentes, e s em ltimo lugar (quase s beira da morte) se iria buscar o eclesistico, embora se lide decerto com a beatitude; porque tambm este, por mais que celebre a felicidade do mundo futuro, deseja ardentemente, j que nada divisa de tal felicidade, conservar-se sem-pre ainda algum tempo, graas ao mdico, neste vale de lgrimas.

    * * *

    Todas as trs Faculdades superiores baseiam na escrita o ensino que lhes confiado pelo governo o que no pode ser de outro modo na situao de um

    24

    povo orientado pelo saber porque, sem ela, no poderia haver nenhuma forma permanente, acessvel a todos, pela qual se poderia orientar. evidente que semelhante escrito (Ou livro) deve conter estatutos, i.e., doutrinas que emanam do arbtrio de um supe-rior (no promanando por si da razo); de outro modo, no poderia exigir simplesmente a obedincia como sancionada pelo governo, e isto vale tambm para o prprio cdigo, no tocante s doutrinas a expor publicamente, as quais se poderiam ao mesmo tempo deduzir da razo, mas no tem por esta qualquer considerao e toma por fundamento a ordem de um legislador externo. Do cdigo enquanto cnon so de todo diferentes os livros redigidos pelas Faculda-des como epitome (pretensamente) completa do esp-rito do cdigo em vista da noo mais compreensvel e do uso mais seguro da coisa pblica (pelos eruditos e iletrados); assim, por exemplo, os livros simblicos. Eles podem apenas exigir ser olhados como rganon para facilitar o acesso ao cdigo e no tm autorida-de alguma; nem sequer em virtude de os principais eruditos, num certo ramo, terem concordado em con-siderar semelhante livro como norma para a sua Fa-culdade, coisa para que no so competentes, mas para os introduzir interinamente como mtodo de ensino que permanece mutvel segundo as circuns-tncias temporais e pode em geral concernir apenas forma da exposio, porm, sem valor algum na substncia da legislao.

    Por isso, o telogo bblico (como adscrito Fa-culdade superior) no vai buscar os seus ensinamen-tos razo, mas Bblia', o professor de Direito no vai beber ao direito natural, mas ao direito consuetu-dinrio', e o perito em medicina no vai buscar o seu mtodo teraputico destinado ao pblico fsica do corpo humano, mas ao ordenamento mdico. Lo-go que uma destas Faculdades ousa introduzir algo como derivado da razo, ofende a autoridade do governo que por ela ordena e entra na cerca da filos-

    25

  • fica, a qual lhe tira sem piedade toda a brilhante plu-magem por aquele resguardada, procedendo como ela num p de igualdade e de liberdade. Eis porque as Faculdades superiores devem sobretudo cuidar de no contrair um casamento desigual com a Faculdade in-ferior, mas de habilmente a manter a uma distncia respeitosa de si, para que a considerao dos seus estatutos no sofra qualquer dano por meio do livre sofismar da ltima.

    A. Peculiaridade da Faculdade Teolgica

    O telogo bblico prova que Deus existe por Ele se ter expressado na Bblia, na qual tambm fala da sua natureza (mesmo at onde a razo com a Escritura no pode manter o passo, por exemplo, a propsito do mistrio inacessvel da trplice personalidade). Mas que o prprio Deus tenha falado por meio da Bblia, eis o que o telogo bblico no pode nem deve como tal demonstrar, porque se trata de um afazer histrico; com efeito, tal incumbe Faculdade filosfica. Fund-lo-, pois, como matria de f num certo sentimento da divindade desta, mesmo para o erudito (sentimento, sem dvida, indemonstrvel ou inexplicvel), mas de nenhum modo poder, na expo-sio pblica ao povo, levantar a questo desta ori-gem divina (tomada em sentido literal); pois o povo nada a entende enquanto matria de erudio e enre-dar-se-ia unicamente em indiscretos devaneios e dvi-das; pelo contrrio, pode aqui contar-se muito mais seguramente com a confiana que o povo tem nos seus mestres. No pode igualmente ser autorizado a atribuir s sentenas da Escritura um sentido que no concorde exactamente com a expresso, por exemplo, um sentido moral, e como no h nenhum exegeta humano autorizado por Deus, o telogo b-blico deve mais contar com a abertura sobrenatural da compreenso por um Esprito que conduz a toda a

    26

    verdade do que admitir que a razo se imiscua e faa valer a sua interpretao (carente de toda a suprema autoridade). Por fim, no tocante ao cumprimento dos mandamentos divinos quanto nossa vontade, o telogo bblico no deve sequer confiar na natureza, i.e., no prprio poder moral do homem (a virtude), mas na graa (influncia sobrenatural, se bem que simultaneamente moral) que o homem s pode parti-lhar mediante uma f que transforme intimamente o corao; esta f, por seu turno, s a pode esperar de graa. Se o telogo bblico, no tocante a qualquer uma destas proposies, no se intromete na razo, supondo que esta gravita com a maior sinceridade e a mxima seriedade em torno da mesma meta, salta (como o irmo de Rmulo) o muro da f eclesial, a nica beatificante, e perde-se no campo raso do juzo prprio e da sua filosofia, onde, subtrado discipli-na eclesistica, se encontra exposto a todos os perigos da anarquia. Importa, porm, notar que no falo aqui do telogo bblico puro (purus, putus), ainda no contaminado pelo mal afamado esprito de liber-dade da razo e da filosofia. Com efeito, logo que misturamos e deixamos que dois assuntos de ndole diversa se confundam entre si, no conseguimos ela-borar um conceito exacto da especificidade de cada qual.

    B. Peculiaridade da Faculdade de Direito

    O jurista erudito no busca as leis que garantem o meu e o teu (se, como deve, proceder como funcion-rio do governo) na sua razo, mas no cdigo oficial-mente promulgado e sancionado pela autoridade suprema. No pode justamente exigir-se dele a demons-trao da sua verdade e legitimidade, nem a sua defesa contra a objeco antagnica da razo. De facto, os decretos que primeiramente fazem que algo seja justo, e indagar se tambm os prprios decretos so

    27

  • justos algo que os juristas tm de rejeitar como absurdo. Seria ridculo pretender subtrair-se obedin-cia perante uma vontade externa e suprema sob o pretexto de que esta no se harmoniza com a razo. Com efeito, o respeito devido ao governo consiste precisamente em que ele no permite aos sbditos a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo os seus conceitos prprios, mas de acordo com a prescrio do poder legislativo.

    Num ponto, porm, a situao da Faculdade de direito , na prtica, melhor do que a teolgica; pos-sui, de facto, um intrprete visvel das leis, a saber, ou num juiz ou, na apelao por ele, numa comisso jurdica e (em ltima instncia) no prprio legislador o que no se passa to bem na Faculdade de teo-logia, quanto interpretao das sentenas de um livro sagrado. Contudo, esta vantagem , por outro lado, contrabalanada por um no menor inconvenien-te, a saber, que os cdigos mundanos devem perma-necer sujeitos a modificao, conforme a experincia fornece mais ou melhores ideias, ao passo que o livro sagrado no ordena qualquer mudana (diminuio ou ampliao) e assere estar para sempre fechado. A queixa dos juristas de que quase impossvel espe-rar uma norma exactamente determinada da adminis-trao do direito (ius certum) no tem lugar no telogo bblico. Com efeito, este no se deixa privar da pretenso de que a sua dogmtica no contenha semelhante norma clara e determinada para todos os casos. Se, alm disso, os peritos do direito (advoga-dos ou comissrios da justia) que aconselharam mal o cliente, causando-lhe assim dano, no querem, no entanto, ser a tal respeito responsveis (ob consilium nemo tenetur), ento os telogos prticos (pregadores e directores espirituais) assumem sem reserva a res-ponsabilidade e asseveram, a saber, enfaticamente, que tudo ser julgado no mundo futuro como eles neste decidiram; embora se viessem provavelmente a desculpar, se fossem intimados a explicar-se de modo

    28

    formal se se arriscam a proporcionar a garantia da verdade de tudo o que eles querem que, pela auto-ridade bblica, seja objecto de f. No entanto, prprio da natureza dos princpios destes mestres populares no pr de modo algum em dvida a exactido das suas afirmaes; o que podem decerto fazer com tanto maior segurana quanto no tm de recear nesta vida qualquer refutao sua, mediante a experincia.

    C. Peculiaridade da Faculdade de Medicina

    O mdico um artista que, no entanto, em virtu-de de a sua arte no ser directamente extrada da natureza e ter, por isso, de se derivar de uma cincia da natureza, est subordinado, como perito, a qualquer faculdade em que teve de fazer os seus estudos e per-manecer sujeito ao seu juzo. Mas visto que o governo tem necessariamente grande interesse no modo como o mdico trata a sade do povo, tem a autori-dade para, graas a uma assembleia de agentes esco-lhidos desta Faculdade (mdicos prticos), velar pelo processo pblico dos mdicos mediante uma comisso superior da sade e prescries medicinais. As lti-mas, porm, por causa da caracterstica particular desta Faculdade que no deve ir buscar as suas regras de conduta, como as duas precedentes Faculdades superiores, s ordens de um chefe, mas prpria natu-reza das coisas as suas doutrinas deveriam, por isso, depender tambm originariamente da Faculdade filosfica, tomada em acepo mais ampla no consistem tanto no que os mdicos devem fazer quanto no que tm de omitir: primeiro, deve em geral haver mdicos para o pblico; em segundo lugar, no haver pseudo-mdicos (nenhum ius impune occidendi, segundo o princpio: fiat experimentum in corpore vili). Por conseguinte, visto que o governo, segundo o primeiro princpio, vela pelo conforto pblico, de

    29

  • acordo com o segundo, pela segurana pblica (no tocante sade do povo), mas estes dois pontos constituem uma polcia, ento toda a regulao mdica diz, em rigor, apenas respeito polcia mdica.

    Esta Faculdade , pois, muito mais livre do que as duas primeiras entre as superiores, e tem uma afini-dade muito grande com a filosfica; mais ainda, no tocante s suas doutrinas, destinadas a formar mdi-cos, inteiramente livre, porque no pode haver para ela livros sancionados pela autoridade suprema, mas somente livros extrados da natureza; nem tambm qualquer lei genuna (se por tal se entender a vontade inflexvel do legislador), mas apenas prescries (di-tos), cujo conhecimento no constitui um saber; para tal exige-se um complexo sistemtico de doutrinas que decerto a Faculdade possui, mas para cuja san-o (enquanto no contida em cdigo algum) o governo no tem competncia, mas a ela a deve deixar; pensar, no entanto, somente em fomentar a prtica dos versados no uso pblico, mediante dispensrios e instituies hospitalares. Porm, estes homens ver-sados (os mdicos) permanecem sujeitos ao juzo da sua Faculdade nos casos que, enquanto concernentes polcia mdica, interessam ao governo.

    Seco II CONCEITO E DIVISO

    DA FACULDADE INFERIOR

    Pode denominar-se Faculdade inferior a classe da universidade que s, ou enquanto, se ocupa de dou-trinas que no so aceites como princpio regulador ordem de um superior. Ora pode certamente aconte-cer que se siga por obedincia uma doutrina prtica,

    30

    mas t-la por verdadeira porque ordenada (de par de Roi) de todo impossvel, no s objectivamente (como um juzo que no deveria ser), mas tambm subjectivamente (como juzo que nenhum homem pode declinar). Com efeito, quem quer enganar-se, como ele diz, efectivamente no se engana e no aceita como, de facto, verdadeiro o juzo falso, mas alega apenas falsamente um assentimento que, no entanto, nele no de encontrar. Por conseguinte, quando se fala da verdade de certas doutrinas que devem ser expostas em pblico, o mestre no pode aqui apelar para uma ordem suprema, nem o aprendiz pretextar ter acreditado por ordem, mas s quando se fala de aco. Deve ento reconhecer por um juzo livre que recebeu verdadeiramente semelhante ordem, e que igualmente obrigado ou, pelo menos, autorizado a obedecer-lhe, de outro modo a sua suposio um vo pretexto e uma mentira. Ora ao poder de jul-gar com autonomia, i.e., livremente (segundo princ-pios do pensar em geral), d-se o nome de razo. H, pois, que conceber-se a Faculdade filosfica, porque deve responder pela verdade das doutrinas que tem de acolher ou at s admitir e, nesta medida, como livre e unicamente sob a legislao da razo, no sob a do governo.

    Mas importa instituir tambm semelhante departa-mento numa universidade, i.e., deve haver uma facul-dade filosfica. Quanto s trs Faculdades superiores, ela serve para as controlar e lhes ser til, porque tudo depende da verdade (a essencial e primeira condio do saber em geral); mas a utilidade que as Faculdades superiores prometem em prol do governo apenas um momento de segunda classe. Pode, sem dvi-da, conceder-se ainda Faculdade teolgica a orgu-lhosa pretenso de ver na filosfica a sua serva (mas ento subsiste sempre a questo de saber se esta precede com a tocha a sua graciosa dama ou pega na cauda do seu vestido); se apenas a no expulsar ou no lhe fechar a boca. Com efeito, a modstia de ser

    31

  • simplesmente livre, e tambm de deixar livre, de descobrir apenas a verdade para vantagem de cada cincia e de a pr livre disposio das Faculdades superiores, deve justamente recomend-la ao prprio governo como insuspeita, mais ainda, como indispen-svel.

    Ora a Faculdade filosfica compreende dois departamentos: um do conhecimento histrico (a que pertence a Histria, a Geografia, o conhecimento erudito da lngua, a Humanstica com tudo o que a cincia natural apresenta de conhecimento emprico); o outro, dos conhecimentos racionais puros (Matem-tica pura, Filosofia pura, Metafsica da natureza e dos costumes), e as duas partes do saber na sua refe-rncia recproca. Estende-se a todas as partes do saber humano (por conseguinte, do ponto de vista his-trico, tambm s Faculdades superiores), s que no faz de todas elas (a saber, das doutrinas ou manda-mentos peculiares das Faculdades superiores) o con-tedo, mas o objecto do seu exame e da sua crtica, na mira do benefcio das cincias.

    A Faculdade de filosofia pode, pois, reivindicar todas as disciplinas para submeter a exame a sua ver-dade. No pode ser afectada de interdito pelo gover-no sem que este actue contra o seu propsito genuno essencial, e as Faculdades superiores devem aceitar as suas objeces e dvidas, que ela publicamente expe o que decerto elas poderiam achar oneroso por-que, sem semelhante crtico, teriam podido permane-cer sem perturbao no seu domnio uma vez adquirido, seja sob que ttulo for e, no obstante, imperar a de modo desptico. S os prticos das Faculdades su-periores eclesisticos, funcionrios da justia e mdi-cos) que, sem dvida, podem ser impedidos de con-tradizer publicamente doutrinas cuja exposio, no desempenho da sua respectiva funo, o governo lhes confiou, e de presumir brincar aos filsofos; com efeito, tal s pode ser permitido s Faculdades, e no aos agentes nomeados pelo governo; porque estes

    32

    tm daquelas o seu saber. Os ltimos, por exemplo, os pregadores e os funcionrios da justia, se cedes-sem tentao de dirigir ao povo as suas objeces e dvidas contra a legislao eclesistica ou civil, insti-g-lo-iam assim contra o governo; pelo contrrio, as Faculdades apenas as opem entre si, como eruditos, coisa de que o povo praticamente no tem notcia alguma, mesmo se elas chegassem ao seu conhecimento, porque se resigna a pensar que sofismar no afazer seu e, por isso, se considera obrigado a ater-se apenas ao que lhe anunciado pelos funcionrios para tal nomeados pelo governo. Mas esta liberdade da Fa-culdade inferior, que lhe no deve ser restringida, suscita o resultado de que as Faculdades superiores (mais bem instrudas elas prprias) trazem os funcio-nrios sempre mais para a senda da verdade, os quais, por seu lado, mais bem elucidados tambm quanto ao seu dever, no encontraro escndalo algum na modificao da sua exposio, pois apenas uma me-lhor compreenso dos meios para o mesmo fim; e tal pode muito bem acontecer sem ataques polmicos e apenas causadores de perturbao, dos mtodos de ensino at ento em vigor, com a mais ntegra persis-tncia da sua substncia.

    Seco III DO CONFLITO ILEGAL

    DAS FACULDADES SUPERIORES COM A INFERIOR

    Ilegal uma disputa pblica das opinies, por conseguinte, um conflito erudito ou quanto subs-tncia, se no fosse sequer permitido impugnar uma proposio pblica, porque no permitido proferir

    33

  • um juzo pblico sobre ela e o seu contrrio; ou sim-plesmente quanto forma, se o modo como condu-zida a discusso no assenta em argumentos objecti-vos que se dirigem razo do adversrio, mas em motivos subjectivos que determinam o seu juzo me-diante a inclinao para, graas astcia (que engloba igualmente a corrupo) ou violncia (ameaa), o levar ao consentimento.

    Ora o conflito das Faculdades visa a influncia sobre o povo, e s podem obter esta influncia, con-tanto que cada qual leve o povo a acreditar que ela sabe melhor fomentar o seu bem-estar, ao passo que no modo como tal pensam conseguir se opem justa-mente entre si.

    O povo, porm, no pe acima de tudo o seu bem-estar na liberdade, mas nos seus fins naturais, portanto, nestes trs pontos: ser bem-aventurado aps a morte; na vida, com os outros homens, estar seguro do que seu mediante leis pblicas; por fim, esperar o gozo fsico da vida em si mesma (i.e., da sade e de uma longa vida).

    Mas a Faculdade filosfica, que pode enveredar por todos estes desejos s mediante prescries que vai buscar razo, por conseguinte, est votada ao princpio da liberdade, atm-se unicamente ao que o prprio homem pode e deve acrescentar do seu lado: viver honestamente, no fazer mal a ningum, com-portar-se com temperana no gozo e com pacincia nas doenas, contando ento sobretudo com a auto--ajuda da natureza; para tudo isto no necessria, decerto, uma grande erudio, mas pode tambm em grande parte dispensar-se, se unicamente se quisesse domar as suas inclinaes e confiar a direco razo coisa com que, enquanto auto-esforo, o povo no se preocupa.

    As trs Faculdades superiores so, pois, intimadas pelo povo (que, pela sua propenso para o gozo e pela averso a corrigir-se, acha m a severidade nas doutrinas superiores) a fazer-lhe, por seu lado, pro-

    34

    posies que so aceitveis: e eis como soam as suas pretenses dirigidas aos sbios. O vosso palavrea-do, filsofos, j h muito tempo o conhecia; mas quero saber de vs enquanto eruditos como que, ainda que tivesse vivido de um modo infame, poderia no entanto obter, um pouco antes do fechar da por-ta, um bilhete de entrada no reino dos cus; como que, ainda que tivesse cometido a injustia, consegui-ria apesar de tudo ganhar o meu processo; e como, embora tivesse usado e abusado, para contentamento do corao, das minhas foras fsicas, poderia no obstante permanecer so e ter uma longa vida. Estu-dastes, de facto, para saberdes mais do que um de ns (por vs denominados idiotas), que nada mais pretende do que o bom senso. Mas o povo parece que se aproxima do erudito como se fosse ao adivi-nho e ao feiticeiro, que esto familiarizados com as coisas sobrenaturais; com efeito, o ignorante forma para si de bom grado um conceito imenso do erudito de quem espera algo. Por isso, natural prever que, se algum ousasse apenas fazer-se passar por seme-lhante taumaturgo, o povo inclinar-se-ia para ele e abandonaria com desdm a vertente da Faculdade filosfica.

    Os prticos das trs Faculdades superiores so em todo o tempo tais taumaturgos, quando no se per-mite filosfica agir publicamente contra eles, no para derrubar as suas doutrinas, mas apenas para se opor fora mgica que o pblico supersticiosamente lhes atribui e s observncias concomitantes como se, no abandono passivo a to hbeis condutores, esti-vesse dispensado de toda a actividade pessoal, com grande conforto de por eles estar j orientado para a consecuo dos fins propostos.

    Quando as Faculdades superiores adoptam seme-lhantes princpios (o que no decerto a sua misso), so e permanecem eternamente em conflito com a Fa-culdade inferior; mas esta disputa tambm ilegal, porque elas no s no consideram a transgresso das

    35

  • leis como um impedimento, mas at como uma oca-sio desejada de mostrar a sua grande arte e habilida-de para repor tudo no lugar, mais ainda, melhorar, do que sem elas aconteceria.

    O povo quer ser dirigido, i.e. (na linguagem dos demagogos), enganado. No quer, porm, ser guiado pelos eruditos das Faculdades (pois a sua sabedoria para ele demasiado elevada), mas pelos seus agentes que percebem do savoir faire; pelos eclesisticos, pelos funcionrios da justia, pelos mdicos que, enquanto prticos, tm por si a mais vantajosa pre-suno; o governo, que s por eles pode agir sobre o povo, deste modo induzido a impor s Faculdades uma teoria que no promanou do puro discernimento dos seus sbios, mas intentada em vista da influncia que os seus homens de aco podem ter sobre o povo, pois este, naturalmente, atm-se sobretudo ao que menos o obriga a esforar-se e a servir-se da sua pr-pria razo, podendo assim conciliar melhor os deveres com as inclinaes; por exemplo, no ramo teo-lgico, que por si salutar crer literalmente, sem indagar (e mesmo sem compreender) o que se deve crer, e que mediante a celebrao de certos ritos pres-critos podem imediatamente ser apagados crimes; ou no ramo jurdico, que a observncia da lei segundo a letra dispensa a inquirio do sentido do legislador.

    H, pois, aqui um conflito ilegal, essencial, para sempre inconcilivel, entre as Faculdades superiores e a Faculdade inferior, porque o princpio da legislao para as primeiras, que se atribui ao governo, seria a prpria anarquia, por ele autorizada. Com efeito, visto que a inclinao e, em geral, o que algum acha vantajoso para a sua inenso particular no se quali-fica pura e simplesmente para lei, por conseguinte, tambm no pode ser exposto como tal pelas Facul-dades superiores, ento um governo que sancionasse coisas semelhantes poria, ao ofender a prpria razo, em conflito as Faculdades superiores com a filos-fica, conflito que no pode ser tolerado, porque

    36

    aniquilaria totalmente esta ltima o que de facto o meio mais rpido, mas tambm (segundo a expresso dos mdicos) um meio herico, com risco de morte, para pr fim a um conflito.

    Seco IV DO CONFLITO LEGAL

    DAS FACULDADES SUPERIORES COM A FACULDADE INFERIOR

    Seja qual for o contedo das doutrinas cuja expo-sio pblica o governo possa estar autorizado a impor, mediante a sua sano, s Faculdades supe-riores, elas, no entanto, s podem ser aceites e respei-tadas como estatutos que promanam do seu arbtrio e como sabedoria humana que no infalvel. Porm, dado que a verdade de tais doutrinas de nenhum mo-do lhe pode ser indiferente e visto que elas devem a este respeito permanecer sujeitas razo (por cujo interesse tem de velar a Faculdade filosfica), mas tal s possvel graas concesso da plena liberdade de um exame pblico seu, ento o conflito entre as Fa-culdades superiores e a inferior ser, primeiro, inevi-tvel, porque regras arbitrrias, embora sancionadas na mais elevada posio, podem no se harmonizar sempre por si mesmas com as doutrinas afirmadas pela razo como necessrias; em segundo lugar, tam-bm legal, e isto no s como direito, mas tambm como dever desta ltima Faculdade, se no de dizer publicamente toda a verdade, pelo menos com o in-tento de que tudo o que assim afirmado, proposto como princpio, seja verdadeiro.

    Quando a fonte de certas doutrinas sancionadas histrica, contanto que estas possam ser recomenda-

    37

  • das como sagradas obedincia indiscutida da f, a Faculdade filosfica est autorizada, mais ainda, obrigada, a rastrear esta origem com difidncia crti-ca. Se ela racional, embora apresentada com um matiz de conhecimento histrico (como revelao), ento ela (a Faculdade inferior) no pode ser impe-dida de inquirir sob a exposio histrica os fundamen-tos racionais da legislao e, alm disso, apreciar se eles so tcnica ou moralmente prticos. Por fim, se a fonte da doutrina que se proclama como lei fosse simplesmente esttica, i.e., fundada num sentimento ligado a uma doutrina (sentimento esse que, por no proporcionar nenhum princpio objectivo, seria ape-nas subjectivamente vlido, imprprio para fornecer uma lei geral; por exemplo, o sentimento piedoso de uma influncia sobrenatural), preciso que a Facul-dade filosfica permanea livre para examinar e ava-liar publicamente, com a fria razo, a origem e o contedo de um pretenso fundamento de instruo, no atemorizada pela santidade do objecto que se alega sentir, e decidida a trazer este pretenso senti-mento ao conceito.

    O que se segue contm os princpios formais da conduo de tal disputa e as consequncias da resul-tantes.

    1. Este conflito no pode e no deve resolver-se por um acordo amigvel (amicabilis compositio), mas exige (enquanto processo) uma sentena, i.e., o vere-dicto legal de um juiz (da razo); com efeito, s poderia ter lugar por falta de probidade, dissimulao das causas do pleito e por persuaso, mas uma tal mxima de todo contrria ao esprito de uma Facul-dade filosfica que se prope a exposio pblica da verdade.

    2. Esta disputa jamais pode cessar e a Faculdade filosfica deve para tal estar sempre armada. De facto, haver necessariamente sempre prescries esta-tutrias do governo quanto s doutrinas a ser expostas em pblico, porque a liberdade irrestrita de procla-

    38

    mar publicamente todas as suas opinies poderia tor-nar-se perigosa quer para o governo, quer tambm para o prprio pblico. Mas todas as regras do governo, por derivarem dos homens ou serem, pelo menos, por estes sancionadas permanecem sempre su-jeitas ao perigo do erro ou da inoportunidade; por con-seguinte, tambm elas o esto no tocante s sanes com que o governo fornece as Faculdades superiores. Por consequncia, a Faculdade filosfica nunca pode depor as suas armas perante o perigo de que est ameaada a verdade cuja guarda lhe est confiada, porque as Faculdades superiores jamais renunciaro ao desejo de governar.

    3. Este conflito nunca pode causar dano reputa-o do governo. Com efeito, no um conflito das Faculdades com o governo, mas de uma Faculdade com a outra, a que ele pode assistir com tranquilida-de; pois embora tenha tomado sob a sua proteco particular certas proposies das Faculdades superio-res, enquanto prescreve algumas das ltimas aos seus agentes para exposio pblica, no protege, no en-tanto, as Faculdades como sociedades eruditas, por causa da verdade destas suas doutrinas, opinies e afirmaes a ser publicamente expostas, mas apenas para salvaguardar a sua vantagem prpria (do gover-no), porque no conviria sua dignidade decidir da sua respectiva verdade intrnseca e brincar assim ele prprio aos eruditos. As Faculdades superiores, face ao governo, por nada mais so responsveis do que pela intruo e ensino que facultam aos seus ho-mens de aco para exposio pblica; com efeito, estes difundem-se pelo pblico, enquanto comunidade civil e, em virtude de poderem causar dano influn-cia do governo, esto sujeitos sua sano. Pelo con-trrio, as doutrinas e as opinies que as Faculdades tm de resolver entre si em nome dos tericos, disse-minam-se num outro gnero de pblico, a saber, no de uma comunidade erudita que se ocupa das cin-cias; o povo resigna-se a nada de tal entender, mas o

    39

  • governo acha que no lhe convm lidar com aces eruditas6. A classe das Faculdades superiores (como a ala direita do parlamento da cincia) defende os esta-tutos do governo; no entanto, numa constituio to livre como deve ser aquela em que se trata da verda-de, tem de existir igualmente um partido da oposio (a ala esquerda) que o banco da Faculdade filosfi-ca, porque, sem o seu severo exame e objeces, o governo no estaria assaz industriado sobre o que lhe pode ser til ou prejudicial. Mas se os agentes pr-ticos das Faculdades pretendem, pela sua cabea, fazer alteraes no tocante prescrio dada para a exposio pblica, a superviso do governo pode perse-gui-los como inovadores que se poderiam tornar peri-gosos; e, no entanto, no de um modo imediato, mas s aps terem pedido Faculdade superior a sua hu-mlima opinio, porque tais agentes prticos s por meio da Faculdade podem ser encarregados da expo-sio de certas doutrinas pelo governo.

    4. Esta disputa pode muito bem subsistir com a harmonia entre a comunidade erudita e a comunidade civil em mximas cuja observncia deve operar um progresso constante das duas classes de Faculdades

    6 Pelo contrrio, se o conflito fosse apresentado comunidade

    civil (publicamente, por exemplo, nos plpitos), como de bom grado ten-tam os profissionais (sob o nome de prticos), seria de modo incompe-tente submetido ao tribunal do povo (ao qual no cabe juzo algum em matrias de cincia) e deixa de ser um conflito de eruditos; e surge ento o estado de conflito ilegal, que acima se mencionou, em que se expem doutrinas conformes s tendncias populares e se espalha a semente da insurreio e das faces, pondo assim o governo em perigo. Estes tribunos da plebe, que a si mesmos para tal se constituem, renun-ciam assim ao estado de eruditos, imiscuem-se nos direitos da consti-tuio civil (disputa politica) e so, em rigor, os nelogos, cujo nome, detestado e com razo, muito mal entendido, se concernir a todos os autores de uma inovao nas doutrinas e respectivas formas. (De facto, porque que o antigo haveria de ser sempre o melhor?) Em contrapar-tida, merecem ser marcados com tal ferrete os que introduzem uma forma inteiramente diversa de governo, ou antes, uma ausncia de go-verno (anarquia), abandonando deciso da voz do povo o que um afazer da cincia e, dirigindo discrio o seu juzo por meio da in-fluncia nos seus hbitos, sentimentos e tendncias, podem deste modo tirar o influxo a um governo legtimo.

    40

    para uma perfeio maior e, por fim, prepara a su-presso de todas as restries da liberdade do juzo pblico pelo arbtrio do governo.

    Poderia, deste modo, muito bem acontecer um dia que os ltimos se tornassem os primeiros (a Fa-culdade inferior a superior), no decerto no exerccio do poder, mas no aconselhamento de quem o detm (o governo), que depararia assim na liberdade da Fa-culdade filosfica e na sabedoria que da lhe adviria, bem mais do que na sua prpria autoridade absoluta, com meios para a obteno dos seus fins.

    RESULTADO

    Este antagonismo, ou seja, esta disputa de dois partidos entre si unidos para um fim ltimo comum (concrdia discors, discrdia concors), no , pois, uma guerra, i.e., uma discrdia por oposio dos propsitos finais no tocante ao erudito meu e teu que, como o poltico, consiste na liberdade e na pro-priedade, em que aquela, como condio, deve neces-sariamente preceder esta; por conseguinte, no pode conceder-se s Faculdades superiores direito algum sem que, ao mesmo tempo, a inferior fique autoriza-da a apresentar ao pblico erudito as suas dvidas.

    41

  • Apndice ELUCIDAO DO CONFLITO DAS FACULDADES MEDIANTE O EXEMPLO DO CONFLITO ENTRE A FACULDADE DE TEOLOGIA E A FILOSFICA

    I. Matria do Conflito O telogo bblico , em rigor, o erudito escrituris-

    ta para a f eclesial que se funda em estatutos, i.e., em leis que decorrem do arbtrio de outro; pelo con-trrio, o telogo racional o erudito da razo quanto f religiosa, por conseguinte, aquela que se baseia em leis interiores que se podem deduzir da razo pr-pria de todo o homem. Que assim seja, i.e., que a re-ligio jamais se possa fundar em estatutos (por mais elevada que seja a sua origem), o que se depreende do prprio conceito de religio. Esta no a totali-dade de certas doutrinas enquanto revelaes divinas (pois tal chama-se teologia), mas de todos os nossos deveres em geral como mandamentos divinos (e, sub-jectivamente, da mxima de os observar como tais). A religio no se distingue em ponto algum da moral quanto matria, i.e., quanto ao objecto, pois tem

    43

  • em geral a ver com deveres, mas distingue-se dela s formalmente, ou seja, uma legislao da razo para proporcionar moral, graas ideia de Deus engen-drada a partir desta, uma influncia sobre a vontade humana para o cumprimento de todos os seus deve-res. Por isso, tambm uma s e no h diferentes religies, mas diversos tipos de f na revelao divina e as suas doutrinas estatutrias que no podem derivar da razo, i.e., distintas formas de representao sen-svel da vontade divina para a esta propiciar influncia sobre os nimos, formas entre as quais o Cristia-nismo , tanto quanto sabemos, a mais conveniente. Ora este consta, na Bblia, de duas partes disseme-lhantes, uma, que contm o cnon, e a outra o rga-non ou veculo da religio; o primeiro pode chamar--se a pura f religiosa (fundada, sem estatutos, na simples razo), e a outra, a f eclesial, que se baseia inteiramente em estatutos, os quais requerem uma revelao, se que ho-de olhar-se como doutrina e prescries sagradas. Mas visto que tambm um dever usar este meio de direco para aquele fim, se for permitido aceit-lo como revelao divina, pode assim explicar-se porque que a f eclesial, fundada na Escritura, se co-apreende em geral, ao falar-se da f religiosa.

    O telogo bblico diz: Buscai na Escritura, onde julgais encontrar a vida eterna. Mas esta, cuja con-dio unicamente a melhoria moral do homem, nenhum homem a pode encontrar em qualquer escrito a no ser que a a introduza, porque os conceitos e princpios para tal requeridos no se devem, em rigor, aprender de outrem, mas desenvolver-se apenas por ocasio de uma exposio a partir da razo pr-pria do mestre. Mas a Escritura contm ainda mais do que o que em si mesmo necessrio vida eterna, a saber, o que pertence f histrica e, no tocante f religiosa, pode decerto ser conveniente como sim-ples veculo sensvel (para esta ou aquela pessoa, para esta ou aquela poca), mas sem dela fazer necessaria-

    44

    mente parte. A Faculdade teolgico-bblica, no entan-to, insiste em igual medida neste ponto enquanto revelao divina, como se a f a seu respeito perten-cesse religio. Mas a Faculdade filosfica a tal contrria quanto a esta confuso e ao que a Escritura em si contm de verdadeiro sobre a genuna religio.

    Com este veculo (i.e., com o que ainda se acres-centa doutrina religiosa) est conexo tambm o m-todo didctico, que justo olhar como confiado aos prprios Apstolos, e no como revelao divina, mas pode aceitar-se em relao com o modo de pen-sar dessas pocas (xar' avojnov) e no como frag-mento doutrinal vlido em si (JCO-T' afo\0ziav) e, claro est, quer negativamente, como simples admisso de certas opinies ento dominantes, errneas em si, para no ofender uma iluso difundida na altura, con-tudo, no essencialmente antagnica religio (por exemplo, o respeitante aos possessos), quer tambm positivamente, a fim de se servir da predileco de um povo pela sua antiga f eclesial que deveria agora atingir um termo, a fim de introduzir a nova f. (Por exemplo, a interpretao da histria da Antiga Alian-a como prefigurao do que aconteceu na Nova; como Judasmo, ao ser erroneamente inserida na doutrina de f como um elemento seu, pode arrancar de ns o suspiro: nunc istae reliquiae nos exercent. Ccero).

    Eis porque um saber escriturstico do cristianismo est sujeito a muitas dificuldades de ordem exegtica; por causa destas e do seu princpio, a Faculdade su-perior (o telogo bblico) deve entrar em conflito com a inferior, porque a primeira, preocupada sobretudo com o conhecimento bblico terico, lana a ltima na suspeita de, pela filosofia, desviar todas as doutri-nas que deveriam aceitar-se como autnticas doutrinas reveladas e, por isso, letra, e lhes substituir um sentido arbitrrio. A outra Faculdade, porm, aten-dendo mais ao prtico, i.e., mais religio do que f eclesial, acusa, pelo contrrio, a primeira de por

    45

  • tais meios fazer perder de vista o fim ltimo que, enquanto religio interior, deve ser moral e se funda na razo. Por isso, a ltima Faculdade, que tem por fim a verdade, por conseguinte, a filosofia, arroga-se o privilgio de, em caso de conflito sobre o sentido de uma passagem da Escritura, o determinar. Seguem-se os princpios filosficos da interpretao da Escritura; por eles no se pretende entender que a interpre-tao deve ser filosfica (visa a ampliao da filoso-fia), mas que os princpios da interpretao devem simplesmente ter tal constituio; porque todos os princpios, digam eles respeito quer a uma explicao crtico-histrica ou crtico-gramatical, devem sempre, mas aqui em particular, ser ditados pela razo, por-que o que para a religio se deve determinar a partir de passagens da Escritura pode simplesmente ser um objecto da razo.

    II. Princpios filosficos da Interpretao da Escritura para a resoluo do conflito

    1. Passagens da Escritura que contm certas dou-trinas tericas proclamadas como santas, mas ultra-passando todo o conceito racional (mesmo o moral), podem ser interpretadas para benefcio da razo; mas devem-no ser as que contm proposies contrrias razo prtica. O que se segue encerra alguns exem-plos a este respeito.

    a) Da doutrina da Trindade, tomada letra, nada absolutamente se pode tirar para o prtico, mesmo se se acreditasse compreend-la e, menos ainda, se se cair na conta de que ela ultrapassa todos os nossos conceitos. Se na divindade temos de honrar trs ou dez pessoas, o novio aceit-lo- implicitamente com igual facilidade, porque no tem conceito algum de um Deus em vrias pessoas (hipstases), mais ain-da, porque no pode tirar desta diferena quaisquer regras diversas para a sua conduta de vida. Em con-

    46

    trapartida, se em proposies de f se introduz um sentido moral (como tentei em A Religio nos Limites, etc.), ele no conteria uma f sem consequncias, mas uma f inteligvel nossa determinao moral. O mesmo se passa com a doutrina da encarnao de uma pessoa da divindade. Com efeito, se este Homem-Deus no for representado como a ideia da humanidade situada em Deus desde a eternidade em toda a sua perfeio moral a Ele aprazvel (ibid.),1 mas como a divindade residindo corporalmente num homem efectivo e agindo nele como segunda natureza, nada de prtico h a tirar para ns deste mis-trio porque, sem dvida, no podemos exigir de ns que tenhamos de agir como um Deus; por conseguin-te, no pode assim tornar-se para ns exemplo algum, sem levantar sequer a dificuldade de porque que, se semelhante unio alguma vez possvel, a divindade no tornou dela partcipes todos os homens, que ento se lhe tornariam todos inevitavelmente agradveis. Algo de semelhante se pode dizer da histria da ressurreio e da ascenso do mesmo Homem-Deus.

    Se, no futuro, iremos viver apenas segundo a alma ou se a mesma matria de que aqui consta o nos-so corpo necessria no outro mundo para a identi-dade da nossa pessoa, por conseguinte, a alma no constitui uma substncia particular, se at o nosso corpo deve ressuscitar eis o que nos pode de todo

    7 O sonho de Postellus em Veneza a este respeito, no sculo XVI,

    deveras original e proporciona um bom exemplo das confuses em que al-gum se pode enredar, e vagueando decerto com a razo, quando a sensi-ficao de uma ideia pura da razo se transmuta em apresentao de um objecto dos sentidos. Com efeito, se por tal ideia no se compreende o abstracto da humanidade, mas um homem, ento este deve ser um sexo qualquer. Se o gerado por Deus o sexo masculino (um Filho), se tornou sobre si a fraqueza dos homens e a sua culpa, ento as fraquezas e as transgresses do outro sexo so especificamente diversas das do sexo mas-culino, e ser-se- tentado, no sem razo, a admitir que tambm o outro sexo dever ter obtido a sua representante particular (por assim dizer, uma filha divina) como reconciliador; e Postellus julgava ter encontrado esta em Veneza, na pessoa de uma virgem piedosa.

    47

  • ser indiferente no propsito prtico; com efeito, quem amaria a tal ponto o seu corpo para desejar arrast-lo consigo na eternidade, quando pode passar sem ele? Portanto, a concluso do Apstolo Se Cristo no ressuscitou (vivificado segundo o corpo), tambm no ressuscitaremos (no viveremos mais aps a morte) no vlida. Alis, pouco importa (pois no se por tambm como base do argumentar uma inspirao), ele apenas quis dizer que temos mo-tivo para crer que Cristo vive ainda, e que a nossa f v se at um homem to perfeito no houvesse de viver aps a morte (corporal), f esta que a razo lhe inspirou (como a todos os homens), o levou f his-trica numa coisa pblica que ele admitiu candida-mente como verdadeira e utilizou como argumento de uma f moral da vida futura, sem se dar conta de que, sem esta ltima, dificilmente acreditaria em tal coisa. O propsito moral era assim alcanado, embo-ra o modo de representao trouxesse em si a marca dos conceitos escolsticos em que ele foi educado. De resto, a semelhante afazer opem-se objeces importantes: a instituio da Ceia (triste entreteni-mento) em sua memria assemelha-se a uma despedi-da formal (e no apenas a um prximo encontro). As palavras de queixume na cruz expressam o fracasso de um objectivo (conduzir ainda, durante a sua vida, os Judeus verdadeira religio), quando seria antes de esperar a alegria acerca de uma meta conseguida. Por ltimo, a expresso dos discpulos em Lucas Pensvamos que Ele libertaria Israel tambm no permite depreender que eles estavam dispostos a rev-lo dentro de trs dias, e menos ainda que algo lhes chegara aos ouvidos a propsito da sua ressurrei-o. Mas porque que, em virtude de um relato histrico que devemos deixar sempre no seu lugar (entre os adiaphor), nos temos de envolver em tan-tas indagaes e discusses sbias, quando se trata de religio para a qual, na referncia prtica, a f que a razo nos infunde j por si suficiente.

    48

    b) Na interpretao das passagens da Escritura em que a expresso contrria ao nosso conceito racio-nal da natureza divina e da sua vontade, os telogos bblicos j h muito tomaram como regra que o que est expresso maneira humana (avQoononaj) se deve interpretar de acordo com um sentido digno de Deus (tonenc); confessam assim, com toda a cla-reza, que a razo, em matrias de religio, a supre-ma exegeta. Mas, inclusive, se ao autor sagrado no se pode dar nenhum outro sentido a no ser aquele que, efectivamente conexo com as suas expres-ses, est em contradio com a nossa razo, esta sen-te-se, no entanto, autorizada a interpretar as suas pas-sagens da Escritura como ela julgar adequado aos seus princpios, e no a explicar segundo a letra, se no qui-ser inculpar o autor de um erro; eis o que parece violar plenamente as regras supremas da interpretao e, no entanto, tal sempre se fez com a aprovao dos mais renomados telogos. Assim aconteceu com a dou-trina de S. Paulo sobre a predestinao, a partir da qual se torna evidentssimo que a sua opinio pessoal deve ter sido a predestinao no sentido mais estrito da palavra, doutrina que, por isso, foi tambm aceite na sua f por uma grande Igreja protestante; porm, subsequentemente, foi de novo abandonada por uma grande parte desta Igreja ou, ento, interpretou-se de outra maneira o melhor que foi possvel, porque a ra-zo a acha incompatvel com a doutrina da liberdade, a imputao das aces e, por isso, com toda a mo-ral. At onde a f da Escritura se no encontra em nenhuma contraveno de certas doutrinas com prin-cpios morais, mas somente com a mxima racional na apreciao de fenmenos fsicos, os exegetas, com uma aprovao quase geral, explicaram muitos rela-tos bblicos, por exemplo, o dos possessos (demona-cos), embora na Escritura tenham sido narrados no mesmo tom histrico que a restante histria sagrada e seja quase indubitvel que os seus autores os conside-raram literalmente verdadeiros, de modo que a razo

    49

  • pudesse a aguentar-se (para no facultar livre acesso a toda a superstio e impostura), sem se lhes ter contestado esta competncia.

    2. A f nas doutrinas da Escritura que, em rigor, devem ter sido reveladas, se importava conhec-las, no tem em si nenhum mrito, e a sua ausncia, mais ainda, a dvida que se lhe contraps, no em si cul-pa alguma, porque na religio se requer apenas o fazer, e este propsito ltimo, por conseguinte, tam-bm um esprito que lhe conforme, deve tomar-se como fundamento de todos os dogmas bblicos.

    Por proposies de f no se entende o que se deve crer (pois o crer no tolera imperativo algum), mas o que possvel e oportuno admitir num prop-sito prtico (moral), embora no seja justamente demonstrvel, por conseguinte, s pode ser crido. Se, sem esta considerao moral, admito a f simples-mente na acepo de um assentimento terico, por exemplo, do que se funda historicamente no testemu-nho de outrem, ou porque no consigo explicar a mim certos fenmenos dados de outro modo a no ser sob este ou aquele pressuposto, como um princpio, ento semelhante f, porque no torna um homem melhor nem o manifesta, no constitui parte alguma da religio; mas se ela surge na alma apenas como forada pelo temor e pela esperana, ope-se ento sinceridade, por consequncia, tambm religio. Se, pois, algumas passagens se exprimem como se considerassem no s a f numa doutrina revelada como em si meritria, mas ainda a elevassem acima de obras moralmente boas, h ento que interpret--las como se designassem apenas a f moral que, pela razo, melhora e enaltece a alma; mesmo se o sentido literal, por exemplo, quem crer e for baptizado torna-se bem-aventurado, etc., se opusesse a esta interpreta-o. Portanto, a dvida sobre os dogmas estatutrios e a sua autenticidade no pode inquietar uma alma de boa disposio moral. Estas mesmas proposi-es podem, no entanto, considerar-se como exign-

    50

    cias essenciais para a exposio de uma certa f ecle-sial, a qual, por ser apenas veculo de f religiosa, por conseguinte, em si mutvel, e por ter de perma-necer susceptvel de uma purificao progressiva at congruncia com a ltima, no se deve transformar em artigo de f, embora no deva, nas Igrejas, ser abertamente atacada ou passar-se a p enxuto, por-que est sob a custdia do governo, que vela pela concrdia e paz pblicas; afazer do mestre, porm, admoestar a que se no atribua a tal exegese em si um carcter sagrado, mas se transite sem demora para a f religiosa assim preludiada.

    3. A aco deve representar-se como promanando do uso particular que o homem faz das suas foras mo-

    rais, e no como efeito da influncia de uma causa agente, externa e superior, em relao qual o homem se comportaria de um modo passivo; a interpretao das passagens da Escritura que parecem conter literalmente este ltimo sentido deve, pois, orientar-se intencional-mente para a consonncia com o primeiro princpio.

    Se por natureza se entende o princpio, predomi-nante no homem, do fomento da sua felicidade, mas sob a graa, a incompreensvel disposio moral n-sita em ns, i.e., o princpio da pura moralidade, ento no s a'natureza e a graa divergem entre si, mas tambm muitas vezes se encontram em recproca oposio. Se, porm, por natureza (no sentido prti-co) se entende o poder de realizar em geral certos fins pelas suas prprias foras, ento a graa nada mais do que a natureza do homem na medida em que determinado a aces pelo seu prprio princpio interior, mas supra-sensvel (a representao do seu dever), princpio que, por pretendermos explic-lo sem conhecermos, alis, qualquer outro fundamento, por ns representado como um incentivo ao bem em ns operado pela divindade, sem para tal termos em ns mesmos radicada a disposio, por conseguinte, como graa. O pecado (a malignidade na natureza humana) tornou necessria a lei penal (como para

    51

  • servos), mas a graa (i.e., a esperana do desenvolvi-mento do bem tornando-se viva pela f na disposio originria para o bem em ns e mediante o exemplo da humanidade agradvel a Deus no Filho de Deus) pode e deve tornar-se em ns (enquanto livres) ainda mais poderosas, se unicamente a deixarmos em ns agir, i.e., se deixarmos tornar-se activas as disposi-es de nimo para uma conduta semelhante quele santo exemplo. Por isso, as passagens da Escritura que parecem conter uma submisso simplesmente passiva a um poder externo, operando em ns a san-tidade, devem interpretar-se de tal modo que da se depreenda o seguinte: ns prprios devemos trabalhar no desenvolvimento da disposio moral em ns, em-bora ela mesma comprove uma divindade de origem superior a toda a razo (na inquirio teortica da causa) e, por isso, possu-la no mrito, mas graa.

    4. Onde o agir pessoal no chega para a justifica-o do homem perante a sua prpria conscincia (julgando severamente), a razo, se for preciso, est autorizada a admitir com piedade um complemento sobrenatural da sua justia deficiente (mesmo se no lhe permitido determinar em que ele consiste).

    Esta competncia clara por si mesma; pois o que o homem, segundo a sua vocao, deve ser (a saber, de acordo com a lei santa) o que ele deve poder tornar-se, e se isso no possvel naturalmente me-diante as prprias foras, -lhe permitido esperar que tal acontecer graas cooperao divina externa (se-ja de que modo for). Pode acrescentar-se ainda que a f neste suplemento beatificante, porque o homem s pode obter a coragem e a firme disposio de nimo para uma conduta agradvel a Deus (como a nica condio para esperar a beatitude) por no desesperar de conseguir o seu propsito ltimo (tor-nar-se agradvel a Deus). Mas nem sequer neces-srio que ele deva saber e poder indicar de um modo preciso em que que consiste o meio desta compen-sao (que, no fim de contas, transcendente e,

    52

    apenas de tudo o que Deus nos poderia dizer a seu respeito, para ns incompreensvel), mais ainda, seria presuno reclamar sequer tal conhecimento. Por-tanto, as passagens da Escritura que parecem conter semelhante revelao especfica devem interpretar-se como dizendo apenas respeito ao veculo desta f mo-ral para um povo, segundo os dogmas que at ento nele estiveram em voga, e no como f religiosa (para todos os homens), por conseguinte, como unicamente concernentes f eclesial (por exemplo, para judeo--cristos); f que necessita de provas histricas de que ningum pode tornar-se participante, ao passo que a religio (enquanto fundada em conceitos morais) deve por si ser completa e indubitvel.

    * * *

    Mas oio mesmo elevar-se contra a ideia de uma in-terpretao filosfica da Escritura a voz unnime dos telogos bblicos: ela visa, diz-se, em primeiro lugar, uma religio naturalista, e no o cristianismo. Res-posta: O cristianismo a ideia da religio que em geral se deve fundar na razo e ser, nesta medida, natural. Mas contm um meio para a sua introduo entre os homens, a Bblia, cuja origem considerada como so-brenatural (seja qual for essa origem) e que, tanto quanto til s prescries morais da razo no tocante sua difuso pblica e ao seu incitamento interior, se pode olhar como veculo para a religio, e enquanto tal acolher-se tambm como revelao sobrenatural. Ora s pode denominar-se naturalista uma religio quando toma por princpio no admitir semelhante revelao. Por isso, o cristianismo no uma religio naturalista, embora seja uma religio simplesmente natural, porque no se nega que a Bblia no possa ser um meio sobre-natural da introduo da ltima e da fundao de uma Igreja que publicamente se ensina e professa, mas no remete somente para esta origem, quando se trata de doutrina religiosa.

    53

  • III. Objeces e respectiva resposta acerca dos princpios da interpretao da Escritura

    Contra estas regras de exegese oio clamar: pri-meiro, mas so no conjunto juzos da Faculdade filo-sfica que se permite interferir assim no afazer do telogo bblico. Resposta: Para a f eclesial, exige--se erudio histrica: para a f religiosa, simples-mente a razo. Interpretar aquela como veculo da ltima decerto uma exigncia da razo, mas onde existe uma mais legtima do que quando algo s tem valor enquanto meio para outra coisa como fim lti-mo (algo como a realidade), e existir, no fundo, um princpio de resoluo superior razo, quando se disputa sobre a verdade? No causa tambm dano algum Faculdade teolgica, se a filosfica se servir dos seus estatutos para fortificar a sua prpria dou-trina, graas consonncia com eles; deveria antes pensar-se que quela cabe assim uma honra. Mas se, no tocante interpretao da Escritura, deve haver absolutamente conflito entre ambas, no conheo ne-nhum outro compromisso a no ser este: guando o telogo bblico cessar de se servir da razo para o seu propsito, o telogo filsofo cessar tambm de utili-zar a Bblia para confirmao das suas proposies. Mas duvido muito que o primeiro queira embarcar em semelhante contrato. Em segundo lugar, aquelas interpretaes so alegrico-msticas, por conseguin-te, nem bblicas nem filosficas. Resposta: pre-cisamente o contrrio, pois quando o telogo bblico pega no envlucro da religio para a prpria religio, deve, por exemplo, declarar que todo o Antigo Testa-mento uma alegoria incessante (de tipos e de repre-sentaes simblicas) do estado religioso ainda por vir, se no quiser admitir que j existiria ento a ver-dadeira religio, tornando-se assim suprfluo o Novo (que, no entanto, no pode ser ainda mais verdadeiro do que verdadeiro). Mas no tocante pretensa msti-ca das interpretaes racionais, se a filosofia espreita

    54

    nas passagens da Escritura um sentido moral, mais ainda, o impe at ao texto, trata-se ento justamen-te do nico meio de refrear a mstica (por exemplo, de um Swedenborg). Com efeito, em coisas de reli-gio, a fantasia tresmalha-se inevitavelmente pelo supernatural, quando no conecta o supra-sensvel (o que importa pensar em tudo o que se diz religio) com conceitos determinados da razo, como so, por exemplo, os morais, e leva a um iluminismo de reve-laes interiores de que cada qual tem ento a sua prpria, deixando de haver uma pedra de toque pblica da verdade.

    Mas existem ainda objeces que a razo faz a si prpria contra a interpretao racional da Bblia, objeces que queremos mencionar brevemente, segun-do a ordem das regras de interpretao acima aduzi-das, e tentar refutar, a) Objeco: Como revelao, a Bblia deve interpretar-se a partir de si mesma, e no pela razo; com efeito, a prpria fonte do conheci-mento reside algures que no na razo. Resposta: Justamente porque tal livro aceite como revelao divina, no deve ela interpretar-se apenas teoricamen-te segundo os princpios das doutrinas histricas (concordar consigo mesma), mas de modo prtico, segundo conceitos racionais; de facto, que uma reve-lao seja divina jamais se pode discernir mediante sinais que a experincia fornece. O seu carcter (pelo menos como conditio sine qua nori) sempre de har-monia com o que a razo declara consentneo com Deus. b) Objeco: A todo o prtico deve ante-por-se sempre uma teoria e, j que esta enquanto doutrina da revelao poderia talvez conter propsi-tos da vontade de Deus, que no conseguimos pene-trar mas nos poderiam obrigar a foment-los, a f em semelhantes proposies tericas parece conter por si mesma uma obrigao e, por conseguinte, a dvida a seu respeito uma falta. Resposta: Pode conceder-se tal, quando se fala da f eclesial, em que no se visa nenhuma outra prtica a no ser a dos usos regulados,

    55

  • e os que se reclamam de uma Igreja necessitam to s de que a doutrina no seja impossvel; pelo contrrio, para f religiosa, exige-se a convico da verdade, a qual, porm, no pode ser certificada por estatutos (que seriam sentenas divinas), porque sempre pela histria que importaria demonstrar que o so; mas esta no competente para a si mesma se fazer pas-sar por revelao divina. Por isso, naquele que est inteiramente virado para a moralidade da conduta ter por verdadeiras doutrinas histricas, embora bblicas, no tem em si qualquer valor ou desvalor moral, e situa-se entre os adiaphora [coisas indiferentes]. c) Objeco: Como se pode dizer a um morto espiritual Levanta-te e anda!, se tal apelo no for ao mesmo tempo acompanhado por um poder sobrena-tural que nele infunde a vida? Resposta: O apelo ocorre no homem mediante a sua prpria razo enquanto ela tem em si mesma o princpio supra-sen-svel da vida moral. Talvez o homem no possa, por este, acordar logo para a vida e levantar-se por si mesmo mas, apesar de tudo, mover-se e despertar para o esforo em vista de uma boa conduta (como algum em quem as energias apenas dormitam, sem que por isso estejam extintas), e tal j um fazer que no precisa de uma influncia externa e pode, na sua prossecuo, suscitar a conduta intentada. d) Ob-jeco: A f num modo, a ns desconhecido, de com-pensao da deficincia da nossa prpria justia, por conseguinte, como benefcio de outro, uma causa gratuitamente admitida (petitio principii) para a satis-fao da necessidade por ns sentida. Com efeito, no podemos admitir que o que esperamos da graa de um superior nos deva caber em parte, como se tal fosse evidente, mas s se nos foi efectivamente pro-metido e, por conseguinte, apenas mediante a aceita-o de uma promessa determinada a ns feita, como por meio de um tratado formal. Portanto, s pode-mos, ao que parece, esperar e supor aquela compen-sao na medida em que realmente foi prometida por

    56

    revelao divina, e no por boa sorte. Resposta: Uma revelao divina imediata com este dito consolador So-te perdoados os teus pecados! seria uma expe-rincia supra-sensvel, que impossvel. Mas tambm no necessria em ateno ao que (como a religio) assenta em fundamentos morais da razo e assim a priori, pelo menos do ponto de vista prtico. Da par-te de um legislador santo e bom no se podem conce-ber diferentemente os decretos em relao a criaturas frgeis, mas que se esforam por seguir, de harmonia com todo o seu poder, o que reconhecem como dever seu, e at a f racional e a confiana, em semelhante compensao, sem que a tal se possa acrescentar uma promessa firme empiricamente feita, demonstram mais a genuna disposio moral e, por conseguinte, a predisposio para a manifestao esperada da graa do que o consegue fazer uma f emprica.

    Deste modo se devem fazer todas as interpreta-es da Escritura enquanto concernem religio, segundo o princpio da moralidade visada na revelao; sem isso, so ou praticamente vazias ou at obstcu-los ao bem. S ento que tambm so genuina-mente autnticas, i.e., Deus em ns o prprio exegeta, porque no compreendemos ningum a no ser o que connosco fala mediante o nosso prprio en-tendimento e a nossa prpria razo; a divindade de uma doutrina que nos foi publicada por nada mais pode ser reconhecida a no ser graas aos conceitos da nossa razo enquanto so moralmente puros e, deste modo, infalveis.

    57

  • Observao Geral

    DAS SEITAS RELIGIOSAS

    No que em rigor merece denominar-se religio no pode haver diversidade de seitas (pois ela una, universal e necessria, por conseguinte, imutvel) mas, sim, no tocante f eclesial, quer ela se funde apenas na Bblia ou tambm na tradio, na medida em que se considera a f no que unicamente veculo da religio como artigo seu.

    Seria um trabalho hercleo e, ao mesmo tempo, ingrato enumerar simplesmente todas as seitas do cristianismo, se por este se entende a f messinica; de facto, ele apenas uma seita8 da ltima, de modo que se ope ao Judasmo em sentido estrito (na lti-ma poca da sua dominao integral sobre o povo), quando surge a pergunta: s tu o que h-de vir ou ainda temos de esperar outro?. Foi tambm assim

    8 uma particularidade do uso (ou abuso) da lngua alem que os

    adeptos da nossa religio se chamem cristos (Christen); como se hou-vesse mais de um Cristo e todo o crente fosse um Cristo. Deveriam chamar-se cristos (Christianer). Mas este nome seria logo conside-rado como um nome de seita de pessoas a cujo respeito se pode dizer muito mal (como acontece no Peregrinus Proteus): o que no tem lu-gar a propsito dos cristos. Por isso, um crtico, na Gazeta erudita de Halle exigia que o nome de Jeov se pronunciasse Jahvh. Mas esta modificao pareceria designar uma simples divindade nacional, no o Senhor do mundo.

    59

  • que inicialmente os romanos o acolheram. Mas, nesta acepo, o cristianismo seria uma certa f popular, baseada em dogmas e na Escritura, f a cujo respeito no se poderia saber se seria vlida para todos os ho-mens ou a derradeira f revelada a que, doravante, importaria ater-se, ou se no haveria de esperar no futuro outros estatutos divinos que se aproximariam ainda mais da meta.

    Por conseguinte, para estar na posse de um deter-minado esquema da diviso de uma doutrina de f em seitas, no devemos partir de dados empricos, mas de distines que se podem pensar a priori pela razo, a fim de determinar, na escala das diferenas de opinio em matrias de f, o grau em que a distin-o estabeleceria, primeiro, uma diferena de seita.

    Em matrias de f, o princpio da diviso de acor-do com a opinio recebida ou a religio ou a superstio, ou o paganismo (que se opem entre si como A e no A). Os que professam a primeira cha-mam-se habitualmente crentes, e os que professam o segundo, descrentes. A religio a f que estabelece o essencial de toda a venerao de Deus na moralida-de do homem; o paganismo, a f que a a no situa, ou porque lhe falta o conceito de um ser sobrenatural e moral {ethnicismus brutus), ou porque faz de algo diverso da disposio de nimo para uma conduta normalmente bem orientada, por conseguinte, do ines-sencial da religio, o elemento religioso {ethnicismus speciosus).

    Ora as proposies de f que devem, ao mesmo tempo, conceber-se como mandamentos divinos so, ou puramente estatutrias, por conseguinte, para ns doutrinas contingentes e reveladas, ou morais, por consequncia, concebveis a priori, i.e., doutrinas ra-cionais da f. O conjunto das primeiras doutrinas constitui a f eclesial, mas o das outras, a pura f religiosa.9

    9 Esta diviso, que no fao passar por precisa e conforme ao uso

    lingustico habitual, pode agora adoptar-se aqui.

    60

    Exigir a univers