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A sociedade marginal no século XIX O CORTIÇO Após o movimento do Romantismo no Brasil, marcado, além das características românticas, pelo nacionalismo e louvor à pátria, na segunda metade do século XIX, emerge um novo modelo literário, o Realismo, que não expõe as belezas do Brasil, mas se preocupa em criticar os problemas e as situações do país. Uma ramificação do Realismo é o Naturalismo, modelo que segue as mesmas características do Realismo - tais como: objetividade, busca da verossimilhança, observação, o gosto pelos detalhes, a materialização do amor - com o acréscimo da visão científica e de teorias que serviram de base para o movimento, a Teoria Determinista, o Evolucionismo e a Filosofia Positivista. A partir do estudo a seguir, entenderemos um pouco mais o movimento Realista/Naturalista, tomando como base o livro O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, focando na demonstração das condições de vida da população brasileira no século XIX, a divisão de classes dada pelo avanço do capitalismo e industrialização do país e o contexto histórico em que se insere a narrativa. O Cortiço, publicado em 1890, por ser um romance naturalista de tese, vai, a todo o momento, tentar comprovar sua teoria de embasamento, o determinismo. Essa teoria, bem marcada em todo o livro, afirma que o homem é um simples produto da hereditariedade e do meio em que vive. Os personagens, portanto, vão reproduzir atitudes correspondentes ao ambiente em que habitam. Outro ponto que devemos marcar como causa pela marginalização, é a questão da falta de estudos e a população não como seres pensantes e racionais, mas sim seres que eram explorados e apenas utilizavam do trabalho para sua sobrevivência. “Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo. Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à

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A sociedade marginal no século XIX

O CORTIÇO

Após o movimento do Romantismo no Brasil, marcado, além das características românticas, pelo nacionalismo e louvor à pátria, na segunda metade do século XIX, emerge um novo modelo literário, o Realismo, que não expõe as belezas do Brasil, mas se preocupa em criticar os problemas e as situações do país. Uma ramificação do Realismo é o Naturalismo, modelo que segue as mesmas características do Realismo - tais como: objetividade, busca da verossimilhança, observação, o gosto pelos detalhes, a materialização do amor - com o acréscimo da visão científica e de teorias que serviram de base para o movimento, a Teoria Determinista, o Evolucionismo e a Filosofia Positivista.

A partir do estudo a seguir, entenderemos um pouco mais o movimento Realista/Naturalista, tomando como base o livro O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, focando na demonstração das condições de vida da população brasileira no século XIX, a divisão de classes dada pelo avanço do capitalismo e industrialização do país e o contexto histórico em que se insere a narrativa.

O Cortiço, publicado em 1890, por ser um romance naturalista de tese, vai, a todo o momento, tentar comprovar sua teoria de embasamento, o determinismo. Essa teoria, bem marcada em todo o livro, afirma que o homem é um simples produto da hereditariedade e do meio em que vive. Os personagens, portanto, vão reproduzir atitudes correspondentes ao ambiente em que habitam.

Outro ponto que devemos marcar como causa pela marginalização, é a questão da falta de estudos e a população não como seres pensantes e racionais, mas sim seres que eram explorados e apenas utilizavam do trabalho para sua sobrevivência.

“Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo. Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa na igreja de São João Batista, não seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço.” – cap III

Pombinha é quem faz toda a parte intelectual para divertir e/ou suprir as necessidades do povo do cortiço. E também, o autor mostra como o cortiço era mal visto por outrem e como a personagem parecia, aparentemente, não se encaixar, não ser feita para aquela realidade. Porém, mais tarde, Pombinha, movida não mais pelo casamento como sua única tentativa de inclusão social, e depois de ter sido seduzida pela cocote Léonie, acaba cedendo aos luxos, ignorando os valores e cumprindo a Teoria do Determinismo, e acaba se tornando uma prostituta.

Os ambientes são divididos logo no primeiro capítulo em dois, e bem distintos: O cortiço de João Romão, onde vive a “gentalha”, e a casa do Miranda, o burguês, ambiente culto, diferente das pessoas que vivem no cortiço. Essa divisão representa também a realidade histórica do momento: com a capitalização, a divisão de classes é inevitável, portanto, há também uma separação entre o rico e o pobre, o burguês e o proletariado, no seguinte trecho:

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“Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam-se logo,sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele erao melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiamtodos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação.O Miranda rebentava de raiva.— Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele vendeiro detodos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!... Estragou-me a casa, o malvado!E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o póque lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos pedreiros e carpinteiros quelevavam a martelar de sol a sol.O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após outra, e fossemlogo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a venda até quase ao morro, edepois dobrassem para o lado do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que pareciaameaçado por aquela serpente de pedra e cal.O Miranda mandou logo levantar o muro.

Nada! aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas!E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante, formandocom a continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie de pátio de quartel, ondepodia formar um batalhão.” – cap I

“E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lagar ao lado umas das outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos do cortiço saiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéu alto e sobrecasaca preta, passou lá fora, em caminho para o armazém, acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas.”

Este trecho mostra as realidades diferentes entre o trabalhador e o burguês. Enquanto as mulheres do cortiço estão cansadas de trabalhar e os homens saindo com suas ferramentas, símbolo de trabalho braçal e exaustivo, dando também a intenção de rotina cansativa, aparece o Miranda, bem vestido, sem nenhum esforço, sem nenhum suor no rosto por ter conseguido sua posição social privilegiada.

“Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinha reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das janelas da sala de jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indiferentes à agitação que ia lá embaixo, muito esquecidas na sua tranqüilidade de entes felizes.”

Nessa passagem, é mostrado o desinteresse de Miranda e sua família em relação ao cortiço, vendo de sua casa, que se localiza bem acima da estalagem. Como sociedade, está claro que os burgueses em seu alto nível não se interessam pelos trabalhadores, em seu nível inferior. E mais, o autor ainda cita a felicidade da família de Miranda, mostrando que a minoria superior da sociedade vive supostamente feliz por causa da sua posição social elevada.

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O Cortiço São Romão tem papel de personagem principal da trama, representando a classe desfavorecida da sociedade do século XIX. Como o foco do naturalismo é retratar a realidade de maneira objetiva, torna-se interessante a valorização do coletivo e da discrição dos grupos marginais que se encontravam em evidência devido às transformações não só do cenário nacional, como mundial. O avanço da indústria e do capitalismo trouxe consigo a urbanização e os grandes centros industriais, que geravam uma aglomeração da classe operária nas cidades, que ficavam “inchadas” e não dispunham dos recursos necessários para comportar essa população, que acabava por se alojar em estalagens e cortiços como o de João Romão.

A partir do coletivo, estudam-se então as pequenas partes que o formam. Em cada tipo humano é marcado o grotesco, o ruim, os defeitos, e há também uma constante comparação com o animalesco, dando um aspecto mais instintivo do que racional às atitudes dos moradores do cortiço, que agem dessa maneira por influência do próprio cortiço e o meio social que ele representa, degradante e de condições subumanas. Característica do próprio romance naturalista, o zoomorfismo também é considerado como determinante de comportamento, principalmente no aspecto sexual.

Havia a necessidade desesperadora de inclusão social, independente dos meios usados para isso.

Falando sobre Pombinha, temos o seguinte trecho retirado do livro:

“A filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que enfermiça e nervosa ao último ponto; loura, muito pálida, com uns modos de menina de boa família. A mãe não lhe permitia lavar, nem engomar, mesmo porque o médico a proibira expressamente.

Tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do comércio, estimado do patrão e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia desde pequenita; mas Dona Isabel não queria que o casamento se fizesse já. É que Pombinha, orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago à natureza o cruento tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrifícios que esta fazia para cumprir à risca as prescrições do médico e não faltar à filha o menor desvelo. No entanto, coitadas! daquele casamento dependia a felicidade de ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu, de quem mais tarde havia de ser sócio, tencionava, logo que mudasse de estado, restituí-las ao seu primitivo circulo social.”

Pombinha era um caso raro no cortiço por ser estudada, ter bons modos e ser bonita. Era idolatrada pelas pessoas do cortiço que, naquele meio, não eram assim porque não tiveram oportunidades e devido a desvalorização de sua capacidade de raciocínio, eles acabam sendo guiados por instintos, assemelhando-se a animais. Por suas qualidades, Pombinha era a única que tinha a oportunidade de se ver livre daquela situação. Sua mãe, Dona Isabel, via no casamento uma tentativa de ascensão e status social para a filha. Levando isso para a sociedade em si, vemos que havia tanto o descaso da população de mais alto nível com os estudos da população mais pobre, quanto a necessidade dessa mesma população marginalizada de se incluir ao meio social para afirmar a sua existência em uma sociedade.

Os personagens da trama representam bem os tipos humanos da sociedade em questão. Dentre os personagens da narrativa, alguns merecem maior atenção, como o próprio João Romão. Este, após herdar uma pequena venda em um bairro operário do Rio de janeiro, transforma-se em um homem extremamente ambicioso e completamente movido pela

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vontade de enriquecer a qualquer custo, representando uma ascensão da classe inferior à uma classe média. Expressando seu mau caráter, através de mentiras e enganação, João se amiga com uma negra, a Bertoleza, forjando-lhe uma carta de alforria. Bertoleza passa a trabalhar como verdadeira escrava para ele, ela via-se como em evolução por estar amigada com um português, como se instintivamente procurasse por uma raça “superior” a sua. Nesse ponto nota-se o aspecto qualitativo das relações humanas, uma vez que tanto Bertoleza se aproxima de João pelo interesse, quanto o próprio João também o faz.

“Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão.Quando deram fé estavam amigados.Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda dejacarandá muito velha com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita.O vendeiro nunca tivera tanta mobília.”

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Além de João Romão, temos o Miranda, comerciante rico, que se muda para um sobrado ao lado do cortiço quando descobre os adultérios de sua esposa, a quem odeia profundamente. O relacionamento de Miranda e Estela(esposa de Miranda) é mantido pela questão financeira da família, pois o comércio de Miranda foi estabelecido a partir do dote de D. Estela, além do que seria um escândalo, ainda mais na alta sociedade, da qual posteriormente o Miranda participaria como Barão de Freixal.

Isto foi o que disse o Miranda aos colegas, porém a verdadeira causa da mudança estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar Dona Estela do alcance dos seus caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da divida publica, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além de que, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa.

Além da posição privilegiada, o Miranda também expõe o sentimento da classe rica de negação ao crescimento da classe pobre quando se nega a vender parte de sua propriedade, quando fica indignado com o crescimento financeiro de João Romão e a as rivalidade com o mesmo, quando faz o máximo para impedir a expansão do cortiço, cortiço que representa o povo, crescimento que simboliza a lu