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O Debate nº 1

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O Debate nº 1

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2 O DEBATE

Editorial

(…) o novo jornal não é, nem pretende ser, como muitos já fizeram crer, a f o r j a d e n e n h u m movimento monárquico. É apenas e só, um órgão de comunicação social com tudo o que isso implica e que dará cobertura a todos os mov imentos pe la Monarquia em Portugal sendo por isso partidário de uma política de proximidade junto da população portuguesa em geral e dos monárquicos em particular. (…)

15 JUNHO 2011

[email protected]

[+351] 963 007 515

Rua Correia Teles , 28 A

1300-150 Lisboa

Salvador C osta Director

Pedro Corte-Real Editor-chefe

Inês de Mello Design

Elsa Nascimento Capa

Colaboraram nesta edição:

Álvaro Santos P ereira

Augus to Ferreira do A maral

António José Telo

Carlos Bobone

José Manuel Q uintas

Nuno Resende

Marketing e P ublic idade:

Luisa Borges Directora de marketing

Carlos Gaspar Agências publicidade

Paulo C otrim Clientes directos

Bibi C orreia Account

Joana P into Circulação e Assinaturas

Jorge C aldeira Director f inanceiro

Periodicidade: Mensal

Dia de saída: Dia 15 de cada mês

Formato: 370mm x 290mm

Número de páginas des ta edição: 58

Circulação directa

Governo, Assembleia da República, A utarquias ,

Juntas de Fregues ia, O rgãos de poder local,

Embaixadas de Portugal no exterior, Embaixadas

es trangeiras ac reditadas em Portugal, O rganiza-

ções regionais , Associações de emigrantes , Asso-

ciações de estudantes , empresários e quadros

superiores de empresas .

Finalmente chegou a hora de o

jornal O DEBATE ver a luz do dia.

Depois de um número zero experi-

mental O DEBATE, ressurge hoje

dia 15 de Junho primeiro e apenas

numa edição online e mais tarde

então, depois de consolidado em

matéria de colaborações fixas,

publicidade e leitores assíduos,

estará em edição papel nas bancas

de todo o país.

Com um cariz acentuadamente

monárquico - como sempre foi sua

tradição - O DEBATE pretende unir

de uma vez por todas os monár-

quicos em torno de uma causa e

de uma casa real com uma longa

história na nação portuguesa.

Como é óbvio, O DEBATE reconhe-

ce publicamente e desde já que,

os direitos dinásticos da Coroa

Portuguesa estão na pessoa de

Sua Alteza Real o Senhor Dom

Duarte, Duque de Bragança e em

quem legitimamente lhe vier a

suceder nesses direitos.

Por outro lado, o novo jornal não

é, nem pretende ser, como muitos

já fizeram crer, a forja de nenhum

movimento monárquico. É apenas

e só, um órgão de comunicação

social com tudo o que isso implica

e que dará cobertura a todos os

movimentos pela Monarquia em

Portugal sendo por isso partidário

de uma política de proximidade

junto da população portuguesa em

geral e dos monárquicos em parti-

cular.

Por último uma palavra de agrade-

cimento a todos quantos aderiram

aos vários grupos nas redes

sociais que ajudaram a cativar os

mais de 15.000 potenciais leitores

para um projecto único em Portu-

gal. Portanto quem disse que a

monarquia é "coisa do passado" e

"está morta e enterrada" enga-

nou-se redondamente.

Salvador Costa

15 JUNHO 2011 O DEBATE 3

José Manuel Quintas

A Monarquia do Norte: Os combates pela bandeira azul e branca

[ 1910-1919 ]

1. As incursões da Galiza

2. O programa de Richmond

3. O ascenso monárquico

4. No Sidonismo «com o osso

da minoria»

5. «A Monarquia ou a morte!»

6. Proclamando a «Monarquia

do Norte»

7. No rescaldo

Em Janeiro de 1911, Ramalho

Ortigão contava setenta e quatro

anos. Permanecia no exílio em

Paris mas, voltando ao dirigir-se

aos seus leitores da Gazeta de

Notícias, no recomeço da sua car-

reira no ofício das letras, emocio-

nou-se com a analogia com Vítor

Hugo que, tendo regressado do

seu exílio de Guernesey, depois da

queda do Império e da proclama-

ção da Terceira República, afirma-

ra auspiciosamente: «Messieurs,

j’ai soissante quatorze ans et je

commence ma carrière.»

Ramalho reiniciava ali os seus últi-

mos farpeios, citando as palavras

do “mais glorioso mestre”, mas o

tema não podia deixar de ser o da

“Revolução de Outubro”.[1] Ele

que, nos dias imediatos ao 5 de

Outubro de 1910, entregou as

chaves da Biblioteca da Ajuda, e

se recusou a secretariar a Acade-

mia das Ciências, manifestando a

Teófilo Braga a sua repulsa em

engrossar “o abjecto número de

percevejos que de um buraco

(estava) vendo nojosamente

cobrir o leito da governação”,[2]

não deixava agora de considerar

esses “pobres homens, mais dig-

nos de piedade que de rancor”, e

de assinalar a rapidez e a benigni-

dade do desenlace do movimento

militar que derrubou a Monarquia.[3]

Quase não se dera pela resistência

ao derrube do trono. Se os monár-

quicos se encontravam de há mui-

to profundamente divididos por

razões político-ideológicas e dinás-

ticas,[4] a verdade é que os últi-

mos anos do rotativismo partidário

da Monarquia da Carta contribuí-

ram para debilitar o sentimento

monárquico. Nos primeiros anos

do novo século, os que permane-

ciam convictamente monárquicos,

na sua maioria não queriam aque-

la Monarquia.

Quando se deu a implantação da

República, muitos dos monárqui-

cos influentes dos partidos dinásti-

cos entraram a aderir sem com-

plexos aos novos partidos, consti-

tuindo aquilo a que os republica-

nos mais intransigentes passaram

a designar por “adesivos”. Os que

permaneceram fieis às instituições

depostas foram poucos, e menos

ainda os que de imediato comba-

teram a nova situação com armas

de guerra ou razões de inteligên-

cia. Preferiam lançar alcunhas aos

tribunos da plebe, ridicularizar

com acintes a rusticidade de suas

feições e compostura, ou o mau

gosto dos vestidos de suas espo-

sas… Seguiam, afinal, confiados

no fim fatídico da República vatici-

nado por José Luciano de Castro

no conselho que se tornou céle-

bre: “Não se mexam, nem lhe

mexam...”.[5]

1. As incursões da Galiza

Foi diante desse quadro, muito

sombrio para o ideário monárqui-

co, que se resistiu na Rotunda e

que Paiva Couceiro lançou, em 3

de Outubro de 1911, a primeira

incursão a partir da Galiza. Ainda

Quando se deu a implantação da República, muitos dos monárquicos influentes dos partidos dinásticos entraram a aderir sem complexos aos n o v o s p a r t i d o s , constituindo aquilo a que os republicanos mais intransigentes passaram a

designar por “adesivos”.

que desencadeada por uma hoste

essencialmente constituída por

monárquicos, não é de estranhar,

pois, que venha a ser realizada em

obediência a um propósito plebis-

citário.

O processo tinha sido aberto por

Paiva Couceiro, em 18 de Março

de 1911, ao apresentar uma

“Proposta ao Governo Provisório”.

Encont ra-se naquela Proposta

alguma expressão de apreço pelo

regime deposto? - Longe disso.

Couce iro pugnou a l i pe la

“organização, com novas bases”,

do “serviço junto ao chefe do

Estado”, pela continuação da

“obra de saneamento dos costu-

mes políticos, dando seguimento

aos inquéritos já iniciados, promo-

vendo outros que se aconselhem”,

propondo apenas, e no essencial,

que o Governo Provisório pusesse

fim ao frenesim legislativo, se

limitasse a restabelecer a ordem,

as liberdades públicas, e fizesse

imediatamente eleições livres.[6]

As eleições realizaram-se em 28

de Maio de 1911, mas Paiva Cou-

ceiro não reconheceu a validade

do acto. Na sua perspectiva, man-

tinham-se “de facto suspensas as

garantias e liberdades públicas –

liberdade de imprensa, de propa-

ganda e reunião”. Dirigiu-se então

ao Ministro da Guerra para lhe

comunicar que se demitia do Exér-

cito e que ia para a Galiza coman-

dar as tropas que dariam combate

às instituições vigentes. Acto con-

tínuo, pediu intervenção e apoio

aos seus camaradas de armas.[7]

Chegado à Galiza, e como circula-

vam notícias segundo as quais

Afonso XIII teria já discutido com

a Inglaterra a possibilidade de

uma intervenção espanhola em

Portugal,[8] desmentiu que aos

portugueses sob o seu comando

se tivessem juntado espanhóis.[9]

Por fim, dirigindo-se aos soldados,

aos reservistas e ao povo, concla-

mou à revolta sob “a bandeira azul

e branca da Pátria Livre”.[10]

Paiva Couceiro, que até aí não

expressara qualquer reivindicação

monárquica, vai levantar a bandei-

ra azul e branca significativamente

despojada de coroa Real,[11] expli-

cando que o fim do levantamento

que dirige é o de “promulgar ape-

nas as medidas indispensáveis ao

estabelecimento de um regimen

de Ordem e de Liberdade egual

para todos, dentro do qual se rea-

lizem eleições em termos de tra-

duzirem, de facto, a expressão da

Vontade Nacional”.[12]

Ainda que a solução plebiscitária

não fosse inédita,[13] as tropas

comandadas por Couceiro não tro-

peçaram apenas nas forças milita-

res que lhe saíram ao caminho. O

rei deposto, D. Manuel II, colocan-

do de forma clara a “questão basi-

lar da sua candidatura à coroa”,

pronunciou-se abertamente contra

o “carácter neutralista” daquele

movimento, e o próprio rei de

Espanha fez saber que lhe agrada-

ria pura e simplesmente uma res-

tauração. Mas o comandante Paiva

Couceiro não transigiu: “negava-

se a ser um restaurador de dinas-

tias. A sua espada não a punha ao

serviço exclusivo de um rei, mas

da Nação. A esta e só a esta cabia

o direito de escolher o soberano”.[14] E foi assim que a incursão de

Outubro se lançou sem substan-

ciais apoios externos, com uma

organização revolucionária confi-

nada às províncias do norte do

país, quase exclusivamente prepa-

rada pelos padres e por notáveis

locais.

O fracasso militar vai forçar Paiva

Couceiro a alterar a sua estraté-

gia. Diligencia então no sentido da

restauração monárquica, reunindo

esforços através de um acordo

entre os dois ramos da Casa de

Bragança. Obtido o acordo no

“Pacto de Dover”, com D. Manuel

II a ser reconhecido como o único

candidato ao trono,[15] inscreveu a

coroa na sua bandeira e partiu,

em Julho de 1912, para segunda

4 O DEBATE

A Monarquia do Norte

As eleições realizaram-se em 28 de Maio de 1911, mas Paiva Couceiro não reconheceu a validade do acto. Na sua perspectiva, mantinham-se “de facto suspensas as garantias e liberdades públicas – liberdade de imprensa, de propaganda e reunião”. Dir igiu-se então ao Ministro da Guerra para lhe comunicar que se demitia do Exército e que ia para a Galiza comandar as tropas que dariam combate às instituições vigentes. Acto c o n t í n u o , p e d i u intervenção e apoio aos seus camaradas de armas.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 5

A Monarquia do Norte incursão a partir da Galiza com o

explicito propósito de restaurar a

Monarquia da Carta.[16]

2. O «Programa de Richmond»

Derrotados no segundo raid, os

monárquicos dispersaram pelos

diversos locais de exílio - Paris,

Lovaina, Londres..., com Paiva

Couceiro a recolher-se a S. Jean

de Luz. Ficara definitivamente

consolidado o regime republicano?

Haviam falido as últimas esperan-

ças monárquicas? Quando e como

estalaria de novo a revolta?

Carlos Malheiro Dias, encarregado

pelo Correio Paulistano de reunir

depoimentos acerca do estado em

que as falhadas incursões deixa-

ram a causa monárquica, vai tra-

tar detidamente aquelas questões.

Chamando a depor “um anónimo

mas assíduo frequentador de Rich-

mond”, este ter-lhe-á dito que as

conspirações já realizadas, e a

realizar, podiam ser divididas em

três períodos, segundo a classifi-

cação histórica de Augusto Comte:

(1º) o teológico ou dogmático,

(2º) o metafísico e (3º) o positivo.[17]

A 1ª incursão, feita em obediência

ao “programa plebiscitário” de

Couceiro, inscrevera-se no período

teológico ou dogmático. Tendo

sido baseada no primado da sobe-

rania popular, ao arrepio da men-

talidade predominante no entoura-

ge de D. Manuel II, para mais feita

de fora para dentro, sem ligação

ou coordenação operacional com

as forças internas e sem substan-

ciais apoios materiais, estava des-

tinada a encerrar-se num desas-

tre.

A 2ª incursão correspondia ao

período metafísico. Ainda que fir-

mada na união dinástica estabele-

cida pelo «Pacto de Dover», reve-

lara-se exaustiva de dinheiro e de

dedicação, mas incapaz de obter a

vitória pela ausência de uma ver-

dadeira coordenação operacional

com a frente interna.

Era necessário ext rair lições

daqueles fracassos e, sopesando

com realismo as condições da luta

política criadas pela implantação

da República, entrar no período

positivo das conspirações. Eis o

essencial do “Programa de Rich-

mond”: um futuro movimento res-

tauracionista teria de f irmar-se na

aspiração de paz, de ordem e de

disciplina associado ao regime

monárquico tradicional. Se bem

que não se devessem descurar os

factores internacionais – e a reve-

lação do “programa” terminava

com um longo excurso histórico ao

papel das intervenções externas,

no fazer e desfazer das políticas

dos Estados desde o último quar-

tel do século XVIII –, a acção a

tomar teria de ser organizada e

executada internamente, aprovei-

tando o descalabro provocado pela

incompetência e pelos erros dos

republicanos. Entre os erros a

aproveitar, além daqueles que a

inexperiência e a corrupção dos

governantes não conseguiriam

evitar, [18] destacavam-se os

excessos jacobinos na questão

religiosa já cometidos pelo Gover-

no Provisório na publicação da

legislação anti-religiosa e anti-

clerical.

Mas ao movimento restauracionis-

ta não bastariam os erros cometi-

dos pelos adversários. A reinstau-

ração do trono teria de surgir

como acção positiva e cientifica-

mente fundada; era necessário

estudar e “gizar um grande pro-

grama de realizações - não de

utopias”.

O processo adivinhava-se longo,

mas não durou muito até que o

programa de Richmond fosse pos-

to em perigo pela impaciência de

alguns. Entre Abril e Julho de

1913, terá havido conjugação de

esforços de monárquicos e sindi-

calistas em algumas intentonas ou

revoltas e, em 21 de Outubro, ter-

se-á mesmo descoberto um com-

plot monárquico na sequência da

Mas ao movimento restauracionista não bastar iam os erros c o m e t i d o s p e l o s a d v e r s á r i o s . A reinstauração do trono teria de surgir como acção positiva e cientificamente fundada; era necessário estudar e “gizar um grande programa de realizações - não de utopias”.

vinda de João de Azevedo Couti-

nho a Portugal.[19] A intentona

resumiu-se a um assalto ao Museu

da Revolução, instalado no edif ício

do Quelhas, onde se encontravam

“os batéis em que embarcara na

Ericeira a família real, a carabina e

a pistola de que se tinham servido

os assassinos de D. Carlos e D.

Luís Filipe”.[20] Seguiu-se uma

reacção de rua em defesa do regi-

me instituído, com assaltos às

redacções e tipografias identif ica-

das com os monárquicos; sendo

presos, entre outros, o conde de

Mangualde e Moreira de Almeida,

director de O Dia, e suspensos os

jornais A Nação, O Universal, e O

Dia.[21]

3. O ascenso monárquico

O “programa de Richmond” só

teve começo de aplicação em

1914, sendo dois os acontecimen-

tos que, intimamente ligados,

explicam a viragem: a amnistia de

1914 e a criação do “Integralismo

Lusitano”.

Foi, na verdade, à sombra da acti-

vidade proselitista desenvolvida

pelo Integralismo Lusitano, alicer-

çada em ampla renovação político-

cultural e geracional[22] que, de

1914 em diante, se assistiu a um

sensível crescimento da influência

monárquica. E foi sob a sua

influência e direcção que se deram

os últimos e decisivos impulsos no

sentido da tentativa restauracio-

nista de 1919, no Norte e em

Monsanto.

A expressão “Integralismo Lusita-

no” tinha sido cunhada por Luís de

Almeida Braga na revista Alma

Portuguesa, editada na Bélgica,

em 1913. Naquela revista, produ-

zida por estudantes monárquicos

exilados, o “Integralismo Lusitano”

designava um projecto mais esté-

tico-filosófico do que político. Mas

era em seu redor que se reuniam

os ex-combatentes das incursões

da Galiza, afinal os mais activos e

empreendedores sobejos monár-

quicos que a República não

“adesivara”: o manuelismo mais

t radic ionalista, o legit imismo

miguelista, e o que sobrava do

nacionalismo católico formado nos

últimos anos do rotativismo do

regime da Carta.

Quando aqueles monárquic os

regressaram a Portugal, na

sequência da amnistia de 1914,

vêm encontrar uma República

crescentemente divorciada dos

republicanos que nela tinham visto

a via da regeneração portuguesa.

Foi rápido e natural o encontro

entre aqueles monárquicos não

“adesivados” e os republicanos

descontentes, depressa se trans-

formando aquilo que era apenas

um programa estético-filosófico,

num índice de soluções políticas.

É esse índice, sob o título

“monarquia tradicional, orgânica,

anti-parlamentar”, que vem a ser

apresentado no lançamento da

revista Nação Portuguesa, em

Abril de 1914, agregando, pois,

jovens monárquicos que não se

reconheciam na Monarquia depos-

ta (entre os quais se destacavam

Hipólito Raposo, Almeida Braga,

Alberto Monsaraz e Pequito Rebe-

lo), e jovens republicanos conver-

tidos ao monarquismo por não se

reconhecerem no regime republi-

cano recém-implantado (como

António Sardinha, João do Amaral

ou Domingos Garcia Pulido). Nas-

c ia o Integralismo Lusitano

enquanto movimento polít ico-

cultural.

O programa por eles apresentado,

em 1914, não era verdadeiramen-

te um programa político, era antes

um índice no qual pretendiam ali-

cerçar um vasto programa de

estudos sobre a realidade portu-

guesa. Os integralistas lusitanos

começavam, assim, por agarrar a

componente não estritamente

política do “programa de Rich-

mond”; estava por realizar, af ir-

mavam, um longo trabalho de res-

tauração monárquica nas inteli-

6 O DEBATE

A Monarquia do Norte

É esse índice, sob o título “monarquia tradicional, o r g â n i c a , a n t i -parlamentar”, que vem a ser apresentado no lançamento da revista Nação Portuguesa, em Abril de 1914, agregando, pois, jovens monárquicos que não se reconheciam na Monarquia deposta (entre os quais se destacavam Hipólito Raposo, Almeida Braga, Alberto Monsaraz e Pequito Rebelo), e jovens republicanos convertidos ao monarquismo por não se reconhecerem no regime republicano recém-implantado (como António Sardinha, João do Amaral ou Domingos Garcia P u l i d o ) . Nas c ia o Integra lismo Lusitano enquanto mov imento político-cultural.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 7

A Monarquia do Norte gências. Do ponto de vista doutri-

nário, a voz dos integralistas

representava uma terceira posição

no campo monárquico, distinta,

t a nt o do s “ mi g u e l i s t a s -

t rad ic iona l istas”, c omo dos

“pedristas-constitucionais”. Ainda

que ideologicamente se afirmas-

sem parentes próximos dos pri-

meiros, separavam-se deles na

“questão dinástica”; aceitavam os

fundamentos históricos da posição

legitimista mas, baseando-se na

doutrina escolástica seiscentista

do poder régio (doutrina do pacto

de sujeição), consideravam D.

Manuel II, em 1914, como o rei

que melhor servia o interesse

nacional. Dos segundos, separava-

os a doutrina e o projecto político.

Esta emergência de uma corrente

doutrinariamente tradicionalista,

mas acatando o rei deposto, D.

Manuel II, veio provocar abalo e

acrescida dissensão ent re os

monárquic os. Porém, se os

monárquicos “constitucionais” ini-

cialmente os temeram, pela disso-

nância ideológica que amiúde fri-

savam, também cedo perceberam

a sua utilidade no terreno da luta

político-ideológica. O ramo dinásti-

co pedrista, até aí muito desacre-

ditado, tinha doravante combaten-

do do seu lado alguns dos jovens

intelectualmente mais brilhantes

das Academias.

Por outro lado, os integralistas

lusitanos recuperavam, em novas

bases, dando-lhe novo fôlego, o

projecto de “reaportuguesamento

de Portugal” lançado ainda em

vida de Oliveira Martins pelo grupo

dos “Vencidos da Vida”. Assim que

o velho Ramalho Ortigão, entre-

tanto regressado a Portugal, se

inteirou dos propósitos integralis-

tas, quis conhecer o seu mais

categorizado e reconhecido líder,

Hipólito Raposo.[23] Quando João

do Amaral solicitou a Ramalho

Ortigão colaboração para o jornal

Restauração, recebeu em resposta

a célebre Carta de um Velho a um

Novo - num emocionado “render

da guarda”, em representação da

el ite dos ve lhos, Rama lho

“inclinava-se rendidamente à elite

dos novos.”[24]

Na sequência da entrada em fun-

ções do ministério do velho gene-

ral Pimenta de Castro, em 25 de

Janeiro de 1915, era já visível o

ascenso monárquico e o papel que

nele vinha sendo desempenhado

pelos integralistas. O seu trabalho

propagandíst ico e organizativo

junto das juventudes monárquicas

académicas era já bem nítido,[25] e

é a própria imprensa republicana

quem, ao assinalar o súbito

“tortulhar” dos monárquicos, vê

com preocupação a agitação res-

tauracionista, em especial a activi-

dade de sen vo lv i da p e l o s

“cachopos monárquicos”. Em fins

de Abril e princípios de Maio de

1915, alguma imprensa republica-

na denunc iava mesmo uma

«curiosa monarquite» - assistia-se

a uma correria de republicanos

inscrevendo-se nos novos centros

monárquicos, podendo estar ali o

prenúncio de uma restauração

iminente.[26]

Com os democráticos a retorna-

rem ao poder, em 1915, deu-se

de imediato o assalto às instala-

ções da Liga Naval, quando ali

decorriam as conferências integra-

listas acerca da “Questão Ibérica”.

Os integralistas lusitanos que, até

então, insistiam sobretudo na

necessidade de restaurar a monar-

quia nas inteligências, viram-se de

imediato guindados a uma noto-

riedade paralela à dos mestres de

que se sentiam herdeiros (a Gera-

ção de 70, também sofrera a proi-

bição das Conferências do Casino

Lisbonense). Estava finalmente

ultrapassado o seu rubicão no

caminho de um activo intervencio-

nismo político. Quando Portugal

entrou na Grande Guerra, tornam

público o primeiro manifesto políti-

co assinado pela Junta Central

(em Abril de 1916, pouco depois

Por outro lado, os integra listas lusitanos recuperavam, em novas bases, dando-lhe novo fôlego, o projecto de “reaportuguesamento de Portugal” lançado ainda em vida de Oliveira Martins pelo grupo dos “Vencidos da Vida”. Assim que o velho Ramalho Ortigão, entretanto regressado a Portugal, se inteirou dos propósitos integralistas, quis conhecer o seu mais categorizado e reconhecido líder, Hipólito Raposo.

da declaração de guerra da Ale-

manha), depressa se transforman-

do de movimento de ideias em

movimento político organizado: o

Estatuto da organização foi publi-

cado em Novembro; as Juntas

Provinciais estão organizadas pelo

final do ano; e, em Fevereiro de

1917, surgia o órgão A Monarquia

– diário integralista da tarde. O

ascenso monárquico manter-se-á

muito vivo até que a revolta mili-

tar comandada por Sidónio Pais,

em 5 de Dezembro de 1917, afas-

tou o Partido Democrático do

poder e destituiu o Presidente da

República, Bernardino Machado.

4. No Sidonismo «com o osso

da minoria»

O Sidonismo nasceu de uma con-

jura essencialmente republicana,

dirigida contra o Partido Democrá-

tico, com o f im de introduzir o

princípio da dissolução parlamen-

tar na Constituição. Tendo o com-

plot nascido no seio do partido

unionista, e desabrochado nas

sessões secretas do parlamento,

veio a ter também por si o evolu-

cionismo - a força remanescente

do regime - ainda que, velada ou

abertamente, hostilizasse o vence-

dor do 5 de Dezembro.

O movimento acabou por organi-

zar-se depois isolada e revolucio-

nariamente. Chegado ao poder,

porém, Sidónio Pais apenas reco-

lherá o apoio do Centro Católico e

da generalidade dos monárquicos.

Os primeiros, por receberem a

promessa de satisfação das suas

reclamações na “questão religio-

sa”, os segundos, no essencial

pelas mesmas razões e por acata-

rem ordens de D. Manuel II.

Como é que os integralistas lusita-

nos reagiram ao Sidonismo? Ainda

na fase da sua instauração, em 14

de Janeiro, enquanto Sidónio Pais

ia sufocando as intentonas que o

procuravam pôr em causa, Antó-

nio Sardinha saudou-lhe a vitória

sobre uma revolta dos marinhei-

ros,[27] chegando mesmo a afir-

mar, logo adiante, que o Presiden-

te Sidónio estava a fazer “uma

demonstração interessante do

Integralismo”.[28] Três dias depois,

a 17, Sardinha ainda prossegue na

mesma toada mas, a 19, era já

tempo de ir explicando aos mais

precipitados ou ingénuos: “Não se

assustem os republicanos que o

senhor Sidónio Pais não derruba a

república. Não se assustem os

monárquicos, porque ele também

a não consolida”; “Deste modo,

sem derrubar a república, nem a

consolidar, o Sr. Sidónio Pais não

é uma solução. É uma etape a

mais, uma experiência última,

como que última hipótese”.[29]

A situação era, pois, essencial-

mente caracterizada por um tran-

sitório empate político, propício à

conquista de posições junto do

poder. E aos primeiros sinais de

simpatia da parte dos sidonistas,

os integralistas, não se mostraram

mal agradecidos, retribuindo com

diversas colaborações, como o

projecto do Casal de Família

(baseado na Memória de Xavier

Cordeiro acerca da Vinculação), a

lei eleitoral, e mesmo um projecto

de Constituição Política.[30] E não

deixaram de fazer coro com o

Centro Católico na questão religio-

sa. Luís de Almeida Braga, por

exemplo, saudou efusivamente

Sidónio Pais por se ter finalmente

trancado “a lei iníqua que atirava

para longe das dioceses alguns

dos nossos mais eminentes prela-

dos e afastava outros párocos da

sombra querida do seu presbité-

rio”, não perdendo a oportunida-

de, aliás, de sugerir a conveniên-

cia de um rápido reatamento das

relações diplomáticas com o Vati-

cano.[31]

Os impulsos de simpatia gerados

por Sidónio Pais junto das massas

populares, porém, rapidamente o

fizeram entrar num caminho de

regime pessoal, que procurará

legitimar substituindo o parlamen-

8 O DEBATE

A Monarquia do Norte

O Sidonismo nasceu de u m a c o n j u r a e s s e n c i a l m e n t e republicana, dirigida contra o Partido Democrático, com o fim de introduzir o princípio da dissolução p a r l a m e n t a r n a Constituição. Tendo o complot nascido no seio do partido unionista, e desabrochado nas sessões secretas do parlamento, veio a ter também por si o evolucionismo - a força remanescente do regime - ainda que, velada ou abertamente, hostilizasse o vencedor do 5 de Dezembro.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 9

A Monarquia do Norte tarismo da “República Velha” pelo

pre s ide nc ia l is mo de u ma

“República Nova”.[32]

Em 10 de Março de 1918, o

“part ido monárquico” aprovou

uma moção dando oficialmente

auxílio ao Governo de modo a

garantir-lhe a maioria nas eleições

de 28 de Abril. Para si, os monár-

quicos apenas pretendiam “uma

representação condigna”. Fazem-

se as eleições, mas os partidos

republicanos – Democrático, Evo-

lucionista e Unionista – escapam-

se pela porta da abstenção.

Em 15 de Julho, o Parlamento

abriu com uma confortável maioria

do Governo, com os trinta e um

deputados monárquicos sentados

à direita da sala e os integralistas

distribuídos pelas últimas cadei-

ras. Sidónio Pais, no seu discurso

de abertura da sessão legislativa,

aproveitou para recordar que

“eleito e proclamado o presidente

da República e constituído o Con-

gresso”, o país entrava “em plena

normalidade const itucional” –

começava a «República Nova».

Apesar de, como explicou Luís de

Magalhães, os monárquicos terem

dado “ao sidonismo a carne da

maioria, ficando para si com o

osso da minoria”,[33] Sidónio Pais

não deixou de expor ali os seus

mais profundos sentimentos repu-

blicanos: “é tão grosseiro o erro

que se comete supondo a revolu-

ção de Dezembro reaccionária

(isto é: monárquica), como supon-

do-a demagógica (afecta ao Parti-

do Democrático). Fui sempre e

sou republicano; por isso procurei

manter e consolidar a república.

(...) Se elementos republicanos

não encarnassem em si as aspira-

ções do país, a revolução poderia

vir a aparentar a forma de uma

restauração monárquica”.

Se bem que as rédeas da gover-

nação parecessem firmemente

tomadas, ali mesmo se começou a

revelar o propósito absurdo de

fazer residir a viabilidade política

do novo regime num pacto esta-

belecido entre o ditador republica-

no e os dirigentes monárquicos. O

apelo de Sidónio Pais às forças

republicanas vinha tarde de mais.[34]

Os monárquicos ainda colabora-

ram em deter todas as manobras

conducentes à subversão do regi-

me e não deixam de se regozijar

ao verem restabelecidas as rela-

ções entre a República e a Santa

Sé. Uma semanas antes da chega-

da do núncio de Roma, Sidónio

Pais, em visita a Elvas, é recebido

na Câmara Municipal. António Sar-

dinha profere um amistoso discur-

so de saudação.[35] Em resposta,

Sidónio Pais reacende publicamen-

te o seu intenso republicanismo,

afirmando que “é tempo de findar

o equívoco monárquico”. A respos-

ta de António Sardinha surgiu nas

páginas de A Monarquia, concluin-

do: “...o senhor Sidónio Pais vito-

ria assim a sua morte política. O

equívoco é só de sua excelência,

que tendo vencido uma república

feita por republicanos, a pretende

agora ressuscitar, fazendo-a com

monárquicos”[36]

Dão-se como bem documentados

os últimos meses da presidência

de Sidónio Pais. Em crescente iso-

lamento político, Sidónio terá

caminhado hirto ao encontro das

balas assassinas, ficando a pairar

as palavras desoladas que terá

proferido num dos últimos Conse-

lhos de Ministros, após a tentativa

frustrada de 6 de Dezembro

(numa cerimónia militar, um mari-

nheiro disparou sobre ele, mas

sem o atingir), em resposta à cha-

mada de atenção para a morte

que o rondava: “Ninguém deseja

mais a minha morte do que eu!”.[37]

5. «A Monarquia ou a morte!»

Morto Sidónio Pais, em 14 de

Dezembro de 1918, os integralis-

tas depressa descobrem a situa-

ção política propícia à restauração

Em 15 de Julho, o Parlamento abriu com uma confortável maioria do Governo, com os trinta e u m d e p u t a d o s monárquicos sentados à direita da sala e os integralistas distribuídos pelas últimas cadeiras. Sidónio Pais, no seu discurso de abertura da s e s sã o l e g is l a t i va , aproveitou para recordar que “eleito e proclamado o presidente da República e constituído o Congresso”, o país entrava “em plena n o r m a l i d a d e constitucional” – começava a «República Nova».

monárquica. Em pleno Parlamen-

to, enquanto o corpo do Presiden-

te repousava inanimado sob a

nave dos Jerónimos, foi António

Sardinha quem equacionou as

consequências políticas do trágico

momento. Do seu ponto de vista,

apresentavam-se esgotadas as

modalidades que o regime republi-

cano possibilitava: o parlamenta-

rismo e o presidenc ialismo.

Segundo António Sardinha, a ins-

trutiva experiência de ditadura

carismática, “saída de uma caval-

gada de cadetes e alferes”, fora

motivada por “uma poeira revolta

de indivíduos que os ventos do

caminho manobravam a seu bel-

prazer”... Sidónio Pais impusera-

se pelo desejo de ordem, de har-

monia e de estabilidade. “Ora a

Ordem – explicava Sardinha - não

é a repressão. E, porque não nas-

ce espontaneamente dos factos

em si, decerto bem precária ela

seria se a sua existência andar

ligada à existência sempre frágil

de quem quer que seja o seu

mantenedor” (...) “A democracia

de Lisboa afundava-se vítima do

demagogismo, seu cancro estrutu-

ral. Encarnando na sua dura

necessidade esta lei fatal da histó-

ria, Sidónio Pais representou a

ditadura inevitável em todo o regi-

me sem coesão nem disciplina

(...) “Montou Sidónio Pais um dia

a cavalo e, rapidamente, hei-lo

transitando duma penumbra mais

que discreta para os destaques

ruidosos da notoriedade. Logo um

equívoco lamentável se estabele-

ceu e esse equívoco levou Sidónio

Pais à sepultura”. (...) “- E agora?”

– interrogava por fim Sardinha -

“Agora? Agora como sempre, a

Monarquia ou a morte!“ (...) “Não

é o poder que rompe do acaso,

engendrado, como um cão, no

encontro dum sabre com os favo-

res da rua. Esse poder, ou é Afon-

so Costa ou é Sidónio Pais. Oligar-

quia jacobina ou magistratura

consular, se uma atenua os efeitos

da outra, não os remedeia, porém.

A tara da República é o demago-

gismo e a República não se melho-

ra senão destruindo-se. Tentou

melhorá-la Sidónio Pais. Com isso

não fez mais do que armar o braço

que o abateu. Até na sua morte

Sidónio Pais morreu como republi-

cano. 0 direito de César é a sua

popularidade. Na hora em que

Napoleão foi vencido, na mesma

hora caiu. Na hora em que a Sidó-

nio faltassem os aplausos do

Fórum, nessa hora o seu direito

haveria caducado. E assim, para o

povo o prorrogar indefinidamente,

num regime de opinião em que

tudo é surpresa e interinidade,

Sidónio Pais caminhou sem hesita-

ção para as balas do seu assassi-

no, entregue apenas às forças

cegas de uma estrela, depressa

eclipsada” (...) “A morte de Sidó-

nio Pais foi a consagração supre-

ma do individualismo. Morreu

como um varão da Antiguidade, -

morreu como um personagem

máximo de D’Annunzio, na con-

cepção naturalista dos heróis de

Carlyle. Mas da sua acção o que

ficou? O que ficou da sua coragem

estóica? O que ficou do seu filan-

tropismo cismador? Somente a

memória do seu nome e com ela,

na boca de todos, esta pergunta

tremenda: «E agora?»”.[38]

No dia 15 de Janeiro, o governo

assumia a plenitude do poder exe-

cutivo nos termos da Constituição

de 1911 e, dois dias depois, pro-

cedia-se no Congresso à eleição

presidencial do almirante Canto e

Castro. Ou seja, liquidado Sidónio

Pais, três dias bastaram para que

os sidonistas da véspera deitas-

sem por terra o presidencialismo

esboçado na “República Nova”.

Era uma clara vitória da corrente

parlamentarista do regime republi-

cano, mas não ficava encerrada a

questão. É então que o poder das

Juntas Militares se vai afirmar em

defesa da formação de um

“governo de força”, capaz de

10 O DEBATE

A Monarquia do Norte

No dia 15 de Janeiro, o governo assumia a plenitude do poder executivo nos termos da Constituição de 1911 e, dois dias depois, procedia-se no Congresso à eleição presidencial do almirante Canto e Castro. Ou seja, liquidado Sidónio Pais, três dias bastaram para que os sidonistas da véspera deitassem por terra o presidencialismo esboçado na “República Nova”.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 11

A Monarquia do Norte impedir o retorno ao poder dos

partidos políticos da “República

Velha”.

Em 23 de Dezembro, após a desis-

tência de Nunes da Ponte, o presi-

dente Canto e Castro chamou

Tamagnini Barbosa à chefia do

governo. Saiu um governo remo-

delado, mas conservador e repu-

blicano.

No mesmo dia, as Juntas Militares

de Norte e do Sul mantêm a rei-

vindicação de um “governo de for-

ça”, com o coronel João de Almei-

da a pronunciar-se e a concentrar

em Monsanto algumas unidades

da guarnição de Lisboa, e a Junta

Militar do Norte a organizar de

imediato uma Junta Governativa

Militar. Mas, enquanto o coronel

João de Almeida retrocede em Lis-

boa, no Porto é o coronel Silva

Ramos, principal figura da Junta

Militar do Norte, quem declara dis-

solvida a Junta Governativa, afir-

mando que recebera a promessa

do presidente da República de que

as suas reivindicações seriam

satisfeitas.[39]

Em 8 de Janeiro, Tamagnini Bar-

bosa apresenta novo gabinete

perante as Câmaras. Altearam-se

as vozes de Cunha Leal (no parla-

mento) e de Machado Santos (no

Senado), acusando o chefe do

governo de cedências às Juntas

Militares. Estava já em marcha um

movimento revolucionário em

defesa da “República Velha”, que

se entendia posta em perigo pela

capitulação do governo ante as

reivindicações das Juntas Milita-

res. A revolta militar eclodirá na

noite do dia 10, quase simultanea-

mente em Lisboa (Castelo de S.

Jorge e Arsenal de Marinha), Covi-

lhã e Santarém. Em Lisboa e Covi-

lhã os revoltosos foram rapida-

mente dominados. Tal não aconte-

ceu aos militares que, na madru-

gada do dia 11, se pronunciaram

em Santarém. No essencial, os

revoltosos pediam ao presidente

da República a formação de um

“governo de concentração republi-

cano” onde ficassem representa-

dos os partidos da “Republica

Velha”.

6. Proclamando a “Monarquia

do Norte”

Com a reacção dos partidos a

ganhar expressão militar em San-

tarém, para os integralistas soara

a hora de agir. Enquanto no sul

predominavam os republicanos

sidonistas, no norte do país era

nítido o predomínio dos monárqui-

cos. As Juntas Militares, que

haviam sido criadas com o propó-

sito de impedir o retorno do parla-

mentarismo, teriam agora de ade-

rir ao propósito restauracionista O

Governo ainda terá chegado a dis-

cutir a possibilidade de substituir

alguns comandos na capital, mas

logo que é dada como falhada a

tentativa de constituição de um

governo militar em Lisboa, é o

próprio Hipólito Raposo quem redi-

ge, em 14 de Janeiro, com Rui da

Câmara e José Rino Fróis, na Pas-

telaria Marques, um memorando

em que o Lugar-Tenente de D.

Manuel II, Aires de Ornelas, vem a

escrever a expressão inglesa «go

on!» que o rei lhe dera um dia

para, em certas condições, se

poder levantar em Portugal a ban-

deira da Monarquia.

Os integralistas já só necessita-

vam de um documento rubricado

pelo Lugar-Tenente do rei para

vencer as hesitações que ainda

houvesse entre os comandantes

militares do Sul, do cerco de San-

tarém e do Norte.

Os revoltosos de Santarém só vêm

a depor as armas no dia 15,

perante o tenente Teófilo Duarte.

Mas o papel que Hipólito Raposo

apresentou na véspera ao conse-

lheiro Aires de Ornelas dizia

assim:

“MEMORANDO”

1º Sobre a possibilidade do assen-

timento de V. Ex.a para um movi-

Os integralistas já só necessitavam de um documento rubricado pelo Lugar-Tenente do rei para vencer as hesitações que ainda houvesse entre os comandantes militares do Sul, do cerco de Santarém e do Norte.

mento militar de carácter monár-

quico.

2º Sobre o assentimento de V.

Ex.a para um movimento militar,

promovido por of iciais monárqui-

cos e republicanos, para propor ao

País a fórmula do plebiscito sobre

o regime político.

3º Qual seja a opinião de V. Ex.a,

em qualquer das hipóteses, sobre

o perigo de uma intervenção

estrangeira, obstáculo que não

deteve os democráticos para a

organização e execução do actual

movimento revolucionário.

4º Sobre a opinião de V. Ex.a em

caso de vitória, acerca do reco-

nhecimento pelas nações estran-

geiras da nova ordem de coisas

políticos, levando em conta a

acção diplomática de El-Rei e dos

seus amigos junto do governo

inglês e o seu notável prestigio

junto dos outros governos aliados.

5º No caso do seu assentimento,

indicação dos nomes que na opi-

nião de V. Ex.a devem constituir a

Junta do Governo Nacional, em

nome de El-Rei.

6º Sem que tal facto importe

menos crédito à palavra de V. Ex.a

e à seriedade do portador, seria

conveniente que as opiniões a

expor fossem dadas por escrito,

para assim lhes ser atribuído todo

o valor que merecem pelos ele-

mentos de acção que precisam de

ser consultados”.

Aires de Ornelas escreveu à mar-

gem do documento:

“Go on!

Palavras d’El-Rei

Não vejo razão para plebiscito

Não julgo difícil o reconhecimento

Aires de Ornelas

14 Jan. 1919”.[40]

De imediato, e enquanto em Lis-

boa, sidonistas de ontem, demo-

cráticos, unionistas, e socialistas,

se iam unindo ao governo de

Tamagnini Barbosa, Paiva Coucei-

ro seguia para o Porto onde o

aguardava terreno mais propício.

A Junta Central do Integralismo

Lusitano reuniu no dia 17 à noite.

A decisão tomada é a de António

Sardinha e Luís de Almeida Braga

partirem para o Porto, investidos

com a missão de “procurar suster

o pronunciamento, até se ultima-

rem as ligações que viriam dar-lhe

maior carácter de unanimidade em

Lisboa e na Província”.[41]

António Sardinha chegou ao Porto

na manhã do dia 18, na véspera

do pronunciamento, hospedando-

se no Hotel Borges; “ - Isto é um

conto das Mil e Uma Noites!”, terá

logo exclamado perante o espec-

táculo da mais absoluta facilidade

revolucionária que acabava de

encontrar. Pela tarde avistou-se

com Paiva Couceiro, expondo-lhe

os motivos da sua viagem, a con-

veniência de aguardar mais uns

dias para que o pronunciamento

das tropas, em Lisboa e no Porto,

pudesse ser simultâneo”. Couceiro

alegou que não havia outra opor-

tunidade, “não só porque, em Lis-

boa, os comandantes militares,

com as suas hesitações, continua-

riam no mesmo pé em que se

haviam mantido em seguida à

morte de Sidónio, como, já conhe-

cedor o Governo do que se passa-

va no Porto, não tardariam a ser

substituídas por ele todas as auto-

ridades militares e civis”. No dia

seguinte - dia da proclamação da

Monarquia - chegavam ao Porto,

em comboio especial, acompanha-

dos pelo ministro da Guerra da

República, Silva Basto, os recém-

nomeados governador civil e o

comissário de polícia, respectiva-

mente, António Pais e Cristóvão

Aires. Foram devolvidos a Lisboa

sem tomar posse. Estava já has-

teada no Monte Pedral a bandeira

azul e branca.[42] A restauração

declarava em vigor a Carta Consti-

tucional e indicava como chefes:

Luís de Magalhães, Sollari Allegro,

Conde de Azevedo, Visconde do

Banho, Coronel Silva Ramos. A

12 O DEBATE

A Monarquia do Norte

“Go on!

Palavras d’El-Rei

Não vejo razão para plebiscito

Não julgo dif íc il o reconhecimento

Aires de Ornelas

14 Jan. 1919”.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 13

A Monarquia do Norte Junta Governativa do Reino ficava

sob o comando de Paiva Couceiro.

Logo que foi conhecida a procla-

mação, o Integralismo Lusitano

manifestou aceitar a nova ordem,

agarrando “a parte prática e posi-

tiva da obra restauradora” - Pri-

mum vivere, deinde philosophare,

era o princípio que adoptavam.[43]

Da tentativa restauracionista fica-

rá a ecoar o pensamento e as

directivas políticas adoptadas pela

Junta Governativa do Reino.[44]

Luís de Magalhães, sua figura polí-

t ic o- legislat iva determinante,

apontou duas razões fundamentais

para que aquela Restauração se

fizesse pela reposição da ordem

política estabelecida pela Carta

deposta em 1910: em primeiro

lugar, porque se entendia a Repú-

blica como “puro hiato político”,

fruto de uma “usurpação violenta”

jamais sancionada; em segundo

lugar, porque se pretendia evitar a

ditadura como regime de transição

- querendo fazer-se uma restaura-

ção, não uma revolução, teriam

que evitar a pratica dos republica-

nos de “estabelecer como lei bási-

ca da sociedade o arbítrio pessoal

dos governantes”.[45] O próprio

Luís de Magalhães tudo virá a

resumir em imagem singela: havia

que “atar a corda pelas pontas

quebradas”.

O Norte estava dominado, mas

havia que restabelecer o contacto

com as forças restauracionistas no

Sul e proceder à restauração onde

tal fosse exequível.

Em Lisboa, na manhã do dia

seguinte à proclamação do Porto,

Hipólito Raposo suspendeu o jor-

nal A Monarquia, seguindo de ime-

diato para Belém, onde se esta-

vam a concentrar os monárquicos

(Regimento de Cavalaria 2). Havia

que subir a Monsanto para ocupar

o posto de T.S.F. e estabelecer

contacto com o Norte.

Entretanto, a Junta Governativa

do Reino nomeara António Sardi-

nha governador civil de Portale-

gre, com o intuito e a esperança

de aí se poder vir a proclamar a

Monarquia. Sardinha ficará junto

de Paiva Couceiro, preso à missão

prioritária de constituir o Gabinete

da Presidência. Agregou a si Luís

de Almeida Braga, João do Amaral

e Nosolini Leão. Ter-se-ão sucedi-

do dias tranquilos, mas sem notí-

cias do Sul. Até que aí surgiu

António Teles de Vasconcelos,

para montar os serviços de comu-

nicações ao longo da fronteira. É

então que Sardinha é destacado

para Badajoz, Luís Teles de Vas-

concelos (irmão de António) para

Cáceres, Joaquim de Almeida Bra-

ga para Tui, de onde penetrariam

em Portugal com propósitos res-

tauracionistas.

Em Lisboa, entretanto, pouco pas-

sava das seis horas do dia 22 de

Janeiro, quarta-feira, quando, do

quartel de Lançeiros, começaram

a sair os cerca de 70 homens

comandados pelo capitão Júlio da

Costa Pinto. O desfile dirigiu-se, a

passo, pelo Alto da Ajuda até Mon-

santo. Quando aí chegaram, fize-

ram acampamento na Cruz da Oli-

veira, onde improvisaram um

quartel-general, enquanto o capi-

tão Delf im Maia ocupava o posto

de T.S.F. Distribuídas várias vede-

tas pelos locais de acesso, ali se

revezaram durante toda a noite

nos turnos de sentinela.

Na manhã seguinte, dia 23, aos

primeiros raios de sol, o grosso da

coluna dispôs-se em linha de ati-

radores junto ao moinho do Alto

da Peça. Dadas as salvas do estilo,

hasteou-se a bandeira azul e bran-

ca com “o símbolo real tremulando

na altivez secular das suas qui-

nas”.[46] A ligação entre o Porto e

Lisboa ainda terá demorado, com

o alferes António Pinto Castelo

Branco, a repetir várias vezes a

partir de Lisboa: «Aires de Ornelas

e tropas monárquicas em Monsan-

to, pedem noticias».

Estabelecido o contacto, mas

“receando a hipótese de um ardil

A Junta Governativa do Re ino ficava sob o co mand o de Pa iva Couceiro. Logo que foi conhecida a proclamação, o Integralismo Lusitano manifestou aceitar a nova ordem, agarrando “a parte prática e positiva da obra restauradora” - Primum v i v e r e , d e i n d e philosophare, era o princípio que adoptavam.

D a t e n t a t i v a restauracionista ficará a ecoar o pensamento e as d i re c t iva s po l í t ic as adoptadas pela Junta Governativa do Reino.

de guerra, perguntavam do Porto:

Quem foi buscar Aires de Ornelas

a Carcavelos?

De Monsanto respondia-se segura-

mente: «- António Sardinha».

Logo a seguir, recebia-se a trans-

missão das boas noticias do Norte,

em nome de Paiva Couceiro”.[47]

O desastre de Monsanto ocorreu

logo no dia seguinte, 24 de Janei-

ro. Enquanto uns 30 monárquicos

saíram da Cruz das Oliveiras em

direcção à Ajuda, para ir tentar

sublevar o quartel de Infantaria

16, os que ficaram no Monsanto

não conseguirão suster as arreme-

tidas das forças republicanas,

entretanto acrescentadas pelos

numerosos voluntários que res-

ponderam ao apelo do Governo.

Os monárquicos, em clara desvan-

tagem numérica, ainda lutaram

até ao fim da tarde. O capitão

Júlio da Costa Pinto, com alguns

feridos graves sob o seu comando

- entre os quais Pequito Rebelo e

Alberto Monsaraz -, acabou prefe-

rindo a capitulação à fuga.[48]

António Sardinha, que nesse mes-

mo dia deixara o Porto, seguindo

por Espanha na direcção de Porta-

legre, só soube da tragédia ao

passar em Vigo, onde se demorou

com Luís Teles de Vasconcelos,

antes de seguirem viagem por

Astorga até Salamanca. Não che-

gará a entrar em Portugal, sendo

expulso de Badajoz a pedido do

Cônsul de Portugal, por expressa

disposição do Governo espanhol,

em 13 de Fevereiro de 1919. O

desmoronar completo do “efémero

castelo de cartas” desses vinte e

cinco dias da denominada Monar-

quia do Norte, foi notícia que aco-

lheu António Sardinha já em

Madrid.

7. No rescaldo

O ambiente político, depois de

Fevereiro de 1919, vai ser muito

diferente: vencidos os sidonistas

no Rossio, e os monárquicos em

Monsanto e no Norte, a situação

portuguesa surgia consolidada

para o regime parlamentarista

republicano. A derrota dos Impé-

rios Austro-Hungaro e Alemão

parecia dar-lhe livre curso.

Vitoriosos, os republicanos aperta-

ram naturalmente o cerco aos

monárquicos. Alguns conseguiram

escapar para o exílio, mas acaba-

ram enchendo-se as prisões, cen-

tenas de oficiais foram expulsos

do Exército, muitos funcionários

foram demit idos.

No plano prático e imediato, para

a Junta Central integralista, o

resultado da frustrada tentativa

restauracionista saldou-se em dois

feridos graves no hospital de S.

José (Alberto de Monsaraz e

Pequito Rebelo), dois exilados

(António Sardinha e Luís de Almei-

da Braga), e Hipólito Raposo esca-

pando in extremis de ser preso em

Monsanto.

Mas, que caminho seguir, agora

que o movimento restauracionista

sofrera um novo revês?

Derrotados militarmente, a priori-

dade para os integralistas era o

reaparecimento do jornal A Monar-

quia. Hipólito Raposo assumiu a

sua direcção, fazendo-o surgir nas

bancas no dia 18 de Agosto, sub-

metido ao regime especial de

revista prévia da censura, a par

dos órgãos Vanguarda (socialista)

e Batalha (anarco-sindicalista)

O cerco a Hipólito Raposo e ao

integralismo, porém, mal começa-

ra. O regime que se revelara inca-

paz de o apanhar no fragor da

luta, vai começar por desencadear

a represália por via administrativa.[49] Seguiram-se os processos nos

Tribunais: em Julho, haviam já

sido instaurados dois processos-

crime, um por crime de imprensa,

a ser julgado na Boa Hora, e outro

por crime contra a segurança do

Estado, a ser julgado no Tribunal

Militar Especial, em Santa Clara.[50]

No plano político, os integralistas

vão apresentar os acontecimentos

14 O DEBATE

A Monarquia do Norte

O desastre de Monsanto ocorreu logo no dia seguinte, 24 de Janeiro. E n q u a n to u n s 3 0 monárquicos saíram da Cruz das Oliveiras em direcção à Ajuda, para ir tentar sublevar o quartel de Infantaria 16, os que ficaram no Monsanto não conseguirão suster as arremetidas das forças republicanas, entretanto acrescen tadas pe los numerosos voluntários que responderam ao apelo do Governo. Os monárquicos, em clara desvantagem numérica, ainda lutaram até ao fim da tarde. O capitão Júlio da Costa Pinto, com alguns feridos graves sob o seu comando - entre os quais Pequito Rebelo e Alberto Monsaraz -, acabou preferindo a capitulação à fuga.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 15

A Monarquia do Norte político-militares de Janeiro e

Fevereiro de 1919, como “a prova

trágica da incapacidade dos velhos

chefes monárquicos”[51] - mais

ainda do que as armas da Monar-

quia, tinham sido “vencidos os

processos, os vícios e os erros do

Constitucionalismo Liberal”.[52]

Insatisfeitos com a atitude expec-

tante de D. Manuel II durante os

acontecimentos, e considerando

que a sua postura política deixara

de oferecer garantia de servir o

interesse nacional, afastaram-se

da sua obediência. Em torno de D.

M a n u e l I I f i c a r a m o s

“constitucionalistas” ou “liberais”,

acolitados pelo tradicionalismo

hierocrático, de feição autoritário,

entretanto formado em torno do

grupo da Acção Realista, sob a

liderança de Alfredo Pimenta.[53]

Não tendo participado na tentativa

restauracionista, e tendo mesmo

confessado tudo desconhecer dos

seus preparativos, ao escrever

após aqueles sucessos, Alfredo

Pimenta considerou que para o

que restava do sidonismo só havia

uma de duas saídas: ou a monar-

quia ou o governo militar. No seu

entender, porém, as condições

não estariam maduras para a pri-

meira hipótese.

O grosso do monarquismo tradi-

cionalista vai passar a estar agluti-

nado em torno da Causa Monár-

quica portuguesa, juntando o Par-

tido Legitimista e o Integralismo

Lusitano no reconhecimento de D.

Duarte Nuno como Chefe da Casa

Real portuguesa.

A Questão Dinástica virá a encer-

rar-se definitivamente na sequên-

cia da morte de D. Manuel II, em

1932, reconhecendo a Causa

Monárquica o neto de D. Miguel I,

D. Duarte Nuno de Bragança,

como chefe da Casa Real portu-

guesa. Para os integralistas,

porém, em 1919, morria definiti-

vamente a Monarquia da Carta.[54]

[1] Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911

-1914, Lisboa, Clássica Editora, 1993, pp. 9-20. [2] Ver Alberto de Oliveira, “O Nacionalis-mo na Literatura e as «Palavras Loucas», Lusitânia – Estudos Portugueses, Vol. I, p. 20; e Ramalho Ortigão, Carta de um Velho a um Novo, Lisboa, Edições Gama, 1947, pp. 89-96 (p. 90). [3] Ver Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911-1914, cit., p. 10; para Alfredo Pimen-ta, em 1920, a lição a reter era bem grave e formidanda: “o partido republicano, sem o auxílio e a cumplicidade dos partidos monarchicos, nunca teria tido forças para proclamar a Republica”; ver Alfredo Pimen-ta, A questão monarchica, Lisboa, Edição das Juventudes Monarchicas Conservado-ras, 1920, pp. 4-5. [4] No plano político-ideológico opunham-se tradicionalistas e modernistas, enquanto permanecia, em grande medida paralela-mente, a antiga divisão dinástica entre “legitimistas” ou “tradicionalistas”, partidá-rios da descendência do rei proscrito D. Miguel I, e os “constitucionais” ou “liberais”, partidários do ramo reinante, descendente de D. Pedro (IV). [5] Ver Hipólito Raposo, Folhas do Meu Cadastro. Volume I (1911-1925), Lisboa, Edições Gama, 1940, pp. XX-XXVI. [6] Ver Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 90-91. Couceiro terá tido conhecimento dos Documentos Políticos encontrados nos Palácios Reais depois da Revolução Repu-blicana, por intermédio de João de Menezes que pretendia atraí-lo para a causa republi-cana. Esses documentos revelavam os bas-tidores nada edificantes dos últimos anos da monarquia. Só foram publicados em 1915, pela Imprensa Nacional, por ordem do Parlamento da República. [7] Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Manifesto ao Exército”, Junho de 1911, pp. 93-94. [8] Ver exemplo da campanha contra Paiva Couceiro, apresentado como cúmplice dos espanhóis, em A Capital, 27 de Junho de 1911. Ver também notas em José Relvas, Memórias políticas, vol. I, Lisboa, 1977, p. 287. [9] Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Declaração sobre a origem dos elementos alliciados no movimento da Galliza – Portu-guezes e só Portuguezes” (12 de Junho de 1911), p. 95. [10] Ibidem, ver as três proclamações, dirigidas aos soldados, aos reservistas e

ao povo, pp. 95-97. [11] Ver Memórias do Sexto Marquês de Lavradio, 2ª ed., Lisboa., 1993, p. 205: “o porta-bandeira era o filho de João Couti-nho, que fazia os maiores esforços para a não deixar desenrolar de modo que o povo não visse que ela não tinha a coroa Real”. [12] Nas exactas palavras que o coman-dante Couceiro dirigiu aos Soldados, a ban-

Vitoriosos, os republicanos apertaram naturalmente o cerco aos monárquicos. A l gu ns conse gu iram escapar para o exílio, mas acabaram enchendo-se as prisões, centenas de oficiais foram expulsos do E x é r c i t o , m u i t o s f u n c i o ná r io s f or am demitidos. No plano prático e imediato, para a Junta Central integralista, o resultado da frustrada tentativa restauracionista saldou-se em dois feridos graves no hospital de S. José (Alberto de Monsaraz e Pequito Rebelo), dois exilados (António Sardinha e Luís de Almeida Braga), e H i pó li t o R apo so escapando in extremis de ser preso em Monsanto.

deira azul e branca era o símbolo nacional vitorioso nos combates de Marracuene e Mufilo, Dembos e Magul, Namarraes, Coe-lela - “legendas da luminosa biographia nacional!” - ou, dirigindo-se a todo o Povo, o “signo da Pátria Livre” que se levanta contra os “tiranos da inquisição vermelha e verde; Ver Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Manifesto ao Povo Portuguez”, pp. 97-101, cit. p. 101. [13] Fora a solução adoptada pelo general Prim, em 1868, ao apresentar-se em Cadiz para destronar a rainha Isabel. Quando D. José Topete lhe propôs a aclamação da duqueza de Monpensier, Prim avançou com a seguinte fórmula: “Cortes constituyentes y que el pais libremente decida de sua suerte”. [14] Ver Memórias do Sexto Marquês de Lavradio, cit., pp. 207-208, contendo o texto da Declaração de D. Manuel, datada de Richmond, em 31 de Outubro de 1911. [15] O “Pacto de Dover” (Inglaterra), esta-belecido em 30 de Janeiro de 1912, foi um acordo no qual D. Miguel II reconheceu o direito ao trono de D. Manuel II, aceitando este, para o caso de não vir a deixar des-cendência directa, o direito à sucessão ao ramo de D. Miguel. [16] Ver, de entre numerosa bibliografia sobre as incursões de 1911-12, na pers-pectiva monárquica: Joaquim Leitão, A Bandeira dos Emigrados (Repellindo uma Affronta), Porto, Edição do Autor, 1912; idem, Couceiro, o Capitão Phantasma. Dos acontecimentos da Galliza á Marcha para a Segunda Incursão Monarchica, Porto, Edi-ção do Autor, 1914; idem, Em Marcha para a 2ª Incursão. Da Concentração ao erguer do Bivaque de Soutelinho da Raia para o ataque a Chaves, Porto, Edição do Autor, 1915; idem, O Ataque a Chaves, Porto, Edição do Autor, 1916. Na perspectiva dos adversários republicanos, veja-se Comba-tes de Vila Verde e Chaves em 7 e 8 de Julho de 1912. Relatórios Oficiais..., Secre-taria de Guerra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913; Operações militares das tropas do Sector entre Minho e Cávado em Julho de 1912. Relatórios Oficiais... Lisboa, Impren-sa Nacional, 1913; e o estudo, à luz de fontes espanholas, de Hipólito de la Torre Gómez, Conspiração contra Portugal (1910-1912). As Relações Políticas entre Portugal e Espanha, Lisboa, Livros Horizonte, 1978. [17] Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 103-117. [18] Os republicanos - considerava “o assí-duo frequentador de Richmond” - detinham o poder “com os cérebros e as mãos vazias”, procurando resolver os problemas “com ministros de passagem, bacharéis em direito, em filosofia e medicina, com parla-mentos sem cultura e competência apro-priadas, ou pelo conselho de correctores gananciosos de empréstimos”; Ver Carlos Malheiro Dias, Op. cit., p. 110.

[19]; Ângelo Ribeiro, "Consolidação do Novo Regime" in Damião Peres (org.), His-tória de Portugal, vol. VII, Barcelos, p. 490. [20] Ver Ângelo Ribeiro, "Consolidação do Novo Regime" in Damião Peres (org.), His-tória de Portugal, vol. VII, Barcelos, p. 490; e, de Ramalho Ortigão, a irónica des-crição dessa primeira (então única) “fundação pedagógica do novo regime” in Últimas Farpas, 1911-1914, cit., pp. 37-38. [21] Ver David Ferreira, História Política da Primeira República Portuguesa, Lisboa, 1973. [22] Ver José Manuel A. Quintas, Filhos de Ramires – Das Ideais, das Almas e dos Factos no Advento do Integralismo Lusita-no, 1913-1916, pol., Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1997; idem, “Os Monár-quicos” in Iva Delgado, Carlos Pacheco e Telmo Faria (coord.), Humberto Delgado. As Eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173 (141-146). [23] O encontrou deu-se por intermédio de Eduardo Ortigão Burnay (neto de Rama-lho), em Maio de 1914, na casa que Rama-lho Ortigão tinha na Calçada dos Caetanos, em Lisboa; ver António Jacinto Ferreira, integralismo Lusitano – uma doutrina polí-tica de ideias novas, Lisboa, Edições Cultu-ra Monárquica, 1991, p. 48. [24] "Carta de Um Velho a um Novo", A Restauração, edição da manhã, de 12 de Setembro de 1914. Ver reedição integral, incluindo a resposta de João do Amaral, precedida de um estudo de Alberto de Monsaraz sobre a política de Ramalho, em Ramalho Ortigão, Carta de um Velho a um Novo, Lisboa, Edições Gama, 1947. [25] Ver José Manuel A. Quintas, Filhos de Ramires, cit., pp. 228-230. [26] Ver O Intransigente, 4 de Maio de 1915. [27] António Sardinha, “O Senhor Sidónio Pais”, A Monarquia, 9 de Janeiro de 1918. [28] Idem, “Nota Politica”, A Monarquia, 14 de Janeiro de 1918. [29] Idem, "Nota Politica", A Monarquia, 19 de Janeiro de 1918. [30] A legislação eleitoral (Decreto nº 3 977 de 30 de Março de 1918) foi elaborada pelo Ministro da Justiça, Martinho Nobre de Melo, republicano nacionalista, com a cola-boração dos integralistas António Sardinha e Hipólito Raposo. Ver Hipólito Raposo, Folhas do Meu Cadastro, pp. 36-38; Teófilo Duarte, Sidónio Pais e o seu Consulado, pp. 107 ss; 285 ss. Acerca do "regime de comunhão de mesa" de Hipólito Raposo e Martinho Nobre de Melo, Ver Hipólito Rapo-so, Op. cit., pp. 39-40. [31] Luís de Almeida Braga, “As relações com Roma”, A Monarquia, 23 de Janeiro de 1918. [32] Artigos 116º a 121º do Decreto nº 3 977 de 30 de Março de 1918.Pais, Lisboa, Edição da Sociedade Editorial ABC, 1921, p. 182.

16 O DEBATE

A Monarquia do Norte

Derrotados militarmente, a pr ior idade para os integra lis tas era o reaparecimento do jornal A Monarquia. Hipólito Raposo assumiu a sua direcção, fazendo-o surgir nas bancas no dia 18 de Agosto, submetido ao regime especial de revista prévia da censura, a par dos órgãos Vanguarda (socialista) e Batalha (anarco-sindicalista)

O cerco a Hipólito Raposo e ao integralismo, porém, mal começara. O regime que se revelara incapaz de o apanhar no fragor da luta, vai começar por desencadear a represália por via administrativa.[49] Seguiram-se os processos nos Tribunais: em Julho, haviam já sido instaurados dois processos-crime, um por crime de imprensa, a ser julgado na Boa Hora, e outro por crime contra a segurança do Estado, a ser julgado no Tribunal Militar Especial, em Santa Clara.[

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 17

A Monarquia do Norte [33] Luís de Magalhães, Perante o Tribunal e a Nação, Coimbra, 1925. [34] Ou melhor - o apelo era precoce: o centrismo ainda não havia entrado nas mentes republicanas; o II Congresso do Centro Católico, aprovando a plataforma para a sobrevivência do regime republica-no, só acontece em 1922. Ver Manuel Bra-ga da Cruz, As Origens da Democracia-Cristã em Portugal e o Salazarismo, Lisboa, Presença, 1980. [35] Rocha Martins, Memórias sobre Sidó-nio Pais, Lisboa, Edição da Sociedade Edi-torial ABC, 1921, p. 182. [36] António Sardinha, “O discurso de Elvas”, A Monarquia, 4 de Julho de 1918. [37] Acerca do assassínio de Sidónio Pais ver Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Volume XI, Lisboa, Editorial Ver-bo, p. 216-219; e bibliografia referida, em especial José Luciano Sollari Allegro, Para a História da Monarquia do Norte, Lisboa, 1988, pp. 65 e segs. [38] Ver António Sardinha em A Monar-quia, 15 de Dezembro de 1918. [39] Hipólito Raposo refere nas suas memórias que na tarde do dia de Natal de 1918 fora à Junqueira prevenir Paiva Cou-ceiro das ordens discutidas no Ministério da Guerra visando substituir os comandos monárquicos da capital; Hipólito Raposo, Op. cit., p. 43. [40] Ver Hipólito Raposo, Folhas do meu Cadastro, pp. 44-45; com fac-simile do texto manuscrito original. [41] Leão Ramos Ascensão, O Integralismo Lusitano, Lisboa, Edições Gama, 1943, p. 56. [42] Os acontecimentos, aqui relatados, relativos aos acontecimentos do Monsanto e aos episódios da participação dos inte-gralistas na Monarquia do Norte foram sobretudo recolhidos em Hipólito Raposo, Op. cit., pp. 45-79 (cit. p. 52), e em Antó-nio Sardinha, "Conrado não guarda silên-cio!" in Rodrigues Cavaleiro, Um Inédito de António Sardinha sobre a Monarquia do Norte, Separata do nº 15-16 da revista Sulco (2ª Série), Lisboa, 1968, pp. 43-55. [43] A nota da Junta Central, assinada por António Sardinha e Luís de Almeida Braga, foi publicada em A Pátria, 22 de Janeiro de 1919. [44] Ver Diário da Junta Governativa do Reino de Portugal. Colecção Completa,

nº 1 (19 Jan 1919) – nº 16 (13 Fev

1919), Porto, J. Pereira da Silva, 1919; Luís de Magalhães, Perante o Tribunal e

a Nação, cit., pp. 57-64, e apendices.

[45] Ver Luís de Magalhães, “Porque res-taurámos a Carta em 1919”, Correio da

Manhã, 27 e 28 de Fevereiro de 1924. [46] Felix Correia, A Jornada de Monsan-

to – Um Holocausto Trágico, Lisboa, Tip.

Soares & Guedes, Abril de 1919, p. 17. [47] Ver António Sardinha, "Conrado não guarda silêncio!" em Rodrigues Cavaleiro,

Um Inédito de António Sardinha sobre a Monarquia do Norte, Separata do nº 15-16

da revista Sulco (2ª Série), Lisboa, 1968,

pp. 43-55. [48] Felix Correia, Op. cit., pp. 19-36.

[49] Em 26 de Abril de 1919, através da

célebre “lei do afasta” (Decreto 5 368, de 8 de Abril de 1919), Hipólito Raposo foi demi-

tido de chefe da 2ª Repartição da Direcção

Geral do Ensino Industrial e Comercial. Como ainda lhe restasse o ensino da 3ª

cadeira da Escola da Arte de Representar do Conservatório de Lisboa, é o próprio

“ministro-filósofo” da Instrução Pública da

República, Leonardo Coimbra, quem acaba por se resolver em descer à tesouraria dan-

do ordem para que o vencimento lhe não

fosse pago; ver Hipólito Raposo, Folhas do meu Cadastro, cit., pp. 88-91.

[50] Do grotesco processo do Tribunal Mili-

tar merece referência a estreia no foro de Afonso Lopes Vieira, na defesa de Hipólito

Raposo. Depõem a favor de Hipólito Raposo,

Joaquim Manso, José de Ataíde e Henrique da Trindade Coelho. Hipólito Raposo foi con-

denado em três meses de prisão correccio-nal, cumprindo a pena na Torre de São

Julião da Barra, de 19 de Agosto a 17 de

Novembro. [51] Leão Ramos Ascensão, Op. cit., p. 57.

[52] Ver A Questão Dinástica – Documentos

para a História mandados coligir e publicar pela Junta Central do Integralismo Lusitano,

Lisboa, Empresa Nacional de Industrias Grá-

ficas, 1921, p. 3. [53] Alfredo Pimenta logrou mobilizar em

redor da Acção Realista alguns aderentes do integralismo como Caetano Beirão ou Luís

Chaves, pelo que algumas fontes têm referi-

do tratar-se de uma cisão no Integralismo Lusitano. Em rigor, não foi isso o que acon-

teceu: Alfredo Pimenta não era integralista,

e a Junta Central do Integralismo Lusitano não sofreu qualquer alteração na sua com-

posição em resultado do lançamento da

Acção Realista. Nas polémicas doutrinárias desencadeadas pela “questão dinástica”,

aliás, as duas organizações vieram a afirmar

distintas concepções do poder régio, com os integralistas a reafirmarem a doutrina seis-

centista do “pacto de sujeição” (que os leva-ra a começar por declarar obediência a D.

Manuel II, em 1914, e os levava agora à

ruptura) e os pimentistas a defenderem as doutrinas hierocráticas, firmando a conjuga-

ção do seu tradicionalismo com a obediência

a D. Manuel II, no respeito que lhes merecia a “pessoa sagrada” do rei; Ver A Questão

Dinástica..., cit., e de Alfredo Pimenta, A

questão monarchica, Edição das Juventudes Monarchicas Conservadoras, Lisboa, 1920.

[54] Em 1943, essa era a lição recolhida por Leão Ramos Ascensão, Op. cit., p. 58: “A

Monarquia de 1910 morria ali definitiva-mente. Ineptos e impotentes, os constitu-cionais só tinham servido durante nove anos para embaraçar e enervar os melho-res anseios de quem aspirava à restaura-ção da Pátria pela Monarquia tradicional”.

Alfredo Pimenta considerou que para o que restava do sidonismo só havia uma de duas sa ídas: ou a monarquia ou o governo militar. No seu entender, porém, as condições não estariam maduras para a primeira hipótese.

O grosso do monarquismo tradicionalista vai passar a estar aglutinado em torno da Causa Monárquica portuguesa, juntando o Partido Legitimista e o Integralismo Lusitano no reconhecimento de D. Duarte Nuno como Chefe da Casa Real portuguesa.

A Questão Dinástica virá a e n c e r r a r - s e d e f i n i t i va me n te na sequência da morte de D. Manuel II, em 1932, reconhecendo a Causa Monárquica o neto de D. Miguel I, D. Duarte Nuno de Bragança, como chefe da Casa Real portuguesa. Para os integralistas, porém, em 1919, morria d e f i n i t i v a m e n te a Monarquia da Carta.

15 JUNHO 2011 O DEBATE 19

Augusto Ferreira do Amaral A Legitimidade de D. Duarte:

D. Duarte é o sucessor dos reis e Portugal

Introdução

O reconhecimento do Senhor Dom

Duarte como Pretendente ao Tro-

no e legítimo sucessor dos Reis de

Portugal tem sido de tal maneira

consensual e pacífico no nosso

País e no estrangeiro que os fun-

damentos jurídicos dessa identifi-

cação são mal conhecidos para a

maior parte das pessoas, de tal

maneira supérflua tem sido geral-

mente considerada a necessidade

de os relembrar.

Porém, algumas escassas vozes

ignaras, sem qualquer credencial

que lhes confira autoridade nem

crédito sobre a matéria, surgiram

ultimamente a pretender causar

sensação levantando dúvidas

sobre aquela insofismável realida-

de.

Vale a pena por isso recapitular os

referidos fundamentos jurídicos,

para que o público os tenha à dis-

posição.

1. Lei aplicável

Está em causa a qualidade de Pre-

tendente ao Trono de Portugal, ou

seja de quem seria Rei no caso de

Portugal passar a ser uma Monar-

quia, isto é, de o Chefe de Estado

passar a ser hereditária e vitalicia-

mente designado.

Não existem normas expressas no

actual direito positivo português

que regulem directamente esta

matéria. A Constituição, como é

natural, e as leis ordinárias omi-

tem totalmente a qualidade de

Pretendente ao Trono de Portugal.

E elas são igualmente omissas

quanto à regulação da representa-

ção viva dos reis de Portugal.

Também não há regras internacio-

nais que sirvam de critério para a

determinação de quem são os pre-

tendentes ao trono ou chefes das

casas reais dos países que deixa-

ram de ser Monarquias.

Saliente-se ainda que, para o efei-

to são juridicamente irrelevantes

as posições tomadas por Reis em

exercício que contrariem as nor-

mas de sucessão vigentes.

Já D. João II, apesar de todo o

poder que então dispôs, não foi

capaz de satisfazer o seu desejo

de que lhe sucedesse um filho

bastardo – apesar das tentativas

que realizou nesse sentido – e

teve de conformar-se em que lhe

viesse a suceder seu primo D.

Manuel I. Isto porque não era aos

reis de Portugal que competia

estabelecer as regras da sucessão,

e muito menos as decisões desta,

mas sim à lei fundamental, objec-

tivamente aplicada e confirmada

por um acto simbólico de Aclama-

ção.

Por muita importância histórica,

pois, que tenham tido os chama-

dos “pacto de Dover” e “pacto de

Paris”, entre D. Manuel II e D.

Miguel II, eles são irrelevantes

para efeitos da designação do

sucessor de D. Manuel II. Essa

sucessão tem de encontrar-se,

não naquilo que tivesse sido deci-

dido pelo último Rei, mas sim nas

normas constitucionais aplicáveis.

Importa então saber qual a sede

jurídica dessas regras de suces-

são.

Desde logo é de perfilhar o princí-

pio de que à sucessão do Preten-

dente deverão aplicar-se as nor-

mas da sucessão do Rei. Não

havendo especial norma, a analo-

gia justifica-se plenamente.

Ora, tratando-se duma qualidade

Está em causa a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal, ou seja de quem seria Rei no caso de Portugal passar a ser uma Monarquia, isto é, de o Chefe de Estado passar a s e r h e re d i tá r ia e vitaliciamente designado. Não ex istem normas expressas no actual direito positivo português que regulem directamente esta matéria. A Constituição, como é natural, e as leis o r d i n á r i a s o m i te m totalmente a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal. E elas são igualmente omissas quanto à r e g u l a ç ã o d a representação viva dos reis de Portugal.

que encontra o seu fundamento

num direito histórico, haverá que

recorrer a normas escritas já pas-

sadas.

A cisão que por cerca de século e

meio dividiu os monárquicos

(entre constitucionais e absolutis-

tas) poderia levar a uma hesitação

preliminar, na opção entre a Carta

Constitucional e as Leis Funda-

mentais anteriores.

Não temos dúvidas, porém, em

optar pela Carta.

Por várias razões. A mais decisiva

é, como tem sido nossa orienta-

ção, partirmos do princípio de que,

havendo que recorrer a preceitos

escritos do tempo da Monarquia,

importa preferir os que sejam

mais próximos no tempo. E as

normas legais que, na ordem jurí-

dica portuguesa, ultimamente, até

5 de Outubro de 1910, regulavam

a sucessão hereditária da chefia

de Estado eram as da Carta Cons-

titucional.

Os artigos que, para o efeito,

importa levar em conta são os

seguintes.

«Art. 5º – Continua a dinastia rei-

nante da sereníssima casa de Bra-

gança na pessoa da Senhora Prin-

cesa Dona Maria da Glória, pela

abdicação e cessão de seu Augus-

to Pai o Senhor Dom Pedro I,

Imperador do Brasil, legítimo her-

deiro e sucessor do Senhor Dom

João VI.»

«Art. 86º – A Senhora D. Maria II,

por graça de Deus, e formal abdi-

cação e cessão do Senhor D.

Pedro I, Imperador do Brasil, rei-

nará sempre em Portugal.

Art. 87º – Sua descendência legíti-

ma sucederá no trono, segundo a

ordem regular da primogenitura e

representação, preferindo sempre

a linha anterior às posteriores; na

mesma linha o grau mais próximo

ao meia remoto; no mesmo grau o

sexo masculino ao feminino; no

mesmo sexo a pessoa mais velha

à mais moça.

Art. 88º – Extintas as linhas dos

descendentes legítimos da Senho-

ra D. Maria II, passará a coroa à

colateral.

Art. 89º – Nenhum estrangeiro

poderá suceder na coroa do reino

de Portugal.

Art. 90º – O casamento da Prince-

sa herdeira presuntiva da coroa

será feito a aprazimento do Rei, e

nunca com estrangeiro; não exis-

tindo a Rei ao tempo em que se

tratar este consórcio, não poderá

ele efectuar-se sem aprovação das

cortes gerais. Seu marido não

tomará parte no governo, e

somente se chamará Rei depois

que tiver da Rainha filho ou filha.»

Importa, portanto, interpretar

estes preceitos.

Não se conhecem trabalhos prepa-

ratórios da Carta, constando que

ela terá sido redigida em poucos

dias, talvez pelo Ministro da Justi-

ça brasileiro, Marquês de Carave-

las. Os comentadores apontam a

Constituição do Império do Brasil,

outorgada por D. Pedro IV em 11

de Dezembro de 1823, como a

possível fonte directa mais impor-

tante (Por todos ver Mário Soares,

Carta Constitucional, in Dicionário

da História de Portugal, vol. I, p.

495).

No entanto, nesta matéria da

designação do Rei e da sua suces-

são, a nossa Carta Constitucional

seguiu de perto outra fonte portu-

guesa: a Constituição de 1822.

Com efeito, é o seguinte o texto

desta última, no que toca à suces-

são real.

«Art. 31º – A dinastia reinante é a

da sereníssima casa de Bragança.

O nosso rei actual é o senhor D.

João VI.»

«Art. 141º. A sucessão à coroa do

reino unido seguirá a ordem regu-

lar de primogenitura e representa-

ção entre os legítimos descenden-

tes do rei actual o senhor D. João

VI, preferindo sempre a linha

anterior às posteriores; na mesma

linha o grau mais próximo ao mais

remoto; no mesmo grau o sexo

20 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

A cisão que por cerca de século e meio dividiu os mo ná rq ui cos (e n tre c o n s t i t u c i o n a i s e absolutistas) poderia levar a u m a h e s i ta ç ã o preliminar, na opção entre a Carta Constitucional e as L e i s Fu n d a me n ta i s anteriores. Não temos dúv idas, porém, em optar pela Carta. Por várias razões. A mais decisiva é, como tem sido n o s s a o r i e n ta ç ã o , partirmos do princípio de que, havendo que recorrer a preceitos escritos do tempo da Monarquia, importa preferir os que sejam mais próximos no tempo. E as normas legais que, na ordem jurídica portuguesa, ultimamente, até 5 de Outubro de 1910, regulavam a sucessão hereditária da chefia de Estado eram as da Carta Constitucional.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 21

A Legitimidade de D. Duarte masculino ao feminino; no mesmo

sexo a pessoa mais velha à mais

moça.

Portanto:

I. Somente sucedem os f ilhos nas-

cidos de legítimo matrimónio;

II. Se o herdeiro presuntivo da

coroa falecer antes de haver nela

sucedido, seu filho prefere por

direito de representação ao tio

com quem concorrer;

III. Uma vez radicada a sucessão

em uma linha, enquanto esta

durar não entra a imediata.

Art. 142º. Extintas todas as linhas

dos descendentes do senhor D.

João VI, será chamada aquela das

linhas descendentes da casa de

Bragança que dever preferir

segundo a regra estabelecida no

artigo 141º. Extintas todas estas

linhas, as cortes chamarão ao tro-

no a pessoa que entenderem con-

vir melhor ao bem da nação; e,

desde então continuará a regular-

se a sucessão pela ordem estabe-

lecida no mesmo artigo 141º.

Art. 143º. Nenhum estrangeiro

poderá suceder na coroa do reino

unido.

Art. 144º. Se o herdeiro da coroa

portuguesa suceder em coroa

estrangeira, ou se o herdeiro des-

ta suceder naquela, não poderá

acumular uma com outra; mas

preferirá qual quiser, e optando a

estrangeira se entenderá que

renuncia à portuguesa.

Esta disposição se entende tam-

bém com o rei que suceder em

coroa estrangeira.

Art. 145º. Se a sucessão da coroa

cair em fêmea, não poderá esta

casar senão com português, pre-

cedendo aprovação das cortes. O

marido não terá parte no governo,

e somente se chamará rei depois

que tiver da rainha filho ou filha.»

Nesta matéria da sucessão real as

disposições constitucionais, quer

da Constituição de 1820, quer da

Carta, inspiraram-se basicamente

nas leis fundamentais portuguesas

vigentes no antigo regime, as

quais, por isso, são importantes

para integrar lacunas e precisar

sentidos quando se procede à

interpretação dos citados preceitos

da Carta.

Essas leis fundamentais consta-

vam do Assento feito em Cortes

pelos Três Estados, na aclamação

de D. João IV, assinado em 5 de

Março de 1641, e na Carta Patente

de D. João IV em que iam incorpo-

rados os Capítulos Gerais dos Três

Estados e Resposta a eles nas

Cortes de Lisboa de 28 de Janeiro

de 1641. E estes documentos

seguiam princípios constantes da

apócrifa acta das falsas Cortes de

Lamego no reinado de D. Afonso

Henriques, a qual, contudo, a par-

tir da sua publicação em 1632,

passou a ser entendida, na cons-

ciência generalizada dos portugue-

ses, como consubstanciando a lei

fundamental. Na verdade, a remo-

ta origem das regras sucessórias

do trono achava-se nos costumes

e nas cláusulas dos testamentos

de D. Sancho I, D. Afonso II e D.

Sancho II (Ver Martim de Albu-

querque e Rui de Albuquerque,

História do Direito Português, vol.

I, 1984/85, pp. 400 e segs., Mar-

cello Caetano, História do Direito

Português, 2ª edição, 1985,

pp.211 e 212, F. P. de Almeida

Langhans, Fundamentos Jurídicos

da Monarquia Portuguesa, Lisboa,

1951, Gama Barros, História da

Administração Pública em Portugal

nos séculos XII a XV, 2ª edição,

vol. III, p.p. 300 e segs., Paulo

Merêa, Novos Estudos da História

do Direito, pp. 47 e segs., António

Caetano do Amaral, Memória V

para a História da Legislação e

Costumes de Portugal, ed. Civiliza-

ção, 1945, pp. 31 e segs., J. J.

Lopes Praça, Collecção de leis e

subsídios para o estudo do direito

constitucional portuguez, Coimbra

1893, p. XXII, e M. A. Coelho da

Rocha, Ensaio sobre a história do

governo e da legislação de Portu-

gal, Coimbra, 1861, p. 49).

Se a sucessão da coroa cair em fêmea, não poderá esta casar senão com português, precedendo aprovação das cortes. O marido não terá parte no governo, e somente se chamará rei depois que tiver da rainha filho ou filha.» Nesta matéria da sucessão real as disposições constitucionais, quer da Constituição de 1820, quer da Carta, inspiraram-se basicamente nas le is fundamentais portuguesas vigentes no antigo regime, as quais, por isso, são importantes para integrar lacunas e precisar sentidos quando se procede à interpretação dos citados preceitos da Carta.

Segundo um dos doutores clássi-

cos da Restauração, Francisco

Velasco de Gouveia (Justa Accla-

mação do Serenissimo Rey de Por-

tugal Dom João o IV, 1644, p.

79), «entre as quatro qualidades,

que se consideram, e atentam na

sucessão dos bens vinculados,

morgados, e Reinos, que por sua

instituição hão-de vir a uma pes-

soa de certa geração, para se ver

qual há-de preferir, e suceder

neles, a primeira de todas, é a

linha. A segunda, o grau. A tercei-

ra, o sexo. A quarta, a idade». E

conclui que na crise de 1580 «o

direito legítimo da sucessão destes

Reinos pertencia à Infanta Duque-

sa Dona Catarina. Por melhor

linha. Por igualmente melhor grau.

Por capacidade do sexo. Pelo

benefício da representação. Por

vocação. Por agnação. E por ser

Portuguesa, e casada com Príncipe

Português» (ibidem, p. 78). Nesta

síntese poderá verif icar-se como

as normas constitucionais relativas

à sucessão no trono seguiram, no

essencial, princípios com muitos

séculos de vigência.

2. Princípios decorrentes da

Carta Constitucional

Qual, então, o regime de sucessão

régia que decorre da Carta Consti-

tucional?

Desde logo se observe que, con-

forme resulta dos arts. 5º e 88º,

nada impede que a sucessão caia

em descendentes de irmãos de D.

Pedro IV.

Isto é, não se exige, como antiga-

mente estava estabelecido, a

aprovação das Cortes para a pas-

sagem do trono a um colateral,

quando o Rei não tivesse descen-

dentes. A Carta seguiu aí a orien-

tação do art. 142º da Constituição

de 1822, que, curiosamente, res-

tringiu neste particular os poderes

do Parlamento. Enquanto houves-

se descendentes da Casa de Bra-

gança, não era necessária a apro-

vação das Cortes para que na

coroa sucedesse um colateral do

Rei.

Os arts. 86º a 90º da Carta insti-

tuem quatro conjuntos de regras

para a sucessão: definição do

autor da sucessão, relação de

parentesco, condição da nacionali-

dade, e condição da autorização

régia para o casamento de prince-

sa.

O itinerário duma designação de

sucessor régio é pois, basicamen-

te, constituído pelos seguintes

passos. Primeiro há que determi-

nar a pessoa em relação à qual se

apurará o parentesco definidor do

sucessor. Depois fazem-se funcio-

nar as regras do parentesco, com

vista a apurar um candidato. Apu-

rado este, importa saber se, quan-

to a ele, não ocorre algum dos

factos que levam à exclusão da

sucessão, isto é, se ele não deve

ser afastado por razões da nacio-

nalidade ou de casamento de prin-

cesa.

Vejamos então esses passos em

pormenor.

2.1. Quem é o autor da suces-

são

Aqui são regulados dois casos: a

sucessão de D. Maria II, e a dos

que viessem de futuro a suceder-

lhe no trono.

Havia na Carta Constitucional uma

expressa declaração de D. Maria II

como Rainha. E nem sequer fora

uma especialidade daquele docu-

mento, atribuível a circunstâncias

únicas da vida política portuguesa,

desencadeadas historicamente

após a morte de D. João VI. Já a

Const ituição de 1822, como

vimos, tivera o cuidado de deter-

minar pessoalmente que o Rei era

D. João VI e que a dinastia reinan-

te era a de Bragança.

É de aceitar esta declaração, não

tanto pela sua validade inicial e

intrínseca, que aliás nos não cabe

agora discutir, mas sobretudo por-

que a realeza de D. Maria II, teve

efectividade, directa e indirecta-

22 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

Os arts. 86º a 90º da Carta instituem quatro conjuntos de regras para a sucessão: definição do autor da sucessão, relação de parentesco, condição da nacionalidade, e condição da autorização régia para o casamento de princesa. O i t in erá r i o d uma designação de sucessor régio é pois, basicamente, constituído pelos seguintes passos. Primeiro há que determinar a pessoa em relação à qual se apurará o parentesco definidor do sucessor. Depois fazem-se funcionar as regras do parentesco, com vista a apurar um candidato. Apurado este, importa saber se, quanto a ele, não ocorre algum dos factos que levam à exclusão da sucessão, isto é, se ele não deve ser afastado por razões da nacionalidade ou de casamento de princesa.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 23

A Legitimidade de D. Duarte mente, na ordem jurídica portu-

guesa até 1910. Trata-se, de res-

to, do que a consciência generali-

zada, quer em Portugal, quer no

estrangeiro, reconhecia como váli-

do e regular nos últimos momen-

tos da vigência da Monarquia.

Apenas haverá que observar que

esta designação de D. Maria II não

era inovadora; não era constituti-

va, mas sim meramente declarati-

va. Não rompia com a linha suces-

sória entendida como correcta,

mas sim nela reconhecia a pessoa

a quem competia a qualidade de

sucessor dos anteriores reis portu-

gueses. Verdadeiramente, só tal-

vez nas cortes de Coimbra de

1385, com a aclamação de D. João

I, houvera a criação duma nova

dinastia. E, mesmo assim, o Mes-

tre de Avis era filho dum Rei, para

alguns em igualdade de parentes-

co, quanto à ilegitimidade, com os

outros pretendentes, quer a filha

de D. Leonor Teles, quer os de D.

Inês de Castro. Mas, quer a dinas-

tia dos Filipes, quer a brigantina,

socorreram-se da invocação do

direito a suceder no trono que fora

de D. João I.

No que diz respeito à pessoa real

à data em que era emitida a Carta

Constitucional, portanto, nenhuma

dúvida.

E quanto aos futuros reis?

Dois caminhos alternativos pode-

riam teoricamente abrir-se para a

determinação de quem, de futuro,

seria o autor da herança, isto é, o

Rei relativamente ao qual haveria

que determinar quem, pela rela-

ção de mais próximo parentesco,

competiria suceder no trono. Ou

esse parentesco era sempre aferi-

do relativamente ao Rei inicial, ao

fundador, ou relativamente àquele

que, em cada sucessão régia,

tivesse sido o último Rei.

Os teóricos sempre preferiram a

primeira concepção, em tudo o

que concerne à «sucessão dos rei-

nos, dos morgados, dos usufrutos,

dos bens da coroa, e, em geral, na

sucessão de todos e quaisquer

bens, que, por morte da pessoa

que os administra devem por Lei

ou por instituição passar a outra-

certa e determinada pessoa» (D.

Francisco de S. Luía, Obras com-

pletas do Cardeal Saraiva, tomo

IV, 1875, p. 168). Nessas suces-

sões, o sucessor sucede «ex pro-

pria persona, jure proprio, e não

pelo direito de seu pai, ou ante-

cessor» (ibidem, p. 169). Aliás, se

não fosse assim, isto é, se fosse

preferida a segunda alternativa

acima exposta, podiam suceder na

coroa parentes do rei antecessor

que não fossem descendentes do

fundador da dinastia.

Mas, no que respeita à sucessão

real havia também a preocupação

de garantir uma continuidade na

linha sucessória. E, para o efeito,

não seria satisfatória a adopção

extreme da primeira alternativa.

Se o parentesco fosse, pelo grau,

reportado sempre ao fundador da

dinastia, sem mais, resultaria a

possibilidade frequente de o filho

dum rei ser preterido por um

irmão ou mesmo por um primo

deste.

Daí que a escolha do fundador

como fulcro da relação de paren-

tesco haja sido temperada por um

tertium genus, o princípio da con-

tinuação da linha.

Parece ter sido essa a solução pre-

ferida do legislador constitucional.

O art. 87º dá a entender que o

primeiro critério é o da descen-

dência de D. Maria II; mas logo

como segundo critério, antes dos

demais, declara o da linha. Ora

isso só pode signif icar que,

enquanto uma linha se não extin-

guir, não pode suceder ninguém

de outra linha, ainda que de

parentesco mais próximo com D.

Maria II.

E há que levar em conta o esclare-

cimento expresso que era feito no

próprio nº III do art. 141º da

Constituição de 1822, que serviu

de fonte àquele preceito da Carta:

E quanto aos futuros reis? Dois caminhos alternativos poderiam teor icamente a b r i r - s e p a r a a determinação de quem, de futuro, seria o autor da herança, isto é, o Rei relativamente ao qual haveria que determinar quem, pela relação de mais próximo parentesco, competiria suceder no trono. Ou esse parentesco era sempre afer ido re lativamente ao Re i inicial, ao fundador, ou relativamente àquele que, em cada sucessão régia, tivesse sido o último Rei.

«uma vez radicada a sucessão em

uma linha, enquanto esta durar

não entra a imediata».

Quer dizer: a sucessão no trono

apura-se pela relação de parentes-

co legítimo com D. Maria II. Mas,

entre os parentes, a primeira pre-

ferência é pelos da linha mais pró-

xima; enquanto esta não estiver

extinta, não sucedem os parentes

de outra linha.

Com o Pretendente ao Trono não

há razão para não aplicar exacta-

mente esses princípios.

2.2. Relação de parentesco

O fundamento para a sucessão

régia, na Monarquia portuguesa,

era uma certa relação de paren-

tesco entre o herdeiro da Coroa e

um antecessor.

Na Carta, como acima vimos, essa

relação começa por ser apresenta-

da quanto aos descendentes a

Rainha. E só depois surge regula-

da a hipótese de a Coroa ir parar a

colaterais. Vejamos então separa-

damente cada uma dessas rela-

ções.

2.2.1. Na descendência

Aponta o art. 87º uma série de

critérios de apuramento do paren-

tesco susceptível de gerar a condi-

ção básica de sucessor no trono.

2.2.1.1. Legitimidade

A primeira exigência é de que o

parentesco seja «legítimo», ou

seja, baseado em filiações havidas

de matrimónio. Já a Constituição

de 1822 esclarecia que somente

sucediam os f ilhos nascidos de

legítimo matrimónio. E era regra

antiga, como se vê, entre outros,

por Afonso de Lucena (Allegações

de direito… por parte da Senhor

Dona Catherina…, etc. 1580, p.

93), e Francisco Alvarez de Ribera

(De Sucessione Regni Portugalliae,

1621, p.p. 17 e segs.)

Aqui colocam-se duas dúvidas.

A primeira advém do desapareci-

mento, da ordem jurídica portu-

guesa, da distinção entre filhos

legítimos e ilegítimos. Será correc-

to, ainda, levar em conta a distin-

ção estabelecida na Carta, entre

descendentes legítimos e ilegíti-

mos?

Estamos em crer que sim. A inter-

pretação preferível duma lei fun-

damental que, neste particular,

gozou duma longuíssima estabili-

dade, terá de privilegiar a conser-

vação do sentido histórico que era

conferido aos preceitos. E tal sen-

tido, neste particular, não pode

deixar de manter como decisiva a

exclusão da sucessão dos parentes

cuja relação com o autor da

herança não assente numa linha

totalmente legítima, isto é, em

sucessivas filiações decorrentes do

matrimónio.

A segunda dúvida é a de saber se

será de admit ir, para basear a

filiação legítima, o casamento civil.

O problema está em que, à data

da outorga da Carta Constitucio-

nal, os católicos por via de regra

só podiam casar-se validamente

por casamento canónico.

Ainda a especial natureza destes

preceitos, profundamente impreg-

nados duma tradição muito está-

vel, parece tornar preferível que

apenas se considere como eficaz,

para efeitos da geração de filiação

legítima dos descendentes do Rei,

o matrimónio religioso. Isto não

implica a afirmação duma poten-

cial Monarquia como Estado con-

fessional, nem a exigência de con-

fissão religiosa ao Pretendente.

Apenas significa a preferência por

uma interpretação favorável à rigi-

dez das normas fundamentais

reguladoras da sucessão régia.

2.2.1.2. «Segundo a ordem

regular da primogenitura e

representação»

Esta expressão, que resume dois

dos mais característicos princípios

da sucessão nos bens vinculados,

tem interesse, não já pela referên-

cia à ordem da primogenitura, de

24 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

A primeira exigência é de que o parentesco seja «legítimo», ou seja, baseado em filiações havidas de matrimónio. Já a Constituição de 1822 esclarecia que somente sucediam os filhos nascidos de legítimo matrimónio.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 25

A Legitimidade de D. Duarte que adiante se falará, mas sobre-

tudo pela adopção do instituto da

representação.

Que significa esta?

Que se, antes de o titular falecer,

morrer o filho que devia suceder-

lhe, qualquer filho deste tem pre-

ferência, na sucessão, sobre os

irmãos do titular.

Tradicionalmente se admitia este

instituto na própria sucessão de

reinos. Disso dão conta autores

como Afonso de Lucena (ob. cit.,

p.p. 46 e segs.), António de Sousa

de Macedo (Lusitania Liberata ab

injusto Castellanorum dominio

Restituta, 1645, p.p. 258 e segs.),

Velasco de Gouveia (ob. cit., p.p

151 e segs.), João Pinto Ribeiro,

Injustas Successoens dos Reys de

Leam, e de Castella. e izençaõ de

Portugal, in Obras Varias, parte

segunda, 1730, p. 102) e Francis-

co de Santo Agostinho de Macedo

(Jus Succedendi in Lusitaniae

Regum Dominae Catherinae,

1641, p.p. 50 e segs.).

E era também pacífico o princípio

de que, na linha recta descenden-

te, a representação não tinha limi-

tes, isto é, podiam dar-se em duas

ou mais gerações. Dizia Pascoal

José de Melo Freire, a propósito da

sucessão do Reino: «admittendam

in linea descendentium repraesen-

t a t i o n e m i n i n f i n i -

tum» (Institutiones Juris Civilis

Lusitani, 1800, livro III, p. 120).

A Carta é expressa em consagrar

a regra da representação, natural-

mente no sentido tradicional.

Assim, tratando-se de representa-

ção na descendência do autor da

herança, não se suscitam dúvidas

sobre o modo de entender essa

representação. Os problemas sur-

gem, sim, quando se trata de

sucessão de colaterais, como

adiante se verá.

Ainda uma questão é de pôr quan-

to ao correcto funcionamento do

instituto da representação – o que

sucede, quando o representado

não poderia suceder, se vivo fosse

à data em que morre o autor da

herança?

2.2.1.3. «Preferindo»

Preferir é aqui estar antes, estar à

frente de. Nenhuma dúvida des-

cortinamos no uso de tal termo.

No enunciado dos critérios de pre-

ferência, segue a Carta, uma vez

mais a doutrina tradicional. Dizia

Manuel Pegas a propósito da

s uc e s são n os mo rg ados :

«Enucleationem suppono vulgaris-

simam esse in jure nostro, et pro

constanti ab omnibus traditam,

quatuor qualitates in successione

maioratus inspici, et attendi debe-

re, prius lineam, postea gradum,

tuns sexum, et ultimo aeta-

tem» (Tractatus de Exclusione,

Inclusione, Successione, et Erec-

tione Maioratus, 1ª parte, 1685, p.

37).

2.2.1.3.1. «a linha anterior às

posteriores»

Interessa saber em que consistia,

na ordem jurídica da monarquia

constitucional, a linha. O conceito

não é exclusivo das leis funda-

mentais das monarquias. Foi fun-

damentalmente usado e tratado

em pleno direito civil, no ramo das

sucessões. Aí «se diz linha a série

de gerações entre determinadas

pessoas» (António R. de Lis Tei-

xeira, Curso de Direito Civil Portu-

guez, parte segunda, 1848, p.

516).

A linha é directa ou recta quando

um dos parentes descende do

outro; e colateral quando liga pes-

soas que não são ascendentes

uma da outra, mas têm um proge-

nitor comum (ibidem, e art. 1580º

do Código Civil actual).

Que será então uma linha anterior

e uma linha posterior?

A terminologia não é corrente do

direito civil. E a Carta foi bebê-la à

Constituição de 1822.

Afigura-se-nos que uma linha será

anterior a outra quando o progeni-

tor comum entre a linha anterior e

A segunda dúvida é a de saber se será de admitir, para basear a filiação legítima, o casamento civil. O problema está em que, à data da outorga da Carta Constitucional, os católicos por via de regra só podiam casar-se validamente por casamento canónico. Ainda a especial natureza d e s te s p r e c e i to s , p r o f u n d a m e n t e i m p r eg n a do s d u ma tradição muito estável, parece tornar preferível que apenas se considere como eficaz, para efeitos da geração de filiação legítima dos descendentes do Rei, o matrimónio religioso. Isto não implica a a f irmaç ão d uma potencial Monarquia como Estado confessional, nem a exigência de confissão religiosa ao Pretendente. Apenas s ig nif ica a preferência por uma interpretação favorável à r igidez das normas fundamentais reguladoras da sucessão régia.

o autor da herança seja de grau

mais próximo que o progenitor

comum entre a linha posterior e o

autor de herança; ou, sendo o

mesmo o progenitor comum das

duas linhas com o autor da heran-

ça, quando provenha dum filho

desse progenitor que prefira ao

filho donde provém a linha poste-

rior. Por preferir entenda-se aqui

ser do sexo masculino e/ou mais

velho.

O princípio era o da prioridade

absoluta da linha sobre o grau, o

sexo e a idade, como critério de

preferência na sucessão.

A Carta afirmava-a implicitamente

ao antepor a linha aos outros cri-

térios. Mas baseava-se de resto na

Constituição de 1822, que era

expressa em declarar enfatica-

mente que, uma vez radicada a

sucessão numa linha, enquanto

esta durasse, não entrava a ime-

diata.

No que se conformava com o

entendimento tradicional. Ensina-

va Pascoal José de Melo Freire

( o b . c i t a d a , p . 1 2 0 ) :

«successionem non nisi una linea

extincta ad aliam transire».

2.2.1.3.2. «na mesma linha o

grau mais próximo ao mais

remoto»

Os graus devem contar-se aqui

segundo o direito civil. Tanto na

linha recta como da colateral, con-

tam-se as pessoas que formam a

linha de parentesco, mas excluin-

do o progenitor comum (Manuel

de Almeida e Sousa de Lobão,

Tratado pratico de Morgados, 3ª

edição, 1841, p. 198, e art. 1581º

do actual Código Civil). O grau

mais próximo será o menor.

2.2.1.3.3. «No mesmo grau o

sexo masculino ao feminino»

Esta regra, posto que contrariando

o princípio da igualdade dos sexos

hoje muito generalizado na civili-

zação ocidental, não apenas na

ordem jurídica portuguesa, mas

também na sucessão régia de

algumas monarquias europeias,

deve c ont inuar a manter- se

enquanto as normas da Carta

Constitucional não for substituída

por outra lei fundamental que se

aplique à sucessão régia ou do

Pretendente.

2.2.1.3.4. «no mesmo sexo a

pessoa mais velha à mais

moça»

Este preceito apenas levantaria

dúvida séria quando estejam em

causa gémeos do mesmo sexo.

Mas não valerá a pena abordar-se

tal pormenor, correspondente a

uma hipótese rara.

2.2.2. Nos colaterais

Quais as regras aplicáveis à suces-

são de colaterais do autor de

herança?

Quanto à sua admissibilidade, não

pode haver dúvidas. O art. 88º

consagra a sucessão pela linha

colateral de D. Maria II, quando

deixar de haver descendentes

legítimos dela.

Suscitam-se contudo alguns pro-

blemas.

Desde logo a Carta não regula

expressamente a sucessão régia

quando haja de seguir por linha

colateral. Nem sequer remete para

as regras da sucessão da descen-

dência.

Parece que o silêncio significará aí

que, basicamente, se seguirão as

normas constantes do art. 87º

para determinar qual o parente

colateral de D. Maria II que deve

suceder no trono.

Assim, não temos dúvidas de que

também na sucessão de colaterais

prefere a linha anterior, dentro

dela o grau, dentro do grau o sexo

masculino e dentro do sexo mas-

culino a maior idade.

Porém, as dificuldades aparecem

quando se coloca a questão de

saber se é aplicável a representa-

ção nesta sucessão por linha cola-

teral.

26 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

«No mesmo grau o sexo masculino ao feminino» Esta regra, posto que contrariando o princípio da igualdade dos sexos hoje muito generalizado na civilização ocidental, não apenas na ordem jurídica portuguesa, mas também na sucessão régia de a lgumas monarquias europeias, deve continuar a manter-se enquanto as n o r m a s d a Ca r ta Constitucional não for substituída por outra lei fundamental que se aplique à sucessão régia ou do Pretendente.

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15 JUNHO 2011 O DEBATE 27

A Legitimidade de D. Duarte É de partir do pressuposto que a

Carta, tal como a Constituição de

1822, empregou o conceito de

representação no sentido técnico-

jurídico que ele à época tinha, e

que a entendia regulada pelos

princípios que então geralmente

se entendia que a regiam.

Importa pois recorrer à doutrina

dominante da época.

Segundo essa doutrina, existia

direito de representação também

na sucessão na linha colateral

para sobrinhos, filhos de irmão.

Tal fora instituído por Justiniano e

os tratadistas aludem frequente-

mente a essa figura, sustentando

inclusivamente que na sucessão

civil a herança dos sobrinhos era

por estirpes (Velasco de Gouveia,

ob. cit. p. 203, Afonso de Lucena,

ob. cit., p. 46, e Domingos Antu-

nes Portugal, Tractatus de Dona-

tionibus Regiis, 1726, tomo 2º, p.

138)

Por outro lado a representação,

nos colaterais vai apenas até o

segundo grau (António de Sousa

de Macedo, ob. cit., p. 318, e

Velasco de Gouveia, ob. cit., p.

204)

2.3. Condição da nacionalidade

Como se viu a Carta não admite

que na coroa suceda um estran-

geiro (art. 89º). Por isso, uma vez

apurado a pessoa a quem, pela

relação de parentesco com o autor

da herança, competiria suceder-

lhe, há que saber se é, ou não,

português.

2.3.1 – Que deverá entender-

se por estrangeiro?

Aplicar-se-á a lei da nacionalidade

que presentemente vigora? Ou a

lei da nacionalidade que vigorava

à data em que a Carta foi outorga-

da? Ou a última lei da nacionalida-

de que vigorou durante a Monar-

quia? Ou deve encontrar-se um

conceito especial, apenas para uso

das normas constitucionais da

sucessão?

A palavra, à data da outorga a

Carta, significava o mesmo que

não natural de Portugal, como

afirmaram, por exemplo, M. A.

Coelho da Rocha (Instituições de

Direito Civil Portuguez, 4ª edição,

tomo I, 1857, p.136) e D. Francis-

co de S. Luís (ob. cit., p.p. 137 e

segs.). Diz este que as nossas leis

«chamam sempre naturais, isto é,

verdadeiramente Portugueses, os

que nascem nestes reinos e seus

senhorios».

A naturalidade portuguesa à data

da outorga da Carta, era regulada

pelo título LV do 2º Livro das

Ordenações, que preceituava:

«…as pessoas que não nascerem

nestes Reinos e Senhorios deles,

não sejam havidas por naturais

deles, posto que neles morem e

residam, e casem com mulheres

naturais deles, e neles vivam con-

tinuadamente, e tenham o seu

domicílio e bens.

1. Não será havido por natural o

nascido nestes Reinos de pai

estrangeiro, e mãe natural deles,

salvo quando o pai estrangeiro

tiver seu domicílio e bens no Rei-

no, e nele viveu dez anos contí-

nuos …

2. E sucedendo que alguns natu-

rais do Reino, sendo mandados

por Nós, ou pelos Reis nossos

sucessores, ou sendo ocupados

em nosso serviço, ou do mesmo

Reino ou indo de caminho, para o

tal serviço, hajam filhos fora do

Reino, estes tais serão havidos por

naturais, como se no Reino nas-

cessem.

3. Mas se alguns naturais se saí-

rem do Reino e Senhorios dele,

por sua vontade, e se forem morar

a outra Província, em qualquer

parte sós, ou com suas famílias,

os filhos, que lhes nascerem fora

do Reino e Senhorios dele, não

serão havidos por naturais: pois o

pai se ausentou por sua vontade

do Reino, em que nasceu, e os

filhos não nasceram nele…»

A Constituição de 1822, enquanto

Como se viu a Carta não admite que na coroa suceda um estrangeiro (art. 89º). Por isso, uma vez apurado a pessoa a quem, pela relação de parentesco com o autor da hera nça , compe tir ia suceder-lhe, há que saber se é, ou não, português.

vigorara, regulara diferentemente.

Estabelecia o seu art. 21º serem

cidadãos portugueses: « I Os

filhos de pai português nascidos

no Reino Unido ou que, havendo

nascido em país estrangeiro, vie-

ram estabelecer domicílio no mes-

mo Reino; cessa porém a necessi-

dade deste domicílio se o pai esta-

va no país estrangeiro em serviço

da nação … V Os filhos de pai

estrangeiro que nascerem e adqui-

rirem domicílio no Reino Unido;

contanto que chegados à maiori-

dade declarem, que querem ser

cidadãos portugueses. VI Os

estrangeiros que obtiverem carta

de naturalização.»

A Carta, por sua vez, estatuiu, no

art. 7º:

«São cidadãos portugueses:

1º Os que tiverem nascido em

Portugal ou seus domínios, e que

hoje não forem cidadãos brasilei-

ros, ainda que o pai seja estran-

geiro, uma vez que este não resi-

da por serviço da sua nação.

2º Os filhos de pai português, e

ilegítimos de mãe portuguesa,

nascidos em país estrangeiro, que

vierem estabelecer domicílio no

reino.

3º Os filhos de pai português, que

estivesse em país estrangeiro em

serviço do reino, embora eles não

venham estabelecer domicílio no

reino.

4º Os estrangeiros naturaliza-

dos…»

Houve alterações neste regime

com a Constituição de 1838 (art.

16º)

Reposta a Carta, a definição de

cidadão português veio a ser feita

pelo art. 2º do Decreto de 30 de

Setembro de 1852 (lei eleitoral),

em termos idênticos aos daquele

diploma constitucional.

Tempos depois entrou em vigor o

Código Civil de 1867, que regulou

a matéria no seu art. 18º, estabe-

lecendo serem cidadãos portugue-

ses:

«1º Os que nascem no reino, de

pai e mãe portugueses, ou só de

mãe portuguesa sendo filhos ilegí-

timos;

2º Os que nascem no reino, de pai

estrangeiro, contanto que não

resida por serviço da sua nação,

salvo se declararem por si, sendo

já maiores ou emancipados, ou

por seus pais ou tutores, sendo

menores, que não querem ser

cidadãos portugueses;

3º Os filhos de pai português, ain-

da que este haja sido expulso do

reino, ou os filhos ilegítimos de

mãe portuguesa, bem que nasci-

dos em país estrangeiro, que vie-

rem estabelecer domicílio no rei-

no, ou declararem por si, sendo

maiores ou emancipados, ou por

seus pais ou tutores, sendo meno-

res, que querem ser portugueses;

4º Os que nascem no reino, de

pais incógnitos, ou de nacionalida-

de desconhecida;

5º Os estrangeiros naturaliza-

dos…….»

Era duvidosa a constitucionalidade

deste artigo, na medida em que

parecia contrariar o texto da Carta

(José Dias Ferreira, Código Civil

Portuguez Annotado, 1870, vol. I,

p. 40).

No entanto, a verdade é que se

manteve até depois de 1910.

Qual, então, a regulamentação

que deve ser preferida, para inte-

grar o conceito de estrangeiro,

para efeitos, da exclusão prevista

no art. 89º da Carta?

Apesar de ser a própria Carta a

regular a nacionalidade portugue-

sa, parece preferível a preferência

por um conceito específico, elabo-

rado em função do interesse muito

especial que subjazia àquele arti-

go.

Se se argumentasse com uma

interpretação mais literal do diplo-

ma constitucional, sempre seria de

responder que o art. 7º regula

especificamente sobre quem é

cidadão português. Ora o Rei não

era cidadão português. Tinha, na

Carta, outro tratamento. Por isso,

28 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

D. Francisco de S. Luís sustentava que o termo estrangeiro tinha, com vista à sucessão no trono, um conteúdo específico, não coincidente com o da lei civil. Era ele de opinião que um português, nascido em Portugal, que se tivesse naturalizado noutro país nem por isso deixava de ser português, para e f e i t o s d a L e i Fundamental. E que um estrangeiro que se naturalizasse português, não deixava de ser um estrangeiro, inábil para s u c ed er na c or oa portuguesa

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 29

A Legitimidade de D. Duarte à letra, as regras do art. 7º não

lhe eram directamente aplicáveis.

E a analogia não parece inteira-

mente adequada a suprir a falta

de esclarecimento do sentido de

estrangeiro usado pelo art. 89º

D. Francisco de S. Luís sustentava

que o termo estrangeiro tinha,

com vista à sucessão no trono, um

conteúdo específico, não coinci-

dente com o da lei civil. Era ele de

opinião que um português, nasci-

do em Portugal, que se tivesse

naturalizado noutro país nem por

isso deixava de ser português,

para efeitos da Lei Fundamental. E

que um estrangeiro que se natura-

lizasse português, não deixava de

ser um estrangeiro, inábil para

suceder na coroa portuguesa (ob.

cit. p. 141).

Essa era a doutrina oficial, visível

no Manifesto dos Direitos de Sua

Magestade Fidelíssima a Senhora

Dona Maria Segunda. «Estrangeiro

opõe-se a Natural, isto é, ao que

nasceu Português» (2ª edição,

1841, p. 24).

Esta interpretação parece a mais

conforme à ratio juris do princípio

da exclusão do candidato estran-

geiro ao trono. Se se admit isse

que um estrangeiro, naturalizando

-se, pudesse ser rei de Portugal,

correr-se-ia o risco da perda da

independência. E foi este o grande

problema que emergiu em duas

crises sucessórias da nossa Histó-

ria agitando os jurisconsultos (em

1385 e em 1580) e que muito

contribuiu para o enunciado das

regras constitucionais sobre a

sucessão régia.

Preocupação que ainda perdura na

actual Constituição, a qual declara

inelegível para a presidência da

República quem não seja origina-

riamente português (art. 125º).

Deste modo, deverá entender-se

que um candidato à sucessão no trono que seja originariamente

estrangeiro e que só depois haja

adquirido a nacionalidade portugue-sa está excluído dessa sucessão.

2.3.2. Por outro lado, não é de

aceitar que a chamada «dupla

nacionalidade» portuguesa e bra-

sileira atribuída aos cidadãos bra-

sileiros satisfaça os requisitos para

que algum destes possa suceder

no trono português.

A própria Carta, historicamente

emergente da separação de sobe-

ranias entre Portugal e o Brasil,

consagra um nítido afastamento

entre a nacionalidade portuguesa

e a brasileira, contrastando aí com

o texto que fora da Constituição

de 1822. No §1º do art. 7º exclui

da cidadania portuguesa os cida-

dãos que fossem brasileiros, ape-

sar de terem nascido portugueses.

O brasileiro, ainda que tendo tam-

bém nacionalidade portuguesa,

deve ser considerado estrangeiro

para efeitos do art. 90º da Carta

Constitucional. Os direitos civis

que ele tem, na ordem jurídica

portuguesa, são os mais diversos.

Mas, como dizia D. Francisco de S.

Luís a sucessão dos tronos deve

regular-se, não pelas leis civis,

mas sim pelas leis e foros particu-

lares de cada nação. E os proble-

mas a cultura e as ligações do

brasileiro são, de raiz, dum país

que, embora com a mesma língua

e um longo passado comum, está

separado de Portugal há mais de

século e meio. Os interesses do

Estado recomendam que se não

corra o risco de que na chefia dele

se coloque quem não seja portu-

guês de raiz.

2.4. Condição do casamento de

princesa a aprazimento do Rei

e nunca com estrangeiro

Esta condição, que pode também

levar à exclusão duma parente do

sexo feminino que se achasse em

posição de suceder, tem talvez a

sua remota origem na crise do

final da 1ª dinastia.

O princípio enunciado pela falsa

acta das Cortes de Lamego era o

de que a filha do Rei, para suceder

no trono, não casasse senão com

Mas, como dizia D. Francisco de S. Luís a sucessão dos tronos deve regular-se, não pelas leis civis, mas sim pelas leis e foros particulares de cada nação. (…) Os interesses do Estado recomendam que se não corra o risco de que na chefia dele se coloque quem não seja português de raiz.

português nobre.

A Constituição de 1822 estipulava

que, se a sucessão caísse em

fêmea, esta teria de casar com

português e carecia de aprovação

das Cortes.

A Carta, através do art. 90º, intro-

duziu algumas alterações.

Estabeleceu que o casamento teria

de ser «a aprazimento do Rei» e

nunca com estrangeiro; embora,

se não houvesse Rei ao tempo em

que se tratasse do casamento,

este não poderia efectuar-se sem

aprovação das Cortes.

Mas a mais significativa alteração

é a de que a limitação se aplica,

literalmente, apenas à Princesa

herdeira presuntiva da coroa. Sus-

citar-se-ia a dúvida sobre se a

letra da Carta não careceria, aí,

duma interpretação extensiva, de

modo a abranger também a

Rainha, já entronizada.

Não parece que assim deva ser.

Desde logo porque a própria D.

Maria II casou duas vezes com

estrangeiro; e da segunda vez já

falecera seu pai e não careceu de

aprovação das Cortes.

Depois porque não faria sentido o

preceito na exigência do aprazi-

mento do Rei se a noiva fosse já

Rainha, pois então seria ela a

aprazer a si própria.

É de concluir, portanto que, se à

data em que sucede, a Princesa

não é casada, poderá vir a casar

com estrangeiro e o seu casamen-

to não carece de aprovação.

Porém, se é casada, para poder

suceder tem de ter o aprazimento

do Rei; e o marido não pode ser

estrangeiro.

Não vemos razões para aplicar

aqui, ao conceito de estrangeiro,

um sentido diferente do que apon-

támos no número anterior.

Quanto ao signif icado de aprazi-

mento do Rei, parece ser o de ter

a aprovação do Rei (que pode não

ser o pai, mas também, por exem-

plo, irmão, primo, sobrinho ou tio

da Princesa).

Parece de exigir uma aprovação

expressa, e não meramente implí-

cita. Não se trata de tirar conclu-

sões de quaisquer factos indirecta-

mente relacionados, que geram a

ambiguidade. O texto constitucio-

nal não consagraria tão formal

exigência se não houvesse uma

preocupação de que o aprazimen-

to do Rei fosse manifestado por

um modo formal e minimamente

solene. A própria fórmula utiliza-

da, pela positiva – é que preciso

que o casamento apraza ao Rei e

não, simplesmente que não des-

praza – inculca a necessidade

duma clara manifestação explícita

da vontade real.

Mas é de admitir que tal aprova-

ção possa ser dada a posteriori,

isto é, como ratif icação do casa-

mento. Apenas essa aprovação

tem de estar dada à data em que

se abre a sucessão no trono, sob

pena de, por falta desta condição,

passar este ao parente imediato.

2.5. O hipotético banimento

Tem sido por vezes suscitada um

condicionamento da sucessão

régia da linha descendente de D.

Miguel com base na chamada “lei

do banimento”. Esta foi uma lei

ordinária, sem natureza constitu-

cional emitida sob a forma de Car-

ta de Lei em 19 de Dezembro de

1834.

Pelo seu art. 1º «O ex-infante D.

Miguel, e seus descendentes são

excluidos para sempre do direito

de succeder na Corôa dos Reinos

de Portugal, Algarves, e seus

Dominios».

E o seu art. 2º preceituava: «O

mesmo ex-Infante D. Miguel, e

seus descendentes são banidos do

territorio Portuguez, para em

nenhum tempo poderem entrar

nelle, nem gosar de quaesquer

direitos civís, ou politicos …»

Sucede, porém que se trata duma

lei sem natureza constitucional,

que não pode prevalecer contra a

regulação diferentemente na lei

30 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

15 JUNHO 2011

Tem sido por vezes s u s c i t a d a u m co nd ic ioname nto da sucessão régia da linha descendente de D. Miguel com base na chamada “lei do banimento”. Esta foi uma lei ordinária, sem natureza constitucional emitida sob a forma de Carta de Lei em 19 de Dezembro de 1834.

(…)

Sucede, porém que se trata duma lei sem natureza constitucional, que não pode prevalecer contra a regulação diferentemente na fundamental.

15 JUNHO 2011 O DEBATE 31

A Legitimidade de D. Duarte fundamental.

Por outro lado, a Carta Constitu-

cional de 1826 foi objecto, depois

de 1934 de uma reposição e de

várias alterações, a saber, por um

Acto Adicional em 5 de Julho de

1852, e revisões de 15 de Maio de

1884, de 24 de Julho de 1885, de

3 de Abril de 1896 e de 1 de Agos-

to de 1899.

Em nenhuma delas se alteraram

os acima referidos arts. 87º e 88º,

apesar de terem sido modificados

alguns preceitos do mesmo Título

V ao qual pertencem aqueles dois

artigos.

Em nada se alterou a clareza e

universalidade das regras constan-

tes desses arts. 87º e 88º, segun-

do as quais, por extinção das

linhas dos descendentes legítimos

de D. Maria II, passaria o trono

colateral, preferindo sempre a

linha anterior às posteriores.

Quer dizer, segundo esses precei-

tos, não havendo português legíti-

mo descendente de D. Maria II,

passaria a coroa à linha anterior

dos colaterais, que seria a dos

descendentes de D. Pedro IV;

mas, não havendo portugueses

legítimos descendentes de D.

Pedro IV, passaria a coroa à linha

seguinte, que era a dos portugue-

ses legítimos descendentes de D.

Miguel (o filho varão imediato de

D. João VI).

Nenhuma restrição a essa regra

foi estatuída na Carta Constitucio-

nal nem nas suas várias revisões.

Mais. Os arts. 86º a 90º da Carta

Const itucional representam a

regulação sistemática da sucessão

régia. É essa, de resto, a epígrafe

desse capítulo – “Da sucessão

régia”.

Aí reside a totalidade do sistema

de sucessão da coroa, tal como

vigorou a partir da vigência da

Carta Constitucional até a implan-

tação da República. Trata-se duma

regulação “de sistema”, que exclu-

sivamente rege a matéria.

Daí que não pode deixar de con-

cluir-se que, no que toca às nor-

mas de sucessão régia, a supra-

mencionada Carta de Lei de 19 de

Dezembro de 1834, se não era

inconstitucional á partida, foi revo-

gada de sistema pela Carta Cons-

titucional quando foi reposta ou

quando foi revista. Não pode

sobrepor-se nem muito menos

contrariar, na medida em que

regule a sucessão régia, os precei-

tos que regeram tal matéria até 5

de Outubro de 1910.

3. Aplicação aos factos dos

princípios adoptados

Tendo presentes as regras atrás

enunciadas, caberá aplicá-las à

situação de facto existente.

À data em que faleceu o último

Rei de Portugal, D. Manuel II – 2

de Julho de 1932 – não havia des-

cendentes portugueses legítimos,

de D. Maria II.

A propósito note-se que uma tal

Ilda Toledano, que se intitulou a si

própria “Maria Pia de Bragança” e

fez muito alarido nos anos 50 a 80

do séc. XX, sustentando que seria

filha de D. Carlos e reclamando

direito à sucessão na Coroa, não

poderia ser entendida como incluí-

da nessa categoria. Na verdade,

mesmo que ela fosse filha de D.

Carlos – o que de todo se discor-

da, pois a justificação que apre-

sentou não tem a mínima credibili-

dade sob o ponto de vista histórico

– ainda assim, sendo filha adulte-

rina, e portanto, ilegítima, não

detinha quaisquer direitos à suces-

são no trono.

Também em 1932 não havia des-

cendentes portugueses legítimos

de D. Pedro IV.

Portanto, a sucessão régia, ou

seja, a sucessão na qualidade de

Pretendente ao trono de Portugal,

coube ao descendente português,

legítimo, de D. Miguel I que che-

fiava a sua representação – e esse

era D. Duarte Nuno, neto paterno

deste.

A propósito note-se que uma tal Ilda Toledano, que se intitulou a si própria “Maria Pia de Bragança” e fez muito alarido nos anos 50 a 80 do séc. XX, sustentando que seria filha de D. Carlos e reclamando direito à sucessão na Coroa, não poderia ser entendida como incluída nessa categoria. Na verdade, mesmo que ela fosse filha de D. Carlos – o que de todo se discorda, pois a justificação que apresentou não tem a mínima credibilidade sob o ponto de vista histórico – ainda assim, sendo filha adulterina, e portanto, ilegítima, não detinha quaisquer dire itos à sucessão no trono.

Tendo sido deferida a sucessão nessa qualidade para D. Duarte

Nuno, transmitiu-se por sua morte

para seu filho primogénito, também português, o Senhor D. Duarte João

Pio.

Mas mesmo que se entendesse que

a Carta de Lei de 1834 acima cita-da, permaneceria em vigor – o que

de forma nenhuma se aceita pelas

razões acima expostas, ainda assim haveria de reconhecer-se que é ao

Senhor D. Duarte João Pio quem

compete a qualidade de Pretenden-

te ao Trono e sucessor dos Reis portugueses, pois é o descendente

português, legítimo, de D. Pedro

IV, que ocupa o primeiro lugar nes-sa linha.

Isto, por sua mãe, a Senhora D.

Maria Francisca de Orléans e Bra-

gança, filha do Príncipe D. Pedro de Orléans e Bragança (1875-1940), a

quem competia a chefia da descen-

dência legítima de D. Pedro IV. E a Senhora D. Maria Francisca foi o

mais velho dos filhos desse Príncipe

D. Pedro que tiveram filhos portu-

gueses.

4. As tentativas de atingir D.

Duarte As insustentáveis tentativas de

algumas criaturas sem qualquer

qualificação para dissertar sobre

estes temas e para porem em cau-sa estas evidências, têm por vezes

resvalado para a pura calúnia rela-

tiva ao Senhor D. Duarte.

Entre as mentiras que se tentam fazer passar figura a de que D.

Duarte viveria à custa do Estado

português, ou de dinheiros públi-cos.

Nada de mais torpemente falso.

D. Duarte não aufere quaisquer

rendimentos da Fundação da Casa de Bragança. E deveria até ter

direito a auferi-los.

A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados,

que assim permaneceram, excluí-

dos das regras gerais da sucessão,

depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1ª República, que

os respeitou. Quando D. Manuel II

morreu, Salazar prepotentemente subtraiu esses bens ao seu normal

e correcto destino e transmitiu-os

para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa

de Bragança – gerida por pessoas

nomeadas pelos Governos e cujos

rendimentos deixaram de ser fruí-dos, como deviam, pelo Chefe

daquela Casa ou pela Família a

quem, como bens privados, perten-ciam.

D. Duarte não vive pois à conta de

rendimentos daquela fundação,

como seria seu direito se o ditador os não tivesse confiscado em 1933

por essa insólita arbitrariedade.

D. Duarte também não aufere de qualquer fonte pública os seus ren-

dimentos.

Nada recebe do erário público. Ao

invés: tem aplicado boa parte do seu rendimento pessoal em serviço

do País, em causas de grande rele-

vância nacional, como foi, exem-plarmente, toda a persistente e

intensa actividade que ao longo de

anos desenvolveu, quase sozinho,

pela causa da liberdade de Timor.

Parecer do Ministério

dos Negócios Estrangeiros relativo à Questão Dinástica:

Ministério dos

Negócios Estrangeiros

O Senhor Secretário Geral solicitou

ao Departamento de Assuntos Jurí-

dicos que emitisse a sua opinião relativamente ao caso do Sr. Rosá-

rio Poidimani e às suas actividades

no estrangeiro envolvendo o nome de Portugal e da Casa de Bragança.

Solicitado que foi o parecer deste

Departamento, cumpre emiti-lo.

I. DAS NORMAS DE SUCESSÃO

NA CHEFIA DA CASA REAL DE PORTUGAL

Cabe, de antemão, precisar as nor-

mas que regem a transmissão de

títulos nobiliárquicos, em particular aqueles associados à realeza de

Portugal, para enfim confrontar

32 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados, que assim permaneceram, excluídos das regras gerais da sucessão, depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1ª Re pú bl ic a, que os respeitou. Quando D. Manuel II morreu, Salazar prepotentemente subtraiu esses bens ao seu normal e correcto destino e transmitiu-os para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa de Bragança – gerida por pessoas nomeadas pelos Governos e cujos rendimentos deixaram de ser fruídos, como deviam, pelo Chefe daquela Casa ou pela Família a quem, como bens pr ivados, pertenciam.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 33

A Legitimidade de D. Duarte a legitimidade de Rosário Poidima-

ni, por oposição a D. Duarte Pio de

Bragança.

As regras sobre a sucessão régia,

ou neste caso sobre a sucessão na

chefia da Casa Real, em Portugal a

Sereníssima Casa de Bragança,

fazem parte do direito costumeiro

internacional, não se encontrando

estabelecidas em nenhum texto

consolidado, antes emergindo da

ordem social europeia e dispersas

pelos vários sistemas constitucio-

nais europeus ao tempo das gran-

des Monarquias Europeias, dos

quais hoje sobrevivem apenas

alguns de que são exemplo o do

Reino Unido, da Espanha, da Dina-

marca, da Bélgica, do Luxembur-

go, do Mónaco, etc.

Em Portugal, algumas dessas nor-

mas encontraram expressão escri-

ta nas Constituições Monárquicas -

Constituição de 1822, Carta Cons-

titucional de 1826 e Constituição

Política de 1838.

Em 1911, com a primeira Consti-

tuição republicana, foram expres-

samente revogadas todas as dis-

posições constitucionais anterio-

res, pelo que deixaram de valer na

ordem jurídica portuguesa. Não

deixam, contudo de servir de refe-

rência escrita mas apenas na par-

te que corresponde às menciona-

das normas da tradição dinástica

europeia.

De tal tradição resulta que:

1. A sucessão da Coroa segue a

ordem regular de primogenitura, e

representação entre os legítimos

descendentes do monarca reinante

(ou do chefe da Casa Real, num

regime não monárquico), preferin-

do sempre a linha anterior às pos-

teriores e, na mesma linha, o grau

de parentesco mais próximo ao

mais remoto e, no mesmo grau, o

sexo masculino ao feminino e, no

mesmo sexo, a pessoa mais velha

à mais nova.

2. Extinta a linha da descendência

do monarca reinante (ou do chefe

da Casa Real num regime não

monárquico) passará a Coroa às

linhas colaterais e, uma vez radi-

cada a sucessão em linha,

enquanto esta durar, não entrará

a imediata.

3. A chefia da Casa Real, bem

como a Chefia do Estado, só pode-

rá ser assumida por pessoa de

nacionalidade portuguesa originá-

ria.

4. Extintas todas as linhas dos

descendentes e colaterais, caberá

ao regime (Cortes, Parlamento,

Conselho da Nobreza ou Povo)

chamar à chefia da Casa Real uma

pessoa idónea a partir da qual se

regulará a nova sucessão.

5. A descendência do chefe da

Casa Real nascida fora do seu

casamento oficial - entenda-se

canónico - está afastada da suces-

são da Coroa, salvo por interven-

ção expressa do regime (Cortes,

Parlamento, Conselho da Nobreza

ou Povo) e nunca do próprio

monarca.

6. Mesmo em exílio, a sucessão

real mantém-se, com todos os pri-

vilégios, estilos e honras que

cabem ao chefe da Casa Real não

reinante.

II. DA SUCESSÃO NA CHEFIA

DA CASA REAL DE BRAGANÇA

De acordo com aquele direito cos-

tumeiro, a sucessão na chefia da

Casa Real Portuguesa deu-se do

seguinte modo:

- D. Pedro IV de Portugal, I do

Brasil, irmão de D. Miguel, abdicou

do Trono Português.

- D. Maria II, seguinte na linha de

sucessão, assumiu o trono.

- A descendência de D. Maria II

manteve o Trono até 1910,

aquando da Implantação da Repú-

blica.

- D. Manuel II, último Rei de Por-

tugal, morreu no exílio, sem des-

cendentes, nem irmãos legítimos.

- A linha colateral mais próxima,

mantendo a nacionalidade portu-

guesa, de acordo com as normas

sucessórias era a linha que advi-

- D. Manuel II, último Rei de Portugal, morreu no exílio, sem descendentes, nem irmãos legítimos. - A linha colateral mais próxima, mantendo a nacionalidade portuguesa, de acordo com as normas sucessórias era a linha que advinha de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV. Desse modo, o filho de D. Miguel, Miguel Maria de Assis Januário tornou-se legitimamente o novo chefe da Casa Real de Bragança por sucessão mortis causa de D. Manuel II. - Ainda no exílio, sucedeu a D. Miguel [agora, de Bragança], seu único filho varão D. Duarte Nuno de Bragança e a este o actual chefe da Casa Real, D. Duarte Pio de Bragança.

nha de D. Miguel, irmão de D.

Pedro IV. Desse modo, o filho de

D. Miguel, Miguel Maria de Assis

Januário tornou-se legitimamente

o novo chefe da Casa Real de Bra-

gança por sucessão mortis causa

de D. Manuel II.

- Ainda no exílio, sucedeu a D.

Miguel [agora, de Bragança], seu

único filho varão D. Duarte Nuno

de Bragança e a este o actual che-

fe da Casa Real, D. Duarte Pio de

Bragança.

- Em 1950, por Lei da Assembleia

Nacional, a Família Real portugue-

sa foi autorizada a retornar ao ter-

ritório nacional.

Porque alguns defendiam que se

mantinha em vigor a disposição da

Constituição de 1838 que excluía

da sucessão a linhagem de D.

Miguel, irmão de D. Pedro IV, e

para explicitamente reconhecer

essa linha colateral como seguinte

na sucessão a D. Manuel II, este

ex-monarca e D. Miguel Maria de

Assis Januário assinaram um

documento, conhecido como o

Pacto de Dover, onde o primeiro

reconhecia a legitimidade para a

sucessão ao filho de D. Miguel, D.

Duarte Nuno. Na verdade tal Pacto

era juridicamente desnecessário,

pois com a Constituição de 1911

haviam sido revogadas todas as

disposições constitucionais ante-

riores.

III. DA LEGITIMIDADE NO USO

DO TÍTULO A QUE SE ARROGA

ROSÁRIO POIDIMANI

O Sr. Rosário Poidimani alega ser

o legítimo sucessor do último Rei

de Portugal, D. Manuel II e, como

tal, pretendente ao trono de Por-

tugal e verdadeiro chefe da Casa

Real de Bragança. Invoca essa sua

legitimidade com base nos seguin-

tes factos:

- No exílio, o último Rei de Portu-

gal, D. Manuel II, entretanto casa-

do com a princesa Augusta Vitória

de Hohenzollern-Sigmaringen,

veio a falecer em 1932 sem deixar

descendentes.

- Terá, entretanto, sobrevivido

uma filha ilegítima do Rei D. Car-

los, pai de D. Manuel II, chamada

D. Maria Pia de Saxónia Coburgo

de Bragança, nascida em 1907,

também conhecida por Hilda Tole-

dano.

- Esta filha ilegítima terá sido bap-

tizada por vontade de seu pai, o

Rei D. Carlos, numa paróquia de

Alcalà de Henares, perto de

Madrid, e o mesmo soberano ter-

lhe-á atribuído, por carta, todas as

honras, privilégios e direitos dos

Infantes de Portugal.

- Não tendo quaisquer outros

sucessores, e considerando-se

legítima pretendente ao trono por-

tuguês, D. Maria Pia de Bragança

terá abdicado dos seus direitos em

favor de Rosário Poidimani, por

meio de documento presenciado

por notário.

III. A. Da bastardia

Como referido anteriormente, a

sucessão à chefia da Casa Real faz

-se de acordo com as normas cos-

tumeiras que afastam da mesma

sucessão a descendência ilegítima,

out rora designada bastardia.

Assim, mesmo provada a existên-

cia de uma f ilha ilegítima de El-Rei

D. Carlos, mesmo por vontade

daquele monarca, ela não poderia

jamais suceder na chefia da Casa

Real.

Simili modo, quando El-Rei D.

João II, que viria a morrer sem

descendência legít ima, tentou

“legitimar” seu filho bastardo, D.

Jorge de Lencastre, não o conse-

guiu, tendo-lhe sucedido no trono

o seu primo e cunhado D. Manuel

I, Duque de Beja.

De facto, o único descendente real

ilegítimo que conseguiu subir ao

Trono Português foi D. João I. Seu

meio-irmão, D. Fernando I deixara

como único herdeiro legítimo uma

filha, D. Beatriz, casada com o Rei

de Castela. Essa ainda chegou a

ser Rainha de Portugal, mas por

34 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

Porque alguns defendiam que se mantinha em vigor a d i s p o s i ç ã o d a Constituição de 1838 que excluía da sucessão a linhagem de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV, e pa ra expl ic i tamen te reconhecer essa linha colateral como seguinte na sucessão a D. Manuel II, este ex-monarca e D. Miguel Maria de Assis Januário assinaram um documento, conhecido como o Pacto de Dover, onde o primeiro reconhecia a legitimidade para a sucessão ao filho de D. Miguel, D. Duarte Nuno. Na verdade tal Pacto era j u r i d i c a m e n t e desnecessário, pois com a Constituição de 1911 haviam sido revogadas todas as disposições constitucionais anteriores.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 35

A Legitimidade de D. Duarte fortes oposições internas por

temor de que Portugal perdesse a

independência com aquela união

real dos tronos de Portugal e de

Castela, e após um sangrento

interregno, tomou o Trono o Mes-

tre de Avis, D. João I, bastardo de

El-Rei D. Pedro I, com o apoio

legitimante da Nobreza e do Povo

portugueses.

III.B. Do direito a outros títulos

Na tradição dinástica europeia, e

designadamente portuguesa, era

prática reiterada que o monarca,

quando fosse o caso, conferisse

aos seus descendentes ilegítimos

outros títulos para que, não obs-

tante não poderem suceder-lhe na

coroa, não ficassem de todo desli-

gados da sua hereditariedade

real. O próprio 1º Duque de Bra-

gança era filho ilegítimo do men-

cionado Rei D. João I.

D. Maria Pia, pretensa filha ilegíti-

ma de El-Rei D. Carlos, não rei-

vindicou o uso de qualquer outro

título que o Rei lhe tivesse conce-

dido, porque apenas esse título

poderia ter sido transmit ido ao Sr.

Rosário Poidimani, com o aval do

Chefe da Casa Real.

III.C. Do acto de abdicação

Mais se esclarece que quando um

titular abdica, não o pode fazer

designando um sucessor. A desig-

nação do sucessor cabe às nor-

mas dinásticas vigentes.

Assim, sem conceder que D. Maria

Pia de Bragança fosse a herdeira

de D. Manuel II, o acto de abdica-

ção só seria válido per se, sem a

designação de um sucessor cuja

relação de parentesco com a abdi-

cante é, minime, obscura.

Mas, visto não ser D. Maria de

Bragança a legítima sucessora, em

nada adianta o acto de abdicação

e menos ainda o facto de ter sido

lavrado em notário que, não obs-

tante a validade formal, é nulo

porque carece de legitimidade.

IV. DO RECONHECIMENTO E

DO “APANÁGIO” À CASA REAL

DE BRAGANÇA E AO SEU LEGÍ-

TIMO TITULAR

Refere o Sr. Rosário Poidimani,

uma comunicação do Consulado

Geral de Milão, Março de 1992, em

que se informa que D. Duarte Pio

de Bragança usufrui de uma habi-

tação oferecida pelo Governo da

República Portuguesa (”usufruisce

di una abitazione messa a sua dis-

posizione dal Governo della

Repubblica Portoghese”). Igual-

mente numa comunicação do

mesmo Consulado, de Julho de

2005, se afirma que ao mesmo

herdeiro da Casa Real é conferido

também o respectivo apanágio

(”anche del relativo appannag-

gio”). Por fim, em nome dos cida-

dãos portugueses, inquere o Sr.

Rosário Poidimani, na mesma car-

ta de Fevereiro de 2006 em que

refere as anteriores comunicações,

ao abrigo de que norma tem o

Senhor de Santar direito ao uso de

uma casa paga pelos contribuintes

portugueses (”di quale provedi-

mento il signor di Santar avrebbe

in uso una casa a spese dei contri-

buenti portoghesi”) e em que capí-

tulo de despesa [do Orçamento do

Estado] se encontra aquele apaná-

gio, qual o montante e se é confe-

rido a título vitalício ou a prazo

(”in quale capitolo di spesa sai

inserito tale appannaggio, a quan-

to ammonta e se sia a titolo vitali-

zio o limitato nel tempo”).

Embora de pouca relevância práti-

ca, impõe-se esclarecer a questão.

De facto, a mencionada comunica-

ção de 1992 informava erronea-

mente sobre a habitação do

Duque de Bragança. Na verdade,

o Estado Português nunca supor-

tou qualquer habitação do herdei-

ro da Casa Real. Houve, de facto,

uma imposição do Chefe do

Governo, António de Oliveira Sala-

zar, em 1950, para que a Funda-

ção da Casa de Bragança - funda-

ção privada de utilidade pública

Na verdade, o Estado Português nunca suportou qualquer habitação do herdeiro da Casa Real. Houve, de facto, uma imposição do Chefe do Governo, António de Oliveira Salazar, em 1950, para que a Fundação da Casa de Bragança - fundação pr ivada de utilidade pública para testemunhar a história e manter os bens da Casa de Bragança após a morte de D. Manuel II, em cujo conselho de administração s e e n c o n t r a u m representante do Governo - aquando do retorno da F a m í l i a R e a l , providenciasse a sua condigna instalação em Portugal, precisamente para não ser o Estado a suportar tais despesas. Foi-lhes então cedido, a custas da fundação, o Palácio de S. Marcos em C o im bra , on de se mantiveram até 1974.

para testemunhar a história e

manter os bens da Casa de Bra-

gança após a morte de D. Manuel

II, em cujo conselho de adminis-

tração se encontra um represen-

tante do Governo - aquando do

retorno da Família Real, providen-

ciasse a sua condigna instalação

em Portugal, precisamente para

não ser o Estado a suportar tais

despesas. Foi-lhes então cedido, a

custas da fundação, o Palácio de

S. Marcos em Coimbra, onde se

mantiveram até 1974.

No conturbado período pós-

revolução de 25 de Abril de 1974,

o Duque de Bragança, procurou

assegurar a sua permanência

adquirindo uma vivenda perto da

Vila de Sintra que permanece,

hoje, a sua residência e sede da

Casa Real de Bragança. Esta casa

e espaços circundantes, são pro-

priedade pessoal do mesmo D.

Duarte Pio de Bragança.

Quanto ao apanágio, entendido

como tributo monetário, é de todo

infundada a sua existência. O

Estado Português nunca conferiu

qualquer dotação orçamental para

a manutenção da Casa de Bragan-

ça. Qualquer despesa ou remune-

ração da parte do Estado para

com os Duques de Bragança foi e

será sempre a título de serviços

prestados em nome de Portugal,

designadamente pela sua repre-

sentação política, histórica ou

diplomática.

No que concerne ao apanágio,

com o signif icado de privilégio,

regalia ou tratamento de maior

dignidade, a República Portuguesa

não promove a distinção de clas-

ses, pelo contrário, propugna a

igualdade de todos os cidadãos

perante a lei.

Por outro lado, o Estado Portu-

guês, que é hoje uma República

com quase 100 anos, viveu os

anteriores 8 séculos de História de

Portugal em regime de monarquia.

A Casa de Bragança e o seu legíti-

mo titular são, no presente, her-

deiros e sucessores da Casa que

presidia àquele regime.

Como herdeiros da t radição

monárquica, é praxis do Estado

Português que os Duques de Bra-

gança testemunhem presencial-

mente os mais importantes

momentos da vida do Estado

como algumas cerimónias oficiais,

designadamente aquelas que

envolvem a participação de mem-

bros da realeza mundial. De igual

modo, são os Duques, várias

vezes, enviados a representar o

Povo Português em eventos de

natureza cultural, humanitária ou

religiosa [católica] no estrangeiro,

altura em que lhes é conferido o

Passaporte Diplomático ao abrigo

do n.º 3 b) e do n.º 5 do art.º 2.º

do Decreto-Lei nº 70/79, de 31 de

Março (Lei dos Passaportes Diplo-

máticos).

Importa, ademais, esclarecer que

ao reconhecimento do Estado Por-

tuguês, se junta o reconhecimento

tácito das restantes casas reais da

Europa e do Mundo, com as quais

a legítima Casa de Bragança parti-

lha laços de consanguinidade,

reconhecimento esse que encontra

expressão nas constantes solicita-

ções dessas mesmas casas para

que os Duques de Bragança se

associem aos seus mais dignos

eventos.

V. DO DIREITO À UTILIZAÇÃO

DE OUTROS TÍTULOS, DO

DIREITO A OSTENTAR BRA-

SÃO, DA MESTRIA DAS

ORDENS NOBILIÁRQUICAS E

HONORÍFICAS MONÁRQUICAS

E DO TRATAMENTO POR “SUA

ALTEZA REAL”

A Guardia di F inanza em Gallarate,

Itália, numa comunicação para o

Consulado Geral de Portugal em

Milão, de Março de 2006, procura

saber se são reconhecidos ao Sr.

Rosario Poidimani, pela República

Portuguesa, os títulos de “Principe

de Saxónia Coburgo de Bragança”,

o tratamento de “Sua Alteza Real”

36 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

No conturbado período pós-revolução de 25 de Abril de 1974, o Duque de Br aga nça , p roc ur ou a s s e g u r a r a s u a permanência adquirindo uma vivenda perto da Vila de Sintra que permanece, hoje, a sua residência e sede da Casa Real de Bragança. Esta casa e espaços circundantes, são propriedade pessoal do mesmo D. Duarte Pio de Bragança.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 37

A Legitimidade de D. Duarte e o título de “Pretendente ao trono

de Portugal e Chefe da Casa Real

de Portugal”, com o direito de

ostentar o “brasão”, o direito de

transmitir o título e outros direitos

conexos ao Mestrado das Ordens

dinásticas da Real Casa de Portu-

gal.

Pois bem, a utilização, em Portu-

gal, do título de Príncipe respeita

apenas ao sucessor do legítimo

chefe da Casa Real de Bragança.

Por tradição esse sucessor - hoje,

D. Afonso de Santa Maria, filho

primogénito de D. Duarte Pio de

Bragança - adquire, com o nasci-

mento, o título de Príncipe da Bei-

ra.

De todo o modo, nunca seria um

Príncipe da linhagem de Saxe-

Coburgo-Gotha porque tal linha-

gem terminou em Portugal com a

morte de D. Manuel II.

Ainda, pelo direito dinástico inter-

nacional e por tradição, o título de

Presuntivo Herdeiro ao Trono de

Portugal está reservado para o uso

pessoal do Duque de Bragança,

como verdadeiro sucessor dos

Reis de Portugal.

Do mesmo modo, a mestria das

ordens nobiliárquicas e honoríf icas

monárquicas compete ao legítimo

sucessor dos Reis de Portugal, o

Duque de Bragança.

Apenas a ele compete conferir

foros de nobreza e títulos honorífi-

cos. Deve, porém, ressalvar-se

que, para efeitos de documenta-

ção oficial, apenas são reconheci-

dos pelo Estado os foros e títulos

conferidos antes de 5 de Outubro

de 1910 e desde que o direito ao

seu uso seja devidamente prova-

do, nos termos do Decreto n.º

10537, de 12 de Fevereiro de

1925.

Quanto ao tratamento por “Sua

Alteza Real”, o Protocolo de Esta-

do Português respeita as regras de

deferência social e o protocolo

internacional, pelo que nas ceri-

mónias em que participam os

Duques de Bragança, e na corres-

pondência oficial que lhe é remeti-

da, é-lhes conferido o mesmo esti-

lo de “SS.AA.RR.”.

No que concerne a ostentação de

brasões, ou armas de família, des-

de 1910 o regime encontra-se

liberalizado em Portugal. Para

efeitos de protecção jurídica, os

brasões ou armas de família são

equiparados a símbolos, logótipos

ou marcas, devendo todavia res-

peitar as regras da não-

confundibilidade e da leal concor-

rência.

VI. DA CELEBRAÇÃO DE NEGÓ-

CIOS JURÍDICAMENTE VINCU-

LANTES POR QUEM USA TÍTU-

LO REAL OU NOBILIÁRQUICO

Ainda que se considere provado,

nos termos anteriormente referi-

dos, o direito a usar um título

nobiliárquico, o mesmo Decreto

n.º 10537 estabelece que a inter-

venção em acto, contrato ou docu-

mento, que haja de produzir direi-

tos e obrigações, é antes de mais

exigido o nome civil. Se a esse se

juntar a referência honoríf ica ou

nobiliárquica, deverá de novo ser

provado o direito ao seu uso.

VII. DE IUS LEGATIONIS E DO

REC ONHEC IMENTO C OMO

SUJEITO DE DIREITO INTER-

NACIONAL

Consta da documentação forneci-

da que o Sr. Rosário Poidimani, e

respectivos caudatários, têm aber-

to “representações diplomáticas”

da Real Casa de Portugal, pelo ter-

ritório italiano.

A capacidade de enviar e receber

representantes diplomáticos, ou

Ius Legationis, pertence exclusiva-

mente ao Estados e às Organiza-

ções Internacionais. São eles os

principais actores do Direito Inter-

nacional.

O Ius Legationis é prioritariamente

uma competência dos Estados,

que são o substrato da Comunida-

de Internacional. A eles, Estados,

cabe desenvolver relações amisto-

(…) a utilização, em Portugal, do título de Príncipe respeita apenas ao sucessor do legítimo chefe da Casa Real de Bragança. Por tradição esse sucessor - hoje, D. Afonso de Santa Maria, filho primogénito de D. Duarte Pio de Bragança - adquire, com o nascimento, o título de Príncipe da Beira.

sas com as outras nações, inde-

pendentemente da diversidade

dos seus regimes constitucionais e

sociais (Convenção de Viena sobre

Relações Diplomáticas, celebrada

em 18 de Abril de 1961).

O Ius Legationis e o Ius Tractum

(Direito de concluir Tratados), são

as competências internacionais

que mais evidentemente resultam

da soberania dos Estados. Mas a

formação das Organizações Inter-

nacionais e a evolução da comuni-

dade internacional implicou em

grande parte a transferência de

algumas dessas faculdades sobe-

ranas, e a partilha de outras.

Dotadas dessa soberania transferi-

da pelos Estados, as Organizações

Internacionais já podem, hoje,

celebrar tratados e receber ou

enviar representações diplomáti-

cas.

Ulteriormente, tem também ganho

importância o indivíduo como

sujeito de Direito Internacional,

mas com evidentes limites: não

dotado de soberania o indivíduo

não possui as competências clássi-

cas dos Estados. Ele é mero sujei-

to de direito Internacional na

medida em que direitos e deveres

nascidos de convenções interna-

cionais, celebradas por Estados e/

ou Organizações Internacionais,

recaiam na sua esfera pessoal.

Porque nem o Sr. Rosário Poidi-

mani, nem a sua “Real Casa de

Portugal” dispõem de soberania,

não lhes pode ser reconhecido

qualquer Ius Legationis.

E ainda que, como parece ser seu

plano, pretenda instalar o seu

“Estado” numa ilha do Mar Adriáti-

co, tal pretensão parece não ser

exequível pois a constituição de

um Estado está sujeita ao cumpri-

mento dos seguintes requisitos:

- existência de um Povo, cultural,

histórica e axiologicamente orga-

nizado;

- existência de um Território, inde-

pendente. A compra de um territó-

rio à Croácia, não confere inde-

pendência ao mesmo;

- existência de um Governo, orga-

nizado;

- efectiva conexão entre os três

anteriores elementos. Ainda que a

“Real Casa de Portugal” venha a

formar o governo, se o povo é

croata, não parece haver qualquer

ligação entre os dois.

Cumpridos aqueles requisitos, a

soberania está ainda dependente

do reconhecimento da comunidade

internacional.

VIII. DA OFENSA AO BOM

NOME DE PORTUGAL E À CASA

DE BRAGANÇA

Do que é dado conhecer pela

documentação fornecida, encontra

-se em curso uma acção penal na

qual é arguido principal o Sr.

Rosário Poidimani, nas competen-

tes sedes jurisdicionais italianas,

pela alegada prática dos crimes de

fraude, evasão fiscal, coacção,

burla, extorsão e mesmo usurpa-

ção de funções públicas.

Não obstante a acção penal em

curso, a actuação como “Duca di

Bragança”, Chefe da “Real Casa de

Portugal” e “Príncipe de Saxónia

de Coburgo e de Bragança”, e de,

por esse meio, se ter feito passar

por representante do Estado Por-

tuguês, ao ponto de ter, inclusive,

aberto “Consulados” da “Real Casa

de Portugal”, conferiu fé pública

aos seus actos e revelou-se lesiva

para o bom nome de Portugal e da

legítima Casa de Bragança.

Por outro lado, no que concerne à

apropriação ilegítima do título de

Duque de Bragança, entende-se -

e é nesse espírito que a Republica

Portuguesa tem mantido a legisla-

ção sobre o uso de títulos nobiliár-

quicos (Decreto do Governo n.º

10537, de 12 de Fevereiro de

1925) - que os títulos ou forais

correspondem a antigas tradições

de família, pelo que elementos

importantes da identidade pessoal

e familiar. Mesmo em regime

republicano, não proteger os legí-

38 O DEBATE

A Legitimidade de D. Duarte

Salvo melhor opinião, consider-se conveniente para o Estado Português (e igualmente para a Casa Real de Bragança na qualidade de contra -interessados) associar-se, n o s t e r m o s d o Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, à acção penal em curso em Itália, se tal ainda for possível, ou intentar uma n o v a a c ç ã o d e responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e não-patrimoniais que implicou a lesão da imagem, do nome e da honra do Estado Português e da Casa Real d e B r a g a n ç a ; eventualmente, se a lei italiana o previr, despoletar igualmente uma acção penal com vista à punição por ultraje à imagem e aos símbolos da soberania de um Estado.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 39

A Legitimidade de D. Duarte timos titulares do uso ou apropria-

ção indevida dos seus títulos

implica uma violação da norma

prevista no art.º 26.º da Constitui-

ção da República Portuguesa

(direito à identidade pessoal, ao

desenvolvimento da personalida-

de, ao bom nome e reputação, à

imagem.).

Acresce que o Sr. Rosário Poidi-

mani tem ostentado um brasão

que, até 1910, correspondeu ao

brasão do Chefe de Estado de Por-

tugal, acção que parece configurar

um uso abusivo e ilegítimo de sím-

bolos da soberania nacional, pre-

visto e punido pelo Código Penal

no art.º 332.º.

De acordo com as considerações

anteriores, considera-se conve-

niente, salvo melhor opinião, o

Estado Português constituir advo-

gado, através da Embaixada de

Portugal em Roma, para que atra-

vés desse mandatário, o Estado se

associe, e, querendo, a Casa de

Bragança na qualidade de contra-

interessado, à acção penal em

curso, nos termos dos números 3

e 4 do art.º 5.º do Regulamento

do Conselho 44/2001, de 22 de

Dezembro de 2000, que regula a

competênc ia jurisdic ional em

matéria civil e comercial, com o

intuito de obter reparação dos

danos de que resultou o desprestí-

gio do nome de Portugal, da sua

história e tradição, designadamen-

te danos não-patrimoniais e patri-

moniais (despesas administrati-

vas, honorários dos advogados,

etc.).

E, se a lei italiana previr a protec-

ção da imagem ou da honra do

nome de um Estado ou dos seus

símbolos históricos, ou de uma

entidade histórica como a Casa de

Bragança, possa, salvo melhor

entendimento, ser despoletado o

processo conducente à punição

por violação dessas normas.

Se, por fim, após terem sido

encerrados os seus “consulados” e

ter sido condenado na reparação

dos danos mencionados, o Sr.

Rosário Poidimani insistir em pros-

seguir as suas actividades ilícitas e

em int itular-se ilegitimamente

Duque de Bragança e Chefe da

“Real Casa de Portugal” (cuja pro-

positada semelhança com Casa

Real de Portugal ou de Bragança

conduz ao erro sobre a legitimida-

de daquela) configurará o crime

de desobediência previsto pelo

direito penal italiano e português.

IX. CONCLUSÃO Face ao que precede, conclui-se nos seguintes termos: - Não obstante ser Portugal uma República, o direito à sucessão na chefia da casa real não-reinante continua a ser regulado pelo direito consuetudinário internacional; - O Estado Português reconhece, de acordo com aquele direito consuetudinário, que a Casa Real de Bragança e o seu chefe, o Sr. D. Duarte Pio, Duque de Bragança, são os legítimos sucessores dos Reis de Portugal. A esse reconhecimento, associa-se o reconhecimento tácito das restantes Casas Reais do mundo; - Mesmo reconhecida oficialmente, a Casa de Bragança não tem qualquer capacidade de representação do Estado que não lhe tenha sido expressamente e ad hoc concedida. Não é, igualmente um sujeito de Direito Internacional dotado de soberania, pelo que não detém a faculdade de receber e enviar representações diplomáticas. - A actuação do Sr. Rosário Poidimani em Itália, designadamente a prática de crimes em nome da sua “Real Casa de Portugal” revelou-se lesiva para o nome de Portugal e para a honra da Casa Real de Bragança, desrespeitosa para a história e para os interesses do país e abusiva no uso dos símbolos e títulos outrora do chefe de estado de Portugal que agora pertencem à legít ima Casa Real de Bragança. Salvo melhor opinião, consider-se conveniente para o Estado Português (e igualmente para a Casa Real de Bragança na qualidade de contra-interessados) associar-se, nos termos do Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, à acção penal em curso em Itália, se tal ainda for possível, ou intentar uma nova acção de responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e não-patrimoniais que implicou a lesão da imagem, do nome e da honra do Estado Português e da Casa Real de Bragança; eventualmente, se a lei italiana o previr, despoletar igualmente uma acção penal com vista à punição por ultraje à imagem e aos símbolos da soberania de um Estado.

15 JUNHO 2011 O DEBATE 41

A República vista à lupa...

República Velha António José Telo,

A República e os títulos nobiliárquicos Carlos Bobone

Qual e a coisa qual é ela que entra pela porta e sai pela janela?

Nuno Resende

República Velha

A proclamação da República surge

em 1910 como um fenómeno

estranho e bizarro, que apanha as

capitais da Europa desprevenidas.

O 5 de Outubro foi um movimento

da capital, alargando-se no máxi-

mo a um arco de pequena dimen-

são em seu torno, onde se inclui

Almada e Loures, que com muito

boa vontade se pode prolongar até

Setúbal e Alpiarça. No resto do

país, o regime foi proclamado lite-

ralmente ''por telegrama'', na pre-

monitória expressão de João Cha-

gas, a mais brilhante pena de pro-

pagandista ao serviço dos republi-

canos. Mas fora de Lisboa estava

92% da população, num país pre-

dominantemente rural,[1] onde o

sector primário ocupava 56% da

população activa, enquanto a

indústria activa reunia só 21% e,

destes, só cerca de 3,5% (85 000

trabalhadores) estava em unida-

des com mais de 50 empregados,

que eventualmente mereciam a

classificação de fábricas. A Repú-

blica era a obra de uma minoria

urbana activa, representada por

uma frente de várias organiza-

ções, onde o elemento básico para

a revolução foi a Carbonária,

embora a direcção política perten-

cesse ao directório do Partido

republicano, que não aceitou in-

cluir qualquer elemento da Carbo-

nária no Governo Provisório.

A República era sem dúvida um

regime frágil, sem apoios externos

significativos, com o permanente

machado da ameaça espanhola

sobre a sua cabeça, como a obra

de Hipólito de la Torre muito bem

prova (ver nomeadamente Conspi-

ração contra Portugal. As Relações

Políticas entre Portugal e a Espa-

nha em 1910-1912, Lisboa, 1978,

na Encruzilhada da Grande Guer-

ra, Portugal-Espanha, 1913-1919,

Lisboa, 1980). Era um regime que,

em resumo, se baseou na aplica-

ção bem sucedida de uma estraté-

gia política de conquista e manu-

tenção do poder pelo Partido

Democrático.[2] Esta estratégia

passava pela marginalização dos

partidos republicanos conservado-

res que não conseguiram criar

uma resposta à altura da habilida-

de política de Afonso Costa, pela

manutenção de uma relação muito

particular com o movimento ope-

rário (repremido quando se radi-

calizava, mas imprescindível para

aguentar o poder republicano nas

alturas de crise), pela passividade

do mundo rural, pela vigilância e

contenção do corpo de oficiais do

Exército,[3] pela ampla divisão dos

adversários políticos e pela con-

quista do apoio mínimo da Ingla-

O 5 de Outubro foi um movimento da capital, alargando-se no máximo a um arco de pequena dimensão em seu torno, onde se inclui Almada e Loures, que com muito boa vontade se pode prolongar até Setúbal e Alpiarça. No resto do país, o regime foi proclamado literalmente ' 'por te legrama'', na premonitória expressão de João Chagas, a mais b r il ha n te p ena de propagandista ao serviço dos republicanos.

terra,[4] imprescindível para a con-

tenção das ambições espanholas

na Europa, e das alemãs e das sul

-africanas no império. Todos estes

elementos necessários para a

equação política que mantinha o

partido democrático no poder

eram frágeis, o que fazia que as

crises fossem permanentes.

A instabilidade passa a ser a pala-

vra-chave de um aparelho central

do Estado enfraquecido e incapaz

de conter ou reprimir as recentes

manifestações de mal-estar social.

[...].

O período final da Grande Guerra

pode ser entendido como um dos

vários abalos conjunturais de uma

crise mais longa do poder do Esta-

do que se manifesta de forma

aberta desde 1890 e que só será

parcialmente superada nos anos

30. Em termos muito simples,

podemos dizer que se trata da cri-

se da transição de uma democra-

cia liberal elitista, que marca o

século XIX, para uma democracia

de massas e urbana que ainda não

tem condições de funcionar de for-

ma a garantir a estabilidade políti-

ca numa sociedade como a portu-

guesa. São, em resumo, os abalos

da transição de um tipo de regime

típico da Europa do século XIX

para um outro, característico da

Europa desenvolvida do século XX.

O problema é que a ''democracia

de massas'' exige condições

sociais, económicas e de mentali-

dade que não existem no Portugal

de começos do século XX. As

''ditaduras'' de D. Carlos, a Repú-

blica, o Sidonismo e até o Estado

Novo, são manifestações desta

longa transição de quase um sécu-

lo (1890-1974) entre dois tipos de

democracia. O Estado Novo, no

entanto, é já a superação da crise

do poder do Estado, na medida

em que assegura durante 48 anos

o funcionamento minimamente

estável da estrutura política que

edifica.

[1] Mais de três quartos da população por-tuguesa viviam em zonas rurais em 1910. As duas únicas cidades que mereciam esse nome eram Lisboa e o Porto. [2] O autor que melhor estudou e definiu essa estratégia foi Vasco Pulido Valente (O Poder e o Povo, Lisboa, 1976); A República Velha 1910-1917, Lisboa,1997, embora a sua vontade de realçar o corte com a visão de propaganda o tenha levado a apresentar a República como uma feroz ditadura jaco-bina. Numa opinião pessoal, há sobretudo laços de continuidade entre os dois regi-mes, apesar das diferenças de forma, nomeadamente nos métodos de manter a oposição nos limites do admissível. Ambos eram democracias liberais e elitistas, típi-cas do século. [3] Vários autores estudaram a relação peculiar entre a República e as Forças Armadas. Realço a obra de José Medeiros Ferreira O Comportamento Político dos Militares, Lisboa, 1992. [4] A Inglaterra demorou mais de um ano a reconhecer o novo regime num processo difícil e complicado.

A República

e os Títulos Nobiliárquicos

Os apologistas da primeira repú-

blica (David Ferreira, por exem-

plo) mencionam, entre a grandio-

sa obra realizada pelo governo

provisório, a abolição dos títulos

nobiliárquicos. Escapa-lhes a efé-

mera duração desta medida:

menos de dois meses.

Os títulos de nobreza, abolidos em

15 de Outubro de 1910 (Diário do

Governo, nº 11, de 18 de Outubro

de 1910), são restabelecidos em 2

de Dezembro do mesmo ano:

aqueles que provarem o seu direi-

to ao uso de títulos nobiliárquicos

“podem continuar a usá-los; mas

nos actos que tenham de produzir

direitos ou obrigações, será neces-

sário o emprego do nome civil

para que esses actos tenham vali-

dade” (Diário do Governo, nº 60,

de 15 de Dezembro de 1910).

Alguns titulares que, por terem

aderido à república, como o Vis-

conde da Ribeira Brava, ou por

serem funcionários públicos, como

o Visconde de Faria, ocuparam

postos de elevada responsabilida-

de na hierarquia do estado repu-

blicano, mantiveram-se no uso

42 O DEBATE

A República vista à lupa...

Assim foi possível chegar-se a esta situação, imprevisível segundo os cânones das classificações políticas: no ano de 1914 a polícia municipal de Lisboa, cumprindo ordens dadas por um Visconde, cerca as instalações de um dos mais credenciados jornais republicanos, “A Lucta”, proibindo a distribuição e circulação deste periódico. V iv ia -se em ple na república radical, regime cujas características não se descrevem facilmente.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 43

A República vista à lupa... dos seus títulos, mesmo quando

desempenhavam funções oficiais.

Eram tratados pelas autoridades

do novo regime, em todas as cir-

cunstâncias, segundo a sua cate-

goria nobiliárquica, e os diplomas

que os nomearam para altos car-

gos, como o de governador civil de

Lisboa ou o de cônsul de Portugal

em várias cidades, não esqueciam

a deferência devida a estes titula-

res, reconhecendo-lhes o título

que haviam recebido da monar-

quia.

Assim foi possível chegar-se a esta

situação, imprevisível segundo os

cânones das classificações políti-

cas: no ano de 1914 a polícia

municipal de Lisboa, cumprindo

ordens dadas por um Visconde,

cerca as instalações de um dos

mais credenciados jornais republi-

canos, “A Lucta”, proibindo a dis-

tribuição e circulação deste perió-

dico. Vivia-se em plena república

radical, regime cujas característi-

cas não se descrevem facilmente.

Qual é coisa, qual é ela,

Que entra pela porta

e sai pela janela?

Afonso Costa não é, como escre-

veu A.H. de Oliveira Marques, o

mais querido e o mais odiado dos

Portugueses. É, com certeza, uma

das figuras mais ridículas e abjec-

tas da História de Portugal, epíto-

me do que constituiu a I Repúbli-

ca, ou seja, um regime de vale-

tudo, de ameaças, de extorsões,

de perseguições e ódios. Afonso

Costa jamais foi querido. Foi sem-

pre temido, odiado, repudiado e

no fim respeitado, pois ser amado

significava perder a força necessá-

ria à consolidação da sua obra. A

República Portuguesa, sobretudo

nos seus defeitos (sim, porque

não podemos esconder-lhe algu-

mas virtudes) foi da sua lavra.

Desde a tentativa de erradicação

da Igreja Católica, às sovas que

deu ou mandou dar aos seus opo-

sitores, passando pelos pequenos

furtos ou os grandes roubos em

que esteve envolvido, sem qual-

quer pejo, embaraço ou vergonha.

Como escreveu Fernando Pessoa:

«Não podendo Afonso Costa fazer

mais nada, é homem para mandar

assassinar. Tudo depende do seu

grau de indignação.». Ora, a

indignação de Afonso Costa teve

vários graus, tantos ou mais do

que aqueles que subiu na hierar-

quia da Maçonaria que o acolhia

com fraternidade. Aliás, a raiva

deste paladino da República nunca

foi elitista, faça-se-lhe justiça:

tanto se dirigia a monárquicos

como a republicanos, dependendo

de quem se atrevia a fazer-lhe

frente.

Político experimentado dos últimos

anos do Rotativismo e da expe-

riência do Franquismo, A. Costa

sabia uma coisa: para governar

um país como Portugal, a Demo-

cracia só podia vir depois. Mais, o

primeiro passo para mandar nos

portugueses, não é suspender o

Parlamento, ou calar a Imprensa,

é alimentar o mais possível o caci-

quismo e os clientelismos. Por

isso, com uma mestria nem

sequer igualada pelo seu sucessor

das Finanças a partir de 1926,

rodeou-se da família, criando uma

Dinastia de Costas (a expressão

aparece na sua correspondência),

leal, forte, incorruptível (na qual a

sua mulher teve um papel funda-

mental, mesmo apesar de às

mulheres a República ter negado o

direito ao voto), distribuiu benes-

ses aos mais próximos, amigos ou

inimigos, mantendo-os no bolso

como qualquer bom gangster o

faria.

Contudo, Costa tinha um lado

medroso que faz dele esse político

tão extraordinário e vivo da nossa

História. Rodeava-se da púrria

(adolescentes vadios e marginais

a quem oferecia bombas e armas

para assustar a população) e ele

próprio manejava a pólvora como

ninguém; por outro lado era inca-

Afonso Costa não é, como escreveu A.H. de Oliveira Marques, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses. É, com certeza, uma das figuras mais ridículas e abjectas da História de Portugal, epítome do que constituiu a I República, ou seja, um regime de vale-tudo, de ameaças, de extorsões, de perseguições e ódios.

incapaz de enfrentar um opositor num frente a frente. E tinha medo, muito medo, do próprio terror que lançara. Quando, em 1917, Sidónio o mandou ir pren-der ao Porto andou escondido em guarda-fatos e dali saiu apu-pado por uma fila de mulheres. Passou vexames inacreditáveis: viu a sua casa ser esbulhada de alguns dos objectos que ele tinha furtado nos Palácios Reais e um dia de Julho de 1915, seguindo num eléctrico atirou-se pela janela fora ao som e à vista de um clarão que pensava vir de uma bomba. Não fora um aten-tado, apenas um curto-circuito…estatelou-se no chão de onde foi levantado pelos transeuntes em estado grave e, durante meses e anos a fio, Lisboa transformou esta cena patética numa adivi-nha popular: Qual é coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela? Afonso Costa participou em negociatas e estranhos casos de favorecimento. Desapareceram processos durante o seu ministé-rio na Justiça e não poucas vezes viu o Parlamento envolvê-lo na “roubalheira” de que fala Raul Brandão e na qual políticos e militares participavam. Em França um banqueiro virou-se para António Cabral, ex-ministro da Monarquia perguntando-lhe: - “Conhece um tal de Afonso Cos-ta, em Portugal”. António Cabral disse que sim, que o conhecia bem… ao que o capitalista res-pondeu – “Pois deve ser um dos homens mais ricos do seu país, dada a quantia que possui na conta que por cá abriu…” Nada o detia. Para além de manipular a legislação a seu

favor (algo que facilmente podia fazer dado que controlava, a partir da proeminência do seu Partido Democrático, veja-se o

Caso das Binubas, de que hoje ninguém fala…) executava mala-barismos financeiros, como o que envolveu a sua mulher para quem fez desviar, sob sob a des-culpa da caridade, meio milhão de francos, destinados à Comis-são de Hospitalização da Cruza-da das Mulheres Portuguezas, de que a D. Alz ira Costa era presi-dente. Claro está que no meio de governos maioritários, ditatoriais e não fiscalizados, no meio do clima de terror que Afonso Costa ajudara a criar e mantinha para sua segurança e a da própria República, os roubos não só eram frequentes, como absoluta-mente seguros (prova-o a “habilidade” de Alves dos Reis, em 1925). Nenhuma investiga-ção sendo efectivamente aberta levaria a alguma condenação. Não deixa de ser curioso que às despesas e aos roubos que os republicanos faziam questão de apontar antes de 1910 tornaram-se frequentíssimos durante a os loucos anos da I República: armamento, fardas militares, promiscuidades várias com empresas estrangeiras, etc., etc. Através da figura de Afonso Cos-ta é fácil entender as actuais comemorações do Centenário e como, a meio deste ano de 2010, os seus mandatários resolveram assumir a celebração dos primeiros anos da República, evitando assim o Estado Novo e, na 3.ª República, fugir à inevitá-vel glorificação de uma certa “oposição” não socialista. É que a Primeira República, intolerante e exclusiva como hoje alguns dos seus admiradores é a melhor

e talvez a única maneira de regressar às raízes e à autentici-dade da República Portuguesa tal qual ela foi gizada.

44 O DEBATE

A República vista à lupa...

Quando, em 1917, Sidónio o mandou ir prender ao Porto andou escondido em guarda-fatos e dali saiu apupado por uma fila de mulheres. Passou vexames inacreditáveis: viu a sua casa ser esbulhada de alguns dos objectos que ele tinha furtado nos Palácios Reais e um dia de Julho de 1915, seguindo num eléctrico atirou-se pela janela fora ao som e à vista de um clarão que pensava vir de uma bomba. Não fora um atentado, apenas um curto-circuito…estatelou-se no chão de onde foi levantado pelos transeuntes em estado grave e, durante meses e anos a fio, Lisboa transformou esta cena patética numa adivinha popular: Qual é coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela?

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 47

José Maria d’ Eça de Queiroz

Um espectador: Novos factores da política portuguesa *

* publicado anonimamente na “Revista de Portugal”

“Uma parte importante na

Nação perdeu totalmente a fé

no parlamentarismo, e nas

classes governamentais que o

encarnam; e tendem a substi-

tui-la por outra coisa, que ela

ainda não definiu bem a si pró-

pria”

Artigo de Eça de Queirós publicado

anonimamente na «Revista de

Portugal», publicação editada no

Porto, mas que Eça dirigia desde

Paris. Este artigo foi atribuído

durante muito tempo a Oliveira

Martins, mas Ernesto Guerra da

Cal comprovou a existência do

manuscrito original autógrafo.

Neste artigo, Eça afirma que, com

a crise política provocada pelo

Ultimato britânico de 1890, a

população portuguesa passou a

pensar que «antes qualquer outra

coisa do que o que está». O pro-

blema era saber o que era esta

«outra coisa». Um governo autori-

tário, com base no exército, pare-

cia improvável. Então o que se

perfilava no futuro parecia ser ou

uma «revolução feita de cima,

uma concentração de força na

Coroa ... que não seria compreen-

dida pela Nação», ou uma revolu-

ção vinda de baixo - a República,

que para Eça «seria a confusão, a

anarquia, a bancarrota.»

Acabava então perguntando, não

apresentando naturalmente uma

solução:

- «Que resta pois? Resta, como

esperança, o sabermos que as

nações têm a vida dura, e que o

nosso Portugal tem a vida duríssi-

ma.» Sabendo que «entre nós têm

-se visto governos que parecem

absurdamente apostados em

errar, errar de propósito, errar

sempre, errar em tudo, errar por

frio sistema.»

A história veio comprovar que Eça

de Queirós para além de ser um

grande escritor, assim como um

grande jornalista, como Filomena

Mónica salientou, foi também um

grande analista político. Este arti-

go previu os 40 anos seguintes. O

reforço do poder real, com a

«ditadura» de João Franco, apoia-

da por D. Carlos; a revolução

republicana, que se tornou a anar-

quia que o autor previu, e a solu-

ção militar que era a menos previ-

sível em 1890, mas que foi a que

se mostrou a mais duradoira exis-

tindo durante 50 anos, de 1926 a

1976.

Depois do ultimatum de 11 de

Janeiro e do frémito de indignação

que percorreu todo o País até às

mais obscuras vilas, houve um

momento em que justif icadamente

se pôde supor que a Nação, enfim

despertada do seu sono ou da sua

indiferença, pronta a retomar a

posse de si mesma, e certa de que

a vida que vinha levando nestes

últimos vinte anos a votava irrevo-

gavelmente às humilhações e aos

desastres, decidira, num ingente

esforço de vontade, começar uma

vida nova.

Não escaparam a esta ilusão cabe-

ças que se prezam de friamente

raciocinadoras. E quem estas

linhas escreve, apesar de dois lus-

tres inteiros de desilusões, chegou

a crer que realmente existia no

fundo da Nação, sob a sua apa-

rente apatia, uma grande reserva

de força, capaz de inspirar e de

impor, sem resistências possíveis,

uma reorganização política e eco-

Depois do ultimatum de 11

de Janeiro e do frémito de

indignação que percorreu

todo o País até às mais

obscuras vilas, houve um

m o me n to e m q ue

justificadamente se pôde

supor que a Nação, enfim

despertada do seu sono ou

da sua indiferença, pronta

a retomar a posse de si

mesma, e certa de que a

vida que vinha levando

nestes últimos vinte anos a

votava irrevogavelmente

às humilhações e aos

desastres, decidira, num

ingente esforço de

vontade, começar uma

vida nova.

nómica do Estado.

A ilusão, como dissemos, em bre-

ve se sumiu por esses ares. Pou-

cas semanas bastaram a eviden-

ciar que não há no país uma força

latente de onde pudesse vir o

movimento de reorganização

nacional, ou que, se a há (é sem-

pre grato guardar uma esperan-

ça), o ultimatum do dia 11 e a

perda de territórios maninhos de

África, que quase ninguém sabia

onde ficavam, não foi abalo bas-

tante decisivo para a fazer desper-

tar e operar. Nem todos os cho-

ques do ferro conseguem com

efeito fazer saltar o fogo das

entranhas da pedra.

Mas se fora das regiões da Políti-

ca, na massa geral da Nação, o

ultimatum não logrou produzir um

movimento que viesse trazer

transformações essenciais à nossa

vida administrativa e económica,

sucedeu que, dentro dessas pró-

prias regiões da Política, esse

mesmo ultimatum, e as manifes-

tações tumultuárias que o acom-

panharam, vieram alterar o equilí-

brio dos elementos regulares com

que a Política jogava, fazendo

aparecer nela elementos novos,

novos factores, com que é forçoso

de ora avante contar, e que, coisa

estranha!, fazem o Portugal de

1890 politicamente diferente do

Portugal de 1889. É esta nova

situação que convém estudar com

clareza e franqueza. Estender

sobre ela um véu pudico, disfarçar

-lhe discretamente, por falsas e

injustificáveis conveniências públi-

cas, os perigos que ela contém,

mão a querer dissecar abertamente

com o temor de patentear realida-

des desagradáveis, seria o mesmo

que impedir uma cura ainda possível

pelo desejo de não aludir a um mal

manifestamente certo. Seria um cri-

me de leso‑patriotismo.

I

O Partido Republicano não é certa-

mente de criação recente. Desde

34, desde 20, sempre em Portugal

existiram republicanos e jacobi-

nos. Foi possível porém durante

muito tempo contá-los, como se

diz, pelos dedos de uma só mão.

Eram ideólogos isolados, um pou-

co vaidosos do seu isolamento,

vaidosos sobretudo da sua inde-

pendência e isenção, e da superio-

ridade intelectual que as suas

ideias lhes davam ou lhes pare-

ciam dar, de resto universalmente

respeitados, e respeitadores eles

mesmos do regímen sob que

viviam e de quem por vezes acei-

tavam empregos.

O primeiro ensaio de republicanis-

mo, com visos de organização, foi

devido, aí por 1867 ou 68, a um

guarda-livros da antiga Casa Ber-

trand, moço excelente, mas faná-

tico, que consumiu o seu pecúlio e

a sua saúde no empenho de fun-

dar um clube, menos como núcleo

de acção que como núcleo de pro-

paganda. Esse clube (se nos não

falha a memória) chegou a funcio-

nar numa casa da rua do Príncipe,

e a ele pertenceram alguns

homens hoje ilustres nas letras, e

mesmo famosos pelas suas ideias

autoritárias. De resto nesse clube

tratava-se mais de estimular a fra-

ternidade humana, de libertar as

raças oprimidas, etc., do que pro-

priamente de abalar o poder que

residia na Ajuda. Era um clube de

humanitários e de idealistas, de

onde apenas saiu um acto prático,

a s c onfe rênc ia s c hamadas

do Casino, instrumento de propa-

ganda que tinha naturalmente

mais de literária do que de políti-

ca. Muito bem nos lembramos de

ir lá ouvir o nosso saudoso amigo

Augusto Soromenho, o erudito

auxiliador de Alexandre Herculano,

discorrer sobre Chateaubriand; e

dias depois o Sr. Eça de Queirós

apresentar, muito antes de Zola,

as bases de uma nova estética, o

Realismo. Apesar de não ameaça-

rem muito seriamente a ordem,

ainda assim foram estas palestras

julgadas subversivas pelo Duque

48 O DEBATE

Novos factores da política portuguesa

O primeiro ensaio de republicanismo, com visos de organização, foi devido, aí por 1867 ou 68, a um guarda-livros da antiga Casa Bertrand, moço excelente, mas fanático, que consumiu o seu pecúlio e a sua saúde no empenho de fundar um clube, menos como núcleo de acção que como núcleo de propaganda. Esse clube (se nos não falha a memória) chegou a funcionar numa casa da rua do Príncipe, e a ele pe r tence ram a lgu ns homens hoje ilustres nas letras, e mesmo famosos p e l as s ua s i de i as autoritár ias. De resto nesse clube tratava-se mais de estimular a fraternidade humana, de libertar as raças oprimidas, etc., do que propriamente de abalar o poder que residia na Ajuda. Era um clube de humanitários e de idealistas, de onde apenas saiu um acto prático, as conferências chamadas do Casino, instrumento de propaganda que tinha naturalmente mais de literária do que de política.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 49

Novos factores da política portuguesa (então Marquês) de Ávila, que as

proibiu no dia em que um dos con-

ferentes (o Sr. Batalha Reis, se

não nos enganamos) ia falar sobre

a «Divindade de Jesus». A impren-

sa de oposição exibiu a costumada

indignação liberal; o Sr. Dias Fer-

reira fez uma interpelação ao

ministério; e não se falou mais

nas conferências do Casino, de

que apenas resta como vestígio

uma verdadeira jóia de crítica his-

tórica, um folheto do Sr. Antero de

Quental, hoje muito raro, sobre a

Decadência dos Povos Peninsula-

res. O clube da rua do Príncipe

morreu de inanição, e este ensaio

jacobino fundiu-se ou perdeu-se

no movimento socialista que, aí

por 1871 e 72, ainda sob a inicia-

tiva do Sr. Fontana e de outros,

englobou em si uma considerável

porção da classe operária de Lis-

boa. Esse movimento socialista,

que era uma ramif icação entre nós

da famosa Internacional, fracas-

sou quando essa sociedade, por

motivos que não vem para aqui

compendiar, perdeu a sua acção

sobre a massa dos trabalhadores

europeus. Depois disso a corrente

republicana, que várias causas

tinham continuado a desenvolver

surdamente, aflorou de novo à

superf ície e fez sentir a sua acção

por ocasião do centenário de

Camões. E finalmente a sua entra-

da como partido organizado na

sociedade política pode ser datada

da questão de Lourenço Marques.

Não tomámos a pena para fazer a

história, ainda pouco acidentada,

do Partido Republicano. Essa his-

tória, por enquanto, reduz-se prin-

cipalmente a números. Um depu-

tado republicano por Lisboa há

quinze anos não reuniria cem

votos. Nas últimas eleições os

republ ic anos t iveram alguns

milhares de votos. E estes milha-

res de votos têm uma signif icação

grave, não tanto por virem do

apoio progressista (ainda que este

apoio é também significativo e sin-

tomático), mas por virem de uma

forte massa de eleitores indepen-

dentes, pertencendo pela maior

parte às classes liberais e à classe

comercial, que até aqui se absti-

nham de votar.

Um tal desenvolvimento de repu-

blicanos é obra recente destes

últimos anos. E a sua causa tem

sido simples e unicamente o des-

contentamento: isto é, o Partido

Republicano tem-se alastrado, não

porque aos espíritos democratiza-

dos aparecesse a necessidade de

implantar entre nós as instituições

republicanas, como as únicas

capazes de realizar certos pro-

gressos sociais - mas porque

esses espíritos sentem todos os

dias uma aversão maior pela polí-

tica parlamentar, tal como ela se

tem manifestado, com o seu cor-

tejo de males, nestes derradeiros

tempos.

O Partido Republicano em Portugal

nunca apresentou um programa,

nem verdadeiramente tem um

programa. Mais ainda, nem o pode

ter: porque todas as reformas

que, como partido republicano, lhe

cumpriria reclamar, já foram reali-

zadas pelo liberalismo monárqui-

co. De sorte que se vai para a

república ou se tende para ela,

não por doutrinarismo, por urgên-

cia de mais liberdade e de institui-

ções mais democráticas, mas por-

que numa já considerável parte do

País se vai cada dia radicando

mais este desejo: antes qualquer

outra coisa do que o que está!

Esta é a mais recente e desgraça-

da fórmula política da Nação. É a

fórmula que se ouve repetida por

toda a parte onde dois homens se

juntam a comentar as coisas

públicas. Ora que pode ser essa

outra coisa? Não pode ser o

governo pessoal, fórmula para que

apenas se inclinam alguns espíri-

tos superiores, mas odiosa à

generalidade da Nação, de todo

democratizada, ou antes irradica-

velmente impregnada de liberalis-

O Partido Republicano em

Portugal nunca apresentou

um programa, nem

verdadeiramente tem um

programa. Mais ainda, nem

o pode ter: porque todas

as reformas que, como

partido republicano, lhe

cumpriria reclamar, já

foram realizadas pelo

liberalismo monárquico. De

sorte que se vai para a

república ou se tende para

ela, não por doutrinarismo,

por urgência de mais

liberdade e de instituições

mais democráticas, mas

p o r q u e n u m a j á

considerável parte do País

se vai cada dia radicando

mais este desejo: antes

qualquer outra coisa do

que o que está!

mo; tem pois, na ideia dos des-

contentes, de ser a república, uma

república, que, eliminando pelo

mero facto do seu triunfo todo o

pessoal do parlamentarismo e as

suas práticas, proceda, sem desa-

tender os interesses conservado-

res, a uma reorganização adminis-

trativa e económica da Nação.

Essa reorganização parece-nos, a

nós conservadores, que poderia

ser realizada dentro da monar-

quia. Mas os descontentes respon-

dem que a monarquia se acha ine-

vitavelmente, fatalmente vincula-

da e soldada a esse pessoal do

constitucionalismo, cuja incompe-

tência e corrupção eles julgam ter

sido super abundantemente com-

provada em anos já longos de

desgoverno que resta portanto

uma única solução, a república: e

que o momento vem chegando de

salvar por esse meio o País, que já

não pode ser salvo pela monar-

quia.

Cremos que ninguém, com uma

clara inteligência das coisas, nega-

rá ser esta a corrente de ideias ou

de impressões que tem desenvol-

vido o Partido Republicano. Do seu

mais recente e inesperado engros-

samento neste último ano houve-

ram causas mais directas e mais

especiais, internas e externas. Das

internas a maior foi sem dúvida o

último período da administração

progressista. Não queremos por

modo algum nestas páginas da

REVISTA, onde só podem ter cabi-

mento as apreciações genéricas de

ideias, doutrinas ou movimentos

sociais, fazer acusações específi-

cas a grupos políticos. Mas nin-

guém hoje contesta, mesmo den-

tro das fileiras progressistas onde

preclaramente sobram os homens

sinceros e de bem, que os erros

dessa administração foram fatais

ao sistema parlamentar e à

monarquia que é a sua expressão

suprema.

A parte sã da Nação ficou seria-

mente desgostosa. E as lamentá-

veis desordens parlamentares des-

se triste ano político, as violentís-

simas e desmandadas polémicas,

as mútuas e terríveis recrimina-

ções com que, obcecados pela pai-

xão, os partidos se feriam uns aos

outros na sua honra, deixaram no

País, que assistia espantado a

uma tallavagem pública de roupa

suja, o sentimento desalentado

que ele exprime por esta fórmula:

- Tão bons são uns como outros! É

esta uma outra das recentes e

desgraçadas fórmulas da opinião

pública em Portugal. Ora se, dos

que estão, tão bons são uns como

os outros no sistema parlamentar

– para onde ir, para que apelar?

Naturalmente para a república e

para os homens novos e puros

que ela possa trazer.

Uma outra causa exterior que veio

concorrer para o engrossamento

do Partido Republicano foi a revo-

lução do Brasil. Feita por uma raça

filha da nossa, que fala a nossa

língua e tem tantos interesses

ligados aos nossos, e feita aparen-

temente com uma cordura, uma

generosidade, uma ordem que

espantou (e enganou) o mundo,

esta revolução veio entre nós, de

mil maneiras indirectas, desenvol-

ver o sentimento republicano; já

provando como sem desordem

social se pode melhorar um regí-

men político; já mostrando tenta-

doramente a que fastígios de

poder pode galgar, numa manhã,

qualquer obscuro articulista ou

qualquer obscuro professor; já

dando a esperança de um forte

apoio moral e (porque o não dire-

mos?) de um forte apoio material.

A revolução do Brasil tranquilizan-

do os ordeiros, excitando os ambi-

ciosos, e dando confiança a todos

pela esperança de apoio e recur-

sos positivos – foi um golpe que

das instituições brasileiras reper-

cutiu indirectamente sobre as nos-

sas instituições.

Não menor acção estimuladora

trouxe aos nossos republicanos a

50 O DEBATE

Novos factores da política portuguesa

Uma outra causa exterior que veio concorrer para o engrossamento do Partido Republicano foi a revolução do Brasil. Feita por uma raça filha da nossa, que fala a nossa língua e tem tantos interesses ligados aos nossos, e feita aparentemente com uma c o r d u r a , u m a generosidade, uma ordem que espantou (e enganou) o mundo, esta revolução veio entre nós, de mil maneiras indirectas, desenvolver o sentimento republicano; já provando como sem desordem social se pode melhorar um regímen político; já mostrando tentadoramente a que fastígios de poder pode galgar, numa manhã, q u a l q u e r o b s c u r o articulista ou qualquer obscuro professor; já dando a esperança de um forte apoio moral e (porque o não diremos?) de um forte apoio material.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 51

Novos factores da política portuguesa consolidação da república em

França, tão ameaçada, ainda

antes das eleições de Setembro,

pela c ol igação moná rqu ic o-

cesarista. A França, pelo simples

facto de ser república e como tal

prosperar, é hoje o mais poderoso

instrumento de propaganda repu-

blicana entre os povos latinos. Não

se reflecte bastante que às quali-

dades da sua raça, não à forma

das suas instituições, deve ela a

sua prosperidade; e que a Exposi-

ção seria tão brilhante sob o reina-

do de Filipe V, como foi sob a pre-

sidência de Carnot. O que se vê é

a República robustecendo o exér-

cito e a armada, construindo enor-

mes obras de defesa, reorganizan-

do superiormente os seus novos

domínios, alargando imensamente

a instrução, favorecendo o movi-

mento dos negócios a ponto de

tornar o próprio capital republica-

no, mantendo admiravelmente a

ordem, e, apesar da sua democra-

tização, conservando todas as ele-

gâncias da vida e da sociedade.

Tudo isto se atribui à república,

quando é unicamente obra da

França.

Finalmente entre as causas estra-

n h a s s e p o d e c o n t a r

o ultimatum do dia 11, que, se

não arrancou o País à sua apatia,

lhe deu subitamente o sentimento

mais claro, e por assim dizer agu-

do, da sua própria fraqueza e

desorganização; fraqueza e desor-

ganização que, aparecendo dentro

deste regímen, podem ser (e são)

obra de certas fatalidades, mas

são evidentemente também obra

desse regímen.«Aqui está onde

nós chegamos!» foi então a dolori-

da exclamação que resumia o sen-

tir público.

Assim, progressivamente, se tem

ido o Partido Republicano recru-

tando entre todas as classes e

todas as profissões, a advocacia, a

magistratura, o professorado, o

comércio, e mesmo a propriedade

rural, pela acção lenta de causas

diferentes, das quais a maior

incomparavelmente, e a única que

incessantemente opera, é a de um

forte descontentamento político.

E o que torna este descontenta-

mento político tanto mais vivo, e

por assim dizer activo, é que ele

tem o estímulo constante de um

imenso descontentamento indivi-

dual, nascido das dificuldades de

vida que cada um experimenta. É

a nossa pobreza geral que compli-

ca singularmente a nossa crise

política. Em casa onde não há pão

todos ralham e todos têm razão –

porque é deste modo que o pro-

vérbio deve ser entre nós emen-

dado. O célebre publicista Edmun-

do About afirmava que nada era

mais favorável aos governos em

França do que o vento do sudoes-

te -porque é ele que traz as chu-

vas e prepara as boas colheitas. A

oposição a um governo ou a um

regímen nunca toma com efeito

um carácter impaciente, violento e

destrutivo quando cada um tem

pão bastante na prateleira ou um

saldo favorável no seu banco.

Todo o regímen parece bom, pelo

menos perfeitamente tolerável, ao

pai de família que se sente na

abundância. A mudança de regí-

men, e as perturbações sociais

que lhe vêm inerentes, só lhes

inspiram então inquietação, por

poderem alterar ou anular as con-

dições favoráveis em que a sua

prosperidade se produziu. Entre

nós é justamente o contrário que

sucede. Ninguém vive na abun-

dância e todos se encontram em

dificuldades. Sofre o empregado

pela pequenez dos ordenados;

sofre o operário pela escassez dos

salários; sofre o lojista pelos limi-

tados meios de comprar de que

dispõe o público; sofre o comer-

ciante pela estagnação das tran-

sacções; e sofre o agricultor pela

longa crise agrícola que lhe desva-

loriza a propriedade. Todos

sofrem; e ainda que muitos só se

deveriam queixar da sua falta de

E o que torna este descontentamento político tanto mais vivo, e por assim dizer activo, é que e le tem o estímulo constante de um imenso d e s c o n t e n t a m e n t o individual, nascido das dificuldades de vida que cada um experimenta. É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão – porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado.

iniciativa, de persistência, e mes-

mo de coragem civil, todos à uma

se voltam contra um regímen que

eles consideram como o causador

de todos esses males públicos de

onde datam os seus males parti-

culares. Em todas estas classes se

encontra com efeito a mesma opi-

nião expressa pela mesma fórmu-

la: - isto assim não pode conti-

nuar! Isto é a desorganização

administrativa, política e económi-

ca.

Constitui esta massa já considerá-

vel de descontentes um partido

militante e organizado? Não, cer-

tamente. Esta massa não está ain-

da filiada no Partido Republicano,

não pertence ainda a clubes, não

obedece ainda a um programa.

Quando muito lê o Século. Mas

constitui essa classe, por assim

dizer, não-monárquica, que no

Brasil permit iu que se fizesse a

Revolução no espaço de duas

horas, e que é tão perigosa para a

segurança das instituições pela

sua total indiferença e desamor,

como o seria pela sua intervenção

hostil e combatente.

Tais são os elementos de que já

efectivamente se compõe ou com

que condicionalmente já conta o

Partido Republicano. É todavia

este partido um perigo imediato e

iminente para as instituições? Lon-

ge de toda a ilusão optimista, afi-

gura-se-nos que esse partido, no

dia de hoje, oferece um perigo

ainda mínimo, porque tem a impo-

tência de uma multidão a que falta

a direcção. Entre os republicanos

organizados, filiados, arregimenta-

dos, quantos se contarão que sin-

tam confiança real no seu directó-

rio e seus chefes oficiais? Raros,

segundo nos afirmam aqueles que

por experiência própria o sabem.

Pode haver, e há, por esses chefes

simpatia individual; pode haver, e

há, crença na sua sinceridade. Mas

não há já a fé na sua coragem, na

sua habilidade, ou na sua compe-

tência como organizadores de um

movimento. E enquanto à massa

dos descontentes, dos que chama-

mos não-monárquicos, esses nun-

ca consentiriam certamente em

admitir como chefes, e portanto

como futuros promotores da reor-

ganização nacional, os indivíduos,

aliás pessoalmente estimáveis,

que hoje têm a direcção aparente,

e queremos supor que real, dos

interesses republicanos. E sem

desejar ser descorteses para com

personalidades, – somos forçados

a constatar que os actuais chefes

republicanos, como tais, como

chefes, fazem sorrir toda a parte

séria da Nação.

Isto todavia adia simplesmente o

perigo até ao momento em que

homens de capacidades mais

altas, ânimos mais decididos, e

sobretudo de mais hábeis mane-

jos, tomem conta do partido já

organizado e da multidão descon-

tente que em torno deles se agita,

e dêem a este conjunto de forças

vagas a direcção que elas recla-

mam e parecem prontas a aceitar

de quem lhes traga uma garantia

de êxito.

Mas ainda mesmo sem direcção,

ou com uma direcção impotente

porque incompetente, o Partido

Republicano existe, exibe-se, fala,

escreve, vota; e por este mero

facto de existir obriga as classes

governamentais a uma atitude

legítima de defesa e de resistên-

cia. E eis aqui, se não erramos,

uma outra fatalidade que vem

aumentar os perigos do republica-

nismo. Desde que, desgraçada-

mente, se não pôde impedir por

uma sábia administração que se

viesse a formar esta massa de

descontentes, prestes a tornar-se

revolucionária, as classes gover-

namentais são necessariamente

obrigadas, desde que ela se for-

mou, a mantê-la em respeito e a

procurar inutilizá-la por meio da

repressão. Os próprios republica-

nos por mais fanáticos não espe-

ram decerto que o governo lhes

52 O DEBATE

Novos factores da política portuguesa

E eis aqui, se não erramos, uma outra fatalidade que vem aumentar os perigos do republicanismo. Desde que, desgraçadamente, se não pôde impedir por uma sábia administração que se viesse a formar esta massa de descontentes, prestes a tornar-se revolucionária, as classes governamentais são necessar iamente obrigadas, desde que ela se formou, a mantê-la em respeito e a procurar inutilizá-la por meio da repressão.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 53

Novos factores da política portuguesa entregue espontaneamente as

secretarias, o tesouro e a direcção

dos serviços públicos. Desde que

do seu lado comece a acção – do

lado do Poder deve começar a

repressão. Ora esta repressão só

se pode efectuar coarctando cer-

tas liberdades, - liberdade de

imprensa, liberdade de reunião,

liberdade de associação - que

entre nós penetraram profunda-

mente nos costumes públicos, e

que formavam além disso o único

recurso deixado ao descontenta-

mento para desafogar e se conso-

lar. A perda do direito de usar (e

sobretudo de abusar) dessas liber-

dades vai portanto originar uma

imensa irritação, e um acréscimo

de descontentamento tanto mais

intenso quanto mais comprimido.

As repressões são sempre as

grandes fautoras das revoluções.

Um partido perseguido cresce na

proporção geométrica dessa per-

seguição. Na Alemanha, há sete

anos, os soc ialistas reuniam

menos de uma dezena de milha-

res de votos; vieram as famosas

leis de repressão, e a política ter-

rorista de Bismarck; e ao fim de

seis anos os socialistas obti-

nham mais de um milhão de

votos, e o próprio Bismarck caía.

As classes governamentais sabem

isto perfeitamente bem, e não

procedem por obcecação ou por

um leviano desdém das repetidís-

simas lições da História. Fazem o

que não podem deixar de fazer – o

que é o seu dever que façam;

sobretudo quando o partido de

revolução reclama não um conjun-

to de justas reformas, que elas

deixam oportunamente conceder,

mas a derrocação pura e simples

de todo o regímen constituído,

sem um programa melhor de

ideias para substituir as dele, só

com o fim de destruição e de des-

locação de pessoas. A repressão

porém só se pode fazer com certe-

za de êxito pacífico quando exista

por trás, a sustentá-la, uma quase

unânime corrente de opinião, uma

larga maioria nacional, fielmente

vinculada e aferrada às institui-

ções monárquicas, só delas espe-

rando a salvação, e não com-

preendendo que a Nação possa

sem elas ser nação. Foi esta funda

corrente de opinião, esta forte

maioria nacional que faltou no

Brasil ao ministério Ouro Preto.

Existe essa maioria nacional entre

nós, uma maioria amando tanto as

Instituições que esteja pronta, e

com alacridade, a dar por elas o

dinheiro dos seus cofres e o san-

gue das suas veias? Infelizmente,

por mais que lhe contemos e

recontemos os elementos, não nos

parece que exista. Na classe

média uma minoria é republicana;

uma parte importante é indiferen-

te senão hostil; e uma outra parte

tende para a hostilidade pelo mero

facto de estar excluída do Poder e

dos seus benefícios. No povo, o

das cidades é republicano; e o do

campo, alheio a princípios políti-

cos, nunca se move e nunca se

moverá talvez senão para defen-

der o seu pão, se novos e fortes

impostos lho ameaçassem.

Resta portanto uma metade da

classe média fiel às instituições,

porque fiel ao partido político que

nesse momento as defenda. Mas

foi essa mesma metade da classe

média que no Brasil, acabando de

dar uma larga maioria parlamen-

tar ao ministério Ouro Preto, e

estando justamente a promover

uma subscrição para levantar uma

estátua ao visconde de Ouro Pre-

to (!) - ficou muito quieta nas suas

casas, nos seus empregos ou nos

seus escritórios, quando alguns

jornalistas e alguns tenentes que

iam reclamar uma mudança de

ministério se lembraram de pro-

clamar uma mudança de regímen!

Esta curiosa lição da História

actual, se outras não tivéssemos,

bastaria a mostrar que confiança

se pode ter, neste último quartel

Na classe média uma

minoria é republicana;

uma parte importante é

indiferente senão hostil; e

uma outra parte tende

para a hostilidade pelo

mero facto de estar

excluída do Poder e dos

seus benefícios. No povo, o

das cidades é republicano;

e o do campo, alheio a

princípios políticos, nunca

se move e nunca se

moverá talvez senão para

defender o seu pão, se

novos e fortes impostos lho

ameaçassem.

do século XIX, na fidelidade políti-

ca da classe média.

Ora se esta maioria nacional falta

às instituições, elas têm de se

apoiar necessariamente numa

outra força que, entre nós, só

pode ser o exército.

II

Em geral desde que o regímen

constituído, para se manter,

necessita o apoio de uma força

disciplinada; e quando, por outro

lado, existe um partido de revolu-

ção que não pode tirar dos seus

próprios elementos populares os

meios precisos de acção, e só

poderia triunfar pelo auxílio de

uma força indisciplinada - o exér-

cito torna-se necessariamente o

ponto para onde convergem todas

as esperanças e o elemento de

êxito com que contam todos os

interesses políticos. O exército é

assim fatalmente arrastado para

dentro da esfera dos partidos; e

começa logo a haver em torno

dele uma surda e constante cam-

panha de sedução ou de pressão.

Pela lógica das afinidades e das

ligações naturais, o partido de

revolução procura atrair o sargen-

to que é o mesmo que conquistar

o soldado; e o regímen constituído

procura muito justamente e com

honrosa facilidade, conservar fiéis

os coronéis e os generais. É isto o

que durante longos anos se deu (e

ainda se dá) na Espanha; e é isto

o que desde já se vai anunciando

entre nós, onde, como dizia ulti-

mamente um oficial superior, «o

exército está sendo requestado

como uma menina rica». A res-

ponsabilidade da desorganização

assim introduzida no corpo social

(e quanto é formidável essa res-

ponsabilidade, a anarquia do Brasil

o prova) pertence toda e exclusi-

vamente, está claro, ao partido de

revolução. Não tratamos porém

aqui de averiguar a quem perten-

cem as responsabilidades de que a

História mais tarde julgará, mas

de constatar e enfileirar os factos

tais como eles são e de os seguir

nas suas consequências. Ora o

facto incontestável (e que seria

antipatriótico disfarçar) é que o

Partido Republicano procura atrair

o exército; e que, forçado a defen-

der-se, o regímen constituído ape-

la por seu turno para o concurso

leal do exército, decerto inabalável

na sua lealdade.

Mas pelo simples facto do exército

ser a força essencial com que con-

ta o regímen constituído, e com

que conta o partido de revolução,

ele toma fatalmente uma prepon-

derância inesperada nos nossos

destinos políticos. Dele parece

depender tudo, e portanto ele tor-

na-se tudo. Assim como em Ingla-

terra, e já agora em França, o

boletim de voto é tudo, e sobre

ele se exerce ardentemente a pro-

paganda dos partidos, assim entre

nós parece desenhar-se o momen-

to em que a espada do exército

será tudo, e sobre ela, e só sobre

ela, se concentrará a acção e a

influência dos que legitimamente

possuem, ou que subversivamente

pretendem, o poder.

Isto, se não nos enganamos, pode

importar proximamente no adven-

to do militarismo. Dirão (e dizem)

os optimistas que o exército em

Portugal nunca sairá da sua devida

submissão ao poder civil. Assim o

supomos. Mas nunca se deve

basear um sistema de acção políti-

ca no optimismo, na hipotética

perfeição dos homens e das coi-

sas, e em frases. O exército não é

composto de entidades abstractas,

e impessoais como princípios: é

composto de homens de carne e

osso, susceptíveis de todas as fra-

quezas e de todas as tentações

humanas. Ora desde que uma

classe sente que só ela é a força

única, e que tudo gravita em torno

dela, pode, mesmo mau grado

seu, e pelo irresistível impulso da

sua própria força, ser levada a

tudo querer dominar, e fazer pre-

valecer, como superior a todos, o

54 O DEBATE

Novos factores da política portuguesa

Mas pelo simples facto do

exército ser a força

essencial com que conta o

regímen constituído, e com

que conta o partido de

revolução, ele toma

f a t a l m e n t e u m a

preponderância inesperada

nos nossos destinos

políticos. Dele parece

depender tudo, e portanto

ele torna-se tudo. Assim

como em Inglaterra, e já

agora em França, o

boletim de voto é tudo, e

sobre ele se exerce

a r d e n t e m e n t e a

propaganda dos partidos,

assim entre nós parece

desenhar-se o momento

em que a espada do

exército será tudo, e sobre

ela, e só sobre ela, se

concentrará a acção e a

i nf luênc ia dos que

legitimamente possuem,

ou que subversivamente

pretendem, o poder.

15 JUNHO 2011

15 JUNHO 2011 O DEBATE 55

Novos factores da política portuguesa seu interesse de classe. Pode-o

mesmo fazer por uma nobre ilusão

patriótica, considerando que, des-

de que tudo em torno dela é fraco

e impotente, e está morrendo des-

sa impotência e dessa fraqueza,

no predomínio da sua força reside

a salvação da pátria.

Decerto ao General Deodoro foi

agradável e vantajoso passar de

um comando numa província

remota ao governo absoluto da

nação, com cento e vinte contos

de lista civil, um palácio para habi-

tar, honras régias e a adulação de

todos: mas é bem possível que o

General Deodoro muito sincera-

mente acreditasse (visto que

assim lho afirmavam os que da

sua espada necessitavam) que

ele, e só ele, podia fazer a felicida-

de do Brasil. E de resto a história

está cheia de exemplos em que

chefes militares muito candida-

mente viram no seu engrandeci-

mento pessoal o meio único de

promover a regeneração nacional.

É claro, claro como o sol, que não

há o mínimo, o mais remoto sinto-

ma de que possa surgir entre nós

um general ambicioso. Mas dar

uma importância suprema ao ele-

mento militar é preparar o terreno

propício ao desenvolvimento pos-

sível dessas ambições. Querer sis-

tematicamente afastar esta supo-

sição, declarando que «tal é

impossível, que nunca tal se dará

na nossa terra, porque o exército

sabe o que deve à honra e à

pátria, etc.», é fazer acto de

imprevidência ou de ingenuidade,

ambas culpadas. O homem de

estado, digno desse nome, deve

tudo prever, tudo calcular – e ter

sempre presente que os homens

são homens, nascidos com as pai-

xões humanas, e não anjos, abs-

tracções ou princípios encarnados.

Eis de resto tudo o que convém

dizer; porque nisto se encerra

tudo o que convém meditar.

III

Assim viemos expondo, tais como

os compreendemos, os elementos

da crise política que se desenha, e

que, nascendo da nossa crise cró-

nica, a crise económica, se vai

ajuntar a ela ajudando a agravá-la

por diversos modos.

A situação é esta. Uma parte

importante da Nação perdeu total-

mente a fé (com razão ou sem

razão) no parlamentarismo, e nas

classes governamentais ou buro-

cráticas que o encarnam; e tende,

por um impulso que irresistivel-

mente a trabalha, a substituí-Ias

por outra coisa, que ela ainda não

definiu bem a si própria. Qual

pode ser essa outra coisa? Que

soluções se apresentam?

Por um lado a República não pode

deixar de inquietar o espírito de

todos os patriotas. Ela seria a con-

fusão, a anarquia, a bancarrota.

Além disso (é de urgente patriotis-

mo falar com franqueza) a Repú-

blica entre nós não é uma questão

de política interna, mas de política

externa. Um movimento insurrec-

cional em Lisboa, triunfante ou

semi-t riunfante, seria no dia

seguinte um exército de interven-

ção marchando sobre nós da fron-

teira monárquica da Espanha. E se

a Espanha, pela morte da crianci-

nha inocente que é rei, se conver-

tesse numa república conservado-

ra - um movimento paralelo em

Portugal, apoiado por ela e coroa-

do de êxito, seria o fim da nossa

autonomia, da nossa civilização

própria, da nossa nacionalidade,

da nossa história, da nossa língua,

de tudo aquilo que nos é tão caro

como a própria vida, e por que

temos, durante séculos, derrama-

do sangue e tesouros.

Por outro lado uma «revolução

feita de cima», uma concentração

de força na Coroa (que a muitos

espíritos superiores, e que vêem

claro, se apresenta como a nossa

salvação), concent ração, que,

apoiada na parte mais inteligente

e mais pura das classes conserva-

doras, procedesse às grandes

A situação é esta. Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou burocráticas que o encarnam; e tende, por u m i m p u l s o q u e i r re s i s t ive l me n te a trabalha, a substituí-Ias por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria. Qual pode ser essa outra coisa? Que soluções se apresentam?

Por um lado a República não pode deixar de inquietar o espírito de todos os patriotas. Ela seria a confusão, a anarquia, a bancarrota.

reformas que a consciência pública

reclama, não seria compreendida

pela Nação irremediavelmente

impregnada de liberalismo e que

nessa concentração de força só

veria uma restauração do absolu-

tismo e do poder pessoal.

Que resta no meio destas duas

soluções? Restaria ainda a solução

quase milagrosa de que as classes

conservadoras e parlamentares,

cônscias enfim dos perigos que as

envolvem, procedessem heroica-

mente à sua própria depuração e

moralização; e, tendo readquirido

por esse nobre regeneramento o

apoio da maioria sã do País, se

lançassem à obra patriótica e

exclusiva de reorganizar a Nação

administrativa e economicamente.

Mas este milagre não é provável.

Não há exemplo na História dos

séculos de que uma classe conser-

vadora, por uma lenta evolução da

consciência, a si mesma se rege-

nere, se depure e se moralize.

Que resta pois? Resta, como espe-

rança, o sabermos que as nações

têm a vida dura, e que o nosso

Portugal tem a vida duríssima. E

se os que estão no poder porfia-

rem sempre em cometer a menor

soma humanamente possível de

erros e realizar a maior soma

humanamente possível de acertos,

muitos perigos podem ser conju-

rados e a hora má adiada. O inte-

resse de quem tem o poder (como

dizia ultimamente, nestas mesmas

páginas, tratando do Brasil, o Sr.

Frederico de S) está todo

e unicamente em acertar. Senão

já por dever de consciência e de

patriotismo, ao menos por egoís-

mo, por vantagem própria e indi-

vidual, por ambição mesmo do

poder, o esforço constante de um

governo deve ser acertar. Entre

nós têm-se visto governos que

parecem absurdamente apostados

em errar, errar de propósito, errar

sempre, errar em tudo, errar por

frio sistema. Há períodos em que

um erro mais ou um erro menos

realmente pouco c onta. No

momento histórico a que chega-

mos, porém, cada erro, por mais

pequeno, é um novo golpe de

camartelo friamente atirado ao

edifício das instituições; mas ao

mesmo tempo tal é a inquietação

que todos temos do futuro e do

desconhecido, que cada acerto,

cada bom acerto, é uma estaca

mais, sólida e duradoura, para

esteiar as instituições. Toda a

dúvida está em saber se ainda há,

ou se já não há, em Portugal, um

governo capaz de sinceramente se

compenetrar desta grande, desta

irrecusável verdade.

Um espectador.

Fontes:

Eça de Queirós, «Novos Factores

da Política Portuguesa», Revista

de Portugal, Volume II, Abril de

1890, págs. 526 – 541.

Obras de Eça de Queiroz, Volume

IV, (Introdução e fixação dos tex-

tos de Aníbal Pinto de Castro),

Porto, Lello & Irmão – Editores,

1986, págs. 1022 – 1033.

A ler:

Maria Filomena Mónica, Eça de

Queirós, Lisboa, Quetzal Editores,

2001, págs. 272 – 281.

56 O DEBATE

Novos factores da política portuguesa

Entre nós têm-se visto

governos que parecem

absurdamente apostados

em errar, errar de

propósito, errar sempre,

errar em tudo, errar por

frio sistema. Há períodos

em que um erro mais ou

um erro menos realmente

pouco conta. No momento

histórico a que chegamos,

porém, cada erro, por mais

pequeno, é um novo golpe

de camartelo friamente

atirado ao edifício das

instituições; mas ao

mesmo tempo tal é a

inquietação que todos

temos do futuro e do

desconhecido, que cada

acerto, cada bom acerto, é

uma estaca mais, sólida e

duradoura, para esteiar as

instituições. Toda a dúvida

está em saber se ainda há,

ou se já não há, em

Portugal, um governo

capaz de sinceramente se

compenetrar desta grande,

desta irrecusável verdade.

15 JUNHO 2011