2 O DEBATE
Editorial
(…) o novo jornal não é, nem pretende ser, como muitos já fizeram crer, a f o r j a d e n e n h u m movimento monárquico. É apenas e só, um órgão de comunicação social com tudo o que isso implica e que dará cobertura a todos os mov imentos pe la Monarquia em Portugal sendo por isso partidário de uma política de proximidade junto da população portuguesa em geral e dos monárquicos em particular. (…)
15 JUNHO 2011
[+351] 963 007 515
Rua Correia Teles , 28 A
1300-150 Lisboa
Salvador C osta Director
Pedro Corte-Real Editor-chefe
Inês de Mello Design
Elsa Nascimento Capa
Colaboraram nesta edição:
Álvaro Santos P ereira
Augus to Ferreira do A maral
António José Telo
Carlos Bobone
José Manuel Q uintas
Nuno Resende
Marketing e P ublic idade:
Luisa Borges Directora de marketing
Carlos Gaspar Agências publicidade
Paulo C otrim Clientes directos
Bibi C orreia Account
Joana P into Circulação e Assinaturas
Jorge C aldeira Director f inanceiro
Periodicidade: Mensal
Dia de saída: Dia 15 de cada mês
Formato: 370mm x 290mm
Número de páginas des ta edição: 58
Circulação directa
Governo, Assembleia da República, A utarquias ,
Juntas de Fregues ia, O rgãos de poder local,
Embaixadas de Portugal no exterior, Embaixadas
es trangeiras ac reditadas em Portugal, O rganiza-
ções regionais , Associações de emigrantes , Asso-
ciações de estudantes , empresários e quadros
superiores de empresas .
Finalmente chegou a hora de o
jornal O DEBATE ver a luz do dia.
Depois de um número zero experi-
mental O DEBATE, ressurge hoje
dia 15 de Junho primeiro e apenas
numa edição online e mais tarde
então, depois de consolidado em
matéria de colaborações fixas,
publicidade e leitores assíduos,
estará em edição papel nas bancas
de todo o país.
Com um cariz acentuadamente
monárquico - como sempre foi sua
tradição - O DEBATE pretende unir
de uma vez por todas os monár-
quicos em torno de uma causa e
de uma casa real com uma longa
história na nação portuguesa.
Como é óbvio, O DEBATE reconhe-
ce publicamente e desde já que,
os direitos dinásticos da Coroa
Portuguesa estão na pessoa de
Sua Alteza Real o Senhor Dom
Duarte, Duque de Bragança e em
quem legitimamente lhe vier a
suceder nesses direitos.
Por outro lado, o novo jornal não
é, nem pretende ser, como muitos
já fizeram crer, a forja de nenhum
movimento monárquico. É apenas
e só, um órgão de comunicação
social com tudo o que isso implica
e que dará cobertura a todos os
movimentos pela Monarquia em
Portugal sendo por isso partidário
de uma política de proximidade
junto da população portuguesa em
geral e dos monárquicos em parti-
cular.
Por último uma palavra de agrade-
cimento a todos quantos aderiram
aos vários grupos nas redes
sociais que ajudaram a cativar os
mais de 15.000 potenciais leitores
para um projecto único em Portu-
gal. Portanto quem disse que a
monarquia é "coisa do passado" e
"está morta e enterrada" enga-
nou-se redondamente.
Salvador Costa
15 JUNHO 2011 O DEBATE 3
José Manuel Quintas
A Monarquia do Norte: Os combates pela bandeira azul e branca
[ 1910-1919 ]
1. As incursões da Galiza
2. O programa de Richmond
3. O ascenso monárquico
4. No Sidonismo «com o osso
da minoria»
5. «A Monarquia ou a morte!»
6. Proclamando a «Monarquia
do Norte»
7. No rescaldo
Em Janeiro de 1911, Ramalho
Ortigão contava setenta e quatro
anos. Permanecia no exílio em
Paris mas, voltando ao dirigir-se
aos seus leitores da Gazeta de
Notícias, no recomeço da sua car-
reira no ofício das letras, emocio-
nou-se com a analogia com Vítor
Hugo que, tendo regressado do
seu exílio de Guernesey, depois da
queda do Império e da proclama-
ção da Terceira República, afirma-
ra auspiciosamente: «Messieurs,
j’ai soissante quatorze ans et je
commence ma carrière.»
Ramalho reiniciava ali os seus últi-
mos farpeios, citando as palavras
do “mais glorioso mestre”, mas o
tema não podia deixar de ser o da
“Revolução de Outubro”.[1] Ele
que, nos dias imediatos ao 5 de
Outubro de 1910, entregou as
chaves da Biblioteca da Ajuda, e
se recusou a secretariar a Acade-
mia das Ciências, manifestando a
Teófilo Braga a sua repulsa em
engrossar “o abjecto número de
percevejos que de um buraco
(estava) vendo nojosamente
cobrir o leito da governação”,[2]
não deixava agora de considerar
esses “pobres homens, mais dig-
nos de piedade que de rancor”, e
de assinalar a rapidez e a benigni-
dade do desenlace do movimento
militar que derrubou a Monarquia.[3]
Quase não se dera pela resistência
ao derrube do trono. Se os monár-
quicos se encontravam de há mui-
to profundamente divididos por
razões político-ideológicas e dinás-
ticas,[4] a verdade é que os últi-
mos anos do rotativismo partidário
da Monarquia da Carta contribuí-
ram para debilitar o sentimento
monárquico. Nos primeiros anos
do novo século, os que permane-
ciam convictamente monárquicos,
na sua maioria não queriam aque-
la Monarquia.
Quando se deu a implantação da
República, muitos dos monárqui-
cos influentes dos partidos dinásti-
cos entraram a aderir sem com-
plexos aos novos partidos, consti-
tuindo aquilo a que os republica-
nos mais intransigentes passaram
a designar por “adesivos”. Os que
permaneceram fieis às instituições
depostas foram poucos, e menos
ainda os que de imediato comba-
teram a nova situação com armas
de guerra ou razões de inteligên-
cia. Preferiam lançar alcunhas aos
tribunos da plebe, ridicularizar
com acintes a rusticidade de suas
feições e compostura, ou o mau
gosto dos vestidos de suas espo-
sas… Seguiam, afinal, confiados
no fim fatídico da República vatici-
nado por José Luciano de Castro
no conselho que se tornou céle-
bre: “Não se mexam, nem lhe
mexam...”.[5]
1. As incursões da Galiza
Foi diante desse quadro, muito
sombrio para o ideário monárqui-
co, que se resistiu na Rotunda e
que Paiva Couceiro lançou, em 3
de Outubro de 1911, a primeira
incursão a partir da Galiza. Ainda
Quando se deu a implantação da República, muitos dos monárquicos influentes dos partidos dinásticos entraram a aderir sem complexos aos n o v o s p a r t i d o s , constituindo aquilo a que os republicanos mais intransigentes passaram a
designar por “adesivos”.
que desencadeada por uma hoste
essencialmente constituída por
monárquicos, não é de estranhar,
pois, que venha a ser realizada em
obediência a um propósito plebis-
citário.
O processo tinha sido aberto por
Paiva Couceiro, em 18 de Março
de 1911, ao apresentar uma
“Proposta ao Governo Provisório”.
Encont ra-se naquela Proposta
alguma expressão de apreço pelo
regime deposto? - Longe disso.
Couce iro pugnou a l i pe la
“organização, com novas bases”,
do “serviço junto ao chefe do
Estado”, pela continuação da
“obra de saneamento dos costu-
mes políticos, dando seguimento
aos inquéritos já iniciados, promo-
vendo outros que se aconselhem”,
propondo apenas, e no essencial,
que o Governo Provisório pusesse
fim ao frenesim legislativo, se
limitasse a restabelecer a ordem,
as liberdades públicas, e fizesse
imediatamente eleições livres.[6]
As eleições realizaram-se em 28
de Maio de 1911, mas Paiva Cou-
ceiro não reconheceu a validade
do acto. Na sua perspectiva, man-
tinham-se “de facto suspensas as
garantias e liberdades públicas –
liberdade de imprensa, de propa-
ganda e reunião”. Dirigiu-se então
ao Ministro da Guerra para lhe
comunicar que se demitia do Exér-
cito e que ia para a Galiza coman-
dar as tropas que dariam combate
às instituições vigentes. Acto con-
tínuo, pediu intervenção e apoio
aos seus camaradas de armas.[7]
Chegado à Galiza, e como circula-
vam notícias segundo as quais
Afonso XIII teria já discutido com
a Inglaterra a possibilidade de
uma intervenção espanhola em
Portugal,[8] desmentiu que aos
portugueses sob o seu comando
se tivessem juntado espanhóis.[9]
Por fim, dirigindo-se aos soldados,
aos reservistas e ao povo, concla-
mou à revolta sob “a bandeira azul
e branca da Pátria Livre”.[10]
Paiva Couceiro, que até aí não
expressara qualquer reivindicação
monárquica, vai levantar a bandei-
ra azul e branca significativamente
despojada de coroa Real,[11] expli-
cando que o fim do levantamento
que dirige é o de “promulgar ape-
nas as medidas indispensáveis ao
estabelecimento de um regimen
de Ordem e de Liberdade egual
para todos, dentro do qual se rea-
lizem eleições em termos de tra-
duzirem, de facto, a expressão da
Vontade Nacional”.[12]
Ainda que a solução plebiscitária
não fosse inédita,[13] as tropas
comandadas por Couceiro não tro-
peçaram apenas nas forças milita-
res que lhe saíram ao caminho. O
rei deposto, D. Manuel II, colocan-
do de forma clara a “questão basi-
lar da sua candidatura à coroa”,
pronunciou-se abertamente contra
o “carácter neutralista” daquele
movimento, e o próprio rei de
Espanha fez saber que lhe agrada-
ria pura e simplesmente uma res-
tauração. Mas o comandante Paiva
Couceiro não transigiu: “negava-
se a ser um restaurador de dinas-
tias. A sua espada não a punha ao
serviço exclusivo de um rei, mas
da Nação. A esta e só a esta cabia
o direito de escolher o soberano”.[14] E foi assim que a incursão de
Outubro se lançou sem substan-
ciais apoios externos, com uma
organização revolucionária confi-
nada às províncias do norte do
país, quase exclusivamente prepa-
rada pelos padres e por notáveis
locais.
O fracasso militar vai forçar Paiva
Couceiro a alterar a sua estraté-
gia. Diligencia então no sentido da
restauração monárquica, reunindo
esforços através de um acordo
entre os dois ramos da Casa de
Bragança. Obtido o acordo no
“Pacto de Dover”, com D. Manuel
II a ser reconhecido como o único
candidato ao trono,[15] inscreveu a
coroa na sua bandeira e partiu,
em Julho de 1912, para segunda
4 O DEBATE
A Monarquia do Norte
As eleições realizaram-se em 28 de Maio de 1911, mas Paiva Couceiro não reconheceu a validade do acto. Na sua perspectiva, mantinham-se “de facto suspensas as garantias e liberdades públicas – liberdade de imprensa, de propaganda e reunião”. Dir igiu-se então ao Ministro da Guerra para lhe comunicar que se demitia do Exército e que ia para a Galiza comandar as tropas que dariam combate às instituições vigentes. Acto c o n t í n u o , p e d i u intervenção e apoio aos seus camaradas de armas.
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15 JUNHO 2011 O DEBATE 5
A Monarquia do Norte incursão a partir da Galiza com o
explicito propósito de restaurar a
Monarquia da Carta.[16]
2. O «Programa de Richmond»
Derrotados no segundo raid, os
monárquicos dispersaram pelos
diversos locais de exílio - Paris,
Lovaina, Londres..., com Paiva
Couceiro a recolher-se a S. Jean
de Luz. Ficara definitivamente
consolidado o regime republicano?
Haviam falido as últimas esperan-
ças monárquicas? Quando e como
estalaria de novo a revolta?
Carlos Malheiro Dias, encarregado
pelo Correio Paulistano de reunir
depoimentos acerca do estado em
que as falhadas incursões deixa-
ram a causa monárquica, vai tra-
tar detidamente aquelas questões.
Chamando a depor “um anónimo
mas assíduo frequentador de Rich-
mond”, este ter-lhe-á dito que as
conspirações já realizadas, e a
realizar, podiam ser divididas em
três períodos, segundo a classifi-
cação histórica de Augusto Comte:
(1º) o teológico ou dogmático,
(2º) o metafísico e (3º) o positivo.[17]
A 1ª incursão, feita em obediência
ao “programa plebiscitário” de
Couceiro, inscrevera-se no período
teológico ou dogmático. Tendo
sido baseada no primado da sobe-
rania popular, ao arrepio da men-
talidade predominante no entoura-
ge de D. Manuel II, para mais feita
de fora para dentro, sem ligação
ou coordenação operacional com
as forças internas e sem substan-
ciais apoios materiais, estava des-
tinada a encerrar-se num desas-
tre.
A 2ª incursão correspondia ao
período metafísico. Ainda que fir-
mada na união dinástica estabele-
cida pelo «Pacto de Dover», reve-
lara-se exaustiva de dinheiro e de
dedicação, mas incapaz de obter a
vitória pela ausência de uma ver-
dadeira coordenação operacional
com a frente interna.
Era necessário ext rair lições
daqueles fracassos e, sopesando
com realismo as condições da luta
política criadas pela implantação
da República, entrar no período
positivo das conspirações. Eis o
essencial do “Programa de Rich-
mond”: um futuro movimento res-
tauracionista teria de f irmar-se na
aspiração de paz, de ordem e de
disciplina associado ao regime
monárquico tradicional. Se bem
que não se devessem descurar os
factores internacionais – e a reve-
lação do “programa” terminava
com um longo excurso histórico ao
papel das intervenções externas,
no fazer e desfazer das políticas
dos Estados desde o último quar-
tel do século XVIII –, a acção a
tomar teria de ser organizada e
executada internamente, aprovei-
tando o descalabro provocado pela
incompetência e pelos erros dos
republicanos. Entre os erros a
aproveitar, além daqueles que a
inexperiência e a corrupção dos
governantes não conseguiriam
evitar, [18] destacavam-se os
excessos jacobinos na questão
religiosa já cometidos pelo Gover-
no Provisório na publicação da
legislação anti-religiosa e anti-
clerical.
Mas ao movimento restauracionis-
ta não bastariam os erros cometi-
dos pelos adversários. A reinstau-
ração do trono teria de surgir
como acção positiva e cientifica-
mente fundada; era necessário
estudar e “gizar um grande pro-
grama de realizações - não de
utopias”.
O processo adivinhava-se longo,
mas não durou muito até que o
programa de Richmond fosse pos-
to em perigo pela impaciência de
alguns. Entre Abril e Julho de
1913, terá havido conjugação de
esforços de monárquicos e sindi-
calistas em algumas intentonas ou
revoltas e, em 21 de Outubro, ter-
se-á mesmo descoberto um com-
plot monárquico na sequência da
Mas ao movimento restauracionista não bastar iam os erros c o m e t i d o s p e l o s a d v e r s á r i o s . A reinstauração do trono teria de surgir como acção positiva e cientificamente fundada; era necessário estudar e “gizar um grande programa de realizações - não de utopias”.
vinda de João de Azevedo Couti-
nho a Portugal.[19] A intentona
resumiu-se a um assalto ao Museu
da Revolução, instalado no edif ício
do Quelhas, onde se encontravam
“os batéis em que embarcara na
Ericeira a família real, a carabina e
a pistola de que se tinham servido
os assassinos de D. Carlos e D.
Luís Filipe”.[20] Seguiu-se uma
reacção de rua em defesa do regi-
me instituído, com assaltos às
redacções e tipografias identif ica-
das com os monárquicos; sendo
presos, entre outros, o conde de
Mangualde e Moreira de Almeida,
director de O Dia, e suspensos os
jornais A Nação, O Universal, e O
Dia.[21]
3. O ascenso monárquico
O “programa de Richmond” só
teve começo de aplicação em
1914, sendo dois os acontecimen-
tos que, intimamente ligados,
explicam a viragem: a amnistia de
1914 e a criação do “Integralismo
Lusitano”.
Foi, na verdade, à sombra da acti-
vidade proselitista desenvolvida
pelo Integralismo Lusitano, alicer-
çada em ampla renovação político-
cultural e geracional[22] que, de
1914 em diante, se assistiu a um
sensível crescimento da influência
monárquica. E foi sob a sua
influência e direcção que se deram
os últimos e decisivos impulsos no
sentido da tentativa restauracio-
nista de 1919, no Norte e em
Monsanto.
A expressão “Integralismo Lusita-
no” tinha sido cunhada por Luís de
Almeida Braga na revista Alma
Portuguesa, editada na Bélgica,
em 1913. Naquela revista, produ-
zida por estudantes monárquicos
exilados, o “Integralismo Lusitano”
designava um projecto mais esté-
tico-filosófico do que político. Mas
era em seu redor que se reuniam
os ex-combatentes das incursões
da Galiza, afinal os mais activos e
empreendedores sobejos monár-
quicos que a República não
“adesivara”: o manuelismo mais
t radic ionalista, o legit imismo
miguelista, e o que sobrava do
nacionalismo católico formado nos
últimos anos do rotativismo do
regime da Carta.
Quando aqueles monárquic os
regressaram a Portugal, na
sequência da amnistia de 1914,
vêm encontrar uma República
crescentemente divorciada dos
republicanos que nela tinham visto
a via da regeneração portuguesa.
Foi rápido e natural o encontro
entre aqueles monárquicos não
“adesivados” e os republicanos
descontentes, depressa se trans-
formando aquilo que era apenas
um programa estético-filosófico,
num índice de soluções políticas.
É esse índice, sob o título
“monarquia tradicional, orgânica,
anti-parlamentar”, que vem a ser
apresentado no lançamento da
revista Nação Portuguesa, em
Abril de 1914, agregando, pois,
jovens monárquicos que não se
reconheciam na Monarquia depos-
ta (entre os quais se destacavam
Hipólito Raposo, Almeida Braga,
Alberto Monsaraz e Pequito Rebe-
lo), e jovens republicanos conver-
tidos ao monarquismo por não se
reconhecerem no regime republi-
cano recém-implantado (como
António Sardinha, João do Amaral
ou Domingos Garcia Pulido). Nas-
c ia o Integralismo Lusitano
enquanto movimento polít ico-
cultural.
O programa por eles apresentado,
em 1914, não era verdadeiramen-
te um programa político, era antes
um índice no qual pretendiam ali-
cerçar um vasto programa de
estudos sobre a realidade portu-
guesa. Os integralistas lusitanos
começavam, assim, por agarrar a
componente não estritamente
política do “programa de Rich-
mond”; estava por realizar, af ir-
mavam, um longo trabalho de res-
tauração monárquica nas inteli-
6 O DEBATE
A Monarquia do Norte
É esse índice, sob o título “monarquia tradicional, o r g â n i c a , a n t i -parlamentar”, que vem a ser apresentado no lançamento da revista Nação Portuguesa, em Abril de 1914, agregando, pois, jovens monárquicos que não se reconheciam na Monarquia deposta (entre os quais se destacavam Hipólito Raposo, Almeida Braga, Alberto Monsaraz e Pequito Rebelo), e jovens republicanos convertidos ao monarquismo por não se reconhecerem no regime republicano recém-implantado (como António Sardinha, João do Amaral ou Domingos Garcia P u l i d o ) . Nas c ia o Integra lismo Lusitano enquanto mov imento político-cultural.
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15 JUNHO 2011 O DEBATE 7
A Monarquia do Norte gências. Do ponto de vista doutri-
nário, a voz dos integralistas
representava uma terceira posição
no campo monárquico, distinta,
t a nt o do s “ mi g u e l i s t a s -
t rad ic iona l istas”, c omo dos
“pedristas-constitucionais”. Ainda
que ideologicamente se afirmas-
sem parentes próximos dos pri-
meiros, separavam-se deles na
“questão dinástica”; aceitavam os
fundamentos históricos da posição
legitimista mas, baseando-se na
doutrina escolástica seiscentista
do poder régio (doutrina do pacto
de sujeição), consideravam D.
Manuel II, em 1914, como o rei
que melhor servia o interesse
nacional. Dos segundos, separava-
os a doutrina e o projecto político.
Esta emergência de uma corrente
doutrinariamente tradicionalista,
mas acatando o rei deposto, D.
Manuel II, veio provocar abalo e
acrescida dissensão ent re os
monárquic os. Porém, se os
monárquicos “constitucionais” ini-
cialmente os temeram, pela disso-
nância ideológica que amiúde fri-
savam, também cedo perceberam
a sua utilidade no terreno da luta
político-ideológica. O ramo dinásti-
co pedrista, até aí muito desacre-
ditado, tinha doravante combaten-
do do seu lado alguns dos jovens
intelectualmente mais brilhantes
das Academias.
Por outro lado, os integralistas
lusitanos recuperavam, em novas
bases, dando-lhe novo fôlego, o
projecto de “reaportuguesamento
de Portugal” lançado ainda em
vida de Oliveira Martins pelo grupo
dos “Vencidos da Vida”. Assim que
o velho Ramalho Ortigão, entre-
tanto regressado a Portugal, se
inteirou dos propósitos integralis-
tas, quis conhecer o seu mais
categorizado e reconhecido líder,
Hipólito Raposo.[23] Quando João
do Amaral solicitou a Ramalho
Ortigão colaboração para o jornal
Restauração, recebeu em resposta
a célebre Carta de um Velho a um
Novo - num emocionado “render
da guarda”, em representação da
el ite dos ve lhos, Rama lho
“inclinava-se rendidamente à elite
dos novos.”[24]
Na sequência da entrada em fun-
ções do ministério do velho gene-
ral Pimenta de Castro, em 25 de
Janeiro de 1915, era já visível o
ascenso monárquico e o papel que
nele vinha sendo desempenhado
pelos integralistas. O seu trabalho
propagandíst ico e organizativo
junto das juventudes monárquicas
académicas era já bem nítido,[25] e
é a própria imprensa republicana
quem, ao assinalar o súbito
“tortulhar” dos monárquicos, vê
com preocupação a agitação res-
tauracionista, em especial a activi-
dade de sen vo lv i da p e l o s
“cachopos monárquicos”. Em fins
de Abril e princípios de Maio de
1915, alguma imprensa republica-
na denunc iava mesmo uma
«curiosa monarquite» - assistia-se
a uma correria de republicanos
inscrevendo-se nos novos centros
monárquicos, podendo estar ali o
prenúncio de uma restauração
iminente.[26]
Com os democráticos a retorna-
rem ao poder, em 1915, deu-se
de imediato o assalto às instala-
ções da Liga Naval, quando ali
decorriam as conferências integra-
listas acerca da “Questão Ibérica”.
Os integralistas lusitanos que, até
então, insistiam sobretudo na
necessidade de restaurar a monar-
quia nas inteligências, viram-se de
imediato guindados a uma noto-
riedade paralela à dos mestres de
que se sentiam herdeiros (a Gera-
ção de 70, também sofrera a proi-
bição das Conferências do Casino
Lisbonense). Estava finalmente
ultrapassado o seu rubicão no
caminho de um activo intervencio-
nismo político. Quando Portugal
entrou na Grande Guerra, tornam
público o primeiro manifesto políti-
co assinado pela Junta Central
(em Abril de 1916, pouco depois
Por outro lado, os integra listas lusitanos recuperavam, em novas bases, dando-lhe novo fôlego, o projecto de “reaportuguesamento de Portugal” lançado ainda em vida de Oliveira Martins pelo grupo dos “Vencidos da Vida”. Assim que o velho Ramalho Ortigão, entretanto regressado a Portugal, se inteirou dos propósitos integralistas, quis conhecer o seu mais categorizado e reconhecido líder, Hipólito Raposo.
da declaração de guerra da Ale-
manha), depressa se transforman-
do de movimento de ideias em
movimento político organizado: o
Estatuto da organização foi publi-
cado em Novembro; as Juntas
Provinciais estão organizadas pelo
final do ano; e, em Fevereiro de
1917, surgia o órgão A Monarquia
– diário integralista da tarde. O
ascenso monárquico manter-se-á
muito vivo até que a revolta mili-
tar comandada por Sidónio Pais,
em 5 de Dezembro de 1917, afas-
tou o Partido Democrático do
poder e destituiu o Presidente da
República, Bernardino Machado.
4. No Sidonismo «com o osso
da minoria»
O Sidonismo nasceu de uma con-
jura essencialmente republicana,
dirigida contra o Partido Democrá-
tico, com o f im de introduzir o
princípio da dissolução parlamen-
tar na Constituição. Tendo o com-
plot nascido no seio do partido
unionista, e desabrochado nas
sessões secretas do parlamento,
veio a ter também por si o evolu-
cionismo - a força remanescente
do regime - ainda que, velada ou
abertamente, hostilizasse o vence-
dor do 5 de Dezembro.
O movimento acabou por organi-
zar-se depois isolada e revolucio-
nariamente. Chegado ao poder,
porém, Sidónio Pais apenas reco-
lherá o apoio do Centro Católico e
da generalidade dos monárquicos.
Os primeiros, por receberem a
promessa de satisfação das suas
reclamações na “questão religio-
sa”, os segundos, no essencial
pelas mesmas razões e por acata-
rem ordens de D. Manuel II.
Como é que os integralistas lusita-
nos reagiram ao Sidonismo? Ainda
na fase da sua instauração, em 14
de Janeiro, enquanto Sidónio Pais
ia sufocando as intentonas que o
procuravam pôr em causa, Antó-
nio Sardinha saudou-lhe a vitória
sobre uma revolta dos marinhei-
ros,[27] chegando mesmo a afir-
mar, logo adiante, que o Presiden-
te Sidónio estava a fazer “uma
demonstração interessante do
Integralismo”.[28] Três dias depois,
a 17, Sardinha ainda prossegue na
mesma toada mas, a 19, era já
tempo de ir explicando aos mais
precipitados ou ingénuos: “Não se
assustem os republicanos que o
senhor Sidónio Pais não derruba a
república. Não se assustem os
monárquicos, porque ele também
a não consolida”; “Deste modo,
sem derrubar a república, nem a
consolidar, o Sr. Sidónio Pais não
é uma solução. É uma etape a
mais, uma experiência última,
como que última hipótese”.[29]
A situação era, pois, essencial-
mente caracterizada por um tran-
sitório empate político, propício à
conquista de posições junto do
poder. E aos primeiros sinais de
simpatia da parte dos sidonistas,
os integralistas, não se mostraram
mal agradecidos, retribuindo com
diversas colaborações, como o
projecto do Casal de Família
(baseado na Memória de Xavier
Cordeiro acerca da Vinculação), a
lei eleitoral, e mesmo um projecto
de Constituição Política.[30] E não
deixaram de fazer coro com o
Centro Católico na questão religio-
sa. Luís de Almeida Braga, por
exemplo, saudou efusivamente
Sidónio Pais por se ter finalmente
trancado “a lei iníqua que atirava
para longe das dioceses alguns
dos nossos mais eminentes prela-
dos e afastava outros párocos da
sombra querida do seu presbité-
rio”, não perdendo a oportunida-
de, aliás, de sugerir a conveniên-
cia de um rápido reatamento das
relações diplomáticas com o Vati-
cano.[31]
Os impulsos de simpatia gerados
por Sidónio Pais junto das massas
populares, porém, rapidamente o
fizeram entrar num caminho de
regime pessoal, que procurará
legitimar substituindo o parlamen-
8 O DEBATE
A Monarquia do Norte
O Sidonismo nasceu de u m a c o n j u r a e s s e n c i a l m e n t e republicana, dirigida contra o Partido Democrático, com o fim de introduzir o princípio da dissolução p a r l a m e n t a r n a Constituição. Tendo o complot nascido no seio do partido unionista, e desabrochado nas sessões secretas do parlamento, veio a ter também por si o evolucionismo - a força remanescente do regime - ainda que, velada ou abertamente, hostilizasse o vencedor do 5 de Dezembro.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 9
A Monarquia do Norte tarismo da “República Velha” pelo
pre s ide nc ia l is mo de u ma
“República Nova”.[32]
Em 10 de Março de 1918, o
“part ido monárquico” aprovou
uma moção dando oficialmente
auxílio ao Governo de modo a
garantir-lhe a maioria nas eleições
de 28 de Abril. Para si, os monár-
quicos apenas pretendiam “uma
representação condigna”. Fazem-
se as eleições, mas os partidos
republicanos – Democrático, Evo-
lucionista e Unionista – escapam-
se pela porta da abstenção.
Em 15 de Julho, o Parlamento
abriu com uma confortável maioria
do Governo, com os trinta e um
deputados monárquicos sentados
à direita da sala e os integralistas
distribuídos pelas últimas cadei-
ras. Sidónio Pais, no seu discurso
de abertura da sessão legislativa,
aproveitou para recordar que
“eleito e proclamado o presidente
da República e constituído o Con-
gresso”, o país entrava “em plena
normalidade const itucional” –
começava a «República Nova».
Apesar de, como explicou Luís de
Magalhães, os monárquicos terem
dado “ao sidonismo a carne da
maioria, ficando para si com o
osso da minoria”,[33] Sidónio Pais
não deixou de expor ali os seus
mais profundos sentimentos repu-
blicanos: “é tão grosseiro o erro
que se comete supondo a revolu-
ção de Dezembro reaccionária
(isto é: monárquica), como supon-
do-a demagógica (afecta ao Parti-
do Democrático). Fui sempre e
sou republicano; por isso procurei
manter e consolidar a república.
(...) Se elementos republicanos
não encarnassem em si as aspira-
ções do país, a revolução poderia
vir a aparentar a forma de uma
restauração monárquica”.
Se bem que as rédeas da gover-
nação parecessem firmemente
tomadas, ali mesmo se começou a
revelar o propósito absurdo de
fazer residir a viabilidade política
do novo regime num pacto esta-
belecido entre o ditador republica-
no e os dirigentes monárquicos. O
apelo de Sidónio Pais às forças
republicanas vinha tarde de mais.[34]
Os monárquicos ainda colabora-
ram em deter todas as manobras
conducentes à subversão do regi-
me e não deixam de se regozijar
ao verem restabelecidas as rela-
ções entre a República e a Santa
Sé. Uma semanas antes da chega-
da do núncio de Roma, Sidónio
Pais, em visita a Elvas, é recebido
na Câmara Municipal. António Sar-
dinha profere um amistoso discur-
so de saudação.[35] Em resposta,
Sidónio Pais reacende publicamen-
te o seu intenso republicanismo,
afirmando que “é tempo de findar
o equívoco monárquico”. A respos-
ta de António Sardinha surgiu nas
páginas de A Monarquia, concluin-
do: “...o senhor Sidónio Pais vito-
ria assim a sua morte política. O
equívoco é só de sua excelência,
que tendo vencido uma república
feita por republicanos, a pretende
agora ressuscitar, fazendo-a com
monárquicos”[36]
Dão-se como bem documentados
os últimos meses da presidência
de Sidónio Pais. Em crescente iso-
lamento político, Sidónio terá
caminhado hirto ao encontro das
balas assassinas, ficando a pairar
as palavras desoladas que terá
proferido num dos últimos Conse-
lhos de Ministros, após a tentativa
frustrada de 6 de Dezembro
(numa cerimónia militar, um mari-
nheiro disparou sobre ele, mas
sem o atingir), em resposta à cha-
mada de atenção para a morte
que o rondava: “Ninguém deseja
mais a minha morte do que eu!”.[37]
5. «A Monarquia ou a morte!»
Morto Sidónio Pais, em 14 de
Dezembro de 1918, os integralis-
tas depressa descobrem a situa-
ção política propícia à restauração
Em 15 de Julho, o Parlamento abriu com uma confortável maioria do Governo, com os trinta e u m d e p u t a d o s monárquicos sentados à direita da sala e os integralistas distribuídos pelas últimas cadeiras. Sidónio Pais, no seu discurso de abertura da s e s sã o l e g is l a t i va , aproveitou para recordar que “eleito e proclamado o presidente da República e constituído o Congresso”, o país entrava “em plena n o r m a l i d a d e constitucional” – começava a «República Nova».
monárquica. Em pleno Parlamen-
to, enquanto o corpo do Presiden-
te repousava inanimado sob a
nave dos Jerónimos, foi António
Sardinha quem equacionou as
consequências políticas do trágico
momento. Do seu ponto de vista,
apresentavam-se esgotadas as
modalidades que o regime republi-
cano possibilitava: o parlamenta-
rismo e o presidenc ialismo.
Segundo António Sardinha, a ins-
trutiva experiência de ditadura
carismática, “saída de uma caval-
gada de cadetes e alferes”, fora
motivada por “uma poeira revolta
de indivíduos que os ventos do
caminho manobravam a seu bel-
prazer”... Sidónio Pais impusera-
se pelo desejo de ordem, de har-
monia e de estabilidade. “Ora a
Ordem – explicava Sardinha - não
é a repressão. E, porque não nas-
ce espontaneamente dos factos
em si, decerto bem precária ela
seria se a sua existência andar
ligada à existência sempre frágil
de quem quer que seja o seu
mantenedor” (...) “A democracia
de Lisboa afundava-se vítima do
demagogismo, seu cancro estrutu-
ral. Encarnando na sua dura
necessidade esta lei fatal da histó-
ria, Sidónio Pais representou a
ditadura inevitável em todo o regi-
me sem coesão nem disciplina
(...) “Montou Sidónio Pais um dia
a cavalo e, rapidamente, hei-lo
transitando duma penumbra mais
que discreta para os destaques
ruidosos da notoriedade. Logo um
equívoco lamentável se estabele-
ceu e esse equívoco levou Sidónio
Pais à sepultura”. (...) “- E agora?”
– interrogava por fim Sardinha -
“Agora? Agora como sempre, a
Monarquia ou a morte!“ (...) “Não
é o poder que rompe do acaso,
engendrado, como um cão, no
encontro dum sabre com os favo-
res da rua. Esse poder, ou é Afon-
so Costa ou é Sidónio Pais. Oligar-
quia jacobina ou magistratura
consular, se uma atenua os efeitos
da outra, não os remedeia, porém.
A tara da República é o demago-
gismo e a República não se melho-
ra senão destruindo-se. Tentou
melhorá-la Sidónio Pais. Com isso
não fez mais do que armar o braço
que o abateu. Até na sua morte
Sidónio Pais morreu como republi-
cano. 0 direito de César é a sua
popularidade. Na hora em que
Napoleão foi vencido, na mesma
hora caiu. Na hora em que a Sidó-
nio faltassem os aplausos do
Fórum, nessa hora o seu direito
haveria caducado. E assim, para o
povo o prorrogar indefinidamente,
num regime de opinião em que
tudo é surpresa e interinidade,
Sidónio Pais caminhou sem hesita-
ção para as balas do seu assassi-
no, entregue apenas às forças
cegas de uma estrela, depressa
eclipsada” (...) “A morte de Sidó-
nio Pais foi a consagração supre-
ma do individualismo. Morreu
como um varão da Antiguidade, -
morreu como um personagem
máximo de D’Annunzio, na con-
cepção naturalista dos heróis de
Carlyle. Mas da sua acção o que
ficou? O que ficou da sua coragem
estóica? O que ficou do seu filan-
tropismo cismador? Somente a
memória do seu nome e com ela,
na boca de todos, esta pergunta
tremenda: «E agora?»”.[38]
No dia 15 de Janeiro, o governo
assumia a plenitude do poder exe-
cutivo nos termos da Constituição
de 1911 e, dois dias depois, pro-
cedia-se no Congresso à eleição
presidencial do almirante Canto e
Castro. Ou seja, liquidado Sidónio
Pais, três dias bastaram para que
os sidonistas da véspera deitas-
sem por terra o presidencialismo
esboçado na “República Nova”.
Era uma clara vitória da corrente
parlamentarista do regime republi-
cano, mas não ficava encerrada a
questão. É então que o poder das
Juntas Militares se vai afirmar em
defesa da formação de um
“governo de força”, capaz de
10 O DEBATE
A Monarquia do Norte
No dia 15 de Janeiro, o governo assumia a plenitude do poder executivo nos termos da Constituição de 1911 e, dois dias depois, procedia-se no Congresso à eleição presidencial do almirante Canto e Castro. Ou seja, liquidado Sidónio Pais, três dias bastaram para que os sidonistas da véspera deitassem por terra o presidencialismo esboçado na “República Nova”.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 11
A Monarquia do Norte impedir o retorno ao poder dos
partidos políticos da “República
Velha”.
Em 23 de Dezembro, após a desis-
tência de Nunes da Ponte, o presi-
dente Canto e Castro chamou
Tamagnini Barbosa à chefia do
governo. Saiu um governo remo-
delado, mas conservador e repu-
blicano.
No mesmo dia, as Juntas Militares
de Norte e do Sul mantêm a rei-
vindicação de um “governo de for-
ça”, com o coronel João de Almei-
da a pronunciar-se e a concentrar
em Monsanto algumas unidades
da guarnição de Lisboa, e a Junta
Militar do Norte a organizar de
imediato uma Junta Governativa
Militar. Mas, enquanto o coronel
João de Almeida retrocede em Lis-
boa, no Porto é o coronel Silva
Ramos, principal figura da Junta
Militar do Norte, quem declara dis-
solvida a Junta Governativa, afir-
mando que recebera a promessa
do presidente da República de que
as suas reivindicações seriam
satisfeitas.[39]
Em 8 de Janeiro, Tamagnini Bar-
bosa apresenta novo gabinete
perante as Câmaras. Altearam-se
as vozes de Cunha Leal (no parla-
mento) e de Machado Santos (no
Senado), acusando o chefe do
governo de cedências às Juntas
Militares. Estava já em marcha um
movimento revolucionário em
defesa da “República Velha”, que
se entendia posta em perigo pela
capitulação do governo ante as
reivindicações das Juntas Milita-
res. A revolta militar eclodirá na
noite do dia 10, quase simultanea-
mente em Lisboa (Castelo de S.
Jorge e Arsenal de Marinha), Covi-
lhã e Santarém. Em Lisboa e Covi-
lhã os revoltosos foram rapida-
mente dominados. Tal não aconte-
ceu aos militares que, na madru-
gada do dia 11, se pronunciaram
em Santarém. No essencial, os
revoltosos pediam ao presidente
da República a formação de um
“governo de concentração republi-
cano” onde ficassem representa-
dos os partidos da “Republica
Velha”.
6. Proclamando a “Monarquia
do Norte”
Com a reacção dos partidos a
ganhar expressão militar em San-
tarém, para os integralistas soara
a hora de agir. Enquanto no sul
predominavam os republicanos
sidonistas, no norte do país era
nítido o predomínio dos monárqui-
cos. As Juntas Militares, que
haviam sido criadas com o propó-
sito de impedir o retorno do parla-
mentarismo, teriam agora de ade-
rir ao propósito restauracionista O
Governo ainda terá chegado a dis-
cutir a possibilidade de substituir
alguns comandos na capital, mas
logo que é dada como falhada a
tentativa de constituição de um
governo militar em Lisboa, é o
próprio Hipólito Raposo quem redi-
ge, em 14 de Janeiro, com Rui da
Câmara e José Rino Fróis, na Pas-
telaria Marques, um memorando
em que o Lugar-Tenente de D.
Manuel II, Aires de Ornelas, vem a
escrever a expressão inglesa «go
on!» que o rei lhe dera um dia
para, em certas condições, se
poder levantar em Portugal a ban-
deira da Monarquia.
Os integralistas já só necessita-
vam de um documento rubricado
pelo Lugar-Tenente do rei para
vencer as hesitações que ainda
houvesse entre os comandantes
militares do Sul, do cerco de San-
tarém e do Norte.
Os revoltosos de Santarém só vêm
a depor as armas no dia 15,
perante o tenente Teófilo Duarte.
Mas o papel que Hipólito Raposo
apresentou na véspera ao conse-
lheiro Aires de Ornelas dizia
assim:
“MEMORANDO”
1º Sobre a possibilidade do assen-
timento de V. Ex.a para um movi-
Os integralistas já só necessitavam de um documento rubricado pelo Lugar-Tenente do rei para vencer as hesitações que ainda houvesse entre os comandantes militares do Sul, do cerco de Santarém e do Norte.
mento militar de carácter monár-
quico.
2º Sobre o assentimento de V.
Ex.a para um movimento militar,
promovido por of iciais monárqui-
cos e republicanos, para propor ao
País a fórmula do plebiscito sobre
o regime político.
3º Qual seja a opinião de V. Ex.a,
em qualquer das hipóteses, sobre
o perigo de uma intervenção
estrangeira, obstáculo que não
deteve os democráticos para a
organização e execução do actual
movimento revolucionário.
4º Sobre a opinião de V. Ex.a em
caso de vitória, acerca do reco-
nhecimento pelas nações estran-
geiras da nova ordem de coisas
políticos, levando em conta a
acção diplomática de El-Rei e dos
seus amigos junto do governo
inglês e o seu notável prestigio
junto dos outros governos aliados.
5º No caso do seu assentimento,
indicação dos nomes que na opi-
nião de V. Ex.a devem constituir a
Junta do Governo Nacional, em
nome de El-Rei.
6º Sem que tal facto importe
menos crédito à palavra de V. Ex.a
e à seriedade do portador, seria
conveniente que as opiniões a
expor fossem dadas por escrito,
para assim lhes ser atribuído todo
o valor que merecem pelos ele-
mentos de acção que precisam de
ser consultados”.
Aires de Ornelas escreveu à mar-
gem do documento:
“Go on!
Palavras d’El-Rei
Não vejo razão para plebiscito
Não julgo difícil o reconhecimento
Aires de Ornelas
14 Jan. 1919”.[40]
De imediato, e enquanto em Lis-
boa, sidonistas de ontem, demo-
cráticos, unionistas, e socialistas,
se iam unindo ao governo de
Tamagnini Barbosa, Paiva Coucei-
ro seguia para o Porto onde o
aguardava terreno mais propício.
A Junta Central do Integralismo
Lusitano reuniu no dia 17 à noite.
A decisão tomada é a de António
Sardinha e Luís de Almeida Braga
partirem para o Porto, investidos
com a missão de “procurar suster
o pronunciamento, até se ultima-
rem as ligações que viriam dar-lhe
maior carácter de unanimidade em
Lisboa e na Província”.[41]
António Sardinha chegou ao Porto
na manhã do dia 18, na véspera
do pronunciamento, hospedando-
se no Hotel Borges; “ - Isto é um
conto das Mil e Uma Noites!”, terá
logo exclamado perante o espec-
táculo da mais absoluta facilidade
revolucionária que acabava de
encontrar. Pela tarde avistou-se
com Paiva Couceiro, expondo-lhe
os motivos da sua viagem, a con-
veniência de aguardar mais uns
dias para que o pronunciamento
das tropas, em Lisboa e no Porto,
pudesse ser simultâneo”. Couceiro
alegou que não havia outra opor-
tunidade, “não só porque, em Lis-
boa, os comandantes militares,
com as suas hesitações, continua-
riam no mesmo pé em que se
haviam mantido em seguida à
morte de Sidónio, como, já conhe-
cedor o Governo do que se passa-
va no Porto, não tardariam a ser
substituídas por ele todas as auto-
ridades militares e civis”. No dia
seguinte - dia da proclamação da
Monarquia - chegavam ao Porto,
em comboio especial, acompanha-
dos pelo ministro da Guerra da
República, Silva Basto, os recém-
nomeados governador civil e o
comissário de polícia, respectiva-
mente, António Pais e Cristóvão
Aires. Foram devolvidos a Lisboa
sem tomar posse. Estava já has-
teada no Monte Pedral a bandeira
azul e branca.[42] A restauração
declarava em vigor a Carta Consti-
tucional e indicava como chefes:
Luís de Magalhães, Sollari Allegro,
Conde de Azevedo, Visconde do
Banho, Coronel Silva Ramos. A
12 O DEBATE
A Monarquia do Norte
“Go on!
Palavras d’El-Rei
Não vejo razão para plebiscito
Não julgo dif íc il o reconhecimento
Aires de Ornelas
14 Jan. 1919”.
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15 JUNHO 2011 O DEBATE 13
A Monarquia do Norte Junta Governativa do Reino ficava
sob o comando de Paiva Couceiro.
Logo que foi conhecida a procla-
mação, o Integralismo Lusitano
manifestou aceitar a nova ordem,
agarrando “a parte prática e posi-
tiva da obra restauradora” - Pri-
mum vivere, deinde philosophare,
era o princípio que adoptavam.[43]
Da tentativa restauracionista fica-
rá a ecoar o pensamento e as
directivas políticas adoptadas pela
Junta Governativa do Reino.[44]
Luís de Magalhães, sua figura polí-
t ic o- legislat iva determinante,
apontou duas razões fundamentais
para que aquela Restauração se
fizesse pela reposição da ordem
política estabelecida pela Carta
deposta em 1910: em primeiro
lugar, porque se entendia a Repú-
blica como “puro hiato político”,
fruto de uma “usurpação violenta”
jamais sancionada; em segundo
lugar, porque se pretendia evitar a
ditadura como regime de transição
- querendo fazer-se uma restaura-
ção, não uma revolução, teriam
que evitar a pratica dos republica-
nos de “estabelecer como lei bási-
ca da sociedade o arbítrio pessoal
dos governantes”.[45] O próprio
Luís de Magalhães tudo virá a
resumir em imagem singela: havia
que “atar a corda pelas pontas
quebradas”.
O Norte estava dominado, mas
havia que restabelecer o contacto
com as forças restauracionistas no
Sul e proceder à restauração onde
tal fosse exequível.
Em Lisboa, na manhã do dia
seguinte à proclamação do Porto,
Hipólito Raposo suspendeu o jor-
nal A Monarquia, seguindo de ime-
diato para Belém, onde se esta-
vam a concentrar os monárquicos
(Regimento de Cavalaria 2). Havia
que subir a Monsanto para ocupar
o posto de T.S.F. e estabelecer
contacto com o Norte.
Entretanto, a Junta Governativa
do Reino nomeara António Sardi-
nha governador civil de Portale-
gre, com o intuito e a esperança
de aí se poder vir a proclamar a
Monarquia. Sardinha ficará junto
de Paiva Couceiro, preso à missão
prioritária de constituir o Gabinete
da Presidência. Agregou a si Luís
de Almeida Braga, João do Amaral
e Nosolini Leão. Ter-se-ão sucedi-
do dias tranquilos, mas sem notí-
cias do Sul. Até que aí surgiu
António Teles de Vasconcelos,
para montar os serviços de comu-
nicações ao longo da fronteira. É
então que Sardinha é destacado
para Badajoz, Luís Teles de Vas-
concelos (irmão de António) para
Cáceres, Joaquim de Almeida Bra-
ga para Tui, de onde penetrariam
em Portugal com propósitos res-
tauracionistas.
Em Lisboa, entretanto, pouco pas-
sava das seis horas do dia 22 de
Janeiro, quarta-feira, quando, do
quartel de Lançeiros, começaram
a sair os cerca de 70 homens
comandados pelo capitão Júlio da
Costa Pinto. O desfile dirigiu-se, a
passo, pelo Alto da Ajuda até Mon-
santo. Quando aí chegaram, fize-
ram acampamento na Cruz da Oli-
veira, onde improvisaram um
quartel-general, enquanto o capi-
tão Delf im Maia ocupava o posto
de T.S.F. Distribuídas várias vede-
tas pelos locais de acesso, ali se
revezaram durante toda a noite
nos turnos de sentinela.
Na manhã seguinte, dia 23, aos
primeiros raios de sol, o grosso da
coluna dispôs-se em linha de ati-
radores junto ao moinho do Alto
da Peça. Dadas as salvas do estilo,
hasteou-se a bandeira azul e bran-
ca com “o símbolo real tremulando
na altivez secular das suas qui-
nas”.[46] A ligação entre o Porto e
Lisboa ainda terá demorado, com
o alferes António Pinto Castelo
Branco, a repetir várias vezes a
partir de Lisboa: «Aires de Ornelas
e tropas monárquicas em Monsan-
to, pedem noticias».
Estabelecido o contacto, mas
“receando a hipótese de um ardil
A Junta Governativa do Re ino ficava sob o co mand o de Pa iva Couceiro. Logo que foi conhecida a proclamação, o Integralismo Lusitano manifestou aceitar a nova ordem, agarrando “a parte prática e positiva da obra restauradora” - Primum v i v e r e , d e i n d e philosophare, era o princípio que adoptavam.
D a t e n t a t i v a restauracionista ficará a ecoar o pensamento e as d i re c t iva s po l í t ic as adoptadas pela Junta Governativa do Reino.
de guerra, perguntavam do Porto:
Quem foi buscar Aires de Ornelas
a Carcavelos?
De Monsanto respondia-se segura-
mente: «- António Sardinha».
Logo a seguir, recebia-se a trans-
missão das boas noticias do Norte,
em nome de Paiva Couceiro”.[47]
O desastre de Monsanto ocorreu
logo no dia seguinte, 24 de Janei-
ro. Enquanto uns 30 monárquicos
saíram da Cruz das Oliveiras em
direcção à Ajuda, para ir tentar
sublevar o quartel de Infantaria
16, os que ficaram no Monsanto
não conseguirão suster as arreme-
tidas das forças republicanas,
entretanto acrescentadas pelos
numerosos voluntários que res-
ponderam ao apelo do Governo.
Os monárquicos, em clara desvan-
tagem numérica, ainda lutaram
até ao fim da tarde. O capitão
Júlio da Costa Pinto, com alguns
feridos graves sob o seu comando
- entre os quais Pequito Rebelo e
Alberto Monsaraz -, acabou prefe-
rindo a capitulação à fuga.[48]
António Sardinha, que nesse mes-
mo dia deixara o Porto, seguindo
por Espanha na direcção de Porta-
legre, só soube da tragédia ao
passar em Vigo, onde se demorou
com Luís Teles de Vasconcelos,
antes de seguirem viagem por
Astorga até Salamanca. Não che-
gará a entrar em Portugal, sendo
expulso de Badajoz a pedido do
Cônsul de Portugal, por expressa
disposição do Governo espanhol,
em 13 de Fevereiro de 1919. O
desmoronar completo do “efémero
castelo de cartas” desses vinte e
cinco dias da denominada Monar-
quia do Norte, foi notícia que aco-
lheu António Sardinha já em
Madrid.
7. No rescaldo
O ambiente político, depois de
Fevereiro de 1919, vai ser muito
diferente: vencidos os sidonistas
no Rossio, e os monárquicos em
Monsanto e no Norte, a situação
portuguesa surgia consolidada
para o regime parlamentarista
republicano. A derrota dos Impé-
rios Austro-Hungaro e Alemão
parecia dar-lhe livre curso.
Vitoriosos, os republicanos aperta-
ram naturalmente o cerco aos
monárquicos. Alguns conseguiram
escapar para o exílio, mas acaba-
ram enchendo-se as prisões, cen-
tenas de oficiais foram expulsos
do Exército, muitos funcionários
foram demit idos.
No plano prático e imediato, para
a Junta Central integralista, o
resultado da frustrada tentativa
restauracionista saldou-se em dois
feridos graves no hospital de S.
José (Alberto de Monsaraz e
Pequito Rebelo), dois exilados
(António Sardinha e Luís de Almei-
da Braga), e Hipólito Raposo esca-
pando in extremis de ser preso em
Monsanto.
Mas, que caminho seguir, agora
que o movimento restauracionista
sofrera um novo revês?
Derrotados militarmente, a priori-
dade para os integralistas era o
reaparecimento do jornal A Monar-
quia. Hipólito Raposo assumiu a
sua direcção, fazendo-o surgir nas
bancas no dia 18 de Agosto, sub-
metido ao regime especial de
revista prévia da censura, a par
dos órgãos Vanguarda (socialista)
e Batalha (anarco-sindicalista)
O cerco a Hipólito Raposo e ao
integralismo, porém, mal começa-
ra. O regime que se revelara inca-
paz de o apanhar no fragor da
luta, vai começar por desencadear
a represália por via administrativa.[49] Seguiram-se os processos nos
Tribunais: em Julho, haviam já
sido instaurados dois processos-
crime, um por crime de imprensa,
a ser julgado na Boa Hora, e outro
por crime contra a segurança do
Estado, a ser julgado no Tribunal
Militar Especial, em Santa Clara.[50]
No plano político, os integralistas
vão apresentar os acontecimentos
14 O DEBATE
A Monarquia do Norte
O desastre de Monsanto ocorreu logo no dia seguinte, 24 de Janeiro. E n q u a n to u n s 3 0 monárquicos saíram da Cruz das Oliveiras em direcção à Ajuda, para ir tentar sublevar o quartel de Infantaria 16, os que ficaram no Monsanto não conseguirão suster as arremetidas das forças republicanas, entretanto acrescen tadas pe los numerosos voluntários que responderam ao apelo do Governo. Os monárquicos, em clara desvantagem numérica, ainda lutaram até ao fim da tarde. O capitão Júlio da Costa Pinto, com alguns feridos graves sob o seu comando - entre os quais Pequito Rebelo e Alberto Monsaraz -, acabou preferindo a capitulação à fuga.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 15
A Monarquia do Norte político-militares de Janeiro e
Fevereiro de 1919, como “a prova
trágica da incapacidade dos velhos
chefes monárquicos”[51] - mais
ainda do que as armas da Monar-
quia, tinham sido “vencidos os
processos, os vícios e os erros do
Constitucionalismo Liberal”.[52]
Insatisfeitos com a atitude expec-
tante de D. Manuel II durante os
acontecimentos, e considerando
que a sua postura política deixara
de oferecer garantia de servir o
interesse nacional, afastaram-se
da sua obediência. Em torno de D.
M a n u e l I I f i c a r a m o s
“constitucionalistas” ou “liberais”,
acolitados pelo tradicionalismo
hierocrático, de feição autoritário,
entretanto formado em torno do
grupo da Acção Realista, sob a
liderança de Alfredo Pimenta.[53]
Não tendo participado na tentativa
restauracionista, e tendo mesmo
confessado tudo desconhecer dos
seus preparativos, ao escrever
após aqueles sucessos, Alfredo
Pimenta considerou que para o
que restava do sidonismo só havia
uma de duas saídas: ou a monar-
quia ou o governo militar. No seu
entender, porém, as condições
não estariam maduras para a pri-
meira hipótese.
O grosso do monarquismo tradi-
cionalista vai passar a estar agluti-
nado em torno da Causa Monár-
quica portuguesa, juntando o Par-
tido Legitimista e o Integralismo
Lusitano no reconhecimento de D.
Duarte Nuno como Chefe da Casa
Real portuguesa.
A Questão Dinástica virá a encer-
rar-se definitivamente na sequên-
cia da morte de D. Manuel II, em
1932, reconhecendo a Causa
Monárquica o neto de D. Miguel I,
D. Duarte Nuno de Bragança,
como chefe da Casa Real portu-
guesa. Para os integralistas,
porém, em 1919, morria definiti-
vamente a Monarquia da Carta.[54]
[1] Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911
-1914, Lisboa, Clássica Editora, 1993, pp. 9-20. [2] Ver Alberto de Oliveira, “O Nacionalis-mo na Literatura e as «Palavras Loucas», Lusitânia – Estudos Portugueses, Vol. I, p. 20; e Ramalho Ortigão, Carta de um Velho a um Novo, Lisboa, Edições Gama, 1947, pp. 89-96 (p. 90). [3] Ver Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911-1914, cit., p. 10; para Alfredo Pimen-ta, em 1920, a lição a reter era bem grave e formidanda: “o partido republicano, sem o auxílio e a cumplicidade dos partidos monarchicos, nunca teria tido forças para proclamar a Republica”; ver Alfredo Pimen-ta, A questão monarchica, Lisboa, Edição das Juventudes Monarchicas Conservado-ras, 1920, pp. 4-5. [4] No plano político-ideológico opunham-se tradicionalistas e modernistas, enquanto permanecia, em grande medida paralela-mente, a antiga divisão dinástica entre “legitimistas” ou “tradicionalistas”, partidá-rios da descendência do rei proscrito D. Miguel I, e os “constitucionais” ou “liberais”, partidários do ramo reinante, descendente de D. Pedro (IV). [5] Ver Hipólito Raposo, Folhas do Meu Cadastro. Volume I (1911-1925), Lisboa, Edições Gama, 1940, pp. XX-XXVI. [6] Ver Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 90-91. Couceiro terá tido conhecimento dos Documentos Políticos encontrados nos Palácios Reais depois da Revolução Repu-blicana, por intermédio de João de Menezes que pretendia atraí-lo para a causa republi-cana. Esses documentos revelavam os bas-tidores nada edificantes dos últimos anos da monarquia. Só foram publicados em 1915, pela Imprensa Nacional, por ordem do Parlamento da República. [7] Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Manifesto ao Exército”, Junho de 1911, pp. 93-94. [8] Ver exemplo da campanha contra Paiva Couceiro, apresentado como cúmplice dos espanhóis, em A Capital, 27 de Junho de 1911. Ver também notas em José Relvas, Memórias políticas, vol. I, Lisboa, 1977, p. 287. [9] Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Declaração sobre a origem dos elementos alliciados no movimento da Galliza – Portu-guezes e só Portuguezes” (12 de Junho de 1911), p. 95. [10] Ibidem, ver as três proclamações, dirigidas aos soldados, aos reservistas e
ao povo, pp. 95-97. [11] Ver Memórias do Sexto Marquês de Lavradio, 2ª ed., Lisboa., 1993, p. 205: “o porta-bandeira era o filho de João Couti-nho, que fazia os maiores esforços para a não deixar desenrolar de modo que o povo não visse que ela não tinha a coroa Real”. [12] Nas exactas palavras que o coman-dante Couceiro dirigiu aos Soldados, a ban-
Vitoriosos, os republicanos apertaram naturalmente o cerco aos monárquicos. A l gu ns conse gu iram escapar para o exílio, mas acabaram enchendo-se as prisões, centenas de oficiais foram expulsos do E x é r c i t o , m u i t o s f u n c i o ná r io s f or am demitidos. No plano prático e imediato, para a Junta Central integralista, o resultado da frustrada tentativa restauracionista saldou-se em dois feridos graves no hospital de S. José (Alberto de Monsaraz e Pequito Rebelo), dois exilados (António Sardinha e Luís de Almeida Braga), e H i pó li t o R apo so escapando in extremis de ser preso em Monsanto.
deira azul e branca era o símbolo nacional vitorioso nos combates de Marracuene e Mufilo, Dembos e Magul, Namarraes, Coe-lela - “legendas da luminosa biographia nacional!” - ou, dirigindo-se a todo o Povo, o “signo da Pátria Livre” que se levanta contra os “tiranos da inquisição vermelha e verde; Ver Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Manifesto ao Povo Portuguez”, pp. 97-101, cit. p. 101. [13] Fora a solução adoptada pelo general Prim, em 1868, ao apresentar-se em Cadiz para destronar a rainha Isabel. Quando D. José Topete lhe propôs a aclamação da duqueza de Monpensier, Prim avançou com a seguinte fórmula: “Cortes constituyentes y que el pais libremente decida de sua suerte”. [14] Ver Memórias do Sexto Marquês de Lavradio, cit., pp. 207-208, contendo o texto da Declaração de D. Manuel, datada de Richmond, em 31 de Outubro de 1911. [15] O “Pacto de Dover” (Inglaterra), esta-belecido em 30 de Janeiro de 1912, foi um acordo no qual D. Miguel II reconheceu o direito ao trono de D. Manuel II, aceitando este, para o caso de não vir a deixar des-cendência directa, o direito à sucessão ao ramo de D. Miguel. [16] Ver, de entre numerosa bibliografia sobre as incursões de 1911-12, na pers-pectiva monárquica: Joaquim Leitão, A Bandeira dos Emigrados (Repellindo uma Affronta), Porto, Edição do Autor, 1912; idem, Couceiro, o Capitão Phantasma. Dos acontecimentos da Galliza á Marcha para a Segunda Incursão Monarchica, Porto, Edi-ção do Autor, 1914; idem, Em Marcha para a 2ª Incursão. Da Concentração ao erguer do Bivaque de Soutelinho da Raia para o ataque a Chaves, Porto, Edição do Autor, 1915; idem, O Ataque a Chaves, Porto, Edição do Autor, 1916. Na perspectiva dos adversários republicanos, veja-se Comba-tes de Vila Verde e Chaves em 7 e 8 de Julho de 1912. Relatórios Oficiais..., Secre-taria de Guerra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913; Operações militares das tropas do Sector entre Minho e Cávado em Julho de 1912. Relatórios Oficiais... Lisboa, Impren-sa Nacional, 1913; e o estudo, à luz de fontes espanholas, de Hipólito de la Torre Gómez, Conspiração contra Portugal (1910-1912). As Relações Políticas entre Portugal e Espanha, Lisboa, Livros Horizonte, 1978. [17] Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 103-117. [18] Os republicanos - considerava “o assí-duo frequentador de Richmond” - detinham o poder “com os cérebros e as mãos vazias”, procurando resolver os problemas “com ministros de passagem, bacharéis em direito, em filosofia e medicina, com parla-mentos sem cultura e competência apro-priadas, ou pelo conselho de correctores gananciosos de empréstimos”; Ver Carlos Malheiro Dias, Op. cit., p. 110.
[19]; Ângelo Ribeiro, "Consolidação do Novo Regime" in Damião Peres (org.), His-tória de Portugal, vol. VII, Barcelos, p. 490. [20] Ver Ângelo Ribeiro, "Consolidação do Novo Regime" in Damião Peres (org.), His-tória de Portugal, vol. VII, Barcelos, p. 490; e, de Ramalho Ortigão, a irónica des-crição dessa primeira (então única) “fundação pedagógica do novo regime” in Últimas Farpas, 1911-1914, cit., pp. 37-38. [21] Ver David Ferreira, História Política da Primeira República Portuguesa, Lisboa, 1973. [22] Ver José Manuel A. Quintas, Filhos de Ramires – Das Ideais, das Almas e dos Factos no Advento do Integralismo Lusita-no, 1913-1916, pol., Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1997; idem, “Os Monár-quicos” in Iva Delgado, Carlos Pacheco e Telmo Faria (coord.), Humberto Delgado. As Eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173 (141-146). [23] O encontrou deu-se por intermédio de Eduardo Ortigão Burnay (neto de Rama-lho), em Maio de 1914, na casa que Rama-lho Ortigão tinha na Calçada dos Caetanos, em Lisboa; ver António Jacinto Ferreira, integralismo Lusitano – uma doutrina polí-tica de ideias novas, Lisboa, Edições Cultu-ra Monárquica, 1991, p. 48. [24] "Carta de Um Velho a um Novo", A Restauração, edição da manhã, de 12 de Setembro de 1914. Ver reedição integral, incluindo a resposta de João do Amaral, precedida de um estudo de Alberto de Monsaraz sobre a política de Ramalho, em Ramalho Ortigão, Carta de um Velho a um Novo, Lisboa, Edições Gama, 1947. [25] Ver José Manuel A. Quintas, Filhos de Ramires, cit., pp. 228-230. [26] Ver O Intransigente, 4 de Maio de 1915. [27] António Sardinha, “O Senhor Sidónio Pais”, A Monarquia, 9 de Janeiro de 1918. [28] Idem, “Nota Politica”, A Monarquia, 14 de Janeiro de 1918. [29] Idem, "Nota Politica", A Monarquia, 19 de Janeiro de 1918. [30] A legislação eleitoral (Decreto nº 3 977 de 30 de Março de 1918) foi elaborada pelo Ministro da Justiça, Martinho Nobre de Melo, republicano nacionalista, com a cola-boração dos integralistas António Sardinha e Hipólito Raposo. Ver Hipólito Raposo, Folhas do Meu Cadastro, pp. 36-38; Teófilo Duarte, Sidónio Pais e o seu Consulado, pp. 107 ss; 285 ss. Acerca do "regime de comunhão de mesa" de Hipólito Raposo e Martinho Nobre de Melo, Ver Hipólito Rapo-so, Op. cit., pp. 39-40. [31] Luís de Almeida Braga, “As relações com Roma”, A Monarquia, 23 de Janeiro de 1918. [32] Artigos 116º a 121º do Decreto nº 3 977 de 30 de Março de 1918.Pais, Lisboa, Edição da Sociedade Editorial ABC, 1921, p. 182.
16 O DEBATE
A Monarquia do Norte
Derrotados militarmente, a pr ior idade para os integra lis tas era o reaparecimento do jornal A Monarquia. Hipólito Raposo assumiu a sua direcção, fazendo-o surgir nas bancas no dia 18 de Agosto, submetido ao regime especial de revista prévia da censura, a par dos órgãos Vanguarda (socialista) e Batalha (anarco-sindicalista)
O cerco a Hipólito Raposo e ao integralismo, porém, mal começara. O regime que se revelara incapaz de o apanhar no fragor da luta, vai começar por desencadear a represália por via administrativa.[49] Seguiram-se os processos nos Tribunais: em Julho, haviam já sido instaurados dois processos-crime, um por crime de imprensa, a ser julgado na Boa Hora, e outro por crime contra a segurança do Estado, a ser julgado no Tribunal Militar Especial, em Santa Clara.[
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 17
A Monarquia do Norte [33] Luís de Magalhães, Perante o Tribunal e a Nação, Coimbra, 1925. [34] Ou melhor - o apelo era precoce: o centrismo ainda não havia entrado nas mentes republicanas; o II Congresso do Centro Católico, aprovando a plataforma para a sobrevivência do regime republica-no, só acontece em 1922. Ver Manuel Bra-ga da Cruz, As Origens da Democracia-Cristã em Portugal e o Salazarismo, Lisboa, Presença, 1980. [35] Rocha Martins, Memórias sobre Sidó-nio Pais, Lisboa, Edição da Sociedade Edi-torial ABC, 1921, p. 182. [36] António Sardinha, “O discurso de Elvas”, A Monarquia, 4 de Julho de 1918. [37] Acerca do assassínio de Sidónio Pais ver Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Volume XI, Lisboa, Editorial Ver-bo, p. 216-219; e bibliografia referida, em especial José Luciano Sollari Allegro, Para a História da Monarquia do Norte, Lisboa, 1988, pp. 65 e segs. [38] Ver António Sardinha em A Monar-quia, 15 de Dezembro de 1918. [39] Hipólito Raposo refere nas suas memórias que na tarde do dia de Natal de 1918 fora à Junqueira prevenir Paiva Cou-ceiro das ordens discutidas no Ministério da Guerra visando substituir os comandos monárquicos da capital; Hipólito Raposo, Op. cit., p. 43. [40] Ver Hipólito Raposo, Folhas do meu Cadastro, pp. 44-45; com fac-simile do texto manuscrito original. [41] Leão Ramos Ascensão, O Integralismo Lusitano, Lisboa, Edições Gama, 1943, p. 56. [42] Os acontecimentos, aqui relatados, relativos aos acontecimentos do Monsanto e aos episódios da participação dos inte-gralistas na Monarquia do Norte foram sobretudo recolhidos em Hipólito Raposo, Op. cit., pp. 45-79 (cit. p. 52), e em Antó-nio Sardinha, "Conrado não guarda silên-cio!" in Rodrigues Cavaleiro, Um Inédito de António Sardinha sobre a Monarquia do Norte, Separata do nº 15-16 da revista Sulco (2ª Série), Lisboa, 1968, pp. 43-55. [43] A nota da Junta Central, assinada por António Sardinha e Luís de Almeida Braga, foi publicada em A Pátria, 22 de Janeiro de 1919. [44] Ver Diário da Junta Governativa do Reino de Portugal. Colecção Completa,
nº 1 (19 Jan 1919) – nº 16 (13 Fev
1919), Porto, J. Pereira da Silva, 1919; Luís de Magalhães, Perante o Tribunal e
a Nação, cit., pp. 57-64, e apendices.
[45] Ver Luís de Magalhães, “Porque res-taurámos a Carta em 1919”, Correio da
Manhã, 27 e 28 de Fevereiro de 1924. [46] Felix Correia, A Jornada de Monsan-
to – Um Holocausto Trágico, Lisboa, Tip.
Soares & Guedes, Abril de 1919, p. 17. [47] Ver António Sardinha, "Conrado não guarda silêncio!" em Rodrigues Cavaleiro,
Um Inédito de António Sardinha sobre a Monarquia do Norte, Separata do nº 15-16
da revista Sulco (2ª Série), Lisboa, 1968,
pp. 43-55. [48] Felix Correia, Op. cit., pp. 19-36.
[49] Em 26 de Abril de 1919, através da
célebre “lei do afasta” (Decreto 5 368, de 8 de Abril de 1919), Hipólito Raposo foi demi-
tido de chefe da 2ª Repartição da Direcção
Geral do Ensino Industrial e Comercial. Como ainda lhe restasse o ensino da 3ª
cadeira da Escola da Arte de Representar do Conservatório de Lisboa, é o próprio
“ministro-filósofo” da Instrução Pública da
República, Leonardo Coimbra, quem acaba por se resolver em descer à tesouraria dan-
do ordem para que o vencimento lhe não
fosse pago; ver Hipólito Raposo, Folhas do meu Cadastro, cit., pp. 88-91.
[50] Do grotesco processo do Tribunal Mili-
tar merece referência a estreia no foro de Afonso Lopes Vieira, na defesa de Hipólito
Raposo. Depõem a favor de Hipólito Raposo,
Joaquim Manso, José de Ataíde e Henrique da Trindade Coelho. Hipólito Raposo foi con-
denado em três meses de prisão correccio-nal, cumprindo a pena na Torre de São
Julião da Barra, de 19 de Agosto a 17 de
Novembro. [51] Leão Ramos Ascensão, Op. cit., p. 57.
[52] Ver A Questão Dinástica – Documentos
para a História mandados coligir e publicar pela Junta Central do Integralismo Lusitano,
Lisboa, Empresa Nacional de Industrias Grá-
ficas, 1921, p. 3. [53] Alfredo Pimenta logrou mobilizar em
redor da Acção Realista alguns aderentes do integralismo como Caetano Beirão ou Luís
Chaves, pelo que algumas fontes têm referi-
do tratar-se de uma cisão no Integralismo Lusitano. Em rigor, não foi isso o que acon-
teceu: Alfredo Pimenta não era integralista,
e a Junta Central do Integralismo Lusitano não sofreu qualquer alteração na sua com-
posição em resultado do lançamento da
Acção Realista. Nas polémicas doutrinárias desencadeadas pela “questão dinástica”,
aliás, as duas organizações vieram a afirmar
distintas concepções do poder régio, com os integralistas a reafirmarem a doutrina seis-
centista do “pacto de sujeição” (que os leva-ra a começar por declarar obediência a D.
Manuel II, em 1914, e os levava agora à
ruptura) e os pimentistas a defenderem as doutrinas hierocráticas, firmando a conjuga-
ção do seu tradicionalismo com a obediência
a D. Manuel II, no respeito que lhes merecia a “pessoa sagrada” do rei; Ver A Questão
Dinástica..., cit., e de Alfredo Pimenta, A
questão monarchica, Edição das Juventudes Monarchicas Conservadoras, Lisboa, 1920.
[54] Em 1943, essa era a lição recolhida por Leão Ramos Ascensão, Op. cit., p. 58: “A
Monarquia de 1910 morria ali definitiva-mente. Ineptos e impotentes, os constitu-cionais só tinham servido durante nove anos para embaraçar e enervar os melho-res anseios de quem aspirava à restaura-ção da Pátria pela Monarquia tradicional”.
Alfredo Pimenta considerou que para o que restava do sidonismo só havia uma de duas sa ídas: ou a monarquia ou o governo militar. No seu entender, porém, as condições não estariam maduras para a primeira hipótese.
O grosso do monarquismo tradicionalista vai passar a estar aglutinado em torno da Causa Monárquica portuguesa, juntando o Partido Legitimista e o Integralismo Lusitano no reconhecimento de D. Duarte Nuno como Chefe da Casa Real portuguesa.
A Questão Dinástica virá a e n c e r r a r - s e d e f i n i t i va me n te na sequência da morte de D. Manuel II, em 1932, reconhecendo a Causa Monárquica o neto de D. Miguel I, D. Duarte Nuno de Bragança, como chefe da Casa Real portuguesa. Para os integralistas, porém, em 1919, morria d e f i n i t i v a m e n te a Monarquia da Carta.
15 JUNHO 2011 O DEBATE 19
Augusto Ferreira do Amaral A Legitimidade de D. Duarte:
D. Duarte é o sucessor dos reis e Portugal
Introdução
O reconhecimento do Senhor Dom
Duarte como Pretendente ao Tro-
no e legítimo sucessor dos Reis de
Portugal tem sido de tal maneira
consensual e pacífico no nosso
País e no estrangeiro que os fun-
damentos jurídicos dessa identifi-
cação são mal conhecidos para a
maior parte das pessoas, de tal
maneira supérflua tem sido geral-
mente considerada a necessidade
de os relembrar.
Porém, algumas escassas vozes
ignaras, sem qualquer credencial
que lhes confira autoridade nem
crédito sobre a matéria, surgiram
ultimamente a pretender causar
sensação levantando dúvidas
sobre aquela insofismável realida-
de.
Vale a pena por isso recapitular os
referidos fundamentos jurídicos,
para que o público os tenha à dis-
posição.
1. Lei aplicável
Está em causa a qualidade de Pre-
tendente ao Trono de Portugal, ou
seja de quem seria Rei no caso de
Portugal passar a ser uma Monar-
quia, isto é, de o Chefe de Estado
passar a ser hereditária e vitalicia-
mente designado.
Não existem normas expressas no
actual direito positivo português
que regulem directamente esta
matéria. A Constituição, como é
natural, e as leis ordinárias omi-
tem totalmente a qualidade de
Pretendente ao Trono de Portugal.
E elas são igualmente omissas
quanto à regulação da representa-
ção viva dos reis de Portugal.
Também não há regras internacio-
nais que sirvam de critério para a
determinação de quem são os pre-
tendentes ao trono ou chefes das
casas reais dos países que deixa-
ram de ser Monarquias.
Saliente-se ainda que, para o efei-
to são juridicamente irrelevantes
as posições tomadas por Reis em
exercício que contrariem as nor-
mas de sucessão vigentes.
Já D. João II, apesar de todo o
poder que então dispôs, não foi
capaz de satisfazer o seu desejo
de que lhe sucedesse um filho
bastardo – apesar das tentativas
que realizou nesse sentido – e
teve de conformar-se em que lhe
viesse a suceder seu primo D.
Manuel I. Isto porque não era aos
reis de Portugal que competia
estabelecer as regras da sucessão,
e muito menos as decisões desta,
mas sim à lei fundamental, objec-
tivamente aplicada e confirmada
por um acto simbólico de Aclama-
ção.
Por muita importância histórica,
pois, que tenham tido os chama-
dos “pacto de Dover” e “pacto de
Paris”, entre D. Manuel II e D.
Miguel II, eles são irrelevantes
para efeitos da designação do
sucessor de D. Manuel II. Essa
sucessão tem de encontrar-se,
não naquilo que tivesse sido deci-
dido pelo último Rei, mas sim nas
normas constitucionais aplicáveis.
Importa então saber qual a sede
jurídica dessas regras de suces-
são.
Desde logo é de perfilhar o princí-
pio de que à sucessão do Preten-
dente deverão aplicar-se as nor-
mas da sucessão do Rei. Não
havendo especial norma, a analo-
gia justifica-se plenamente.
Ora, tratando-se duma qualidade
Está em causa a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal, ou seja de quem seria Rei no caso de Portugal passar a ser uma Monarquia, isto é, de o Chefe de Estado passar a s e r h e re d i tá r ia e vitaliciamente designado. Não ex istem normas expressas no actual direito positivo português que regulem directamente esta matéria. A Constituição, como é natural, e as leis o r d i n á r i a s o m i te m totalmente a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal. E elas são igualmente omissas quanto à r e g u l a ç ã o d a representação viva dos reis de Portugal.
que encontra o seu fundamento
num direito histórico, haverá que
recorrer a normas escritas já pas-
sadas.
A cisão que por cerca de século e
meio dividiu os monárquicos
(entre constitucionais e absolutis-
tas) poderia levar a uma hesitação
preliminar, na opção entre a Carta
Constitucional e as Leis Funda-
mentais anteriores.
Não temos dúvidas, porém, em
optar pela Carta.
Por várias razões. A mais decisiva
é, como tem sido nossa orienta-
ção, partirmos do princípio de que,
havendo que recorrer a preceitos
escritos do tempo da Monarquia,
importa preferir os que sejam
mais próximos no tempo. E as
normas legais que, na ordem jurí-
dica portuguesa, ultimamente, até
5 de Outubro de 1910, regulavam
a sucessão hereditária da chefia
de Estado eram as da Carta Cons-
titucional.
Os artigos que, para o efeito,
importa levar em conta são os
seguintes.
«Art. 5º – Continua a dinastia rei-
nante da sereníssima casa de Bra-
gança na pessoa da Senhora Prin-
cesa Dona Maria da Glória, pela
abdicação e cessão de seu Augus-
to Pai o Senhor Dom Pedro I,
Imperador do Brasil, legítimo her-
deiro e sucessor do Senhor Dom
João VI.»
«Art. 86º – A Senhora D. Maria II,
por graça de Deus, e formal abdi-
cação e cessão do Senhor D.
Pedro I, Imperador do Brasil, rei-
nará sempre em Portugal.
Art. 87º – Sua descendência legíti-
ma sucederá no trono, segundo a
ordem regular da primogenitura e
representação, preferindo sempre
a linha anterior às posteriores; na
mesma linha o grau mais próximo
ao meia remoto; no mesmo grau o
sexo masculino ao feminino; no
mesmo sexo a pessoa mais velha
à mais moça.
Art. 88º – Extintas as linhas dos
descendentes legítimos da Senho-
ra D. Maria II, passará a coroa à
colateral.
Art. 89º – Nenhum estrangeiro
poderá suceder na coroa do reino
de Portugal.
Art. 90º – O casamento da Prince-
sa herdeira presuntiva da coroa
será feito a aprazimento do Rei, e
nunca com estrangeiro; não exis-
tindo a Rei ao tempo em que se
tratar este consórcio, não poderá
ele efectuar-se sem aprovação das
cortes gerais. Seu marido não
tomará parte no governo, e
somente se chamará Rei depois
que tiver da Rainha filho ou filha.»
Importa, portanto, interpretar
estes preceitos.
Não se conhecem trabalhos prepa-
ratórios da Carta, constando que
ela terá sido redigida em poucos
dias, talvez pelo Ministro da Justi-
ça brasileiro, Marquês de Carave-
las. Os comentadores apontam a
Constituição do Império do Brasil,
outorgada por D. Pedro IV em 11
de Dezembro de 1823, como a
possível fonte directa mais impor-
tante (Por todos ver Mário Soares,
Carta Constitucional, in Dicionário
da História de Portugal, vol. I, p.
495).
No entanto, nesta matéria da
designação do Rei e da sua suces-
são, a nossa Carta Constitucional
seguiu de perto outra fonte portu-
guesa: a Constituição de 1822.
Com efeito, é o seguinte o texto
desta última, no que toca à suces-
são real.
«Art. 31º – A dinastia reinante é a
da sereníssima casa de Bragança.
O nosso rei actual é o senhor D.
João VI.»
«Art. 141º. A sucessão à coroa do
reino unido seguirá a ordem regu-
lar de primogenitura e representa-
ção entre os legítimos descenden-
tes do rei actual o senhor D. João
VI, preferindo sempre a linha
anterior às posteriores; na mesma
linha o grau mais próximo ao mais
remoto; no mesmo grau o sexo
20 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
A cisão que por cerca de século e meio dividiu os mo ná rq ui cos (e n tre c o n s t i t u c i o n a i s e absolutistas) poderia levar a u m a h e s i ta ç ã o preliminar, na opção entre a Carta Constitucional e as L e i s Fu n d a me n ta i s anteriores. Não temos dúv idas, porém, em optar pela Carta. Por várias razões. A mais decisiva é, como tem sido n o s s a o r i e n ta ç ã o , partirmos do princípio de que, havendo que recorrer a preceitos escritos do tempo da Monarquia, importa preferir os que sejam mais próximos no tempo. E as normas legais que, na ordem jurídica portuguesa, ultimamente, até 5 de Outubro de 1910, regulavam a sucessão hereditária da chefia de Estado eram as da Carta Constitucional.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 21
A Legitimidade de D. Duarte masculino ao feminino; no mesmo
sexo a pessoa mais velha à mais
moça.
Portanto:
I. Somente sucedem os f ilhos nas-
cidos de legítimo matrimónio;
II. Se o herdeiro presuntivo da
coroa falecer antes de haver nela
sucedido, seu filho prefere por
direito de representação ao tio
com quem concorrer;
III. Uma vez radicada a sucessão
em uma linha, enquanto esta
durar não entra a imediata.
Art. 142º. Extintas todas as linhas
dos descendentes do senhor D.
João VI, será chamada aquela das
linhas descendentes da casa de
Bragança que dever preferir
segundo a regra estabelecida no
artigo 141º. Extintas todas estas
linhas, as cortes chamarão ao tro-
no a pessoa que entenderem con-
vir melhor ao bem da nação; e,
desde então continuará a regular-
se a sucessão pela ordem estabe-
lecida no mesmo artigo 141º.
Art. 143º. Nenhum estrangeiro
poderá suceder na coroa do reino
unido.
Art. 144º. Se o herdeiro da coroa
portuguesa suceder em coroa
estrangeira, ou se o herdeiro des-
ta suceder naquela, não poderá
acumular uma com outra; mas
preferirá qual quiser, e optando a
estrangeira se entenderá que
renuncia à portuguesa.
Esta disposição se entende tam-
bém com o rei que suceder em
coroa estrangeira.
Art. 145º. Se a sucessão da coroa
cair em fêmea, não poderá esta
casar senão com português, pre-
cedendo aprovação das cortes. O
marido não terá parte no governo,
e somente se chamará rei depois
que tiver da rainha filho ou filha.»
Nesta matéria da sucessão real as
disposições constitucionais, quer
da Constituição de 1820, quer da
Carta, inspiraram-se basicamente
nas leis fundamentais portuguesas
vigentes no antigo regime, as
quais, por isso, são importantes
para integrar lacunas e precisar
sentidos quando se procede à
interpretação dos citados preceitos
da Carta.
Essas leis fundamentais consta-
vam do Assento feito em Cortes
pelos Três Estados, na aclamação
de D. João IV, assinado em 5 de
Março de 1641, e na Carta Patente
de D. João IV em que iam incorpo-
rados os Capítulos Gerais dos Três
Estados e Resposta a eles nas
Cortes de Lisboa de 28 de Janeiro
de 1641. E estes documentos
seguiam princípios constantes da
apócrifa acta das falsas Cortes de
Lamego no reinado de D. Afonso
Henriques, a qual, contudo, a par-
tir da sua publicação em 1632,
passou a ser entendida, na cons-
ciência generalizada dos portugue-
ses, como consubstanciando a lei
fundamental. Na verdade, a remo-
ta origem das regras sucessórias
do trono achava-se nos costumes
e nas cláusulas dos testamentos
de D. Sancho I, D. Afonso II e D.
Sancho II (Ver Martim de Albu-
querque e Rui de Albuquerque,
História do Direito Português, vol.
I, 1984/85, pp. 400 e segs., Mar-
cello Caetano, História do Direito
Português, 2ª edição, 1985,
pp.211 e 212, F. P. de Almeida
Langhans, Fundamentos Jurídicos
da Monarquia Portuguesa, Lisboa,
1951, Gama Barros, História da
Administração Pública em Portugal
nos séculos XII a XV, 2ª edição,
vol. III, p.p. 300 e segs., Paulo
Merêa, Novos Estudos da História
do Direito, pp. 47 e segs., António
Caetano do Amaral, Memória V
para a História da Legislação e
Costumes de Portugal, ed. Civiliza-
ção, 1945, pp. 31 e segs., J. J.
Lopes Praça, Collecção de leis e
subsídios para o estudo do direito
constitucional portuguez, Coimbra
1893, p. XXII, e M. A. Coelho da
Rocha, Ensaio sobre a história do
governo e da legislação de Portu-
gal, Coimbra, 1861, p. 49).
Se a sucessão da coroa cair em fêmea, não poderá esta casar senão com português, precedendo aprovação das cortes. O marido não terá parte no governo, e somente se chamará rei depois que tiver da rainha filho ou filha.» Nesta matéria da sucessão real as disposições constitucionais, quer da Constituição de 1820, quer da Carta, inspiraram-se basicamente nas le is fundamentais portuguesas vigentes no antigo regime, as quais, por isso, são importantes para integrar lacunas e precisar sentidos quando se procede à interpretação dos citados preceitos da Carta.
Segundo um dos doutores clássi-
cos da Restauração, Francisco
Velasco de Gouveia (Justa Accla-
mação do Serenissimo Rey de Por-
tugal Dom João o IV, 1644, p.
79), «entre as quatro qualidades,
que se consideram, e atentam na
sucessão dos bens vinculados,
morgados, e Reinos, que por sua
instituição hão-de vir a uma pes-
soa de certa geração, para se ver
qual há-de preferir, e suceder
neles, a primeira de todas, é a
linha. A segunda, o grau. A tercei-
ra, o sexo. A quarta, a idade». E
conclui que na crise de 1580 «o
direito legítimo da sucessão destes
Reinos pertencia à Infanta Duque-
sa Dona Catarina. Por melhor
linha. Por igualmente melhor grau.
Por capacidade do sexo. Pelo
benefício da representação. Por
vocação. Por agnação. E por ser
Portuguesa, e casada com Príncipe
Português» (ibidem, p. 78). Nesta
síntese poderá verif icar-se como
as normas constitucionais relativas
à sucessão no trono seguiram, no
essencial, princípios com muitos
séculos de vigência.
2. Princípios decorrentes da
Carta Constitucional
Qual, então, o regime de sucessão
régia que decorre da Carta Consti-
tucional?
Desde logo se observe que, con-
forme resulta dos arts. 5º e 88º,
nada impede que a sucessão caia
em descendentes de irmãos de D.
Pedro IV.
Isto é, não se exige, como antiga-
mente estava estabelecido, a
aprovação das Cortes para a pas-
sagem do trono a um colateral,
quando o Rei não tivesse descen-
dentes. A Carta seguiu aí a orien-
tação do art. 142º da Constituição
de 1822, que, curiosamente, res-
tringiu neste particular os poderes
do Parlamento. Enquanto houves-
se descendentes da Casa de Bra-
gança, não era necessária a apro-
vação das Cortes para que na
coroa sucedesse um colateral do
Rei.
Os arts. 86º a 90º da Carta insti-
tuem quatro conjuntos de regras
para a sucessão: definição do
autor da sucessão, relação de
parentesco, condição da nacionali-
dade, e condição da autorização
régia para o casamento de prince-
sa.
O itinerário duma designação de
sucessor régio é pois, basicamen-
te, constituído pelos seguintes
passos. Primeiro há que determi-
nar a pessoa em relação à qual se
apurará o parentesco definidor do
sucessor. Depois fazem-se funcio-
nar as regras do parentesco, com
vista a apurar um candidato. Apu-
rado este, importa saber se, quan-
to a ele, não ocorre algum dos
factos que levam à exclusão da
sucessão, isto é, se ele não deve
ser afastado por razões da nacio-
nalidade ou de casamento de prin-
cesa.
Vejamos então esses passos em
pormenor.
2.1. Quem é o autor da suces-
são
Aqui são regulados dois casos: a
sucessão de D. Maria II, e a dos
que viessem de futuro a suceder-
lhe no trono.
Havia na Carta Constitucional uma
expressa declaração de D. Maria II
como Rainha. E nem sequer fora
uma especialidade daquele docu-
mento, atribuível a circunstâncias
únicas da vida política portuguesa,
desencadeadas historicamente
após a morte de D. João VI. Já a
Const ituição de 1822, como
vimos, tivera o cuidado de deter-
minar pessoalmente que o Rei era
D. João VI e que a dinastia reinan-
te era a de Bragança.
É de aceitar esta declaração, não
tanto pela sua validade inicial e
intrínseca, que aliás nos não cabe
agora discutir, mas sobretudo por-
que a realeza de D. Maria II, teve
efectividade, directa e indirecta-
22 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
Os arts. 86º a 90º da Carta instituem quatro conjuntos de regras para a sucessão: definição do autor da sucessão, relação de parentesco, condição da nacionalidade, e condição da autorização régia para o casamento de princesa. O i t in erá r i o d uma designação de sucessor régio é pois, basicamente, constituído pelos seguintes passos. Primeiro há que determinar a pessoa em relação à qual se apurará o parentesco definidor do sucessor. Depois fazem-se funcionar as regras do parentesco, com vista a apurar um candidato. Apurado este, importa saber se, quanto a ele, não ocorre algum dos factos que levam à exclusão da sucessão, isto é, se ele não deve ser afastado por razões da nacionalidade ou de casamento de princesa.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 23
A Legitimidade de D. Duarte mente, na ordem jurídica portu-
guesa até 1910. Trata-se, de res-
to, do que a consciência generali-
zada, quer em Portugal, quer no
estrangeiro, reconhecia como váli-
do e regular nos últimos momen-
tos da vigência da Monarquia.
Apenas haverá que observar que
esta designação de D. Maria II não
era inovadora; não era constituti-
va, mas sim meramente declarati-
va. Não rompia com a linha suces-
sória entendida como correcta,
mas sim nela reconhecia a pessoa
a quem competia a qualidade de
sucessor dos anteriores reis portu-
gueses. Verdadeiramente, só tal-
vez nas cortes de Coimbra de
1385, com a aclamação de D. João
I, houvera a criação duma nova
dinastia. E, mesmo assim, o Mes-
tre de Avis era filho dum Rei, para
alguns em igualdade de parentes-
co, quanto à ilegitimidade, com os
outros pretendentes, quer a filha
de D. Leonor Teles, quer os de D.
Inês de Castro. Mas, quer a dinas-
tia dos Filipes, quer a brigantina,
socorreram-se da invocação do
direito a suceder no trono que fora
de D. João I.
No que diz respeito à pessoa real
à data em que era emitida a Carta
Constitucional, portanto, nenhuma
dúvida.
E quanto aos futuros reis?
Dois caminhos alternativos pode-
riam teoricamente abrir-se para a
determinação de quem, de futuro,
seria o autor da herança, isto é, o
Rei relativamente ao qual haveria
que determinar quem, pela rela-
ção de mais próximo parentesco,
competiria suceder no trono. Ou
esse parentesco era sempre aferi-
do relativamente ao Rei inicial, ao
fundador, ou relativamente àquele
que, em cada sucessão régia,
tivesse sido o último Rei.
Os teóricos sempre preferiram a
primeira concepção, em tudo o
que concerne à «sucessão dos rei-
nos, dos morgados, dos usufrutos,
dos bens da coroa, e, em geral, na
sucessão de todos e quaisquer
bens, que, por morte da pessoa
que os administra devem por Lei
ou por instituição passar a outra-
certa e determinada pessoa» (D.
Francisco de S. Luía, Obras com-
pletas do Cardeal Saraiva, tomo
IV, 1875, p. 168). Nessas suces-
sões, o sucessor sucede «ex pro-
pria persona, jure proprio, e não
pelo direito de seu pai, ou ante-
cessor» (ibidem, p. 169). Aliás, se
não fosse assim, isto é, se fosse
preferida a segunda alternativa
acima exposta, podiam suceder na
coroa parentes do rei antecessor
que não fossem descendentes do
fundador da dinastia.
Mas, no que respeita à sucessão
real havia também a preocupação
de garantir uma continuidade na
linha sucessória. E, para o efeito,
não seria satisfatória a adopção
extreme da primeira alternativa.
Se o parentesco fosse, pelo grau,
reportado sempre ao fundador da
dinastia, sem mais, resultaria a
possibilidade frequente de o filho
dum rei ser preterido por um
irmão ou mesmo por um primo
deste.
Daí que a escolha do fundador
como fulcro da relação de paren-
tesco haja sido temperada por um
tertium genus, o princípio da con-
tinuação da linha.
Parece ter sido essa a solução pre-
ferida do legislador constitucional.
O art. 87º dá a entender que o
primeiro critério é o da descen-
dência de D. Maria II; mas logo
como segundo critério, antes dos
demais, declara o da linha. Ora
isso só pode signif icar que,
enquanto uma linha se não extin-
guir, não pode suceder ninguém
de outra linha, ainda que de
parentesco mais próximo com D.
Maria II.
E há que levar em conta o esclare-
cimento expresso que era feito no
próprio nº III do art. 141º da
Constituição de 1822, que serviu
de fonte àquele preceito da Carta:
E quanto aos futuros reis? Dois caminhos alternativos poderiam teor icamente a b r i r - s e p a r a a determinação de quem, de futuro, seria o autor da herança, isto é, o Rei relativamente ao qual haveria que determinar quem, pela relação de mais próximo parentesco, competiria suceder no trono. Ou esse parentesco era sempre afer ido re lativamente ao Re i inicial, ao fundador, ou relativamente àquele que, em cada sucessão régia, tivesse sido o último Rei.
«uma vez radicada a sucessão em
uma linha, enquanto esta durar
não entra a imediata».
Quer dizer: a sucessão no trono
apura-se pela relação de parentes-
co legítimo com D. Maria II. Mas,
entre os parentes, a primeira pre-
ferência é pelos da linha mais pró-
xima; enquanto esta não estiver
extinta, não sucedem os parentes
de outra linha.
Com o Pretendente ao Trono não
há razão para não aplicar exacta-
mente esses princípios.
2.2. Relação de parentesco
O fundamento para a sucessão
régia, na Monarquia portuguesa,
era uma certa relação de paren-
tesco entre o herdeiro da Coroa e
um antecessor.
Na Carta, como acima vimos, essa
relação começa por ser apresenta-
da quanto aos descendentes a
Rainha. E só depois surge regula-
da a hipótese de a Coroa ir parar a
colaterais. Vejamos então separa-
damente cada uma dessas rela-
ções.
2.2.1. Na descendência
Aponta o art. 87º uma série de
critérios de apuramento do paren-
tesco susceptível de gerar a condi-
ção básica de sucessor no trono.
2.2.1.1. Legitimidade
A primeira exigência é de que o
parentesco seja «legítimo», ou
seja, baseado em filiações havidas
de matrimónio. Já a Constituição
de 1822 esclarecia que somente
sucediam os f ilhos nascidos de
legítimo matrimónio. E era regra
antiga, como se vê, entre outros,
por Afonso de Lucena (Allegações
de direito… por parte da Senhor
Dona Catherina…, etc. 1580, p.
93), e Francisco Alvarez de Ribera
(De Sucessione Regni Portugalliae,
1621, p.p. 17 e segs.)
Aqui colocam-se duas dúvidas.
A primeira advém do desapareci-
mento, da ordem jurídica portu-
guesa, da distinção entre filhos
legítimos e ilegítimos. Será correc-
to, ainda, levar em conta a distin-
ção estabelecida na Carta, entre
descendentes legítimos e ilegíti-
mos?
Estamos em crer que sim. A inter-
pretação preferível duma lei fun-
damental que, neste particular,
gozou duma longuíssima estabili-
dade, terá de privilegiar a conser-
vação do sentido histórico que era
conferido aos preceitos. E tal sen-
tido, neste particular, não pode
deixar de manter como decisiva a
exclusão da sucessão dos parentes
cuja relação com o autor da
herança não assente numa linha
totalmente legítima, isto é, em
sucessivas filiações decorrentes do
matrimónio.
A segunda dúvida é a de saber se
será de admit ir, para basear a
filiação legítima, o casamento civil.
O problema está em que, à data
da outorga da Carta Constitucio-
nal, os católicos por via de regra
só podiam casar-se validamente
por casamento canónico.
Ainda a especial natureza destes
preceitos, profundamente impreg-
nados duma tradição muito está-
vel, parece tornar preferível que
apenas se considere como eficaz,
para efeitos da geração de filiação
legítima dos descendentes do Rei,
o matrimónio religioso. Isto não
implica a afirmação duma poten-
cial Monarquia como Estado con-
fessional, nem a exigência de con-
fissão religiosa ao Pretendente.
Apenas significa a preferência por
uma interpretação favorável à rigi-
dez das normas fundamentais
reguladoras da sucessão régia.
2.2.1.2. «Segundo a ordem
regular da primogenitura e
representação»
Esta expressão, que resume dois
dos mais característicos princípios
da sucessão nos bens vinculados,
tem interesse, não já pela referên-
cia à ordem da primogenitura, de
24 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
A primeira exigência é de que o parentesco seja «legítimo», ou seja, baseado em filiações havidas de matrimónio. Já a Constituição de 1822 esclarecia que somente sucediam os filhos nascidos de legítimo matrimónio.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 25
A Legitimidade de D. Duarte que adiante se falará, mas sobre-
tudo pela adopção do instituto da
representação.
Que significa esta?
Que se, antes de o titular falecer,
morrer o filho que devia suceder-
lhe, qualquer filho deste tem pre-
ferência, na sucessão, sobre os
irmãos do titular.
Tradicionalmente se admitia este
instituto na própria sucessão de
reinos. Disso dão conta autores
como Afonso de Lucena (ob. cit.,
p.p. 46 e segs.), António de Sousa
de Macedo (Lusitania Liberata ab
injusto Castellanorum dominio
Restituta, 1645, p.p. 258 e segs.),
Velasco de Gouveia (ob. cit., p.p
151 e segs.), João Pinto Ribeiro,
Injustas Successoens dos Reys de
Leam, e de Castella. e izençaõ de
Portugal, in Obras Varias, parte
segunda, 1730, p. 102) e Francis-
co de Santo Agostinho de Macedo
(Jus Succedendi in Lusitaniae
Regum Dominae Catherinae,
1641, p.p. 50 e segs.).
E era também pacífico o princípio
de que, na linha recta descenden-
te, a representação não tinha limi-
tes, isto é, podiam dar-se em duas
ou mais gerações. Dizia Pascoal
José de Melo Freire, a propósito da
sucessão do Reino: «admittendam
in linea descendentium repraesen-
t a t i o n e m i n i n f i n i -
tum» (Institutiones Juris Civilis
Lusitani, 1800, livro III, p. 120).
A Carta é expressa em consagrar
a regra da representação, natural-
mente no sentido tradicional.
Assim, tratando-se de representa-
ção na descendência do autor da
herança, não se suscitam dúvidas
sobre o modo de entender essa
representação. Os problemas sur-
gem, sim, quando se trata de
sucessão de colaterais, como
adiante se verá.
Ainda uma questão é de pôr quan-
to ao correcto funcionamento do
instituto da representação – o que
sucede, quando o representado
não poderia suceder, se vivo fosse
à data em que morre o autor da
herança?
2.2.1.3. «Preferindo»
Preferir é aqui estar antes, estar à
frente de. Nenhuma dúvida des-
cortinamos no uso de tal termo.
No enunciado dos critérios de pre-
ferência, segue a Carta, uma vez
mais a doutrina tradicional. Dizia
Manuel Pegas a propósito da
s uc e s são n os mo rg ados :
«Enucleationem suppono vulgaris-
simam esse in jure nostro, et pro
constanti ab omnibus traditam,
quatuor qualitates in successione
maioratus inspici, et attendi debe-
re, prius lineam, postea gradum,
tuns sexum, et ultimo aeta-
tem» (Tractatus de Exclusione,
Inclusione, Successione, et Erec-
tione Maioratus, 1ª parte, 1685, p.
37).
2.2.1.3.1. «a linha anterior às
posteriores»
Interessa saber em que consistia,
na ordem jurídica da monarquia
constitucional, a linha. O conceito
não é exclusivo das leis funda-
mentais das monarquias. Foi fun-
damentalmente usado e tratado
em pleno direito civil, no ramo das
sucessões. Aí «se diz linha a série
de gerações entre determinadas
pessoas» (António R. de Lis Tei-
xeira, Curso de Direito Civil Portu-
guez, parte segunda, 1848, p.
516).
A linha é directa ou recta quando
um dos parentes descende do
outro; e colateral quando liga pes-
soas que não são ascendentes
uma da outra, mas têm um proge-
nitor comum (ibidem, e art. 1580º
do Código Civil actual).
Que será então uma linha anterior
e uma linha posterior?
A terminologia não é corrente do
direito civil. E a Carta foi bebê-la à
Constituição de 1822.
Afigura-se-nos que uma linha será
anterior a outra quando o progeni-
tor comum entre a linha anterior e
A segunda dúvida é a de saber se será de admitir, para basear a filiação legítima, o casamento civil. O problema está em que, à data da outorga da Carta Constitucional, os católicos por via de regra só podiam casar-se validamente por casamento canónico. Ainda a especial natureza d e s te s p r e c e i to s , p r o f u n d a m e n t e i m p r eg n a do s d u ma tradição muito estável, parece tornar preferível que apenas se considere como eficaz, para efeitos da geração de filiação legítima dos descendentes do Rei, o matrimónio religioso. Isto não implica a a f irmaç ão d uma potencial Monarquia como Estado confessional, nem a exigência de confissão religiosa ao Pretendente. Apenas s ig nif ica a preferência por uma interpretação favorável à r igidez das normas fundamentais reguladoras da sucessão régia.
o autor da herança seja de grau
mais próximo que o progenitor
comum entre a linha posterior e o
autor de herança; ou, sendo o
mesmo o progenitor comum das
duas linhas com o autor da heran-
ça, quando provenha dum filho
desse progenitor que prefira ao
filho donde provém a linha poste-
rior. Por preferir entenda-se aqui
ser do sexo masculino e/ou mais
velho.
O princípio era o da prioridade
absoluta da linha sobre o grau, o
sexo e a idade, como critério de
preferência na sucessão.
A Carta afirmava-a implicitamente
ao antepor a linha aos outros cri-
térios. Mas baseava-se de resto na
Constituição de 1822, que era
expressa em declarar enfatica-
mente que, uma vez radicada a
sucessão numa linha, enquanto
esta durasse, não entrava a ime-
diata.
No que se conformava com o
entendimento tradicional. Ensina-
va Pascoal José de Melo Freire
( o b . c i t a d a , p . 1 2 0 ) :
«successionem non nisi una linea
extincta ad aliam transire».
2.2.1.3.2. «na mesma linha o
grau mais próximo ao mais
remoto»
Os graus devem contar-se aqui
segundo o direito civil. Tanto na
linha recta como da colateral, con-
tam-se as pessoas que formam a
linha de parentesco, mas excluin-
do o progenitor comum (Manuel
de Almeida e Sousa de Lobão,
Tratado pratico de Morgados, 3ª
edição, 1841, p. 198, e art. 1581º
do actual Código Civil). O grau
mais próximo será o menor.
2.2.1.3.3. «No mesmo grau o
sexo masculino ao feminino»
Esta regra, posto que contrariando
o princípio da igualdade dos sexos
hoje muito generalizado na civili-
zação ocidental, não apenas na
ordem jurídica portuguesa, mas
também na sucessão régia de
algumas monarquias europeias,
deve c ont inuar a manter- se
enquanto as normas da Carta
Constitucional não for substituída
por outra lei fundamental que se
aplique à sucessão régia ou do
Pretendente.
2.2.1.3.4. «no mesmo sexo a
pessoa mais velha à mais
moça»
Este preceito apenas levantaria
dúvida séria quando estejam em
causa gémeos do mesmo sexo.
Mas não valerá a pena abordar-se
tal pormenor, correspondente a
uma hipótese rara.
2.2.2. Nos colaterais
Quais as regras aplicáveis à suces-
são de colaterais do autor de
herança?
Quanto à sua admissibilidade, não
pode haver dúvidas. O art. 88º
consagra a sucessão pela linha
colateral de D. Maria II, quando
deixar de haver descendentes
legítimos dela.
Suscitam-se contudo alguns pro-
blemas.
Desde logo a Carta não regula
expressamente a sucessão régia
quando haja de seguir por linha
colateral. Nem sequer remete para
as regras da sucessão da descen-
dência.
Parece que o silêncio significará aí
que, basicamente, se seguirão as
normas constantes do art. 87º
para determinar qual o parente
colateral de D. Maria II que deve
suceder no trono.
Assim, não temos dúvidas de que
também na sucessão de colaterais
prefere a linha anterior, dentro
dela o grau, dentro do grau o sexo
masculino e dentro do sexo mas-
culino a maior idade.
Porém, as dificuldades aparecem
quando se coloca a questão de
saber se é aplicável a representa-
ção nesta sucessão por linha cola-
teral.
26 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
«No mesmo grau o sexo masculino ao feminino» Esta regra, posto que contrariando o princípio da igualdade dos sexos hoje muito generalizado na civilização ocidental, não apenas na ordem jurídica portuguesa, mas também na sucessão régia de a lgumas monarquias europeias, deve continuar a manter-se enquanto as n o r m a s d a Ca r ta Constitucional não for substituída por outra lei fundamental que se aplique à sucessão régia ou do Pretendente.
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15 JUNHO 2011 O DEBATE 27
A Legitimidade de D. Duarte É de partir do pressuposto que a
Carta, tal como a Constituição de
1822, empregou o conceito de
representação no sentido técnico-
jurídico que ele à época tinha, e
que a entendia regulada pelos
princípios que então geralmente
se entendia que a regiam.
Importa pois recorrer à doutrina
dominante da época.
Segundo essa doutrina, existia
direito de representação também
na sucessão na linha colateral
para sobrinhos, filhos de irmão.
Tal fora instituído por Justiniano e
os tratadistas aludem frequente-
mente a essa figura, sustentando
inclusivamente que na sucessão
civil a herança dos sobrinhos era
por estirpes (Velasco de Gouveia,
ob. cit. p. 203, Afonso de Lucena,
ob. cit., p. 46, e Domingos Antu-
nes Portugal, Tractatus de Dona-
tionibus Regiis, 1726, tomo 2º, p.
138)
Por outro lado a representação,
nos colaterais vai apenas até o
segundo grau (António de Sousa
de Macedo, ob. cit., p. 318, e
Velasco de Gouveia, ob. cit., p.
204)
2.3. Condição da nacionalidade
Como se viu a Carta não admite
que na coroa suceda um estran-
geiro (art. 89º). Por isso, uma vez
apurado a pessoa a quem, pela
relação de parentesco com o autor
da herança, competiria suceder-
lhe, há que saber se é, ou não,
português.
2.3.1 – Que deverá entender-
se por estrangeiro?
Aplicar-se-á a lei da nacionalidade
que presentemente vigora? Ou a
lei da nacionalidade que vigorava
à data em que a Carta foi outorga-
da? Ou a última lei da nacionalida-
de que vigorou durante a Monar-
quia? Ou deve encontrar-se um
conceito especial, apenas para uso
das normas constitucionais da
sucessão?
A palavra, à data da outorga a
Carta, significava o mesmo que
não natural de Portugal, como
afirmaram, por exemplo, M. A.
Coelho da Rocha (Instituições de
Direito Civil Portuguez, 4ª edição,
tomo I, 1857, p.136) e D. Francis-
co de S. Luís (ob. cit., p.p. 137 e
segs.). Diz este que as nossas leis
«chamam sempre naturais, isto é,
verdadeiramente Portugueses, os
que nascem nestes reinos e seus
senhorios».
A naturalidade portuguesa à data
da outorga da Carta, era regulada
pelo título LV do 2º Livro das
Ordenações, que preceituava:
«…as pessoas que não nascerem
nestes Reinos e Senhorios deles,
não sejam havidas por naturais
deles, posto que neles morem e
residam, e casem com mulheres
naturais deles, e neles vivam con-
tinuadamente, e tenham o seu
domicílio e bens.
1. Não será havido por natural o
nascido nestes Reinos de pai
estrangeiro, e mãe natural deles,
salvo quando o pai estrangeiro
tiver seu domicílio e bens no Rei-
no, e nele viveu dez anos contí-
nuos …
2. E sucedendo que alguns natu-
rais do Reino, sendo mandados
por Nós, ou pelos Reis nossos
sucessores, ou sendo ocupados
em nosso serviço, ou do mesmo
Reino ou indo de caminho, para o
tal serviço, hajam filhos fora do
Reino, estes tais serão havidos por
naturais, como se no Reino nas-
cessem.
3. Mas se alguns naturais se saí-
rem do Reino e Senhorios dele,
por sua vontade, e se forem morar
a outra Província, em qualquer
parte sós, ou com suas famílias,
os filhos, que lhes nascerem fora
do Reino e Senhorios dele, não
serão havidos por naturais: pois o
pai se ausentou por sua vontade
do Reino, em que nasceu, e os
filhos não nasceram nele…»
A Constituição de 1822, enquanto
Como se viu a Carta não admite que na coroa suceda um estrangeiro (art. 89º). Por isso, uma vez apurado a pessoa a quem, pela relação de parentesco com o autor da hera nça , compe tir ia suceder-lhe, há que saber se é, ou não, português.
vigorara, regulara diferentemente.
Estabelecia o seu art. 21º serem
cidadãos portugueses: « I Os
filhos de pai português nascidos
no Reino Unido ou que, havendo
nascido em país estrangeiro, vie-
ram estabelecer domicílio no mes-
mo Reino; cessa porém a necessi-
dade deste domicílio se o pai esta-
va no país estrangeiro em serviço
da nação … V Os filhos de pai
estrangeiro que nascerem e adqui-
rirem domicílio no Reino Unido;
contanto que chegados à maiori-
dade declarem, que querem ser
cidadãos portugueses. VI Os
estrangeiros que obtiverem carta
de naturalização.»
A Carta, por sua vez, estatuiu, no
art. 7º:
«São cidadãos portugueses:
1º Os que tiverem nascido em
Portugal ou seus domínios, e que
hoje não forem cidadãos brasilei-
ros, ainda que o pai seja estran-
geiro, uma vez que este não resi-
da por serviço da sua nação.
2º Os filhos de pai português, e
ilegítimos de mãe portuguesa,
nascidos em país estrangeiro, que
vierem estabelecer domicílio no
reino.
3º Os filhos de pai português, que
estivesse em país estrangeiro em
serviço do reino, embora eles não
venham estabelecer domicílio no
reino.
4º Os estrangeiros naturaliza-
dos…»
Houve alterações neste regime
com a Constituição de 1838 (art.
16º)
Reposta a Carta, a definição de
cidadão português veio a ser feita
pelo art. 2º do Decreto de 30 de
Setembro de 1852 (lei eleitoral),
em termos idênticos aos daquele
diploma constitucional.
Tempos depois entrou em vigor o
Código Civil de 1867, que regulou
a matéria no seu art. 18º, estabe-
lecendo serem cidadãos portugue-
ses:
«1º Os que nascem no reino, de
pai e mãe portugueses, ou só de
mãe portuguesa sendo filhos ilegí-
timos;
2º Os que nascem no reino, de pai
estrangeiro, contanto que não
resida por serviço da sua nação,
salvo se declararem por si, sendo
já maiores ou emancipados, ou
por seus pais ou tutores, sendo
menores, que não querem ser
cidadãos portugueses;
3º Os filhos de pai português, ain-
da que este haja sido expulso do
reino, ou os filhos ilegítimos de
mãe portuguesa, bem que nasci-
dos em país estrangeiro, que vie-
rem estabelecer domicílio no rei-
no, ou declararem por si, sendo
maiores ou emancipados, ou por
seus pais ou tutores, sendo meno-
res, que querem ser portugueses;
4º Os que nascem no reino, de
pais incógnitos, ou de nacionalida-
de desconhecida;
5º Os estrangeiros naturaliza-
dos…….»
Era duvidosa a constitucionalidade
deste artigo, na medida em que
parecia contrariar o texto da Carta
(José Dias Ferreira, Código Civil
Portuguez Annotado, 1870, vol. I,
p. 40).
No entanto, a verdade é que se
manteve até depois de 1910.
Qual, então, a regulamentação
que deve ser preferida, para inte-
grar o conceito de estrangeiro,
para efeitos, da exclusão prevista
no art. 89º da Carta?
Apesar de ser a própria Carta a
regular a nacionalidade portugue-
sa, parece preferível a preferência
por um conceito específico, elabo-
rado em função do interesse muito
especial que subjazia àquele arti-
go.
Se se argumentasse com uma
interpretação mais literal do diplo-
ma constitucional, sempre seria de
responder que o art. 7º regula
especificamente sobre quem é
cidadão português. Ora o Rei não
era cidadão português. Tinha, na
Carta, outro tratamento. Por isso,
28 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
D. Francisco de S. Luís sustentava que o termo estrangeiro tinha, com vista à sucessão no trono, um conteúdo específico, não coincidente com o da lei civil. Era ele de opinião que um português, nascido em Portugal, que se tivesse naturalizado noutro país nem por isso deixava de ser português, para e f e i t o s d a L e i Fundamental. E que um estrangeiro que se naturalizasse português, não deixava de ser um estrangeiro, inábil para s u c ed er na c or oa portuguesa
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 29
A Legitimidade de D. Duarte à letra, as regras do art. 7º não
lhe eram directamente aplicáveis.
E a analogia não parece inteira-
mente adequada a suprir a falta
de esclarecimento do sentido de
estrangeiro usado pelo art. 89º
D. Francisco de S. Luís sustentava
que o termo estrangeiro tinha,
com vista à sucessão no trono, um
conteúdo específico, não coinci-
dente com o da lei civil. Era ele de
opinião que um português, nasci-
do em Portugal, que se tivesse
naturalizado noutro país nem por
isso deixava de ser português,
para efeitos da Lei Fundamental. E
que um estrangeiro que se natura-
lizasse português, não deixava de
ser um estrangeiro, inábil para
suceder na coroa portuguesa (ob.
cit. p. 141).
Essa era a doutrina oficial, visível
no Manifesto dos Direitos de Sua
Magestade Fidelíssima a Senhora
Dona Maria Segunda. «Estrangeiro
opõe-se a Natural, isto é, ao que
nasceu Português» (2ª edição,
1841, p. 24).
Esta interpretação parece a mais
conforme à ratio juris do princípio
da exclusão do candidato estran-
geiro ao trono. Se se admit isse
que um estrangeiro, naturalizando
-se, pudesse ser rei de Portugal,
correr-se-ia o risco da perda da
independência. E foi este o grande
problema que emergiu em duas
crises sucessórias da nossa Histó-
ria agitando os jurisconsultos (em
1385 e em 1580) e que muito
contribuiu para o enunciado das
regras constitucionais sobre a
sucessão régia.
Preocupação que ainda perdura na
actual Constituição, a qual declara
inelegível para a presidência da
República quem não seja origina-
riamente português (art. 125º).
Deste modo, deverá entender-se
que um candidato à sucessão no trono que seja originariamente
estrangeiro e que só depois haja
adquirido a nacionalidade portugue-sa está excluído dessa sucessão.
2.3.2. Por outro lado, não é de
aceitar que a chamada «dupla
nacionalidade» portuguesa e bra-
sileira atribuída aos cidadãos bra-
sileiros satisfaça os requisitos para
que algum destes possa suceder
no trono português.
A própria Carta, historicamente
emergente da separação de sobe-
ranias entre Portugal e o Brasil,
consagra um nítido afastamento
entre a nacionalidade portuguesa
e a brasileira, contrastando aí com
o texto que fora da Constituição
de 1822. No §1º do art. 7º exclui
da cidadania portuguesa os cida-
dãos que fossem brasileiros, ape-
sar de terem nascido portugueses.
O brasileiro, ainda que tendo tam-
bém nacionalidade portuguesa,
deve ser considerado estrangeiro
para efeitos do art. 90º da Carta
Constitucional. Os direitos civis
que ele tem, na ordem jurídica
portuguesa, são os mais diversos.
Mas, como dizia D. Francisco de S.
Luís a sucessão dos tronos deve
regular-se, não pelas leis civis,
mas sim pelas leis e foros particu-
lares de cada nação. E os proble-
mas a cultura e as ligações do
brasileiro são, de raiz, dum país
que, embora com a mesma língua
e um longo passado comum, está
separado de Portugal há mais de
século e meio. Os interesses do
Estado recomendam que se não
corra o risco de que na chefia dele
se coloque quem não seja portu-
guês de raiz.
2.4. Condição do casamento de
princesa a aprazimento do Rei
e nunca com estrangeiro
Esta condição, que pode também
levar à exclusão duma parente do
sexo feminino que se achasse em
posição de suceder, tem talvez a
sua remota origem na crise do
final da 1ª dinastia.
O princípio enunciado pela falsa
acta das Cortes de Lamego era o
de que a filha do Rei, para suceder
no trono, não casasse senão com
Mas, como dizia D. Francisco de S. Luís a sucessão dos tronos deve regular-se, não pelas leis civis, mas sim pelas leis e foros particulares de cada nação. (…) Os interesses do Estado recomendam que se não corra o risco de que na chefia dele se coloque quem não seja português de raiz.
português nobre.
A Constituição de 1822 estipulava
que, se a sucessão caísse em
fêmea, esta teria de casar com
português e carecia de aprovação
das Cortes.
A Carta, através do art. 90º, intro-
duziu algumas alterações.
Estabeleceu que o casamento teria
de ser «a aprazimento do Rei» e
nunca com estrangeiro; embora,
se não houvesse Rei ao tempo em
que se tratasse do casamento,
este não poderia efectuar-se sem
aprovação das Cortes.
Mas a mais significativa alteração
é a de que a limitação se aplica,
literalmente, apenas à Princesa
herdeira presuntiva da coroa. Sus-
citar-se-ia a dúvida sobre se a
letra da Carta não careceria, aí,
duma interpretação extensiva, de
modo a abranger também a
Rainha, já entronizada.
Não parece que assim deva ser.
Desde logo porque a própria D.
Maria II casou duas vezes com
estrangeiro; e da segunda vez já
falecera seu pai e não careceu de
aprovação das Cortes.
Depois porque não faria sentido o
preceito na exigência do aprazi-
mento do Rei se a noiva fosse já
Rainha, pois então seria ela a
aprazer a si própria.
É de concluir, portanto que, se à
data em que sucede, a Princesa
não é casada, poderá vir a casar
com estrangeiro e o seu casamen-
to não carece de aprovação.
Porém, se é casada, para poder
suceder tem de ter o aprazimento
do Rei; e o marido não pode ser
estrangeiro.
Não vemos razões para aplicar
aqui, ao conceito de estrangeiro,
um sentido diferente do que apon-
támos no número anterior.
Quanto ao signif icado de aprazi-
mento do Rei, parece ser o de ter
a aprovação do Rei (que pode não
ser o pai, mas também, por exem-
plo, irmão, primo, sobrinho ou tio
da Princesa).
Parece de exigir uma aprovação
expressa, e não meramente implí-
cita. Não se trata de tirar conclu-
sões de quaisquer factos indirecta-
mente relacionados, que geram a
ambiguidade. O texto constitucio-
nal não consagraria tão formal
exigência se não houvesse uma
preocupação de que o aprazimen-
to do Rei fosse manifestado por
um modo formal e minimamente
solene. A própria fórmula utiliza-
da, pela positiva – é que preciso
que o casamento apraza ao Rei e
não, simplesmente que não des-
praza – inculca a necessidade
duma clara manifestação explícita
da vontade real.
Mas é de admitir que tal aprova-
ção possa ser dada a posteriori,
isto é, como ratif icação do casa-
mento. Apenas essa aprovação
tem de estar dada à data em que
se abre a sucessão no trono, sob
pena de, por falta desta condição,
passar este ao parente imediato.
2.5. O hipotético banimento
Tem sido por vezes suscitada um
condicionamento da sucessão
régia da linha descendente de D.
Miguel com base na chamada “lei
do banimento”. Esta foi uma lei
ordinária, sem natureza constitu-
cional emitida sob a forma de Car-
ta de Lei em 19 de Dezembro de
1834.
Pelo seu art. 1º «O ex-infante D.
Miguel, e seus descendentes são
excluidos para sempre do direito
de succeder na Corôa dos Reinos
de Portugal, Algarves, e seus
Dominios».
E o seu art. 2º preceituava: «O
mesmo ex-Infante D. Miguel, e
seus descendentes são banidos do
territorio Portuguez, para em
nenhum tempo poderem entrar
nelle, nem gosar de quaesquer
direitos civís, ou politicos …»
Sucede, porém que se trata duma
lei sem natureza constitucional,
que não pode prevalecer contra a
regulação diferentemente na lei
30 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
15 JUNHO 2011
Tem sido por vezes s u s c i t a d a u m co nd ic ioname nto da sucessão régia da linha descendente de D. Miguel com base na chamada “lei do banimento”. Esta foi uma lei ordinária, sem natureza constitucional emitida sob a forma de Carta de Lei em 19 de Dezembro de 1834.
(…)
Sucede, porém que se trata duma lei sem natureza constitucional, que não pode prevalecer contra a regulação diferentemente na fundamental.
15 JUNHO 2011 O DEBATE 31
A Legitimidade de D. Duarte fundamental.
Por outro lado, a Carta Constitu-
cional de 1826 foi objecto, depois
de 1934 de uma reposição e de
várias alterações, a saber, por um
Acto Adicional em 5 de Julho de
1852, e revisões de 15 de Maio de
1884, de 24 de Julho de 1885, de
3 de Abril de 1896 e de 1 de Agos-
to de 1899.
Em nenhuma delas se alteraram
os acima referidos arts. 87º e 88º,
apesar de terem sido modificados
alguns preceitos do mesmo Título
V ao qual pertencem aqueles dois
artigos.
Em nada se alterou a clareza e
universalidade das regras constan-
tes desses arts. 87º e 88º, segun-
do as quais, por extinção das
linhas dos descendentes legítimos
de D. Maria II, passaria o trono
colateral, preferindo sempre a
linha anterior às posteriores.
Quer dizer, segundo esses precei-
tos, não havendo português legíti-
mo descendente de D. Maria II,
passaria a coroa à linha anterior
dos colaterais, que seria a dos
descendentes de D. Pedro IV;
mas, não havendo portugueses
legítimos descendentes de D.
Pedro IV, passaria a coroa à linha
seguinte, que era a dos portugue-
ses legítimos descendentes de D.
Miguel (o filho varão imediato de
D. João VI).
Nenhuma restrição a essa regra
foi estatuída na Carta Constitucio-
nal nem nas suas várias revisões.
Mais. Os arts. 86º a 90º da Carta
Const itucional representam a
regulação sistemática da sucessão
régia. É essa, de resto, a epígrafe
desse capítulo – “Da sucessão
régia”.
Aí reside a totalidade do sistema
de sucessão da coroa, tal como
vigorou a partir da vigência da
Carta Constitucional até a implan-
tação da República. Trata-se duma
regulação “de sistema”, que exclu-
sivamente rege a matéria.
Daí que não pode deixar de con-
cluir-se que, no que toca às nor-
mas de sucessão régia, a supra-
mencionada Carta de Lei de 19 de
Dezembro de 1834, se não era
inconstitucional á partida, foi revo-
gada de sistema pela Carta Cons-
titucional quando foi reposta ou
quando foi revista. Não pode
sobrepor-se nem muito menos
contrariar, na medida em que
regule a sucessão régia, os precei-
tos que regeram tal matéria até 5
de Outubro de 1910.
3. Aplicação aos factos dos
princípios adoptados
Tendo presentes as regras atrás
enunciadas, caberá aplicá-las à
situação de facto existente.
À data em que faleceu o último
Rei de Portugal, D. Manuel II – 2
de Julho de 1932 – não havia des-
cendentes portugueses legítimos,
de D. Maria II.
A propósito note-se que uma tal
Ilda Toledano, que se intitulou a si
própria “Maria Pia de Bragança” e
fez muito alarido nos anos 50 a 80
do séc. XX, sustentando que seria
filha de D. Carlos e reclamando
direito à sucessão na Coroa, não
poderia ser entendida como incluí-
da nessa categoria. Na verdade,
mesmo que ela fosse filha de D.
Carlos – o que de todo se discor-
da, pois a justificação que apre-
sentou não tem a mínima credibili-
dade sob o ponto de vista histórico
– ainda assim, sendo filha adulte-
rina, e portanto, ilegítima, não
detinha quaisquer direitos à suces-
são no trono.
Também em 1932 não havia des-
cendentes portugueses legítimos
de D. Pedro IV.
Portanto, a sucessão régia, ou
seja, a sucessão na qualidade de
Pretendente ao trono de Portugal,
coube ao descendente português,
legítimo, de D. Miguel I que che-
fiava a sua representação – e esse
era D. Duarte Nuno, neto paterno
deste.
A propósito note-se que uma tal Ilda Toledano, que se intitulou a si própria “Maria Pia de Bragança” e fez muito alarido nos anos 50 a 80 do séc. XX, sustentando que seria filha de D. Carlos e reclamando direito à sucessão na Coroa, não poderia ser entendida como incluída nessa categoria. Na verdade, mesmo que ela fosse filha de D. Carlos – o que de todo se discorda, pois a justificação que apresentou não tem a mínima credibilidade sob o ponto de vista histórico – ainda assim, sendo filha adulterina, e portanto, ilegítima, não detinha quaisquer dire itos à sucessão no trono.
Tendo sido deferida a sucessão nessa qualidade para D. Duarte
Nuno, transmitiu-se por sua morte
para seu filho primogénito, também português, o Senhor D. Duarte João
Pio.
Mas mesmo que se entendesse que
a Carta de Lei de 1834 acima cita-da, permaneceria em vigor – o que
de forma nenhuma se aceita pelas
razões acima expostas, ainda assim haveria de reconhecer-se que é ao
Senhor D. Duarte João Pio quem
compete a qualidade de Pretenden-
te ao Trono e sucessor dos Reis portugueses, pois é o descendente
português, legítimo, de D. Pedro
IV, que ocupa o primeiro lugar nes-sa linha.
Isto, por sua mãe, a Senhora D.
Maria Francisca de Orléans e Bra-
gança, filha do Príncipe D. Pedro de Orléans e Bragança (1875-1940), a
quem competia a chefia da descen-
dência legítima de D. Pedro IV. E a Senhora D. Maria Francisca foi o
mais velho dos filhos desse Príncipe
D. Pedro que tiveram filhos portu-
gueses.
4. As tentativas de atingir D.
Duarte As insustentáveis tentativas de
algumas criaturas sem qualquer
qualificação para dissertar sobre
estes temas e para porem em cau-sa estas evidências, têm por vezes
resvalado para a pura calúnia rela-
tiva ao Senhor D. Duarte.
Entre as mentiras que se tentam fazer passar figura a de que D.
Duarte viveria à custa do Estado
português, ou de dinheiros públi-cos.
Nada de mais torpemente falso.
D. Duarte não aufere quaisquer
rendimentos da Fundação da Casa de Bragança. E deveria até ter
direito a auferi-los.
A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados,
que assim permaneceram, excluí-
dos das regras gerais da sucessão,
depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1ª República, que
os respeitou. Quando D. Manuel II
morreu, Salazar prepotentemente subtraiu esses bens ao seu normal
e correcto destino e transmitiu-os
para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa
de Bragança – gerida por pessoas
nomeadas pelos Governos e cujos
rendimentos deixaram de ser fruí-dos, como deviam, pelo Chefe
daquela Casa ou pela Família a
quem, como bens privados, perten-ciam.
D. Duarte não vive pois à conta de
rendimentos daquela fundação,
como seria seu direito se o ditador os não tivesse confiscado em 1933
por essa insólita arbitrariedade.
D. Duarte também não aufere de qualquer fonte pública os seus ren-
dimentos.
Nada recebe do erário público. Ao
invés: tem aplicado boa parte do seu rendimento pessoal em serviço
do País, em causas de grande rele-
vância nacional, como foi, exem-plarmente, toda a persistente e
intensa actividade que ao longo de
anos desenvolveu, quase sozinho,
pela causa da liberdade de Timor.
Parecer do Ministério
dos Negócios Estrangeiros relativo à Questão Dinástica:
Ministério dos
Negócios Estrangeiros
O Senhor Secretário Geral solicitou
ao Departamento de Assuntos Jurí-
dicos que emitisse a sua opinião relativamente ao caso do Sr. Rosá-
rio Poidimani e às suas actividades
no estrangeiro envolvendo o nome de Portugal e da Casa de Bragança.
Solicitado que foi o parecer deste
Departamento, cumpre emiti-lo.
I. DAS NORMAS DE SUCESSÃO
NA CHEFIA DA CASA REAL DE PORTUGAL
Cabe, de antemão, precisar as nor-
mas que regem a transmissão de
títulos nobiliárquicos, em particular aqueles associados à realeza de
Portugal, para enfim confrontar
32 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados, que assim permaneceram, excluídos das regras gerais da sucessão, depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1ª Re pú bl ic a, que os respeitou. Quando D. Manuel II morreu, Salazar prepotentemente subtraiu esses bens ao seu normal e correcto destino e transmitiu-os para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa de Bragança – gerida por pessoas nomeadas pelos Governos e cujos rendimentos deixaram de ser fruídos, como deviam, pelo Chefe daquela Casa ou pela Família a quem, como bens pr ivados, pertenciam.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 33
A Legitimidade de D. Duarte a legitimidade de Rosário Poidima-
ni, por oposição a D. Duarte Pio de
Bragança.
As regras sobre a sucessão régia,
ou neste caso sobre a sucessão na
chefia da Casa Real, em Portugal a
Sereníssima Casa de Bragança,
fazem parte do direito costumeiro
internacional, não se encontrando
estabelecidas em nenhum texto
consolidado, antes emergindo da
ordem social europeia e dispersas
pelos vários sistemas constitucio-
nais europeus ao tempo das gran-
des Monarquias Europeias, dos
quais hoje sobrevivem apenas
alguns de que são exemplo o do
Reino Unido, da Espanha, da Dina-
marca, da Bélgica, do Luxembur-
go, do Mónaco, etc.
Em Portugal, algumas dessas nor-
mas encontraram expressão escri-
ta nas Constituições Monárquicas -
Constituição de 1822, Carta Cons-
titucional de 1826 e Constituição
Política de 1838.
Em 1911, com a primeira Consti-
tuição republicana, foram expres-
samente revogadas todas as dis-
posições constitucionais anterio-
res, pelo que deixaram de valer na
ordem jurídica portuguesa. Não
deixam, contudo de servir de refe-
rência escrita mas apenas na par-
te que corresponde às menciona-
das normas da tradição dinástica
europeia.
De tal tradição resulta que:
1. A sucessão da Coroa segue a
ordem regular de primogenitura, e
representação entre os legítimos
descendentes do monarca reinante
(ou do chefe da Casa Real, num
regime não monárquico), preferin-
do sempre a linha anterior às pos-
teriores e, na mesma linha, o grau
de parentesco mais próximo ao
mais remoto e, no mesmo grau, o
sexo masculino ao feminino e, no
mesmo sexo, a pessoa mais velha
à mais nova.
2. Extinta a linha da descendência
do monarca reinante (ou do chefe
da Casa Real num regime não
monárquico) passará a Coroa às
linhas colaterais e, uma vez radi-
cada a sucessão em linha,
enquanto esta durar, não entrará
a imediata.
3. A chefia da Casa Real, bem
como a Chefia do Estado, só pode-
rá ser assumida por pessoa de
nacionalidade portuguesa originá-
ria.
4. Extintas todas as linhas dos
descendentes e colaterais, caberá
ao regime (Cortes, Parlamento,
Conselho da Nobreza ou Povo)
chamar à chefia da Casa Real uma
pessoa idónea a partir da qual se
regulará a nova sucessão.
5. A descendência do chefe da
Casa Real nascida fora do seu
casamento oficial - entenda-se
canónico - está afastada da suces-
são da Coroa, salvo por interven-
ção expressa do regime (Cortes,
Parlamento, Conselho da Nobreza
ou Povo) e nunca do próprio
monarca.
6. Mesmo em exílio, a sucessão
real mantém-se, com todos os pri-
vilégios, estilos e honras que
cabem ao chefe da Casa Real não
reinante.
II. DA SUCESSÃO NA CHEFIA
DA CASA REAL DE BRAGANÇA
De acordo com aquele direito cos-
tumeiro, a sucessão na chefia da
Casa Real Portuguesa deu-se do
seguinte modo:
- D. Pedro IV de Portugal, I do
Brasil, irmão de D. Miguel, abdicou
do Trono Português.
- D. Maria II, seguinte na linha de
sucessão, assumiu o trono.
- A descendência de D. Maria II
manteve o Trono até 1910,
aquando da Implantação da Repú-
blica.
- D. Manuel II, último Rei de Por-
tugal, morreu no exílio, sem des-
cendentes, nem irmãos legítimos.
- A linha colateral mais próxima,
mantendo a nacionalidade portu-
guesa, de acordo com as normas
sucessórias era a linha que advi-
- D. Manuel II, último Rei de Portugal, morreu no exílio, sem descendentes, nem irmãos legítimos. - A linha colateral mais próxima, mantendo a nacionalidade portuguesa, de acordo com as normas sucessórias era a linha que advinha de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV. Desse modo, o filho de D. Miguel, Miguel Maria de Assis Januário tornou-se legitimamente o novo chefe da Casa Real de Bragança por sucessão mortis causa de D. Manuel II. - Ainda no exílio, sucedeu a D. Miguel [agora, de Bragança], seu único filho varão D. Duarte Nuno de Bragança e a este o actual chefe da Casa Real, D. Duarte Pio de Bragança.
nha de D. Miguel, irmão de D.
Pedro IV. Desse modo, o filho de
D. Miguel, Miguel Maria de Assis
Januário tornou-se legitimamente
o novo chefe da Casa Real de Bra-
gança por sucessão mortis causa
de D. Manuel II.
- Ainda no exílio, sucedeu a D.
Miguel [agora, de Bragança], seu
único filho varão D. Duarte Nuno
de Bragança e a este o actual che-
fe da Casa Real, D. Duarte Pio de
Bragança.
- Em 1950, por Lei da Assembleia
Nacional, a Família Real portugue-
sa foi autorizada a retornar ao ter-
ritório nacional.
Porque alguns defendiam que se
mantinha em vigor a disposição da
Constituição de 1838 que excluía
da sucessão a linhagem de D.
Miguel, irmão de D. Pedro IV, e
para explicitamente reconhecer
essa linha colateral como seguinte
na sucessão a D. Manuel II, este
ex-monarca e D. Miguel Maria de
Assis Januário assinaram um
documento, conhecido como o
Pacto de Dover, onde o primeiro
reconhecia a legitimidade para a
sucessão ao filho de D. Miguel, D.
Duarte Nuno. Na verdade tal Pacto
era juridicamente desnecessário,
pois com a Constituição de 1911
haviam sido revogadas todas as
disposições constitucionais ante-
riores.
III. DA LEGITIMIDADE NO USO
DO TÍTULO A QUE SE ARROGA
ROSÁRIO POIDIMANI
O Sr. Rosário Poidimani alega ser
o legítimo sucessor do último Rei
de Portugal, D. Manuel II e, como
tal, pretendente ao trono de Por-
tugal e verdadeiro chefe da Casa
Real de Bragança. Invoca essa sua
legitimidade com base nos seguin-
tes factos:
- No exílio, o último Rei de Portu-
gal, D. Manuel II, entretanto casa-
do com a princesa Augusta Vitória
de Hohenzollern-Sigmaringen,
veio a falecer em 1932 sem deixar
descendentes.
- Terá, entretanto, sobrevivido
uma filha ilegítima do Rei D. Car-
los, pai de D. Manuel II, chamada
D. Maria Pia de Saxónia Coburgo
de Bragança, nascida em 1907,
também conhecida por Hilda Tole-
dano.
- Esta filha ilegítima terá sido bap-
tizada por vontade de seu pai, o
Rei D. Carlos, numa paróquia de
Alcalà de Henares, perto de
Madrid, e o mesmo soberano ter-
lhe-á atribuído, por carta, todas as
honras, privilégios e direitos dos
Infantes de Portugal.
- Não tendo quaisquer outros
sucessores, e considerando-se
legítima pretendente ao trono por-
tuguês, D. Maria Pia de Bragança
terá abdicado dos seus direitos em
favor de Rosário Poidimani, por
meio de documento presenciado
por notário.
III. A. Da bastardia
Como referido anteriormente, a
sucessão à chefia da Casa Real faz
-se de acordo com as normas cos-
tumeiras que afastam da mesma
sucessão a descendência ilegítima,
out rora designada bastardia.
Assim, mesmo provada a existên-
cia de uma f ilha ilegítima de El-Rei
D. Carlos, mesmo por vontade
daquele monarca, ela não poderia
jamais suceder na chefia da Casa
Real.
Simili modo, quando El-Rei D.
João II, que viria a morrer sem
descendência legít ima, tentou
“legitimar” seu filho bastardo, D.
Jorge de Lencastre, não o conse-
guiu, tendo-lhe sucedido no trono
o seu primo e cunhado D. Manuel
I, Duque de Beja.
De facto, o único descendente real
ilegítimo que conseguiu subir ao
Trono Português foi D. João I. Seu
meio-irmão, D. Fernando I deixara
como único herdeiro legítimo uma
filha, D. Beatriz, casada com o Rei
de Castela. Essa ainda chegou a
ser Rainha de Portugal, mas por
34 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
Porque alguns defendiam que se mantinha em vigor a d i s p o s i ç ã o d a Constituição de 1838 que excluía da sucessão a linhagem de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV, e pa ra expl ic i tamen te reconhecer essa linha colateral como seguinte na sucessão a D. Manuel II, este ex-monarca e D. Miguel Maria de Assis Januário assinaram um documento, conhecido como o Pacto de Dover, onde o primeiro reconhecia a legitimidade para a sucessão ao filho de D. Miguel, D. Duarte Nuno. Na verdade tal Pacto era j u r i d i c a m e n t e desnecessário, pois com a Constituição de 1911 haviam sido revogadas todas as disposições constitucionais anteriores.
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15 JUNHO 2011 O DEBATE 35
A Legitimidade de D. Duarte fortes oposições internas por
temor de que Portugal perdesse a
independência com aquela união
real dos tronos de Portugal e de
Castela, e após um sangrento
interregno, tomou o Trono o Mes-
tre de Avis, D. João I, bastardo de
El-Rei D. Pedro I, com o apoio
legitimante da Nobreza e do Povo
portugueses.
III.B. Do direito a outros títulos
Na tradição dinástica europeia, e
designadamente portuguesa, era
prática reiterada que o monarca,
quando fosse o caso, conferisse
aos seus descendentes ilegítimos
outros títulos para que, não obs-
tante não poderem suceder-lhe na
coroa, não ficassem de todo desli-
gados da sua hereditariedade
real. O próprio 1º Duque de Bra-
gança era filho ilegítimo do men-
cionado Rei D. João I.
D. Maria Pia, pretensa filha ilegíti-
ma de El-Rei D. Carlos, não rei-
vindicou o uso de qualquer outro
título que o Rei lhe tivesse conce-
dido, porque apenas esse título
poderia ter sido transmit ido ao Sr.
Rosário Poidimani, com o aval do
Chefe da Casa Real.
III.C. Do acto de abdicação
Mais se esclarece que quando um
titular abdica, não o pode fazer
designando um sucessor. A desig-
nação do sucessor cabe às nor-
mas dinásticas vigentes.
Assim, sem conceder que D. Maria
Pia de Bragança fosse a herdeira
de D. Manuel II, o acto de abdica-
ção só seria válido per se, sem a
designação de um sucessor cuja
relação de parentesco com a abdi-
cante é, minime, obscura.
Mas, visto não ser D. Maria de
Bragança a legítima sucessora, em
nada adianta o acto de abdicação
e menos ainda o facto de ter sido
lavrado em notário que, não obs-
tante a validade formal, é nulo
porque carece de legitimidade.
IV. DO RECONHECIMENTO E
DO “APANÁGIO” À CASA REAL
DE BRAGANÇA E AO SEU LEGÍ-
TIMO TITULAR
Refere o Sr. Rosário Poidimani,
uma comunicação do Consulado
Geral de Milão, Março de 1992, em
que se informa que D. Duarte Pio
de Bragança usufrui de uma habi-
tação oferecida pelo Governo da
República Portuguesa (”usufruisce
di una abitazione messa a sua dis-
posizione dal Governo della
Repubblica Portoghese”). Igual-
mente numa comunicação do
mesmo Consulado, de Julho de
2005, se afirma que ao mesmo
herdeiro da Casa Real é conferido
também o respectivo apanágio
(”anche del relativo appannag-
gio”). Por fim, em nome dos cida-
dãos portugueses, inquere o Sr.
Rosário Poidimani, na mesma car-
ta de Fevereiro de 2006 em que
refere as anteriores comunicações,
ao abrigo de que norma tem o
Senhor de Santar direito ao uso de
uma casa paga pelos contribuintes
portugueses (”di quale provedi-
mento il signor di Santar avrebbe
in uso una casa a spese dei contri-
buenti portoghesi”) e em que capí-
tulo de despesa [do Orçamento do
Estado] se encontra aquele apaná-
gio, qual o montante e se é confe-
rido a título vitalício ou a prazo
(”in quale capitolo di spesa sai
inserito tale appannaggio, a quan-
to ammonta e se sia a titolo vitali-
zio o limitato nel tempo”).
Embora de pouca relevância práti-
ca, impõe-se esclarecer a questão.
De facto, a mencionada comunica-
ção de 1992 informava erronea-
mente sobre a habitação do
Duque de Bragança. Na verdade,
o Estado Português nunca supor-
tou qualquer habitação do herdei-
ro da Casa Real. Houve, de facto,
uma imposição do Chefe do
Governo, António de Oliveira Sala-
zar, em 1950, para que a Funda-
ção da Casa de Bragança - funda-
ção privada de utilidade pública
Na verdade, o Estado Português nunca suportou qualquer habitação do herdeiro da Casa Real. Houve, de facto, uma imposição do Chefe do Governo, António de Oliveira Salazar, em 1950, para que a Fundação da Casa de Bragança - fundação pr ivada de utilidade pública para testemunhar a história e manter os bens da Casa de Bragança após a morte de D. Manuel II, em cujo conselho de administração s e e n c o n t r a u m representante do Governo - aquando do retorno da F a m í l i a R e a l , providenciasse a sua condigna instalação em Portugal, precisamente para não ser o Estado a suportar tais despesas. Foi-lhes então cedido, a custas da fundação, o Palácio de S. Marcos em C o im bra , on de se mantiveram até 1974.
para testemunhar a história e
manter os bens da Casa de Bra-
gança após a morte de D. Manuel
II, em cujo conselho de adminis-
tração se encontra um represen-
tante do Governo - aquando do
retorno da Família Real, providen-
ciasse a sua condigna instalação
em Portugal, precisamente para
não ser o Estado a suportar tais
despesas. Foi-lhes então cedido, a
custas da fundação, o Palácio de
S. Marcos em Coimbra, onde se
mantiveram até 1974.
No conturbado período pós-
revolução de 25 de Abril de 1974,
o Duque de Bragança, procurou
assegurar a sua permanência
adquirindo uma vivenda perto da
Vila de Sintra que permanece,
hoje, a sua residência e sede da
Casa Real de Bragança. Esta casa
e espaços circundantes, são pro-
priedade pessoal do mesmo D.
Duarte Pio de Bragança.
Quanto ao apanágio, entendido
como tributo monetário, é de todo
infundada a sua existência. O
Estado Português nunca conferiu
qualquer dotação orçamental para
a manutenção da Casa de Bragan-
ça. Qualquer despesa ou remune-
ração da parte do Estado para
com os Duques de Bragança foi e
será sempre a título de serviços
prestados em nome de Portugal,
designadamente pela sua repre-
sentação política, histórica ou
diplomática.
No que concerne ao apanágio,
com o signif icado de privilégio,
regalia ou tratamento de maior
dignidade, a República Portuguesa
não promove a distinção de clas-
ses, pelo contrário, propugna a
igualdade de todos os cidadãos
perante a lei.
Por outro lado, o Estado Portu-
guês, que é hoje uma República
com quase 100 anos, viveu os
anteriores 8 séculos de História de
Portugal em regime de monarquia.
A Casa de Bragança e o seu legíti-
mo titular são, no presente, her-
deiros e sucessores da Casa que
presidia àquele regime.
Como herdeiros da t radição
monárquica, é praxis do Estado
Português que os Duques de Bra-
gança testemunhem presencial-
mente os mais importantes
momentos da vida do Estado
como algumas cerimónias oficiais,
designadamente aquelas que
envolvem a participação de mem-
bros da realeza mundial. De igual
modo, são os Duques, várias
vezes, enviados a representar o
Povo Português em eventos de
natureza cultural, humanitária ou
religiosa [católica] no estrangeiro,
altura em que lhes é conferido o
Passaporte Diplomático ao abrigo
do n.º 3 b) e do n.º 5 do art.º 2.º
do Decreto-Lei nº 70/79, de 31 de
Março (Lei dos Passaportes Diplo-
máticos).
Importa, ademais, esclarecer que
ao reconhecimento do Estado Por-
tuguês, se junta o reconhecimento
tácito das restantes casas reais da
Europa e do Mundo, com as quais
a legítima Casa de Bragança parti-
lha laços de consanguinidade,
reconhecimento esse que encontra
expressão nas constantes solicita-
ções dessas mesmas casas para
que os Duques de Bragança se
associem aos seus mais dignos
eventos.
V. DO DIREITO À UTILIZAÇÃO
DE OUTROS TÍTULOS, DO
DIREITO A OSTENTAR BRA-
SÃO, DA MESTRIA DAS
ORDENS NOBILIÁRQUICAS E
HONORÍFICAS MONÁRQUICAS
E DO TRATAMENTO POR “SUA
ALTEZA REAL”
A Guardia di F inanza em Gallarate,
Itália, numa comunicação para o
Consulado Geral de Portugal em
Milão, de Março de 2006, procura
saber se são reconhecidos ao Sr.
Rosario Poidimani, pela República
Portuguesa, os títulos de “Principe
de Saxónia Coburgo de Bragança”,
o tratamento de “Sua Alteza Real”
36 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
No conturbado período pós-revolução de 25 de Abril de 1974, o Duque de Br aga nça , p roc ur ou a s s e g u r a r a s u a permanência adquirindo uma vivenda perto da Vila de Sintra que permanece, hoje, a sua residência e sede da Casa Real de Bragança. Esta casa e espaços circundantes, são propriedade pessoal do mesmo D. Duarte Pio de Bragança.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 37
A Legitimidade de D. Duarte e o título de “Pretendente ao trono
de Portugal e Chefe da Casa Real
de Portugal”, com o direito de
ostentar o “brasão”, o direito de
transmitir o título e outros direitos
conexos ao Mestrado das Ordens
dinásticas da Real Casa de Portu-
gal.
Pois bem, a utilização, em Portu-
gal, do título de Príncipe respeita
apenas ao sucessor do legítimo
chefe da Casa Real de Bragança.
Por tradição esse sucessor - hoje,
D. Afonso de Santa Maria, filho
primogénito de D. Duarte Pio de
Bragança - adquire, com o nasci-
mento, o título de Príncipe da Bei-
ra.
De todo o modo, nunca seria um
Príncipe da linhagem de Saxe-
Coburgo-Gotha porque tal linha-
gem terminou em Portugal com a
morte de D. Manuel II.
Ainda, pelo direito dinástico inter-
nacional e por tradição, o título de
Presuntivo Herdeiro ao Trono de
Portugal está reservado para o uso
pessoal do Duque de Bragança,
como verdadeiro sucessor dos
Reis de Portugal.
Do mesmo modo, a mestria das
ordens nobiliárquicas e honoríf icas
monárquicas compete ao legítimo
sucessor dos Reis de Portugal, o
Duque de Bragança.
Apenas a ele compete conferir
foros de nobreza e títulos honorífi-
cos. Deve, porém, ressalvar-se
que, para efeitos de documenta-
ção oficial, apenas são reconheci-
dos pelo Estado os foros e títulos
conferidos antes de 5 de Outubro
de 1910 e desde que o direito ao
seu uso seja devidamente prova-
do, nos termos do Decreto n.º
10537, de 12 de Fevereiro de
1925.
Quanto ao tratamento por “Sua
Alteza Real”, o Protocolo de Esta-
do Português respeita as regras de
deferência social e o protocolo
internacional, pelo que nas ceri-
mónias em que participam os
Duques de Bragança, e na corres-
pondência oficial que lhe é remeti-
da, é-lhes conferido o mesmo esti-
lo de “SS.AA.RR.”.
No que concerne a ostentação de
brasões, ou armas de família, des-
de 1910 o regime encontra-se
liberalizado em Portugal. Para
efeitos de protecção jurídica, os
brasões ou armas de família são
equiparados a símbolos, logótipos
ou marcas, devendo todavia res-
peitar as regras da não-
confundibilidade e da leal concor-
rência.
VI. DA CELEBRAÇÃO DE NEGÓ-
CIOS JURÍDICAMENTE VINCU-
LANTES POR QUEM USA TÍTU-
LO REAL OU NOBILIÁRQUICO
Ainda que se considere provado,
nos termos anteriormente referi-
dos, o direito a usar um título
nobiliárquico, o mesmo Decreto
n.º 10537 estabelece que a inter-
venção em acto, contrato ou docu-
mento, que haja de produzir direi-
tos e obrigações, é antes de mais
exigido o nome civil. Se a esse se
juntar a referência honoríf ica ou
nobiliárquica, deverá de novo ser
provado o direito ao seu uso.
VII. DE IUS LEGATIONIS E DO
REC ONHEC IMENTO C OMO
SUJEITO DE DIREITO INTER-
NACIONAL
Consta da documentação forneci-
da que o Sr. Rosário Poidimani, e
respectivos caudatários, têm aber-
to “representações diplomáticas”
da Real Casa de Portugal, pelo ter-
ritório italiano.
A capacidade de enviar e receber
representantes diplomáticos, ou
Ius Legationis, pertence exclusiva-
mente ao Estados e às Organiza-
ções Internacionais. São eles os
principais actores do Direito Inter-
nacional.
O Ius Legationis é prioritariamente
uma competência dos Estados,
que são o substrato da Comunida-
de Internacional. A eles, Estados,
cabe desenvolver relações amisto-
(…) a utilização, em Portugal, do título de Príncipe respeita apenas ao sucessor do legítimo chefe da Casa Real de Bragança. Por tradição esse sucessor - hoje, D. Afonso de Santa Maria, filho primogénito de D. Duarte Pio de Bragança - adquire, com o nascimento, o título de Príncipe da Beira.
sas com as outras nações, inde-
pendentemente da diversidade
dos seus regimes constitucionais e
sociais (Convenção de Viena sobre
Relações Diplomáticas, celebrada
em 18 de Abril de 1961).
O Ius Legationis e o Ius Tractum
(Direito de concluir Tratados), são
as competências internacionais
que mais evidentemente resultam
da soberania dos Estados. Mas a
formação das Organizações Inter-
nacionais e a evolução da comuni-
dade internacional implicou em
grande parte a transferência de
algumas dessas faculdades sobe-
ranas, e a partilha de outras.
Dotadas dessa soberania transferi-
da pelos Estados, as Organizações
Internacionais já podem, hoje,
celebrar tratados e receber ou
enviar representações diplomáti-
cas.
Ulteriormente, tem também ganho
importância o indivíduo como
sujeito de Direito Internacional,
mas com evidentes limites: não
dotado de soberania o indivíduo
não possui as competências clássi-
cas dos Estados. Ele é mero sujei-
to de direito Internacional na
medida em que direitos e deveres
nascidos de convenções interna-
cionais, celebradas por Estados e/
ou Organizações Internacionais,
recaiam na sua esfera pessoal.
Porque nem o Sr. Rosário Poidi-
mani, nem a sua “Real Casa de
Portugal” dispõem de soberania,
não lhes pode ser reconhecido
qualquer Ius Legationis.
E ainda que, como parece ser seu
plano, pretenda instalar o seu
“Estado” numa ilha do Mar Adriáti-
co, tal pretensão parece não ser
exequível pois a constituição de
um Estado está sujeita ao cumpri-
mento dos seguintes requisitos:
- existência de um Povo, cultural,
histórica e axiologicamente orga-
nizado;
- existência de um Território, inde-
pendente. A compra de um territó-
rio à Croácia, não confere inde-
pendência ao mesmo;
- existência de um Governo, orga-
nizado;
- efectiva conexão entre os três
anteriores elementos. Ainda que a
“Real Casa de Portugal” venha a
formar o governo, se o povo é
croata, não parece haver qualquer
ligação entre os dois.
Cumpridos aqueles requisitos, a
soberania está ainda dependente
do reconhecimento da comunidade
internacional.
VIII. DA OFENSA AO BOM
NOME DE PORTUGAL E À CASA
DE BRAGANÇA
Do que é dado conhecer pela
documentação fornecida, encontra
-se em curso uma acção penal na
qual é arguido principal o Sr.
Rosário Poidimani, nas competen-
tes sedes jurisdicionais italianas,
pela alegada prática dos crimes de
fraude, evasão fiscal, coacção,
burla, extorsão e mesmo usurpa-
ção de funções públicas.
Não obstante a acção penal em
curso, a actuação como “Duca di
Bragança”, Chefe da “Real Casa de
Portugal” e “Príncipe de Saxónia
de Coburgo e de Bragança”, e de,
por esse meio, se ter feito passar
por representante do Estado Por-
tuguês, ao ponto de ter, inclusive,
aberto “Consulados” da “Real Casa
de Portugal”, conferiu fé pública
aos seus actos e revelou-se lesiva
para o bom nome de Portugal e da
legítima Casa de Bragança.
Por outro lado, no que concerne à
apropriação ilegítima do título de
Duque de Bragança, entende-se -
e é nesse espírito que a Republica
Portuguesa tem mantido a legisla-
ção sobre o uso de títulos nobiliár-
quicos (Decreto do Governo n.º
10537, de 12 de Fevereiro de
1925) - que os títulos ou forais
correspondem a antigas tradições
de família, pelo que elementos
importantes da identidade pessoal
e familiar. Mesmo em regime
republicano, não proteger os legí-
38 O DEBATE
A Legitimidade de D. Duarte
Salvo melhor opinião, consider-se conveniente para o Estado Português (e igualmente para a Casa Real de Bragança na qualidade de contra -interessados) associar-se, n o s t e r m o s d o Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, à acção penal em curso em Itália, se tal ainda for possível, ou intentar uma n o v a a c ç ã o d e responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e não-patrimoniais que implicou a lesão da imagem, do nome e da honra do Estado Português e da Casa Real d e B r a g a n ç a ; eventualmente, se a lei italiana o previr, despoletar igualmente uma acção penal com vista à punição por ultraje à imagem e aos símbolos da soberania de um Estado.
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15 JUNHO 2011 O DEBATE 39
A Legitimidade de D. Duarte timos titulares do uso ou apropria-
ção indevida dos seus títulos
implica uma violação da norma
prevista no art.º 26.º da Constitui-
ção da República Portuguesa
(direito à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalida-
de, ao bom nome e reputação, à
imagem.).
Acresce que o Sr. Rosário Poidi-
mani tem ostentado um brasão
que, até 1910, correspondeu ao
brasão do Chefe de Estado de Por-
tugal, acção que parece configurar
um uso abusivo e ilegítimo de sím-
bolos da soberania nacional, pre-
visto e punido pelo Código Penal
no art.º 332.º.
De acordo com as considerações
anteriores, considera-se conve-
niente, salvo melhor opinião, o
Estado Português constituir advo-
gado, através da Embaixada de
Portugal em Roma, para que atra-
vés desse mandatário, o Estado se
associe, e, querendo, a Casa de
Bragança na qualidade de contra-
interessado, à acção penal em
curso, nos termos dos números 3
e 4 do art.º 5.º do Regulamento
do Conselho 44/2001, de 22 de
Dezembro de 2000, que regula a
competênc ia jurisdic ional em
matéria civil e comercial, com o
intuito de obter reparação dos
danos de que resultou o desprestí-
gio do nome de Portugal, da sua
história e tradição, designadamen-
te danos não-patrimoniais e patri-
moniais (despesas administrati-
vas, honorários dos advogados,
etc.).
E, se a lei italiana previr a protec-
ção da imagem ou da honra do
nome de um Estado ou dos seus
símbolos históricos, ou de uma
entidade histórica como a Casa de
Bragança, possa, salvo melhor
entendimento, ser despoletado o
processo conducente à punição
por violação dessas normas.
Se, por fim, após terem sido
encerrados os seus “consulados” e
ter sido condenado na reparação
dos danos mencionados, o Sr.
Rosário Poidimani insistir em pros-
seguir as suas actividades ilícitas e
em int itular-se ilegitimamente
Duque de Bragança e Chefe da
“Real Casa de Portugal” (cuja pro-
positada semelhança com Casa
Real de Portugal ou de Bragança
conduz ao erro sobre a legitimida-
de daquela) configurará o crime
de desobediência previsto pelo
direito penal italiano e português.
IX. CONCLUSÃO Face ao que precede, conclui-se nos seguintes termos: - Não obstante ser Portugal uma República, o direito à sucessão na chefia da casa real não-reinante continua a ser regulado pelo direito consuetudinário internacional; - O Estado Português reconhece, de acordo com aquele direito consuetudinário, que a Casa Real de Bragança e o seu chefe, o Sr. D. Duarte Pio, Duque de Bragança, são os legítimos sucessores dos Reis de Portugal. A esse reconhecimento, associa-se o reconhecimento tácito das restantes Casas Reais do mundo; - Mesmo reconhecida oficialmente, a Casa de Bragança não tem qualquer capacidade de representação do Estado que não lhe tenha sido expressamente e ad hoc concedida. Não é, igualmente um sujeito de Direito Internacional dotado de soberania, pelo que não detém a faculdade de receber e enviar representações diplomáticas. - A actuação do Sr. Rosário Poidimani em Itália, designadamente a prática de crimes em nome da sua “Real Casa de Portugal” revelou-se lesiva para o nome de Portugal e para a honra da Casa Real de Bragança, desrespeitosa para a história e para os interesses do país e abusiva no uso dos símbolos e títulos outrora do chefe de estado de Portugal que agora pertencem à legít ima Casa Real de Bragança. Salvo melhor opinião, consider-se conveniente para o Estado Português (e igualmente para a Casa Real de Bragança na qualidade de contra-interessados) associar-se, nos termos do Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, à acção penal em curso em Itália, se tal ainda for possível, ou intentar uma nova acção de responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e não-patrimoniais que implicou a lesão da imagem, do nome e da honra do Estado Português e da Casa Real de Bragança; eventualmente, se a lei italiana o previr, despoletar igualmente uma acção penal com vista à punição por ultraje à imagem e aos símbolos da soberania de um Estado.
15 JUNHO 2011 O DEBATE 41
A República vista à lupa...
República Velha António José Telo,
A República e os títulos nobiliárquicos Carlos Bobone
Qual e a coisa qual é ela que entra pela porta e sai pela janela?
Nuno Resende
República Velha
A proclamação da República surge
em 1910 como um fenómeno
estranho e bizarro, que apanha as
capitais da Europa desprevenidas.
O 5 de Outubro foi um movimento
da capital, alargando-se no máxi-
mo a um arco de pequena dimen-
são em seu torno, onde se inclui
Almada e Loures, que com muito
boa vontade se pode prolongar até
Setúbal e Alpiarça. No resto do
país, o regime foi proclamado lite-
ralmente ''por telegrama'', na pre-
monitória expressão de João Cha-
gas, a mais brilhante pena de pro-
pagandista ao serviço dos republi-
canos. Mas fora de Lisboa estava
92% da população, num país pre-
dominantemente rural,[1] onde o
sector primário ocupava 56% da
população activa, enquanto a
indústria activa reunia só 21% e,
destes, só cerca de 3,5% (85 000
trabalhadores) estava em unida-
des com mais de 50 empregados,
que eventualmente mereciam a
classificação de fábricas. A Repú-
blica era a obra de uma minoria
urbana activa, representada por
uma frente de várias organiza-
ções, onde o elemento básico para
a revolução foi a Carbonária,
embora a direcção política perten-
cesse ao directório do Partido
republicano, que não aceitou in-
cluir qualquer elemento da Carbo-
nária no Governo Provisório.
A República era sem dúvida um
regime frágil, sem apoios externos
significativos, com o permanente
machado da ameaça espanhola
sobre a sua cabeça, como a obra
de Hipólito de la Torre muito bem
prova (ver nomeadamente Conspi-
ração contra Portugal. As Relações
Políticas entre Portugal e a Espa-
nha em 1910-1912, Lisboa, 1978,
na Encruzilhada da Grande Guer-
ra, Portugal-Espanha, 1913-1919,
Lisboa, 1980). Era um regime que,
em resumo, se baseou na aplica-
ção bem sucedida de uma estraté-
gia política de conquista e manu-
tenção do poder pelo Partido
Democrático.[2] Esta estratégia
passava pela marginalização dos
partidos republicanos conservado-
res que não conseguiram criar
uma resposta à altura da habilida-
de política de Afonso Costa, pela
manutenção de uma relação muito
particular com o movimento ope-
rário (repremido quando se radi-
calizava, mas imprescindível para
aguentar o poder republicano nas
alturas de crise), pela passividade
do mundo rural, pela vigilância e
contenção do corpo de oficiais do
Exército,[3] pela ampla divisão dos
adversários políticos e pela con-
quista do apoio mínimo da Ingla-
O 5 de Outubro foi um movimento da capital, alargando-se no máximo a um arco de pequena dimensão em seu torno, onde se inclui Almada e Loures, que com muito boa vontade se pode prolongar até Setúbal e Alpiarça. No resto do país, o regime foi proclamado literalmente ' 'por te legrama'', na premonitória expressão de João Chagas, a mais b r il ha n te p ena de propagandista ao serviço dos republicanos.
terra,[4] imprescindível para a con-
tenção das ambições espanholas
na Europa, e das alemãs e das sul
-africanas no império. Todos estes
elementos necessários para a
equação política que mantinha o
partido democrático no poder
eram frágeis, o que fazia que as
crises fossem permanentes.
A instabilidade passa a ser a pala-
vra-chave de um aparelho central
do Estado enfraquecido e incapaz
de conter ou reprimir as recentes
manifestações de mal-estar social.
[...].
O período final da Grande Guerra
pode ser entendido como um dos
vários abalos conjunturais de uma
crise mais longa do poder do Esta-
do que se manifesta de forma
aberta desde 1890 e que só será
parcialmente superada nos anos
30. Em termos muito simples,
podemos dizer que se trata da cri-
se da transição de uma democra-
cia liberal elitista, que marca o
século XIX, para uma democracia
de massas e urbana que ainda não
tem condições de funcionar de for-
ma a garantir a estabilidade políti-
ca numa sociedade como a portu-
guesa. São, em resumo, os abalos
da transição de um tipo de regime
típico da Europa do século XIX
para um outro, característico da
Europa desenvolvida do século XX.
O problema é que a ''democracia
de massas'' exige condições
sociais, económicas e de mentali-
dade que não existem no Portugal
de começos do século XX. As
''ditaduras'' de D. Carlos, a Repú-
blica, o Sidonismo e até o Estado
Novo, são manifestações desta
longa transição de quase um sécu-
lo (1890-1974) entre dois tipos de
democracia. O Estado Novo, no
entanto, é já a superação da crise
do poder do Estado, na medida
em que assegura durante 48 anos
o funcionamento minimamente
estável da estrutura política que
edifica.
[1] Mais de três quartos da população por-tuguesa viviam em zonas rurais em 1910. As duas únicas cidades que mereciam esse nome eram Lisboa e o Porto. [2] O autor que melhor estudou e definiu essa estratégia foi Vasco Pulido Valente (O Poder e o Povo, Lisboa, 1976); A República Velha 1910-1917, Lisboa,1997, embora a sua vontade de realçar o corte com a visão de propaganda o tenha levado a apresentar a República como uma feroz ditadura jaco-bina. Numa opinião pessoal, há sobretudo laços de continuidade entre os dois regi-mes, apesar das diferenças de forma, nomeadamente nos métodos de manter a oposição nos limites do admissível. Ambos eram democracias liberais e elitistas, típi-cas do século. [3] Vários autores estudaram a relação peculiar entre a República e as Forças Armadas. Realço a obra de José Medeiros Ferreira O Comportamento Político dos Militares, Lisboa, 1992. [4] A Inglaterra demorou mais de um ano a reconhecer o novo regime num processo difícil e complicado.
A República
e os Títulos Nobiliárquicos
Os apologistas da primeira repú-
blica (David Ferreira, por exem-
plo) mencionam, entre a grandio-
sa obra realizada pelo governo
provisório, a abolição dos títulos
nobiliárquicos. Escapa-lhes a efé-
mera duração desta medida:
menos de dois meses.
Os títulos de nobreza, abolidos em
15 de Outubro de 1910 (Diário do
Governo, nº 11, de 18 de Outubro
de 1910), são restabelecidos em 2
de Dezembro do mesmo ano:
aqueles que provarem o seu direi-
to ao uso de títulos nobiliárquicos
“podem continuar a usá-los; mas
nos actos que tenham de produzir
direitos ou obrigações, será neces-
sário o emprego do nome civil
para que esses actos tenham vali-
dade” (Diário do Governo, nº 60,
de 15 de Dezembro de 1910).
Alguns titulares que, por terem
aderido à república, como o Vis-
conde da Ribeira Brava, ou por
serem funcionários públicos, como
o Visconde de Faria, ocuparam
postos de elevada responsabilida-
de na hierarquia do estado repu-
blicano, mantiveram-se no uso
42 O DEBATE
A República vista à lupa...
Assim foi possível chegar-se a esta situação, imprevisível segundo os cânones das classificações políticas: no ano de 1914 a polícia municipal de Lisboa, cumprindo ordens dadas por um Visconde, cerca as instalações de um dos mais credenciados jornais republicanos, “A Lucta”, proibindo a distribuição e circulação deste periódico. V iv ia -se em ple na república radical, regime cujas características não se descrevem facilmente.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 43
A República vista à lupa... dos seus títulos, mesmo quando
desempenhavam funções oficiais.
Eram tratados pelas autoridades
do novo regime, em todas as cir-
cunstâncias, segundo a sua cate-
goria nobiliárquica, e os diplomas
que os nomearam para altos car-
gos, como o de governador civil de
Lisboa ou o de cônsul de Portugal
em várias cidades, não esqueciam
a deferência devida a estes titula-
res, reconhecendo-lhes o título
que haviam recebido da monar-
quia.
Assim foi possível chegar-se a esta
situação, imprevisível segundo os
cânones das classificações políti-
cas: no ano de 1914 a polícia
municipal de Lisboa, cumprindo
ordens dadas por um Visconde,
cerca as instalações de um dos
mais credenciados jornais republi-
canos, “A Lucta”, proibindo a dis-
tribuição e circulação deste perió-
dico. Vivia-se em plena república
radical, regime cujas característi-
cas não se descrevem facilmente.
Qual é coisa, qual é ela,
Que entra pela porta
e sai pela janela?
Afonso Costa não é, como escre-
veu A.H. de Oliveira Marques, o
mais querido e o mais odiado dos
Portugueses. É, com certeza, uma
das figuras mais ridículas e abjec-
tas da História de Portugal, epíto-
me do que constituiu a I Repúbli-
ca, ou seja, um regime de vale-
tudo, de ameaças, de extorsões,
de perseguições e ódios. Afonso
Costa jamais foi querido. Foi sem-
pre temido, odiado, repudiado e
no fim respeitado, pois ser amado
significava perder a força necessá-
ria à consolidação da sua obra. A
República Portuguesa, sobretudo
nos seus defeitos (sim, porque
não podemos esconder-lhe algu-
mas virtudes) foi da sua lavra.
Desde a tentativa de erradicação
da Igreja Católica, às sovas que
deu ou mandou dar aos seus opo-
sitores, passando pelos pequenos
furtos ou os grandes roubos em
que esteve envolvido, sem qual-
quer pejo, embaraço ou vergonha.
Como escreveu Fernando Pessoa:
«Não podendo Afonso Costa fazer
mais nada, é homem para mandar
assassinar. Tudo depende do seu
grau de indignação.». Ora, a
indignação de Afonso Costa teve
vários graus, tantos ou mais do
que aqueles que subiu na hierar-
quia da Maçonaria que o acolhia
com fraternidade. Aliás, a raiva
deste paladino da República nunca
foi elitista, faça-se-lhe justiça:
tanto se dirigia a monárquicos
como a republicanos, dependendo
de quem se atrevia a fazer-lhe
frente.
Político experimentado dos últimos
anos do Rotativismo e da expe-
riência do Franquismo, A. Costa
sabia uma coisa: para governar
um país como Portugal, a Demo-
cracia só podia vir depois. Mais, o
primeiro passo para mandar nos
portugueses, não é suspender o
Parlamento, ou calar a Imprensa,
é alimentar o mais possível o caci-
quismo e os clientelismos. Por
isso, com uma mestria nem
sequer igualada pelo seu sucessor
das Finanças a partir de 1926,
rodeou-se da família, criando uma
Dinastia de Costas (a expressão
aparece na sua correspondência),
leal, forte, incorruptível (na qual a
sua mulher teve um papel funda-
mental, mesmo apesar de às
mulheres a República ter negado o
direito ao voto), distribuiu benes-
ses aos mais próximos, amigos ou
inimigos, mantendo-os no bolso
como qualquer bom gangster o
faria.
Contudo, Costa tinha um lado
medroso que faz dele esse político
tão extraordinário e vivo da nossa
História. Rodeava-se da púrria
(adolescentes vadios e marginais
a quem oferecia bombas e armas
para assustar a população) e ele
próprio manejava a pólvora como
ninguém; por outro lado era inca-
Afonso Costa não é, como escreveu A.H. de Oliveira Marques, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses. É, com certeza, uma das figuras mais ridículas e abjectas da História de Portugal, epítome do que constituiu a I República, ou seja, um regime de vale-tudo, de ameaças, de extorsões, de perseguições e ódios.
incapaz de enfrentar um opositor num frente a frente. E tinha medo, muito medo, do próprio terror que lançara. Quando, em 1917, Sidónio o mandou ir pren-der ao Porto andou escondido em guarda-fatos e dali saiu apu-pado por uma fila de mulheres. Passou vexames inacreditáveis: viu a sua casa ser esbulhada de alguns dos objectos que ele tinha furtado nos Palácios Reais e um dia de Julho de 1915, seguindo num eléctrico atirou-se pela janela fora ao som e à vista de um clarão que pensava vir de uma bomba. Não fora um aten-tado, apenas um curto-circuito…estatelou-se no chão de onde foi levantado pelos transeuntes em estado grave e, durante meses e anos a fio, Lisboa transformou esta cena patética numa adivi-nha popular: Qual é coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela? Afonso Costa participou em negociatas e estranhos casos de favorecimento. Desapareceram processos durante o seu ministé-rio na Justiça e não poucas vezes viu o Parlamento envolvê-lo na “roubalheira” de que fala Raul Brandão e na qual políticos e militares participavam. Em França um banqueiro virou-se para António Cabral, ex-ministro da Monarquia perguntando-lhe: - “Conhece um tal de Afonso Cos-ta, em Portugal”. António Cabral disse que sim, que o conhecia bem… ao que o capitalista res-pondeu – “Pois deve ser um dos homens mais ricos do seu país, dada a quantia que possui na conta que por cá abriu…” Nada o detia. Para além de manipular a legislação a seu
favor (algo que facilmente podia fazer dado que controlava, a partir da proeminência do seu Partido Democrático, veja-se o
Caso das Binubas, de que hoje ninguém fala…) executava mala-barismos financeiros, como o que envolveu a sua mulher para quem fez desviar, sob sob a des-culpa da caridade, meio milhão de francos, destinados à Comis-são de Hospitalização da Cruza-da das Mulheres Portuguezas, de que a D. Alz ira Costa era presi-dente. Claro está que no meio de governos maioritários, ditatoriais e não fiscalizados, no meio do clima de terror que Afonso Costa ajudara a criar e mantinha para sua segurança e a da própria República, os roubos não só eram frequentes, como absoluta-mente seguros (prova-o a “habilidade” de Alves dos Reis, em 1925). Nenhuma investiga-ção sendo efectivamente aberta levaria a alguma condenação. Não deixa de ser curioso que às despesas e aos roubos que os republicanos faziam questão de apontar antes de 1910 tornaram-se frequentíssimos durante a os loucos anos da I República: armamento, fardas militares, promiscuidades várias com empresas estrangeiras, etc., etc. Através da figura de Afonso Cos-ta é fácil entender as actuais comemorações do Centenário e como, a meio deste ano de 2010, os seus mandatários resolveram assumir a celebração dos primeiros anos da República, evitando assim o Estado Novo e, na 3.ª República, fugir à inevitá-vel glorificação de uma certa “oposição” não socialista. É que a Primeira República, intolerante e exclusiva como hoje alguns dos seus admiradores é a melhor
e talvez a única maneira de regressar às raízes e à autentici-dade da República Portuguesa tal qual ela foi gizada.
44 O DEBATE
A República vista à lupa...
Quando, em 1917, Sidónio o mandou ir prender ao Porto andou escondido em guarda-fatos e dali saiu apupado por uma fila de mulheres. Passou vexames inacreditáveis: viu a sua casa ser esbulhada de alguns dos objectos que ele tinha furtado nos Palácios Reais e um dia de Julho de 1915, seguindo num eléctrico atirou-se pela janela fora ao som e à vista de um clarão que pensava vir de uma bomba. Não fora um atentado, apenas um curto-circuito…estatelou-se no chão de onde foi levantado pelos transeuntes em estado grave e, durante meses e anos a fio, Lisboa transformou esta cena patética numa adivinha popular: Qual é coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela?
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 47
José Maria d’ Eça de Queiroz
Um espectador: Novos factores da política portuguesa *
* publicado anonimamente na “Revista de Portugal”
“Uma parte importante na
Nação perdeu totalmente a fé
no parlamentarismo, e nas
classes governamentais que o
encarnam; e tendem a substi-
tui-la por outra coisa, que ela
ainda não definiu bem a si pró-
pria”
Artigo de Eça de Queirós publicado
anonimamente na «Revista de
Portugal», publicação editada no
Porto, mas que Eça dirigia desde
Paris. Este artigo foi atribuído
durante muito tempo a Oliveira
Martins, mas Ernesto Guerra da
Cal comprovou a existência do
manuscrito original autógrafo.
Neste artigo, Eça afirma que, com
a crise política provocada pelo
Ultimato britânico de 1890, a
população portuguesa passou a
pensar que «antes qualquer outra
coisa do que o que está». O pro-
blema era saber o que era esta
«outra coisa». Um governo autori-
tário, com base no exército, pare-
cia improvável. Então o que se
perfilava no futuro parecia ser ou
uma «revolução feita de cima,
uma concentração de força na
Coroa ... que não seria compreen-
dida pela Nação», ou uma revolu-
ção vinda de baixo - a República,
que para Eça «seria a confusão, a
anarquia, a bancarrota.»
Acabava então perguntando, não
apresentando naturalmente uma
solução:
- «Que resta pois? Resta, como
esperança, o sabermos que as
nações têm a vida dura, e que o
nosso Portugal tem a vida duríssi-
ma.» Sabendo que «entre nós têm
-se visto governos que parecem
absurdamente apostados em
errar, errar de propósito, errar
sempre, errar em tudo, errar por
frio sistema.»
A história veio comprovar que Eça
de Queirós para além de ser um
grande escritor, assim como um
grande jornalista, como Filomena
Mónica salientou, foi também um
grande analista político. Este arti-
go previu os 40 anos seguintes. O
reforço do poder real, com a
«ditadura» de João Franco, apoia-
da por D. Carlos; a revolução
republicana, que se tornou a anar-
quia que o autor previu, e a solu-
ção militar que era a menos previ-
sível em 1890, mas que foi a que
se mostrou a mais duradoira exis-
tindo durante 50 anos, de 1926 a
1976.
Depois do ultimatum de 11 de
Janeiro e do frémito de indignação
que percorreu todo o País até às
mais obscuras vilas, houve um
momento em que justif icadamente
se pôde supor que a Nação, enfim
despertada do seu sono ou da sua
indiferença, pronta a retomar a
posse de si mesma, e certa de que
a vida que vinha levando nestes
últimos vinte anos a votava irrevo-
gavelmente às humilhações e aos
desastres, decidira, num ingente
esforço de vontade, começar uma
vida nova.
Não escaparam a esta ilusão cabe-
ças que se prezam de friamente
raciocinadoras. E quem estas
linhas escreve, apesar de dois lus-
tres inteiros de desilusões, chegou
a crer que realmente existia no
fundo da Nação, sob a sua apa-
rente apatia, uma grande reserva
de força, capaz de inspirar e de
impor, sem resistências possíveis,
uma reorganização política e eco-
Depois do ultimatum de 11
de Janeiro e do frémito de
indignação que percorreu
todo o País até às mais
obscuras vilas, houve um
m o me n to e m q ue
justificadamente se pôde
supor que a Nação, enfim
despertada do seu sono ou
da sua indiferença, pronta
a retomar a posse de si
mesma, e certa de que a
vida que vinha levando
nestes últimos vinte anos a
votava irrevogavelmente
às humilhações e aos
desastres, decidira, num
ingente esforço de
vontade, começar uma
vida nova.
nómica do Estado.
A ilusão, como dissemos, em bre-
ve se sumiu por esses ares. Pou-
cas semanas bastaram a eviden-
ciar que não há no país uma força
latente de onde pudesse vir o
movimento de reorganização
nacional, ou que, se a há (é sem-
pre grato guardar uma esperan-
ça), o ultimatum do dia 11 e a
perda de territórios maninhos de
África, que quase ninguém sabia
onde ficavam, não foi abalo bas-
tante decisivo para a fazer desper-
tar e operar. Nem todos os cho-
ques do ferro conseguem com
efeito fazer saltar o fogo das
entranhas da pedra.
Mas se fora das regiões da Políti-
ca, na massa geral da Nação, o
ultimatum não logrou produzir um
movimento que viesse trazer
transformações essenciais à nossa
vida administrativa e económica,
sucedeu que, dentro dessas pró-
prias regiões da Política, esse
mesmo ultimatum, e as manifes-
tações tumultuárias que o acom-
panharam, vieram alterar o equilí-
brio dos elementos regulares com
que a Política jogava, fazendo
aparecer nela elementos novos,
novos factores, com que é forçoso
de ora avante contar, e que, coisa
estranha!, fazem o Portugal de
1890 politicamente diferente do
Portugal de 1889. É esta nova
situação que convém estudar com
clareza e franqueza. Estender
sobre ela um véu pudico, disfarçar
-lhe discretamente, por falsas e
injustificáveis conveniências públi-
cas, os perigos que ela contém,
mão a querer dissecar abertamente
com o temor de patentear realida-
des desagradáveis, seria o mesmo
que impedir uma cura ainda possível
pelo desejo de não aludir a um mal
manifestamente certo. Seria um cri-
me de leso‑patriotismo.
I
O Partido Republicano não é certa-
mente de criação recente. Desde
34, desde 20, sempre em Portugal
existiram republicanos e jacobi-
nos. Foi possível porém durante
muito tempo contá-los, como se
diz, pelos dedos de uma só mão.
Eram ideólogos isolados, um pou-
co vaidosos do seu isolamento,
vaidosos sobretudo da sua inde-
pendência e isenção, e da superio-
ridade intelectual que as suas
ideias lhes davam ou lhes pare-
ciam dar, de resto universalmente
respeitados, e respeitadores eles
mesmos do regímen sob que
viviam e de quem por vezes acei-
tavam empregos.
O primeiro ensaio de republicanis-
mo, com visos de organização, foi
devido, aí por 1867 ou 68, a um
guarda-livros da antiga Casa Ber-
trand, moço excelente, mas faná-
tico, que consumiu o seu pecúlio e
a sua saúde no empenho de fun-
dar um clube, menos como núcleo
de acção que como núcleo de pro-
paganda. Esse clube (se nos não
falha a memória) chegou a funcio-
nar numa casa da rua do Príncipe,
e a ele pertenceram alguns
homens hoje ilustres nas letras, e
mesmo famosos pelas suas ideias
autoritárias. De resto nesse clube
tratava-se mais de estimular a fra-
ternidade humana, de libertar as
raças oprimidas, etc., do que pro-
priamente de abalar o poder que
residia na Ajuda. Era um clube de
humanitários e de idealistas, de
onde apenas saiu um acto prático,
a s c onfe rênc ia s c hamadas
do Casino, instrumento de propa-
ganda que tinha naturalmente
mais de literária do que de políti-
ca. Muito bem nos lembramos de
ir lá ouvir o nosso saudoso amigo
Augusto Soromenho, o erudito
auxiliador de Alexandre Herculano,
discorrer sobre Chateaubriand; e
dias depois o Sr. Eça de Queirós
apresentar, muito antes de Zola,
as bases de uma nova estética, o
Realismo. Apesar de não ameaça-
rem muito seriamente a ordem,
ainda assim foram estas palestras
julgadas subversivas pelo Duque
48 O DEBATE
Novos factores da política portuguesa
O primeiro ensaio de republicanismo, com visos de organização, foi devido, aí por 1867 ou 68, a um guarda-livros da antiga Casa Bertrand, moço excelente, mas fanático, que consumiu o seu pecúlio e a sua saúde no empenho de fundar um clube, menos como núcleo de acção que como núcleo de propaganda. Esse clube (se nos não falha a memória) chegou a funcionar numa casa da rua do Príncipe, e a ele pe r tence ram a lgu ns homens hoje ilustres nas letras, e mesmo famosos p e l as s ua s i de i as autoritár ias. De resto nesse clube tratava-se mais de estimular a fraternidade humana, de libertar as raças oprimidas, etc., do que propriamente de abalar o poder que residia na Ajuda. Era um clube de humanitários e de idealistas, de onde apenas saiu um acto prático, as conferências chamadas do Casino, instrumento de propaganda que tinha naturalmente mais de literária do que de política.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 49
Novos factores da política portuguesa (então Marquês) de Ávila, que as
proibiu no dia em que um dos con-
ferentes (o Sr. Batalha Reis, se
não nos enganamos) ia falar sobre
a «Divindade de Jesus». A impren-
sa de oposição exibiu a costumada
indignação liberal; o Sr. Dias Fer-
reira fez uma interpelação ao
ministério; e não se falou mais
nas conferências do Casino, de
que apenas resta como vestígio
uma verdadeira jóia de crítica his-
tórica, um folheto do Sr. Antero de
Quental, hoje muito raro, sobre a
Decadência dos Povos Peninsula-
res. O clube da rua do Príncipe
morreu de inanição, e este ensaio
jacobino fundiu-se ou perdeu-se
no movimento socialista que, aí
por 1871 e 72, ainda sob a inicia-
tiva do Sr. Fontana e de outros,
englobou em si uma considerável
porção da classe operária de Lis-
boa. Esse movimento socialista,
que era uma ramif icação entre nós
da famosa Internacional, fracas-
sou quando essa sociedade, por
motivos que não vem para aqui
compendiar, perdeu a sua acção
sobre a massa dos trabalhadores
europeus. Depois disso a corrente
republicana, que várias causas
tinham continuado a desenvolver
surdamente, aflorou de novo à
superf ície e fez sentir a sua acção
por ocasião do centenário de
Camões. E finalmente a sua entra-
da como partido organizado na
sociedade política pode ser datada
da questão de Lourenço Marques.
Não tomámos a pena para fazer a
história, ainda pouco acidentada,
do Partido Republicano. Essa his-
tória, por enquanto, reduz-se prin-
cipalmente a números. Um depu-
tado republicano por Lisboa há
quinze anos não reuniria cem
votos. Nas últimas eleições os
republ ic anos t iveram alguns
milhares de votos. E estes milha-
res de votos têm uma signif icação
grave, não tanto por virem do
apoio progressista (ainda que este
apoio é também significativo e sin-
tomático), mas por virem de uma
forte massa de eleitores indepen-
dentes, pertencendo pela maior
parte às classes liberais e à classe
comercial, que até aqui se absti-
nham de votar.
Um tal desenvolvimento de repu-
blicanos é obra recente destes
últimos anos. E a sua causa tem
sido simples e unicamente o des-
contentamento: isto é, o Partido
Republicano tem-se alastrado, não
porque aos espíritos democratiza-
dos aparecesse a necessidade de
implantar entre nós as instituições
republicanas, como as únicas
capazes de realizar certos pro-
gressos sociais - mas porque
esses espíritos sentem todos os
dias uma aversão maior pela polí-
tica parlamentar, tal como ela se
tem manifestado, com o seu cor-
tejo de males, nestes derradeiros
tempos.
O Partido Republicano em Portugal
nunca apresentou um programa,
nem verdadeiramente tem um
programa. Mais ainda, nem o pode
ter: porque todas as reformas
que, como partido republicano, lhe
cumpriria reclamar, já foram reali-
zadas pelo liberalismo monárqui-
co. De sorte que se vai para a
república ou se tende para ela,
não por doutrinarismo, por urgên-
cia de mais liberdade e de institui-
ções mais democráticas, mas por-
que numa já considerável parte do
País se vai cada dia radicando
mais este desejo: antes qualquer
outra coisa do que o que está!
Esta é a mais recente e desgraça-
da fórmula política da Nação. É a
fórmula que se ouve repetida por
toda a parte onde dois homens se
juntam a comentar as coisas
públicas. Ora que pode ser essa
outra coisa? Não pode ser o
governo pessoal, fórmula para que
apenas se inclinam alguns espíri-
tos superiores, mas odiosa à
generalidade da Nação, de todo
democratizada, ou antes irradica-
velmente impregnada de liberalis-
O Partido Republicano em
Portugal nunca apresentou
um programa, nem
verdadeiramente tem um
programa. Mais ainda, nem
o pode ter: porque todas
as reformas que, como
partido republicano, lhe
cumpriria reclamar, já
foram realizadas pelo
liberalismo monárquico. De
sorte que se vai para a
república ou se tende para
ela, não por doutrinarismo,
por urgência de mais
liberdade e de instituições
mais democráticas, mas
p o r q u e n u m a j á
considerável parte do País
se vai cada dia radicando
mais este desejo: antes
qualquer outra coisa do
que o que está!
mo; tem pois, na ideia dos des-
contentes, de ser a república, uma
república, que, eliminando pelo
mero facto do seu triunfo todo o
pessoal do parlamentarismo e as
suas práticas, proceda, sem desa-
tender os interesses conservado-
res, a uma reorganização adminis-
trativa e económica da Nação.
Essa reorganização parece-nos, a
nós conservadores, que poderia
ser realizada dentro da monar-
quia. Mas os descontentes respon-
dem que a monarquia se acha ine-
vitavelmente, fatalmente vincula-
da e soldada a esse pessoal do
constitucionalismo, cuja incompe-
tência e corrupção eles julgam ter
sido super abundantemente com-
provada em anos já longos de
desgoverno que resta portanto
uma única solução, a república: e
que o momento vem chegando de
salvar por esse meio o País, que já
não pode ser salvo pela monar-
quia.
Cremos que ninguém, com uma
clara inteligência das coisas, nega-
rá ser esta a corrente de ideias ou
de impressões que tem desenvol-
vido o Partido Republicano. Do seu
mais recente e inesperado engros-
samento neste último ano houve-
ram causas mais directas e mais
especiais, internas e externas. Das
internas a maior foi sem dúvida o
último período da administração
progressista. Não queremos por
modo algum nestas páginas da
REVISTA, onde só podem ter cabi-
mento as apreciações genéricas de
ideias, doutrinas ou movimentos
sociais, fazer acusações específi-
cas a grupos políticos. Mas nin-
guém hoje contesta, mesmo den-
tro das fileiras progressistas onde
preclaramente sobram os homens
sinceros e de bem, que os erros
dessa administração foram fatais
ao sistema parlamentar e à
monarquia que é a sua expressão
suprema.
A parte sã da Nação ficou seria-
mente desgostosa. E as lamentá-
veis desordens parlamentares des-
se triste ano político, as violentís-
simas e desmandadas polémicas,
as mútuas e terríveis recrimina-
ções com que, obcecados pela pai-
xão, os partidos se feriam uns aos
outros na sua honra, deixaram no
País, que assistia espantado a
uma tallavagem pública de roupa
suja, o sentimento desalentado
que ele exprime por esta fórmula:
- Tão bons são uns como outros! É
esta uma outra das recentes e
desgraçadas fórmulas da opinião
pública em Portugal. Ora se, dos
que estão, tão bons são uns como
os outros no sistema parlamentar
– para onde ir, para que apelar?
Naturalmente para a república e
para os homens novos e puros
que ela possa trazer.
Uma outra causa exterior que veio
concorrer para o engrossamento
do Partido Republicano foi a revo-
lução do Brasil. Feita por uma raça
filha da nossa, que fala a nossa
língua e tem tantos interesses
ligados aos nossos, e feita aparen-
temente com uma cordura, uma
generosidade, uma ordem que
espantou (e enganou) o mundo,
esta revolução veio entre nós, de
mil maneiras indirectas, desenvol-
ver o sentimento republicano; já
provando como sem desordem
social se pode melhorar um regí-
men político; já mostrando tenta-
doramente a que fastígios de
poder pode galgar, numa manhã,
qualquer obscuro articulista ou
qualquer obscuro professor; já
dando a esperança de um forte
apoio moral e (porque o não dire-
mos?) de um forte apoio material.
A revolução do Brasil tranquilizan-
do os ordeiros, excitando os ambi-
ciosos, e dando confiança a todos
pela esperança de apoio e recur-
sos positivos – foi um golpe que
das instituições brasileiras reper-
cutiu indirectamente sobre as nos-
sas instituições.
Não menor acção estimuladora
trouxe aos nossos republicanos a
50 O DEBATE
Novos factores da política portuguesa
Uma outra causa exterior que veio concorrer para o engrossamento do Partido Republicano foi a revolução do Brasil. Feita por uma raça filha da nossa, que fala a nossa língua e tem tantos interesses ligados aos nossos, e feita aparentemente com uma c o r d u r a , u m a generosidade, uma ordem que espantou (e enganou) o mundo, esta revolução veio entre nós, de mil maneiras indirectas, desenvolver o sentimento republicano; já provando como sem desordem social se pode melhorar um regímen político; já mostrando tentadoramente a que fastígios de poder pode galgar, numa manhã, q u a l q u e r o b s c u r o articulista ou qualquer obscuro professor; já dando a esperança de um forte apoio moral e (porque o não diremos?) de um forte apoio material.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 51
Novos factores da política portuguesa consolidação da república em
França, tão ameaçada, ainda
antes das eleições de Setembro,
pela c ol igação moná rqu ic o-
cesarista. A França, pelo simples
facto de ser república e como tal
prosperar, é hoje o mais poderoso
instrumento de propaganda repu-
blicana entre os povos latinos. Não
se reflecte bastante que às quali-
dades da sua raça, não à forma
das suas instituições, deve ela a
sua prosperidade; e que a Exposi-
ção seria tão brilhante sob o reina-
do de Filipe V, como foi sob a pre-
sidência de Carnot. O que se vê é
a República robustecendo o exér-
cito e a armada, construindo enor-
mes obras de defesa, reorganizan-
do superiormente os seus novos
domínios, alargando imensamente
a instrução, favorecendo o movi-
mento dos negócios a ponto de
tornar o próprio capital republica-
no, mantendo admiravelmente a
ordem, e, apesar da sua democra-
tização, conservando todas as ele-
gâncias da vida e da sociedade.
Tudo isto se atribui à república,
quando é unicamente obra da
França.
Finalmente entre as causas estra-
n h a s s e p o d e c o n t a r
o ultimatum do dia 11, que, se
não arrancou o País à sua apatia,
lhe deu subitamente o sentimento
mais claro, e por assim dizer agu-
do, da sua própria fraqueza e
desorganização; fraqueza e desor-
ganização que, aparecendo dentro
deste regímen, podem ser (e são)
obra de certas fatalidades, mas
são evidentemente também obra
desse regímen.«Aqui está onde
nós chegamos!» foi então a dolori-
da exclamação que resumia o sen-
tir público.
Assim, progressivamente, se tem
ido o Partido Republicano recru-
tando entre todas as classes e
todas as profissões, a advocacia, a
magistratura, o professorado, o
comércio, e mesmo a propriedade
rural, pela acção lenta de causas
diferentes, das quais a maior
incomparavelmente, e a única que
incessantemente opera, é a de um
forte descontentamento político.
E o que torna este descontenta-
mento político tanto mais vivo, e
por assim dizer activo, é que ele
tem o estímulo constante de um
imenso descontentamento indivi-
dual, nascido das dificuldades de
vida que cada um experimenta. É
a nossa pobreza geral que compli-
ca singularmente a nossa crise
política. Em casa onde não há pão
todos ralham e todos têm razão –
porque é deste modo que o pro-
vérbio deve ser entre nós emen-
dado. O célebre publicista Edmun-
do About afirmava que nada era
mais favorável aos governos em
França do que o vento do sudoes-
te -porque é ele que traz as chu-
vas e prepara as boas colheitas. A
oposição a um governo ou a um
regímen nunca toma com efeito
um carácter impaciente, violento e
destrutivo quando cada um tem
pão bastante na prateleira ou um
saldo favorável no seu banco.
Todo o regímen parece bom, pelo
menos perfeitamente tolerável, ao
pai de família que se sente na
abundância. A mudança de regí-
men, e as perturbações sociais
que lhe vêm inerentes, só lhes
inspiram então inquietação, por
poderem alterar ou anular as con-
dições favoráveis em que a sua
prosperidade se produziu. Entre
nós é justamente o contrário que
sucede. Ninguém vive na abun-
dância e todos se encontram em
dificuldades. Sofre o empregado
pela pequenez dos ordenados;
sofre o operário pela escassez dos
salários; sofre o lojista pelos limi-
tados meios de comprar de que
dispõe o público; sofre o comer-
ciante pela estagnação das tran-
sacções; e sofre o agricultor pela
longa crise agrícola que lhe desva-
loriza a propriedade. Todos
sofrem; e ainda que muitos só se
deveriam queixar da sua falta de
E o que torna este descontentamento político tanto mais vivo, e por assim dizer activo, é que e le tem o estímulo constante de um imenso d e s c o n t e n t a m e n t o individual, nascido das dificuldades de vida que cada um experimenta. É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão – porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado.
iniciativa, de persistência, e mes-
mo de coragem civil, todos à uma
se voltam contra um regímen que
eles consideram como o causador
de todos esses males públicos de
onde datam os seus males parti-
culares. Em todas estas classes se
encontra com efeito a mesma opi-
nião expressa pela mesma fórmu-
la: - isto assim não pode conti-
nuar! Isto é a desorganização
administrativa, política e económi-
ca.
Constitui esta massa já considerá-
vel de descontentes um partido
militante e organizado? Não, cer-
tamente. Esta massa não está ain-
da filiada no Partido Republicano,
não pertence ainda a clubes, não
obedece ainda a um programa.
Quando muito lê o Século. Mas
constitui essa classe, por assim
dizer, não-monárquica, que no
Brasil permit iu que se fizesse a
Revolução no espaço de duas
horas, e que é tão perigosa para a
segurança das instituições pela
sua total indiferença e desamor,
como o seria pela sua intervenção
hostil e combatente.
Tais são os elementos de que já
efectivamente se compõe ou com
que condicionalmente já conta o
Partido Republicano. É todavia
este partido um perigo imediato e
iminente para as instituições? Lon-
ge de toda a ilusão optimista, afi-
gura-se-nos que esse partido, no
dia de hoje, oferece um perigo
ainda mínimo, porque tem a impo-
tência de uma multidão a que falta
a direcção. Entre os republicanos
organizados, filiados, arregimenta-
dos, quantos se contarão que sin-
tam confiança real no seu directó-
rio e seus chefes oficiais? Raros,
segundo nos afirmam aqueles que
por experiência própria o sabem.
Pode haver, e há, por esses chefes
simpatia individual; pode haver, e
há, crença na sua sinceridade. Mas
não há já a fé na sua coragem, na
sua habilidade, ou na sua compe-
tência como organizadores de um
movimento. E enquanto à massa
dos descontentes, dos que chama-
mos não-monárquicos, esses nun-
ca consentiriam certamente em
admitir como chefes, e portanto
como futuros promotores da reor-
ganização nacional, os indivíduos,
aliás pessoalmente estimáveis,
que hoje têm a direcção aparente,
e queremos supor que real, dos
interesses republicanos. E sem
desejar ser descorteses para com
personalidades, – somos forçados
a constatar que os actuais chefes
republicanos, como tais, como
chefes, fazem sorrir toda a parte
séria da Nação.
Isto todavia adia simplesmente o
perigo até ao momento em que
homens de capacidades mais
altas, ânimos mais decididos, e
sobretudo de mais hábeis mane-
jos, tomem conta do partido já
organizado e da multidão descon-
tente que em torno deles se agita,
e dêem a este conjunto de forças
vagas a direcção que elas recla-
mam e parecem prontas a aceitar
de quem lhes traga uma garantia
de êxito.
Mas ainda mesmo sem direcção,
ou com uma direcção impotente
porque incompetente, o Partido
Republicano existe, exibe-se, fala,
escreve, vota; e por este mero
facto de existir obriga as classes
governamentais a uma atitude
legítima de defesa e de resistên-
cia. E eis aqui, se não erramos,
uma outra fatalidade que vem
aumentar os perigos do republica-
nismo. Desde que, desgraçada-
mente, se não pôde impedir por
uma sábia administração que se
viesse a formar esta massa de
descontentes, prestes a tornar-se
revolucionária, as classes gover-
namentais são necessariamente
obrigadas, desde que ela se for-
mou, a mantê-la em respeito e a
procurar inutilizá-la por meio da
repressão. Os próprios republica-
nos por mais fanáticos não espe-
ram decerto que o governo lhes
52 O DEBATE
Novos factores da política portuguesa
E eis aqui, se não erramos, uma outra fatalidade que vem aumentar os perigos do republicanismo. Desde que, desgraçadamente, se não pôde impedir por uma sábia administração que se viesse a formar esta massa de descontentes, prestes a tornar-se revolucionária, as classes governamentais são necessar iamente obrigadas, desde que ela se formou, a mantê-la em respeito e a procurar inutilizá-la por meio da repressão.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 53
Novos factores da política portuguesa entregue espontaneamente as
secretarias, o tesouro e a direcção
dos serviços públicos. Desde que
do seu lado comece a acção – do
lado do Poder deve começar a
repressão. Ora esta repressão só
se pode efectuar coarctando cer-
tas liberdades, - liberdade de
imprensa, liberdade de reunião,
liberdade de associação - que
entre nós penetraram profunda-
mente nos costumes públicos, e
que formavam além disso o único
recurso deixado ao descontenta-
mento para desafogar e se conso-
lar. A perda do direito de usar (e
sobretudo de abusar) dessas liber-
dades vai portanto originar uma
imensa irritação, e um acréscimo
de descontentamento tanto mais
intenso quanto mais comprimido.
As repressões são sempre as
grandes fautoras das revoluções.
Um partido perseguido cresce na
proporção geométrica dessa per-
seguição. Na Alemanha, há sete
anos, os soc ialistas reuniam
menos de uma dezena de milha-
res de votos; vieram as famosas
leis de repressão, e a política ter-
rorista de Bismarck; e ao fim de
seis anos os socialistas obti-
nham mais de um milhão de
votos, e o próprio Bismarck caía.
As classes governamentais sabem
isto perfeitamente bem, e não
procedem por obcecação ou por
um leviano desdém das repetidís-
simas lições da História. Fazem o
que não podem deixar de fazer – o
que é o seu dever que façam;
sobretudo quando o partido de
revolução reclama não um conjun-
to de justas reformas, que elas
deixam oportunamente conceder,
mas a derrocação pura e simples
de todo o regímen constituído,
sem um programa melhor de
ideias para substituir as dele, só
com o fim de destruição e de des-
locação de pessoas. A repressão
porém só se pode fazer com certe-
za de êxito pacífico quando exista
por trás, a sustentá-la, uma quase
unânime corrente de opinião, uma
larga maioria nacional, fielmente
vinculada e aferrada às institui-
ções monárquicas, só delas espe-
rando a salvação, e não com-
preendendo que a Nação possa
sem elas ser nação. Foi esta funda
corrente de opinião, esta forte
maioria nacional que faltou no
Brasil ao ministério Ouro Preto.
Existe essa maioria nacional entre
nós, uma maioria amando tanto as
Instituições que esteja pronta, e
com alacridade, a dar por elas o
dinheiro dos seus cofres e o san-
gue das suas veias? Infelizmente,
por mais que lhe contemos e
recontemos os elementos, não nos
parece que exista. Na classe
média uma minoria é republicana;
uma parte importante é indiferen-
te senão hostil; e uma outra parte
tende para a hostilidade pelo mero
facto de estar excluída do Poder e
dos seus benefícios. No povo, o
das cidades é republicano; e o do
campo, alheio a princípios políti-
cos, nunca se move e nunca se
moverá talvez senão para defen-
der o seu pão, se novos e fortes
impostos lho ameaçassem.
Resta portanto uma metade da
classe média fiel às instituições,
porque fiel ao partido político que
nesse momento as defenda. Mas
foi essa mesma metade da classe
média que no Brasil, acabando de
dar uma larga maioria parlamen-
tar ao ministério Ouro Preto, e
estando justamente a promover
uma subscrição para levantar uma
estátua ao visconde de Ouro Pre-
to (!) - ficou muito quieta nas suas
casas, nos seus empregos ou nos
seus escritórios, quando alguns
jornalistas e alguns tenentes que
iam reclamar uma mudança de
ministério se lembraram de pro-
clamar uma mudança de regímen!
Esta curiosa lição da História
actual, se outras não tivéssemos,
bastaria a mostrar que confiança
se pode ter, neste último quartel
Na classe média uma
minoria é republicana;
uma parte importante é
indiferente senão hostil; e
uma outra parte tende
para a hostilidade pelo
mero facto de estar
excluída do Poder e dos
seus benefícios. No povo, o
das cidades é republicano;
e o do campo, alheio a
princípios políticos, nunca
se move e nunca se
moverá talvez senão para
defender o seu pão, se
novos e fortes impostos lho
ameaçassem.
do século XIX, na fidelidade políti-
ca da classe média.
Ora se esta maioria nacional falta
às instituições, elas têm de se
apoiar necessariamente numa
outra força que, entre nós, só
pode ser o exército.
II
Em geral desde que o regímen
constituído, para se manter,
necessita o apoio de uma força
disciplinada; e quando, por outro
lado, existe um partido de revolu-
ção que não pode tirar dos seus
próprios elementos populares os
meios precisos de acção, e só
poderia triunfar pelo auxílio de
uma força indisciplinada - o exér-
cito torna-se necessariamente o
ponto para onde convergem todas
as esperanças e o elemento de
êxito com que contam todos os
interesses políticos. O exército é
assim fatalmente arrastado para
dentro da esfera dos partidos; e
começa logo a haver em torno
dele uma surda e constante cam-
panha de sedução ou de pressão.
Pela lógica das afinidades e das
ligações naturais, o partido de
revolução procura atrair o sargen-
to que é o mesmo que conquistar
o soldado; e o regímen constituído
procura muito justamente e com
honrosa facilidade, conservar fiéis
os coronéis e os generais. É isto o
que durante longos anos se deu (e
ainda se dá) na Espanha; e é isto
o que desde já se vai anunciando
entre nós, onde, como dizia ulti-
mamente um oficial superior, «o
exército está sendo requestado
como uma menina rica». A res-
ponsabilidade da desorganização
assim introduzida no corpo social
(e quanto é formidável essa res-
ponsabilidade, a anarquia do Brasil
o prova) pertence toda e exclusi-
vamente, está claro, ao partido de
revolução. Não tratamos porém
aqui de averiguar a quem perten-
cem as responsabilidades de que a
História mais tarde julgará, mas
de constatar e enfileirar os factos
tais como eles são e de os seguir
nas suas consequências. Ora o
facto incontestável (e que seria
antipatriótico disfarçar) é que o
Partido Republicano procura atrair
o exército; e que, forçado a defen-
der-se, o regímen constituído ape-
la por seu turno para o concurso
leal do exército, decerto inabalável
na sua lealdade.
Mas pelo simples facto do exército
ser a força essencial com que con-
ta o regímen constituído, e com
que conta o partido de revolução,
ele toma fatalmente uma prepon-
derância inesperada nos nossos
destinos políticos. Dele parece
depender tudo, e portanto ele tor-
na-se tudo. Assim como em Ingla-
terra, e já agora em França, o
boletim de voto é tudo, e sobre
ele se exerce ardentemente a pro-
paganda dos partidos, assim entre
nós parece desenhar-se o momen-
to em que a espada do exército
será tudo, e sobre ela, e só sobre
ela, se concentrará a acção e a
influência dos que legitimamente
possuem, ou que subversivamente
pretendem, o poder.
Isto, se não nos enganamos, pode
importar proximamente no adven-
to do militarismo. Dirão (e dizem)
os optimistas que o exército em
Portugal nunca sairá da sua devida
submissão ao poder civil. Assim o
supomos. Mas nunca se deve
basear um sistema de acção políti-
ca no optimismo, na hipotética
perfeição dos homens e das coi-
sas, e em frases. O exército não é
composto de entidades abstractas,
e impessoais como princípios: é
composto de homens de carne e
osso, susceptíveis de todas as fra-
quezas e de todas as tentações
humanas. Ora desde que uma
classe sente que só ela é a força
única, e que tudo gravita em torno
dela, pode, mesmo mau grado
seu, e pelo irresistível impulso da
sua própria força, ser levada a
tudo querer dominar, e fazer pre-
valecer, como superior a todos, o
54 O DEBATE
Novos factores da política portuguesa
Mas pelo simples facto do
exército ser a força
essencial com que conta o
regímen constituído, e com
que conta o partido de
revolução, ele toma
f a t a l m e n t e u m a
preponderância inesperada
nos nossos destinos
políticos. Dele parece
depender tudo, e portanto
ele torna-se tudo. Assim
como em Inglaterra, e já
agora em França, o
boletim de voto é tudo, e
sobre ele se exerce
a r d e n t e m e n t e a
propaganda dos partidos,
assim entre nós parece
desenhar-se o momento
em que a espada do
exército será tudo, e sobre
ela, e só sobre ela, se
concentrará a acção e a
i nf luênc ia dos que
legitimamente possuem,
ou que subversivamente
pretendem, o poder.
15 JUNHO 2011
15 JUNHO 2011 O DEBATE 55
Novos factores da política portuguesa seu interesse de classe. Pode-o
mesmo fazer por uma nobre ilusão
patriótica, considerando que, des-
de que tudo em torno dela é fraco
e impotente, e está morrendo des-
sa impotência e dessa fraqueza,
no predomínio da sua força reside
a salvação da pátria.
Decerto ao General Deodoro foi
agradável e vantajoso passar de
um comando numa província
remota ao governo absoluto da
nação, com cento e vinte contos
de lista civil, um palácio para habi-
tar, honras régias e a adulação de
todos: mas é bem possível que o
General Deodoro muito sincera-
mente acreditasse (visto que
assim lho afirmavam os que da
sua espada necessitavam) que
ele, e só ele, podia fazer a felicida-
de do Brasil. E de resto a história
está cheia de exemplos em que
chefes militares muito candida-
mente viram no seu engrandeci-
mento pessoal o meio único de
promover a regeneração nacional.
É claro, claro como o sol, que não
há o mínimo, o mais remoto sinto-
ma de que possa surgir entre nós
um general ambicioso. Mas dar
uma importância suprema ao ele-
mento militar é preparar o terreno
propício ao desenvolvimento pos-
sível dessas ambições. Querer sis-
tematicamente afastar esta supo-
sição, declarando que «tal é
impossível, que nunca tal se dará
na nossa terra, porque o exército
sabe o que deve à honra e à
pátria, etc.», é fazer acto de
imprevidência ou de ingenuidade,
ambas culpadas. O homem de
estado, digno desse nome, deve
tudo prever, tudo calcular – e ter
sempre presente que os homens
são homens, nascidos com as pai-
xões humanas, e não anjos, abs-
tracções ou princípios encarnados.
Eis de resto tudo o que convém
dizer; porque nisto se encerra
tudo o que convém meditar.
III
Assim viemos expondo, tais como
os compreendemos, os elementos
da crise política que se desenha, e
que, nascendo da nossa crise cró-
nica, a crise económica, se vai
ajuntar a ela ajudando a agravá-la
por diversos modos.
A situação é esta. Uma parte
importante da Nação perdeu total-
mente a fé (com razão ou sem
razão) no parlamentarismo, e nas
classes governamentais ou buro-
cráticas que o encarnam; e tende,
por um impulso que irresistivel-
mente a trabalha, a substituí-Ias
por outra coisa, que ela ainda não
definiu bem a si própria. Qual
pode ser essa outra coisa? Que
soluções se apresentam?
Por um lado a República não pode
deixar de inquietar o espírito de
todos os patriotas. Ela seria a con-
fusão, a anarquia, a bancarrota.
Além disso (é de urgente patriotis-
mo falar com franqueza) a Repú-
blica entre nós não é uma questão
de política interna, mas de política
externa. Um movimento insurrec-
cional em Lisboa, triunfante ou
semi-t riunfante, seria no dia
seguinte um exército de interven-
ção marchando sobre nós da fron-
teira monárquica da Espanha. E se
a Espanha, pela morte da crianci-
nha inocente que é rei, se conver-
tesse numa república conservado-
ra - um movimento paralelo em
Portugal, apoiado por ela e coroa-
do de êxito, seria o fim da nossa
autonomia, da nossa civilização
própria, da nossa nacionalidade,
da nossa história, da nossa língua,
de tudo aquilo que nos é tão caro
como a própria vida, e por que
temos, durante séculos, derrama-
do sangue e tesouros.
Por outro lado uma «revolução
feita de cima», uma concentração
de força na Coroa (que a muitos
espíritos superiores, e que vêem
claro, se apresenta como a nossa
salvação), concent ração, que,
apoiada na parte mais inteligente
e mais pura das classes conserva-
doras, procedesse às grandes
A situação é esta. Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou burocráticas que o encarnam; e tende, por u m i m p u l s o q u e i r re s i s t ive l me n te a trabalha, a substituí-Ias por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria. Qual pode ser essa outra coisa? Que soluções se apresentam?
Por um lado a República não pode deixar de inquietar o espírito de todos os patriotas. Ela seria a confusão, a anarquia, a bancarrota.
reformas que a consciência pública
reclama, não seria compreendida
pela Nação irremediavelmente
impregnada de liberalismo e que
nessa concentração de força só
veria uma restauração do absolu-
tismo e do poder pessoal.
Que resta no meio destas duas
soluções? Restaria ainda a solução
quase milagrosa de que as classes
conservadoras e parlamentares,
cônscias enfim dos perigos que as
envolvem, procedessem heroica-
mente à sua própria depuração e
moralização; e, tendo readquirido
por esse nobre regeneramento o
apoio da maioria sã do País, se
lançassem à obra patriótica e
exclusiva de reorganizar a Nação
administrativa e economicamente.
Mas este milagre não é provável.
Não há exemplo na História dos
séculos de que uma classe conser-
vadora, por uma lenta evolução da
consciência, a si mesma se rege-
nere, se depure e se moralize.
Que resta pois? Resta, como espe-
rança, o sabermos que as nações
têm a vida dura, e que o nosso
Portugal tem a vida duríssima. E
se os que estão no poder porfia-
rem sempre em cometer a menor
soma humanamente possível de
erros e realizar a maior soma
humanamente possível de acertos,
muitos perigos podem ser conju-
rados e a hora má adiada. O inte-
resse de quem tem o poder (como
dizia ultimamente, nestas mesmas
páginas, tratando do Brasil, o Sr.
Frederico de S) está todo
e unicamente em acertar. Senão
já por dever de consciência e de
patriotismo, ao menos por egoís-
mo, por vantagem própria e indi-
vidual, por ambição mesmo do
poder, o esforço constante de um
governo deve ser acertar. Entre
nós têm-se visto governos que
parecem absurdamente apostados
em errar, errar de propósito, errar
sempre, errar em tudo, errar por
frio sistema. Há períodos em que
um erro mais ou um erro menos
realmente pouco c onta. No
momento histórico a que chega-
mos, porém, cada erro, por mais
pequeno, é um novo golpe de
camartelo friamente atirado ao
edifício das instituições; mas ao
mesmo tempo tal é a inquietação
que todos temos do futuro e do
desconhecido, que cada acerto,
cada bom acerto, é uma estaca
mais, sólida e duradoura, para
esteiar as instituições. Toda a
dúvida está em saber se ainda há,
ou se já não há, em Portugal, um
governo capaz de sinceramente se
compenetrar desta grande, desta
irrecusável verdade.
Um espectador.
Fontes:
Eça de Queirós, «Novos Factores
da Política Portuguesa», Revista
de Portugal, Volume II, Abril de
1890, págs. 526 – 541.
Obras de Eça de Queiroz, Volume
IV, (Introdução e fixação dos tex-
tos de Aníbal Pinto de Castro),
Porto, Lello & Irmão – Editores,
1986, págs. 1022 – 1033.
A ler:
Maria Filomena Mónica, Eça de
Queirós, Lisboa, Quetzal Editores,
2001, págs. 272 – 281.
56 O DEBATE
Novos factores da política portuguesa
Entre nós têm-se visto
governos que parecem
absurdamente apostados
em errar, errar de
propósito, errar sempre,
errar em tudo, errar por
frio sistema. Há períodos
em que um erro mais ou
um erro menos realmente
pouco conta. No momento
histórico a que chegamos,
porém, cada erro, por mais
pequeno, é um novo golpe
de camartelo friamente
atirado ao edifício das
instituições; mas ao
mesmo tempo tal é a
inquietação que todos
temos do futuro e do
desconhecido, que cada
acerto, cada bom acerto, é
uma estaca mais, sólida e
duradoura, para esteiar as
instituições. Toda a dúvida
está em saber se ainda há,
ou se já não há, em
Portugal, um governo
capaz de sinceramente se
compenetrar desta grande,
desta irrecusável verdade.
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