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Conto: A narrativa ativa o sentido de existir e unta fisicidade com memória; eros e psique, mente e corpo, ideia e afetividade se reúnem no ato de narrar.
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5/7/2018 O corpo narrado Edno Gonçalves Siqueira - slidepdf.com
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O corpo narrado.
Edno Gonçalves Siqueira.
A palavra não me fugiu. Se me fez prisioneira. E como estar
preso é atingir liberdades, fui seu salvador. Fiz-me vítima por ser
algoz. Sou filho de minha filha; sou mãe até que o parto me devora e
vomita: só um refém. A escravidão nos confins da palavra é toda a
amplitude possível. É assim antes e além.
Há vezes que uma narrativa se bifurca e de cada um desses
seus braços surgem outros tantos que ao fim, ter-se-á um rio
caudaloso tão longo que não será de estranhar que do tal não se
saiba mais da origem e por vezes, nem seu fim. Caudal, turbilhão e
perdição onde havia o desejo de rumo, de ida, de chegada. Isso
porque abrir a boca ativa o esquecido e a fala vira cajado no deserto.
Esse apoio nos dá a terceira perna que engendra a exata maturidade
do saber-se-ser. Falar e para lembrar e inaugurar memórias futuras.
Contar é seu rito.
Somos o rio chamado Caudal. Somente o barulho não deixa
escapar o que já se perdeu. Mas nossas perdas permanecem num
movimento misterioso onde, perder é ganhar e o ganho enraíza
quando se esquece que plantou. Como uma doença de causa
desconhecida, quanto maior o sintoma, mas eu sei de mim mesmo
porque temo a morte, o fim do caudal. Essa longitude de um rio
assim, pode ser vivenciada por alguém que se encontre em uma de
suas partes, com um grande sentido de permanência e seu cheiro,
que varia de manhã até à noite, que varia de lua a lua, de uma
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estação à outra, por mais que mude, não apagará a sensação
subterrânea do que é eterno na dimensão de uma vida só. Essa
percepção não é inventada ou produção anormal; ela é órgão da
existência de quem se sabe como tal – e diz-se... eu sou. Entre a
memória e a projeção, algo permanece. É sob esse fio que a loucura –
o homem caudal – encontra sua contenção. De outra forma cairíamos
desde sempre no redemoinho feroz e todas as pequenas
humanidades estariam perdidas. De nada saberíamos; não
saberíamos de nós; não nadar saberíamos.
A quem vivesse imerso em sua vida, em um momento de
turbilhões, de cachoeiras e precisasse de terceira perna caudalosa
para sobreviver ao percalço, estaria irremediavelmente asujeitado a
dependências. Falar aprisiona e contar é tecer seus grilhões. Outras
que não a mínima possibilidade de uma prisão que liberta, não existe
senão em desejo vão. Aprisionamento seria a liberdade possível,
única aliada do fim, e o fim é o esquecimento. Outro mistério então é
que o caudal é a própria tábua flutuante de salvação. E se é assim
mesmo, é me puxando pelos cabelos que me afasto da espiral
sugadora do não lembrar. Falar é recuperar-se pelo puxar os próprios
cabelos e contar é sentir a dor gozosa de não afundar, ou sucumbir lá
pra baixo onde não há lembranças.
É bem provável, que o caudal, poderia também se tornar a
única âncora do mergulho, a chave sem segredo do grilhão. Fosse ela
rejeitada. Fosse, o que seria então? A invenção de estar livre ao que
corresponde no tempo da história da consciência que conseguiu ver-
se senão a ameaça de destruição no sumidouro? Falar é a âncora e
contar é negar a liberdade de perder-se em si – o caudal – para
agrilhoar-se, e presa de si, salvar-se, já de narrar é salvação.
Entrei certa vez, num antiquário cujo proprietário já não via há
bem mais que cinco anos. Do senhor alvo, esguio e sexagenário, não
esperava mais que a lembrança de uma impressão esparsa.
Decepcionando minha expectativa, só o meu nome não recordava.
Havia mantido em grande frescor todos os dados diretos que me
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levaram a ele em algumas oportunidades. Não apenas. Acrescentou o
que se desenrolou a outros que conhecíamos em comum durante
aqueles anos todos. Como de hábito, costurou casos, alinhavou
estórias e as ajeitou em camadas de modo que coubessem todas e
daquele exato arranjo para que transmitissem uma só idéia. Uma
construção de conjuntos ordenados para que culminassem a contar
uma apenas estória. Naquela oportunidade esse qüiproquó de
palavras, personagens, espaços e tempos vários serviam para que ele
expusesse suas conclusões sobre a dificuldade surpreendente que
representa ser professor. Mas, naquele exercício havia bem mais que
o expor. Havia muito mais de expor-se e mais ainda.
Longe dali, fixo na memória do corpo dele que falava em
conjunto com olhos e boca, suspeitei que aquele exercício revelava a
busca por coesão. Ao falar amarrava seu corpo de vivencias dispersas
na memória. No narrado estava contida sua vida, ele nela contido, ele
sendo ela, ela sendo ele, os dois um só, juntos e separados pela
impressão de ajuntamento e afastamento da palavra. Ao narrar, ia
ajeitando os fatos que formava como um bolo de muitas camadas,
porém, não para se dar a comer senão para ser por ele mesmo
comido. Para além de mim que ouvia, ele que se ouvia. O objeto de
sua boca era ele próprio e eu, apenas caminho de volta, uma curva
externa. Sua produção era o costurar de etapas de sua vida; o
recosturar de seu corpo de história que vivia escondido debaixo de
sua língua, alojado no vinco sulcado de seus recordos até tomarem
corpo também, na ravina de sua boca. Cada ponto levantado
correspondia a uma etapa de sua vida representada por um ponto de
memória, uma lembrança que solitária buscava outros e solidárias
rumavam ao encontro de um exército de seus semelhantes. Era
armada uma guerra cujo esquecimento se buscava derrotar sob a
pena capital da morte do eu, da tombada do grande bastião; a
consciência enervada, vívida. Essa, sua luta.
Cada ponto remembrado uma vitória que aliava, convalidava
um tempo que era acimentado na consistência de um órgão, pulsátil
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e vivo. Cada tempo acercava de valor o presente que se misturava a
todos os passados para fazer-lhes valer a valência de vitalidade. E
tudo isso era um homem só, desdobrado em espaços infinitos feitos
de presentes passados e todos juntos na memória: seu corpo em
cada extremidade fincado e expandido a se alongar ultrapassando
seus limites. O corpo biológico já era, ele sim, um sonho, uma ilusão,
uma invenção. Na troca, o real era o mnemônico, o passado redivivo.
Mas o objeto era mesmo se dar sentido e esse se dava pelo efeito de
coesão: era ele aquele mesmo ator de tantos palcos, de inúmeras
peças e quantas tragédias? Que catarses? Que monólogos? Que
fracassos? Quão poucos sucessos? O que selecionar a renascer e o
que sentenciar a morrer? Que decretos existências fazer? Era essa a
liberdade? Era essa a prisão?
A narrativa, aquela em específico, alinhavava, fazia os ponto-a-
ponto da costura de todas aquelas memórias que corporificam uma
roupa que vestia um corpo que era o seu próprio, só que falado e
expandido pela profissão de fé dos relatos. Seus relatos, agulhas de
costura de carne, como as carnes expostas dos acidentados, das
fraturas expostas em sua urgência de salvação que pouco vai além
da premência da costura, do urgir da coesão reconstitutiva. Cada
palavra uma pedra, um ponto, um nó. Cada frase um golpe no
mármore, um alinhavo na carne, um aperto na amarra. Cada estória
um esforço de cinzel, um toque cirúrgico. Ao fim, o copo narrado de
quem viveu e quer que o vivido coincida no corpo. Missão impossível;
o corpo, a carne, de suporte só serve. Ponto de partida dos pontos
tantos e outros. Desejo de que tenha a força da forma e conteúdo que
se supõe na carne; que funcione com a coesão da ossatura que no
corpo narrado é a saúde. Cresce o corpo de signos em teia. Saúde da
alma então, que agora é o próprio corpo, contudo renovado e
soerguido à palavra.
A madureza parece nos levar à defrontação de um rol deespelhos. E a madureza é sempre e piora quando sabida. Os que
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refletem, um processo; os que refratam, outro diverso, adverso. Não
se trata de convite e novamente, escapa ser livre. Embora, sendo
imperativo, resta evitar-lhe opondo-lhe indiferença.
O corpo que murcha é levado frente a um espelho onde seu
reflexo é mostrado em transparência. Isso é feito para que se meça o
senso de presença no mundo, sua inteireza de vida, da vida vivida, do
quanto o mundo se enraizou nos escombros do ser. No espaço do
corpo ali presente, o reflexo indaga se cabe sobre ele próprio, o corpo
transparente de sua existência, sem arranhões, em acoplamento de
cópula e portanto, vital. Um corpo que envelhece tem unidade porque
mesmo em processo, ao vê-lo, vê-se continuidade, ainda que seja a
menos desejada continuidade do crescer para a morte. Mas e o ser, a
alma, e o vivido, e a memória, e o lastro do coração? Suas ordens são
estranhas às do corpo que vai. Seu aspecto crescente, temporal, pode
ser dominado por descontinuidades; aquelas do corpo significado.
Frente ao espelho, ambos os corpos se confrontam. Mas o dos
signos contém o de carne. Falar e ser ouvido, contar e recontar são as
agulhas do tecelão ferido: costuram e tecem amarras para que
prendam um corpo ao outro – o de carne partida, o outro, ida. Dessa
cópula deve surgir, para a saúde dos corpos, uma tolerância sôfrega
do atrito dos contornos ou identidade entre as partes, que cremos,
vivem vidas em distância e busca: mais que Eros e Psique, corpo e
alma, uma vez que cada corpo, em seus reinos e ordens, erigem suas
categorias nunca equalizadas, nunca pacificadas porque para sempre
e desde sempre cindidas. O hermafroditismo inerente diz dos corpos
que de grande comum habitam o mesmo local de guerras.
Narro então; clamo por integridade, sonho com a pacificação da
natureza beligerante. A crença nos processos naturais de ajuste é
doce e frutifica em previsibilidade fácil. Viciados no seu sumo,
deliramos na replicação dessa ordem no corpo dos afetos, no corpo
dos sonhos, no corpo da memória, no corpo do tempo escondido.
Narro e clamo por segurança de ser e de continuar, perdurar,
transviver ... Nos espaços que não alcanço com minha palavra-
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agulha, neste interstício, brota alienação. Quanto mais superficial,
assim como uma ferida, mais tratável e vice-versa. Também quanto
a sua origem, quanto mais superficial, mais provavelmente causada
nos arredores de mim; quanto mais profunda, mais distante, para
além das cercanias que me limitam, onde vivo: corpo, casa, país,
continente, mundo.
Importa continuar o ofício, laborioso embate. Há buracos,
clivagens de dúvidas, espaços desfiados pelo efeito dilacerante dos
conflitos, das lutas tantas, rasgos feitos pela pressão dos tantos
desnorteios.
Conto que vive naquele que vive, me afirmo que vivo e
enquanto há o bramir dos dentes, segue a máquina de agulhas que
costura a persona que já não é mais apenas máscara – é vestido, toga
de um pano mágico que atenua o desespero do pesadelo de ficar nu
frente ao espelho, aquele espelho de górgona que com o escudo das
agulhas da boca tento vencer. Narro como narra o velho que busca se
salvar no corpo falado que nutre e infla de estórias.