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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO MICHAEL CÉSAR SILVA VINÍCIUS LOTT THIBAU Coordenadores O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

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Page 1: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

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A abertura do sistema jurídico – sem desconhecer a relevância das regras jurídicas – acolhe gene-rosamente os princípios, dotando-os de força vinculante. As bases, conceituais e normativas, das quais o intérprete dispõe, neste século, au-torizam a construção de horizontes de sentido que protejam mais amplamente o ser humano, à luz dos preceitos consagrados na Constituição da República. Aliás, a revitalização que o direito privado experimenta se conecta com essa aber-tura. O direito privado dialoga não só com outras fontes normativas, mas também rede ne suas respostas normativas a partir de (signi cativas) mudanças teóricas. Nossos passos, nessa medida, não são dados apenas pelas normas jurídicas, mas também por novos modos de percepção, democraticamente construídos.

Nessa linha de intelecção, o projeto normati-vo constitucional permeado pela dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade, dia-logicidade e scalidade impõe a transformação dos conteúdos normativos do sistema jurídico para coadunar com o processo de reconstrução dos paradigmas do direito privado e do direito processual no contexto do Estado Democrático de Direito.

FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTODoutor em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito pela UFPE. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República).

MICHAEL CÉSAR SILVA Doutor e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio). Professor da Pós-Graduação Lato Sensu da Pontifícia Universi-dade Católica de Minas Gerais. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos da Respon-sabilidade Civil (IBERC). Advogado.

VINÍCIUS LOTT THIBAUDoutor e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara, nas modalidades integral e conven-cional. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Advocacia Cível da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica do Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos sobre o Novo CPC da Escola Superior Dom Helder Câmara. Vice-Presidente do Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos. Advogado.

Parte I – O DIREITO CIVIL E ONOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O novo perfil da curatela: interseções entre a LBI e o CPC

Nelson Rosenvald

A concretização dos direitos da pessoa com deficiência e o reconhecimento da possibilidade das diretivas antecipadas como exercício da sua autonomia privada

Cristiano Chaves de Farias | Melissa Ourives Veiga

Da (im)possibilidade de celebração do negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência através da tomada de decisão apoiada

Bruno Oliveira de Paula Batista | Marcos Ehrhardt Jr.

Nulidade dos negócios jurídicos e conhecimento de ofício pelo juiz: entre o Código Civil e o novo Código de Processo Civil (Lei no 13.105/2015)

Paulo Nalin | Renata C. Steiner

Sistema de prova do fato jurídico à luz dos Códigos Civil e de Processo Civil

Guilherme Calmon Nogueira da Gama

Tutela contra o ilícito: em busca de contornos conceituais

Felipe Peixoto Braga Netto | Karine Cysne Frota Adjafre

Tutela provisória e a liminar possessória

Marcelo de Oliveira Milagres

Repetição de pagamento indevido. Condenação judicial. Exceção de prescrição (NCPC, art. 525, §1o, VII)

Humberto Theodoro Júnior

Assistência judiciária como direito do necessitado, e não como favor do Estado no Código de Processo Civil

Mariza Rios | Newton Teixeira Carvalho

Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito: a busca ao respeito da inexistência de hierarquia entre as provas

Renato Campos Andrade

Conta-se em dias úteis ou dias corridos o prazo para pagamento no cumprimento definitivo de sentença por quantia certa?

Marcos Boechat Lopes Filho

Parte II – O DIREITO DO CONSUMIDOR E ONOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil e a substancial ampliação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais do consumidor em juízo

Claudia Lima Marques | Luis Alberto Reichelt

A dinâmica de redistribuição do ônus da prova no novo Código de Processo Civil

Bruno de Almeida Lewer Amorim | César Fiuza

Os impactos do Código de Processo Civil de 2015 na distribuição judicial do ônus de provar relativa ao direito do consumidor

André Cordeiro Leal | Vinícius Lott Thibau

Negociação processual e as relações de consumo: uma análise do instituto à luz da vulnerabilidade presumida do consumidorLucas Magalhães de Oliveira Carvalho | Michael César Silva | Samuel Vinícius da Silva

Reflexos da nova legislação processual civil no direito do consumidor: a ampliação dos mecanismos de amparo

Elcio Nacur Rezende | Gabriella de Castro Vieira

Parte III – O DIREITO EMPRESARIAL E ONOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Os problemas na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e as perspectivas decorrentes da entrada em vigor do CPC/2015Fernando Solá Soares | Giovani Ribeiro Rodrigues Alves | Marcia Carla Pereira Ribeiro

Incidente de desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015

Vinícius Jose Marques Gontijo

A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015

Luciana de Castro Bastos | Rodrigo Almeida Magalhães

Novos horizontes da dissolução parcial de sociedades

Pedro D’Angelo Ribeiro | Roberto Henrique Pôrto Nogueira

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTOMICHAEL CÉSAR SILVA VINÍCIUS LOTT THIBAU

Coordenadores

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O DIREITO PRIVADO E ONOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVILREPERCUSSÕES, D IÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Page 2: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVILRepercussões, Diálogos e Tendências

Page 3: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Belo Horizonte

2018

FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTOMICHAEL CÉSAR SILVA VINÍCIUS LOTT THIBAU

Coordenadores

O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVILRepercussões, Diálogos e Tendências

Page 4: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

© 2018 Editora Fórum Ltda.

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.

Conselho Editorial

Adilson Abreu DallariAlécia Paolucci Nogueira Bicalho

Alexandre Coutinho PagliariniAndré Ramos Tavares

Carlos Ayres BrittoCarlos Mário da Silva VellosoCármen Lúcia Antunes Rocha

Cesar Augusto Guimarães PereiraClovis Beznos

Cristiana FortiniDinorá Adelaide Musetti Grotti

Diogo de Figueiredo Moreira NetoEgon Bockmann Moreira

Emerson GabardoFabrício Motta

Fernando RossiFlávio Henrique Unes Pereira

Floriano de Azevedo Marques NetoGustavo Justino de OliveiraInês Virgínia Prado SoaresJorge Ulisses Jacoby FernandesJuarez FreitasLuciano FerrazLúcio DelfinoMarcia Carla Pereira RibeiroMárcio CammarosanoMarcos Ehrhardt Jr.Maria Sylvia Zanella Di PietroNey José de FreitasOswaldo Othon de Pontes Saraiva FilhoPaulo ModestoRomeu Felipe Bacellar FilhoSérgio GuerraWalber de Moura Agra

Luís Cláudio Rodrigues FerreiraPresidente e Editor

Coordenação editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo

Av. Afonso Pena, 2770 – 15º andar – Savassi – CEP 30130-012Belo Horizonte – Minas Gerais – Tel.: (31) 2121.4900 / 2121.4949

www.editoraforum.com.br – [email protected]

D597 O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências/ Felipe Peixoto Braga Netto, Michael César Silva, Vinícius Lott Thibau (Coord.). – Belo Horizonte : Fórum, 2018.

441 p.

ISBN: 978-85-450-0456-1

1. Direito Privado. 2. Direito Civil. 3. Código de Processo Civil. I. Braga Netto, Felipe Peixoto. II. Silva, Michael César. III. Thibau, Vinícius Lott. IV. Título.

CDD 342.1CDU 347.1

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 441 p. ISBN 978-85-450-0456-1.

Page 5: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................... 15

PARTE IO DIREITO CIVIL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ......... 17

CAPÍTULO 1O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPCNelson Rosenvald ...................................................................................... 191.1 Flexibilização da curatela ............................................................ 191.1.1 O binômio capacidade negocial e capacidade de consentir ... 201.2 A teoria dos intervalos lúcidos e o termo legal de

incapacidade .................................................................................. 271.3 O fim da curatela extensiva ......................................................... 291.4 A curatela transitória e as revisões periódicas ......................... 301.5 Curatela conjunta .......................................................................... 341.5.1 Curatela conjunta compartilhada ............................................... 351.5.2 Curatela conjunta fracionada ...................................................... 361.6 A humanização da curatela no CPC/15 ..................................... 381.6.1 Curador-cuidador ......................................................................... 381.6.2 Personalização da curatela .......................................................... 411.7 Conclusão ...................................................................................... 43Referências ................................................................................................... 43

CAPÍTULO 2A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS COMO EXERCÍCIO DA SUA AUTONOMIA PRIVADACristiano Chaves de Farias, Melissa Ourives Veiga ............................ 452.1 A importância das diretivas antecipadas como mecanismo

de efetivação da autodeterminação da pessoa humana .......... 45

Page 6: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

2.2 Nova teoria das incapacidades: a inclusão da pessoa com deficiência como sujeito de direito em igualdade de condições com as pessoas sem deficiência e a liberdade de declarar as diretivas antecipadas ................................................ 50

2.3 A pessoa com deficiência enquadrada no conceito de incapacidade, a estrita abrangência da curatela e a possibilidade de prática de atos existenciais, inclusive as diretivas antecipadas .................................................................... 53

2.4 Possibilidade de diretivas antecipadas de vontade por pessoas com deficiência sob o regime de curatela ................... 56

Referências .................................................................................................. 59

CAPÍTULO 3DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ATRAVÉS DA TOMADA DE DECISÃO APOIADABruno Oliveira de Paula Batista, Marcos Ehrhardt Jr. ......................... 613.1 Introdução ...................................................................................... 613.2 O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a tomada de decisão

apoiada ........................................................................................... 623.2.1 A tomada de decisão apoiada e a autonomia da pessoa com

deficiência ...................................................................................... 673.3 Negócio jurídico processual ........................................................ 703.3.1 Delimitação do conceito de negócio jurídico processual ........ 733.4 Possibilidade de realização do negócio jurídico processual

por meio da tomada de decisão apoiada ................................... 763.4.1 Esclarecimentos sobre a capacidade processual ...................... 763.4.2 Negócio jurídico processual por meio da tomada de decisão

apoiada ........................................................................................... 783.4.3 Alguns limites ao negócio processual praticado por meio da

tomada de decisão apoiada ......................................................... 803.5 Considerações finais ..................................................................... 83Referências ................................................................................................... 84

CAPÍTULO 4NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015)Paulo Nalin, Renata C. Steiner ................................................................ 874.1 Apresentação do problema: a validade .................................... 87

Page 7: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

4.2 Características próprias das nulidades ...................................... 894.3 O caráter absoluto da nulidade e as exceções à sua

decretação ...................................................................................... 924.4 Conhecimento da nulidade de ofício e oitiva das partes: art.

168, parágrafo único, do Código Civil versus art. 10 do novo Código de Processo Civil ............................................................. 95

4.4.1 Decretação de nulidade e direito de participação no processo .......................................................................................... 97

4.4.2 Decretação de nulidade e princípio da conservação dos pactos .............................................................................................. 99

4.4.3 Da validade à eficácia: tendências de direito material e processual ...................................................................................... 101

4.5 Notas conclusivas ......................................................................... 102Referências .................................................................................................. 103

CAPÍTULO 5SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS CIVIL E DE PROCESSO CIVILGuilherme Calmon Nogueira da Gama ................................................. 1055.1 Noções gerais ................................................................................. 1055.2 Prova: conceito, princípios e espécies ........................................ 1085.3 Modalidades de prova ................................................................. 1125.3.1 Confissão ........................................................................................ 1135.3.2 Prova documental ......................................................................... 1155.3.3 Prova testemunhal ........................................................................ 1225.3.4 Prova pericial ................................................................................. 1265.4 Presunção ....................................................................................... 1315.5 Nota conclusiva ............................................................................. 133Referências ................................................................................................... 134

CAPÍTULO 6TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAISFelipe Peixoto Braga Netto, Karine Cysne Frota Adjafre ................... 1376.1 Introdução: contextualização e precisões conceituais ............. 1376.2 Ilícito civil é sinônimo de responsabilidade civil? ................... 1406.2.1 Uma categoria com eficácia única? ............................................ 1406.2.2 Críticas à concepção da eficácia única ....................................... 141

Page 8: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

6.2.3 Convivendo com as outras eficácias .......................................... 1436.2.3.1 Ilícito indenizante ......................................................................... 1446.2.3.2 Ilícito caducificante ....................................................................... 1446.2.3.3 Ilícito autorizante .......................................................................... 1456.2.3.4 Ilícito invalidante .......................................................................... 1476.3 Abuso de direito ou ilícito funcional ......................................... 1486.3.1 O ilícito funcional como uma cláusula geral ............................ 1516.4 Tutela contra o ilícito no novo Código de Processo Civil ....... 1526.4.1 Noções preliminares ..................................................................... 1526.4.2 Tutela genérica × tutela específica .............................................. 1556.4.3 Tutela preventiva × tutela repressiva ......................................... 1576.4.4 Tutela inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória ............ 1606.5 Considerações finais – tutela contra o ilícito e

prescindibilidade de discussão judicial sobre dano ................ 163Referências ................................................................................................... 166

CAPÍTULO 7TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIAMarcelo de Oliveira Milagres .................................................................. 1697.1 Introdução ...................................................................................... 1697.2 Tutela provisória: disposições gerais ......................................... 1717.3 Tutela de urgência ........................................................................ 1727.3.1 Tutela de urgência antecipada antecedente ............................. 1727.3.2 Tutela de urgência cautelar antecedente .................................. 1747.4 Tutela de evidência ....................................................................... 1757.5 Tutela liminar possessória ........................................................... 1767.6 Conclusão ...................................................................................... 178Referências ................................................................................................... 178

CAPÍTULO 8REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)Humberto Theodoro Júnior ..................................................................... 1798.1 Introdução ...................................................................................... 1798.2 Abolição dos embargos à execução do título judicial ............. 1798.3 Natureza jurídica da impugnação .............................................. 1818.4 Defesa de mérito ........................................................................... 183

Page 9: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

8.5 A prescrição é basicamente um fenômeno do direito material ........................................................................................... 183

8.6 Prescrição da pretensão condenatória e da pretensão executiva......................................................................................... 186

8.7 Um caso particular de prescrição e decadência: a sentença da ação de repetição do pagamento indevido .......................... 187

8.8 Visão pretoriana moderna do enriquecimento sem causa...... 1898.9 Observações conclusivas .............................................................. 191Referências ................................................................................................... 192

CAPÍTULO 9ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVILMariza Rios, Newton Teixeira Carvalho ............................................... 1939.1 Introdução ...................................................................................... 1939.2 Considerações sobre Estado e democracia ............................... 1959.3 O princípio da gratuidade de justiça na jurisprudência até o

advento do Código de Processo Civil de 2015 ........................ 1989.3.1 O papel da Defensoria Pública na efetividade do direito ao

acesso à justiça .............................................................................. 1999.4 O princípio da gratuidade de justiça no atual Código de

Processo Civil ............................................................................... 2009.4.1 Decisão judicial ............................................................................ 2019.5 A dificuldade no deferimento da assistência judiciária por

alguns juízes do Estado de Minas Gerais .................................... 2049.5.1 A jurisprudência e a realidade prática ...................................... 2069.6 Alguns argumentos inválidos para o indeferimento da

assistência judiciária .................................................................... 2079.7 Conclusão ....................................................................................... 209Referências .................................................................................................. 211

CAPÍTULO 10PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE HIERARQUIA ENTRE AS PROVASRenato Campos Andrade .......................................................................... 21310.1 Introdução ...................................................................................... 21310.2 Implicações probatórias no direito civil e processual civil ..... 214

Page 10: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

10.3 Ônus da prova: importância e implicações jurídicas .............. 21810.4 Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito .............. 22010.5 Alterações causadas pelo Código de Processo Civil e

possíveis efeitos ............................................................................. 22110.6 Considerações finais ..................................................................... 225Referências ................................................................................................... 226

CAPÍTULO 11CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE SENTENÇA POR QUANTIA CERTA?

Marcos Boechat Lopes Filho .................................................................... 22911.1 Introdução ...................................................................................... 22911.2 Normas processuais e normas materiais ................................... 23011.3 Prazos processuais, prazos materiais e prazos mistos ............ 23311.4 Natureza do prazo para pagamento .......................................... 23611.5 Considerações finais ..................................................................... 242Referências ................................................................................................... 245

PARTE IIO DIREITO DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ........................................................................................ 247

CAPÍTULO 1O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A SUBSTANCIAL AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONSUMIDOR EM JUÍZO

Claudia Lima Marques, Luis Alberto Reichelt ..................................... 2491.1 Introdução ...................................................................................... 2491.2 A formação de um sistema de caráter protetivo a partir

da harmônica combinação entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil .................... 250

1.3 As inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 e sua compatibilização com o regime instituído pelo Código de Defesa do Consumidor ............................................. 253

1.4 O diálogo das fontes entre o novo Código de Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor e o incremento em termos de cidadania processual do consumidor ...................... 258

Page 11: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

1.5 Reflexões finais .............................................................................. 260Referências ................................................................................................... 261

CAPÍTULO 2A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Bruno de Almeida Lewer Amorim, César Fiuza .................................. 2652.1 Introdução ...................................................................................... 2652.2 Distribuição e redistribuição do ônus probatório no novo

Código de Processo Civil ............................................................. 2662.3 A redistribuição do ônus probatório antes do novo Código

de Processo Civil ........................................................................... 2722.4 Inversão ope judicis do ônus da prova nas relações de

consumo ‒ principais controvérsias e soluções ........................ 2752.5 Conclusão ....................................................................................... 285Referências ................................................................................................... 286

CAPÍTULO 3OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA AO DIREITO DO CONSUMIDOR

André Cordeiro Leal, Vinícius Lott Thibau .......................................... 2893.1 Introdução ...................................................................................... 2893.2 Os requisitos legais autorizativos da distribuição judicial

do ônus da prova no Código de Proteção e Defesa do Consumidor .................................................................................. 291

3.2.1 A verossimilhança das alegações do consumidor e a imprestabilidade do raciocínio indutivo ................................... 291

3.2.2 A hipossuficiência do consumidor e a assimetria de informações.................................................................................... 294

3.3 O CPC de 2015 e o debate dogmático-consumerista sobre o momento procedimental da distribuição ope judicis do ônus de provar ....................................................................................... 297

3.4 A controversa (ir)recorribilidade da decisão judicial sobre o ônus de provar .............................................................................. 301

3.5 Conclusão ....................................................................................... 303Referências .................................................................................................. 303

Page 12: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

CAPÍTULO 4NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO À LUZ DA VULNERABILIDADE PRESUMIDA DO CONSUMIDOR

Lucas Magalhães de Oliveira Carvalho, Michael César Silva, Samuel Vinícius da Silva .......................................................................... 3074.1 Introdução ...................................................................................... 3074.2 Negociações processuais típicas e atípicas ................................ 3094.3 Contratos de adesão ..................................................................... 3164.4 A principiologia contratual e a negociações processuais

em sede de relações de consumo: reflexos nos contratos coletivos e atuação do Ministério Público ................................. 320

4.5 Conclusão ....................................................................................... 326Referências ................................................................................................... 329

CAPÍTULO 5REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS MECANISMOS DE AMPARO

Elcio Nacur Rezende, Gabriella de Castro Vieira ................................ 3335.1 Introdução ...................................................................................... 3335.2 A jurisdição internacional e o foro do domicílio do

consumidor ................................................................................... 3345.2.1 O foro do domicílio/residência do consumidor: um

mecanismo de tutela da parte mais vulnerável ....................... 3365.2.2 A jurisdição do domicílio/residência do consumidor: um

instrumento processual de combate à abusividade ................ 3395.3 A atuação dos magistrados: o dever de cooperação na

resolução dos conflitos ................................................................. 3425.3.1 Poder diretivo do juiz................................................................... 3445.4 Considerações finais ..................................................................... 348Referências ................................................................................................... 349

PARTE IIIO DIREITO EMPRESARIAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL .............................................................................................................. 351

Page 13: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

CAPÍTULO 1OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS PERSPECTIVAS DECORRENTES DA ENTRADA EM VIGOR DO CPC/2015

Fernando Solá Soares, Giovani Ribeiro Rodrigues Alves, Marcia Carla Pereira Ribeiro .................................................................... 3531.1 Introdução ...................................................................................... 3531.2 A personalidade jurídica e o princípio da autonomia

patrimonial .................................................................................... 3541.3 A teoria da desconsideração da personalidade jurídica:

distorções na sua aplicação ......................................................... 3561.4 Devido processo legal, contraditório e ampla defesa na

desconsideração da personalidade jurídica pelo NCPC ......... 3631.5 Conclusão ....................................................................................... 367Referências ................................................................................................... 368

CAPÍTULO 2INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Vinícius Jose Marques Gontijo ............................................................... 3712.1 Introdução ...................................................................................... 3712.2 Incidente de desconsideração da personalidade jurídica

inversa ............................................................................................ 3732.3 Incidente de desconsideração da personalidade jurídica ....... 3752.4 Conclusões ..................................................................................... 383Referências ................................................................................................... 384

CAPÍTULO 3A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Luciana de Castro Bastos, Rodrigo Almeida Magalhães .................... 3873.1 Introdução ...................................................................................... 3873.2 A evolução do direito de empresa ............................................. 3883.3 Personalização da empresa ......................................................... 3903.4 A teoria clássica da desconsideração da personalidade

jurídica ............................................................................................ 3943.4.1 Disregard doctrine contemporânea .............................................. 396

Page 14: O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

3.5 A aplicação da disregard doctrine no Código de Processo Civil de 2015 .................................................................................. 398

3.6 Conclusão ....................................................................................... 407Referências ................................................................................................... 407

CAPÍTULO 4NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADESPedro D’Angelo Ribeiro, Roberto Henrique Pôrto Nogueira ............ 4114.1 Considerações iniciais .................................................................. 4114.2 Dissolução parcial das sociedades antes do Código de

Processo Civil de 2015, de acordo com o Código Civil de 2002 ................................................................................................. 413

4.3 Dissolução parcial: aspectos controversos anteriores ao Código de Processo Civil de 2015 .............................................. 415

4.3.1 Dos atos relativos à liquidação de sociedades na dissolução parcial ............................................................................................. 416

4.3.2 Possibilidade de dissolução parcial nas sociedades anônimas de capital fechado ....................................................... 417

4.3.3 Legitimidade passiva ................................................................... 4184.3.4 Legitimidade ativa ........................................................................ 4194.3.5 Ônus decorrentes de sucumbência e pagamento de verbas

honorárias ...................................................................................... 4204.4 A dissolução parcial como procedimento especial no novo

Código de Processo Civil ............................................................. 4214.4.1 Objeto.............................................................................................. 4224.4.2 Legitimidade ativa: sujeitos e condições ................................... 4244.4.3 Legitimidade passiva ................................................................... 4264.4.4 Procedimento ................................................................................ 4274.4.5 Apuração de haveres .................................................................... 4294.5 Conclusões ..................................................................................... 432Referências ................................................................................................... 433

SOBRE OS AUTORES ............................................................................ 437

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APRESENTAÇÃO

O direito dos nossos dias é, em muitos sentidos, o direito do diálogo. Ficou no museu das ideias o modo clássico de legislar, através de normas que não dialogam entre si, normas que se bastam. Por isso, tanto se alude atualmente ao diálogo das fontes. Os percursos argumentativos que caracterizam o direito do século XXI exigem que o intérprete transite – de modo responsável – por variados setores da experiência jurídica sem que possa ficar restrito a um deles.

A abertura do sistema jurídico – sem desconhecer a relevância das regras jurídicas – acolhe generosamente os princípios, dotando-os de força vinculante. As bases, conceituais e normativas, das quais o intérprete dispõe, neste século, autorizam a construção de horizontes de sentido que protejam mais amplamente o ser humano à luz dos preceitos consagrados na Constituição da República. Aliás, a revitali-zação que o direito privado experimenta se conecta com essa abertura. O direito privado dialoga não só com outras fontes normativas, mas também redefine suas respostas normativas a partir de (significativas) mudanças teóricas. Nossos passos, nessa medida, não são dados apenas pelas normas jurídicas, mas também por novos modos de percepção, democraticamente construídos.

Nessa linha de intelecção, o projeto normativo constitucional permeado pela dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade, dialogicidade e fiscalidade impõe a transformação dos conteúdos norma-tivos do sistema jurídico para coadunar com o processo de reconstrução dos paradigmas do direito privado e do direito processual no contexto do Estado Democrático de Direito.

A passagem da estrutura à função – desde os clássicos escritos de Bobbio – define a mudança de olhar dos estudos contemporâneos. Não mais o conceitualismo abstrato, o apego (quase) religioso ao formalismo, mas a percepção de que o intérprete está autorizado a lançar um olhar mais vasto para as dimensões funcionais, e não só estruturais, dos conceitos, categorias e institutos. A dimensão formal, sim, é importante, mas o intérprete não pode se dar por satisfeito com ela. É preciso ir além.

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16 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

No entanto, talvez não exageremos ao dizer que, se o olhar do direito privado (e do processo civil), no século XX, foi um olhar voltado para as normas repressivas, no século XXI será fundamentalmente um olhar voltado para as teorias, técnicas e funções que potencializem a prevenção de certos bens jurídicos fundamentais.

Nesse contexto, entregamos – com alegria – esta obra aos leitores. Ela é feita de contribuições tematicamente distintas de juristas variados, todos movidos pelo propósito de compreender as encruzilhadas teóricas do necessário diálogo entre o direito privado e o Código de Processo Civil de 2015. Uma nova lei – sobretudo uma lei com a relevância majestosa do CPC/2015 – sempre provoca perplexidades interpreta-tivas. É fundamental que possamos ler e ouvir as impressões de quem conhece verticalmente o assunto.

Esta obra coletiva, fruto de tantos esforços distintos, tenta dialogar com perplexidades teóricas atuais, promovendo uma maior reflexão, debate e aprofundamento de questões controversas, para oferecer no âmbito das relações privadas um esforço de compreensão sobre o cenário jurídico na contemporaneidade, cuja única permanência é a mudança.

Felipe Peixoto Braga NettoMichael César Silva

Vinícius Lott Thibau

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PARTE I

O DIREITO CIVIL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

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CAPÍTULO 1

O NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI1 E O CPC

Nelson Rosenvald

1.1 Flexibilização da curatela

O procedimento especial de curatela se aprimora no CPC/15, em cotejo com o instrumental fornecido pelo CPC/73 e pelo próprio Código Civil. As inovações processuais são positivas, no sentido da funcionali-zação e personalização do modelo da curatela. A grande censura que se faz a Lei nº 13.105/15 é a manutenção do descontextualizado vocábulo “interdição” para nomear a providência desconstitutiva de capacidade civil. Em acato à CDPD2 (com estatura de emenda constitucional), o Estatuto da Pessoa com Deficiência aboliu o termo “interdição” pelo sentido evidentemente restritivo de direitos fundamentais da pessoa com deficiência submetida à curatela. Para tanto, impôs no art. 85 que “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. §1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Por conseguinte, a curatela se destina à promoção de direitos fundamentais da pessoa deficiente sem lhe amputar situações existenciais.

1 Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) – Lei nº 13.146/2015.

2 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

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1.1.1 O binômio capacidade negocial e capacidade de consentir

Estatui o art. 12.4 da CDPD: “Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salva-guardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa”.

Essa regra é fundamental para a compreensão da superação de um modelo baseado na exclusão de pessoas incapazes pela substituição nos processos decisórios pós-curatela por um novo modelo inclusivo de apoio, cujo desiderato é o reconhecimento da igualdade de pessoas com deficiência, de forma que a curatela seja aplicada excepcionalmente, restringindo minimamente as suas situações existenciais, e – naquilo que aqui avulta –, seja o projeto da curatela marcado pela proporcionalidade, seja no tempo como no conteúdo das medidas e na atuação do curador.

Quando pronunciada a curatela, quais seriam os limites dela segundo a redação original do CC/02? De acordo com artigo 1.772, apenas haveria imposição judicial de limites à curatela quando a sentença fixasse a incapacidade como relativa, ou seja, nas hipóteses em que a pessoa fosse submetida à curatela em razão de discernimento reduzido, decorrente de deficiência ou enfermidade mental. Todavia, sendo o provimento jurisdicional fundado na constatação de incapacidade absoluta, o interdito não mais se autodeterminaria, e a sua atuação seria neutralizada pelo alter ego do curador, que o representaria em todos os atos da vida civil sem que remanescessem espaços de autonomia para o incapaz.

Nossa crítica quanto a esse dispositivo sempre foi contundente; afinal, submete a vida pós-incapacitação a uma opção entre incapa-cidade absoluta e relativa. Essa escolha arbitrária frequentemente despersonaliza o sujeito, silencia a sua voz, oculta a sua vontade e preferências. Seres humanos são deslegitimados na ordem civil em razão das soluções rígidas e uniformes. A interdição total e ilimitada desacolhe a regra da proporcionalidade e impede a funcionalização da

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21NELSON ROSENVALDO NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC

curatela, desvirtuada em sanção punitiva ao invés de modelo protetivo da dignidade da pessoa humana.

Salvo situações excepcionais e exaustivamente fundamentadas, um representante não pode assumir totais poderes decisórios sobre a vida alheia. Isto implica obliquamente na “morte civil” do destinatário da curatela. Apesar de todas as limitações, o incapaz não abdica de ser gente, pois o peso da condição humana lhe é inerente. O ser humano é um valor unitário, insuscetível de fragmentação naquilo que lhe suprima a individualidade. Se o sistema privado seleciona unicamente o critério científico da integridade psíquica como vetor de uma ampla interdição de direitos, culmina por esvaziar outras relevantes potencialidades e dimensões do temperamento humano.

A funcionalização do modelo jurídico da curatela evidencia que ela deve, na medida do possível, promover os objetivos solidaristas da Constituição Federal. Em alguns casos, as potencialidades afetivas do incapaz se mantêm idôneas. Assim, a singularidade de seu contexto pode indicar que, não obstante as limitações psíquicas, ainda há margem para a formação de uma entidade familiar, seja pelo casamento ou pela união estável. Se o nubente compreende o ato que esteja praticando, apesar de alijado da capacidade civil, terá competência para tomar decisões quanto ao seu projeto da conjugalidade. Nessas circunstâncias, o impedimento ao matrimônio seria violentador da condição humana do curatelado. Prevalece a máxima de Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Pois bem, em vistas à materialização da CDPD, a Lei nº 13.146/15 alterou a redação do art. 1.772 do Código Civil, doravante com o seguinte teor: “O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador”. A alusão ao artigo 1.782 do Código Civil visa estabe-lecer uma prévia demarcação dos poderes de representação do curador, restritos agora ao apoio na prática de atos meramente patrimoniais.3

Em complemento, preceitua o art. 85 da Lei nº 13.146/15: “A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”. Em arremate, o Estatuto da Pessoa com Deficiência reservou o modelo da incapacidade civil absoluta para os menores de dezesseis anos de idade, removendo as pessoas deficientes com graves transtornos psíquicos para a condição de relativamente

3 Art. 1.782, CC/02: “A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração”.

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incapazes pela duradoura impossibilidade de autodeterminação. De acordo com o art. 4º, I, do Código Civil: “São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”.

A renovada dicção do art. 1.772 do Código Civil é digna de encômios, pois vivifica a flexibilização da curatela e remete ao magis-trado – com a colaboração das partes, Ministério Público e profissionais envolvidos no processo – a responsabilidade de conceber um projeto terapêutico individualizado de curatela, adaptado às singularidades de cada pessoa, que venha a se converter em um relativamente incapaz.

Após o advento da LBI, não podemos admitir mais que somente a determinação judicial da curatela seja por si a medida suficiente para proteger a pessoa com deficiência. A equipe multiprofissional, essencial no apoio técnico ao juiz e ao Ministério Público, deve analisar detalha-damente todos os aspectos do caso concreto e propor medidas ao juiz do feito que concretizem e possibilitem ao máximo o exercício, por si só, de várias atividades pela pessoa com deficiência a fim de que exerça a maioria de seus direitos fundamentais, sejam elas medidas temporárias ou permanentes que possibilitem a essa pessoa o usufruto da maioria dos bens e serviços à disposição dos demais cidadãos, inclusive a autodeterminação. O laudo multiprofissional extrapola a perspectiva única da medicina e incorpora uma perspectiva social da deficiência a partir de diagnósticos trazidos por outras ciências, por exemplo, a assistência social, psicologia, arquitetura e a engenharia.4

Porém, quando o art. 1.772 remete os limites da curatela ao que dispõe o art. 1.782 do Código Civil, culmina por convertê-la em um modelo assistencial de caráter meramente patrimonial, dado esse inequivocamente respaldado pelo referido art. 85 da Lei nº 13.146/15.

Seria essa absoluta fratura entre a plena preservação da autonomia existencial do deficiente incapaz e a restrição à capacidade negocial a melhor forma de proteção e promoção à sua dignidade? Ou, em verdade, o legislador estaria apenas substituindo o binômio incapacidade absoluta × relativa por uma nova solução rígida (obviamente mais evoluída), o par, capacidade negocial × capacidade de consentir? Essas indagações são importantes para o debate, pois temos que optar entre dois modelos de flexibilização da curatela, hábeis a impedir que o processo seja um

4 COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Comentários ao estatuto da pessoa com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 370.

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23NELSON ROSENVALDO NOVO PERFIL DA CURATELA: INTERSEÇÕES ENTRE A LBI E O CPC

estereótipo de abstratas restrições legais que jamais se legitimarão como soluções das complexas necessidades da pessoa do curatelado.

A primeira forma de enfrentar o problema consiste na cisão entre os critérios de capacidade legal e capacidade de consentir; a segunda, mais radical, pretende abolir completamente classificações apriorísticas de gradações de incapacidade.

Em defesa da rearticulação da teoria das incapacidades, Judith Martins-Costa5 sustenta a irrealidade da clássica noção de capacidade negocial para tutelar as situações existenciais da pessoa humana. Em face da impertinência de institutos como representação e assistência para a legitimação de atos que atingirão profundamente a esfera pessoal do indivíduo, sugere-se uma especial “capacidade para consentir”, aplicável casuisticamente à proteção de interesses extrapatrimoniais, preservando-se o regime da capacidade negocial para os aspectos patrimoniais.6

Com efeito, a experiência demonstra que o absolutamente incapaz certamente demandará proteção para a esfera de decisões patrimoniais, sob pena de se ver alijado do mínimo existencial. Porém, a constatação da falta de idoneidade para o exercício de decisões econômicas não pode motivar uma sentença que extrapole a diligência financeira e prive o indivíduo de circular autonomamente pela vida social. Esse pronuncia-mento judicial fatalmente tolherá outros confins da subjetividade, que

5 MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres. In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwing (Orgs.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 320.

6 Cogitemos da mulher deficiente que se submete a uma vida sexual descuidada. Ilustrativamente, a jovem que já possui dois filhos e que novamente se encontra grávida. Mais uma criança que nascerá sem pai, evidentemente sem a própria mãe em condições de criá-la, muitas vezes desprovida de amparo de familiares maternos. Eventualmente, uma gravidez de risco e com fortes chances de prejuízos à saúde da própria criança. A Lei nº 9.263/96 prevê, no §6º do artigo 10, que “a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei”. A norma cogita da realização de intervenção cirúrgica no corpo feminino, mas o trato da matéria demanda que se aprecie o direito fundamental ao livre planejamento familiar (§7º, art. 226). A ponderação, por um lado, entre a proteção da pessoa do incapaz e, por outro, a tutela de sua intimidade e integridade psicofísica, é ameaçada pela privação da aptidão da mulher para gestar. Evidentemente, trata-se de um balanceamento de interesses em que a legitimidade da decisão judicial concessiva da esterilização requer a unanimidade de especialistas multidisciplinares (psiquiatra, psicólogo, ginecologista, clínico geral etc.). Todavia, qualquer decisão referente ao tema não poderá olvidar o art. 23, 1, letra b, da convenção internacional, propugnando pelo reconhecimento dos “direitos das pessoas com deficiência de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o espaçamento entre esses filhos e de ter acesso a informações adequadas à idade e a educação em matéria de reprodução e de planejamento familiar, bem como os meios necessários para exercer esses direitos. c) As pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua fertilidade, em igualdade de condições com as demais pessoas”.

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não se relacionam com as limitações inerentes ao transtorno mental ou a deficiência. Vale dizer, em certas esferas do convívio humano subsiste autonomia para a realização de atos de manifestação e desenvolvimento da personalidade. Mesmo após a incapacitação legal, cumpre respeitar as vontades, afetos e direitos fundamentais do ser humano. A curatela absoluta é uma medida violentadora de direitos humanos da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual. Uma coisa é o cuidado com a pessoa; outra, com o patrimônio.

De certa forma, essa trilha já foi percorrida pelo Conselho de Justiça Federal ao conceber o Enunciado nº 138: “A vontade dos absolu-tamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a ele concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto”. Não obstante direcionado às pessoas menores de 16 anos, do texto se extrai uma proposta de cisão entre os planos de autonomia patrimonial e o consen-timento para decisões que afetem a construção e o desenvolvimento da personalidade, fragmentação essa perfeitamente extensiva para o redimensionamento do objeto da curatela e dos poderes do curador, em razão de esvaziamento do discernimento da pessoa. O corte entre titularidade e exercício de situações jurídicas é uma construção teórica perfeitamente plausível para as situações proprietárias e creditícias, porém injustificável no que concerne à afirmação da subjetividade, se ainda subsistem áreas férteis para a manifestação do consentimento.

A despeito do mérito dessa solução, como inegável avanço ao negativo estado da arte, acreditamos que ela apenas tangencia a real questão de fundo, concebendo nova dicotomia no sistema, justamente quando o que se anseia é a eliminação de rígidas categorizações que afetem a materialização de direitos fundamentais. Em outras palavras, redefinir a curatela pela oposição entre um estático estatuto patrimonial apriorístico do Código Civil e uma cláusula geral de um dinâmico estatuto existencial – balizado pelo concreto discernimento da pessoa – aprofundará o seccionamento da vida humana em setores operativos jurídicos que demandarão a elaboração de novas regras. Ao inverso, postulamos pela total abolição de esquemas normativos que encarcerem a pessoa em perfis de incapacitação.

É possível afastar restrições descabidas ao florescimento da vida criativa, afetiva e sexual da pessoa pela prevalência de um radical raciocínio por concreção, atento às singularidades do ser humano, sejam elas econômicas ou existenciais. Para tanto, em uma interpre-tação conforme a Constituição Federal (e também a Convenção das Pessoas com Deficiência) da atual redação do art. 1.772 do Código Civil,

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impende inverter a teleologia da norma infraconstitucional material e processual de modo a adequar a incapacitação civil à consideração do ser humano como valor-fonte e fundamento do direito. O ponto de partida e de chegada de qualquer sentença será a aferição do nível de discernimento da pessoa para assumir a vida como ela é, dentro de suas especificidades. Subverte-se à axiologia constitucional quando a fundamentação da decisão principia do enquadramento da pessoa ao perfil normativo de absoluta ou relativamente incapaz (inclusive sob a ótica de uma rígida delimitação entre atos patrimoniais e existen-ciais). Mesmo que, em seguida, o julgador conforme o modelo legal à concretude do caso, já haverá o vício de origem, consistente na eleição do discurso redigido pelo legislador, a despeito das vicissitudes do protagonista do processo.

A realidade palpável é extremamente rica e delicada para ser artificialmente reduzida à dicotomia do tudo ou nada. Se a linguagem médica descreve o estado do paciente em uma escala que vai de grave a completamente saudável, qual seria a razão de legitimar um discurso jurídico binário: capaz para atos existenciais e incapaz para atos patrimoniais? Impende avaliar as condições de saber e querer para individualizar estatutos protetivos conforme as especificidades da pessoa com deficiência, selecionando os interesses concretamente merecedores de tutela com base em parâmetros objetivos que respeitem a historia pessoal de cada um. Como consequência provável de uma argumentação voltada à tópica, uma sentença de curatela poderá determinar que, para certos atos da vida, a pessoa preservará a sua autonomia; em outros, a sua vontade será somada à de um assistente, sem que, necessariamente essa distinção seja pautada pela oposição entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. Eventualmente, o grau de discernimento do indivíduo indicará a sua aptidão à autônoma prática de atos patrimoniais, sendo a sua fragilidade psíquica justa-mente um fator de acentuado cuidado no trânsito existencial, espaço que demandará a atuação da pessoa do curador.7

7 Nesse sentido, também nos parece que transita a advertência de Ana Carolina Brochardo Teixeira e Renata de Lima Rodrigues: “Com isso afirmamos que a incapacidade deve ser sempre construída e delimitada apenas diante do caso concreto, fator que obriga a reestruturação do regime das incapacidades que, em uma profunda mudança de perspectiva, impõe o fim de categorias apriorísticas. Ou seja, não podemos preceituar que certas pessoas, porque enfermas ou deficientes, são absoluta ou relativamente incapazes de maneira abstrata. Essas restrições à capacidade de exercício e à autonomia dos indivíduos só podem ser realizadas a partir de questões devidamente problematizadas e legitimamente reconstruídas no caso concreto” (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochardo; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010, p. 35).

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Um claro indicativo por essa opção é a redação do art. 755 do CPC/15: “Na sentença que decretar a interdição, o juiz: I – nomeará curador, que poderá ser o requerente da interdição, e fixará os limites da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito”. Por mais que o Código de Processo Civil tenha se equivocado ao manter o uso do termo “interdição” (por três vezes), percebe-se a evolução no trato do tema.

O repensar da curatela evita que o processo seja um abrupto marco de irrupção do status jurídico da despersonificação. A inserção de regras de proporcionalidade permitirá que se reserve à deliberação da pessoa aquilo que a medida de seu discernimento lhe oportunize, mesmo que na seara patrimonial. Qualquer reserva de autonomia faculta à pessoa a posição de partícipe da própria existência. A complexidade da psique exige respostas flexíveis do sistema. Ao invés do silêncio e limitação do espaço, concede-se maior poder de iniciativa e inclusão social.

A flexibilização da curatela também se adequa à diretriz da concretude, tão cara a Miguel Reale. Em qualquer processo dessa natureza, há de se levantar o véu do ser humano que subjaz ao indivíduo abstrato e categorizado pela norma. Ao invés de uma sentença reducio-nista que rotule a pessoa na praticidade do pret a porter de regras estanques, o ordenamento jurídico oferecerá respostas mais complexas e ajustadas às circunstâncias de cada pessoa – na linha da “alta costura” –, soluções artesanais e ajustadas a cada perfil humano. Enfim, a subje-tividade humana é bem mais complexa do que um catálogo de regras jurídicas, e nada melhor que um pouco de delicadeza no trato do semelhante.

O direito precisa saber mais sobre as fronteiras da consciência e de seus processos volitivos para estabelecer qual o limite de respon-sabilização do sujeito, explica Rodrigo da Cunha Pereira. Para tanto, prossegue: “Faz-se necessário verificar a sua estrutura de persona-lidade, seu raciocínio, atuação e comportamento em suas relações sociais. Médico, psicólogo e assistente social, juntos e a partir de seus conhecimentos específicos são os que melhor poderão levar subsídios ao processo sobre a capacidade e limites da responsabilidade do sujeito. Portanto, a formação do melhor juízo sobre aquele a quem nenhum juízo se atribuía, só estará próxima do ideal de justiça se demarcada com a ajuda de outros campos do conhecimento”.8

8 CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Comentários ao novo código civil, XX. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 404.

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A abstração do sujeito se dissolve na concretude das necessidades de uma pessoa “situada”, impregnada pelas dificuldades da existência, subjetivamente impotente perante os obstáculos que a organização social lhe impõe. Ademais, a referência constitucional à dignidade da pessoa humana se apresenta como um vínculo duplamente relevante: como finalidade da ação pública, que deve assegurar o seu desenvolvi-mento, e também como limite intransponível da ação legislativa, que, em nenhum caso, poderá negar ao ser humano o respeito que lhe é devido. Nesses termos, a reconstrução da unidade da pessoa em torno de sua identidade psicofísica requer que se considere a “saúde” não como ausência de doença, mas como “estado de completo bem-estar físico e psíquico”. Segundo a definição da Organização Mundial de Saúde, isso implica a passagem de uma condição excepcional para uma de normalidade da vida da pessoa.9

1.2 A teoria dos intervalos lúcidos e o termo legal de incapacidade

A par da flexibilização da curatela, localizamos na legislação civil em vigor certos preceitos que se revelam incompatíveis com a impres-cindível submissão do processo de curatela a parâmetros objetivos de proporcionalidade, desrespeitando a ordem constitucional e o sistema internacional de direitos humanos já internalizado no Brasil.

Como cantava Elis Regina, “apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Em pleno século XXI, o direito civil ignora a eficácia de atos jurídicos praticados pelo incapaz sob curatela em seus “intervalos lúcidos”. Prestigiando a segurança jurídica, entendem-se suprimidos os efeitos de negócios praticados pelo curatelado sem a necessária representação, como decorrência da sanção da nulidade (art. 166, I, CC).

Todavia, os fatos teimam em atropelar o direito. Com a notável evolução da farmacologia, paulatinamente os raros intervalos lúcidos se convertem em longos períodos de sanidade, não raramente facul-tando ao curatelado uma normalização de sua vida comunitária. Essa realidade, contudo, persevera desprezada pelo ordenamento jurídico, que ainda parte do pressuposto da presunção absoluta de invalidade dos atos praticados pelo sujeito sem o acompanhamento do curador.

9 RODOTA, Stefano. Dall soggeto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007, p. 40.

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Não se quer discutir aqui o plano da validade do ato de autonomia privada, pois há de se respeitar o direito posto no que concerne à repre-sentação como requisito de qualificação da manifestação de vontade do incapaz para fins de conformá-la ao ordenamento. Nada obstante, a formal imperfeição na declaração volitiva – desprovida de chancela do curador – eventualmente poderá ser desconectada da sanção da ineficácia e reposição das partes ao estado anterior ao ato. Basta funcio-nalizarmos o modelo jurídico da curatela para a proteção e promoção da pessoa submetida a ela. Por esse viés, será legítima a eficacização de atos jurídicos que desatendam a representação, mas que não causem ao curatelado qualquer espécie de prejuízo aos seus interesses. Algo semelhante já se evidencia no respaldo a algumas decisões unilate-ralmente adotadas por adolescentes em sua progressiva edificação da personalidade, impedindo a fragmentação entre a titularidade e o exercício de situações existenciais.

Mais uma vez, o ordenamento civil escancara o seu perfil abstra-tizante da condição humana, denegando ao curatelado o acesso a um estatuto personalizado da sua curatela que lhe garanta uma tutela efetiva aos interesses concretamente merecedores de tutela, sejam eles de ordem existencial ou patrimonial.

Outrossim, no tocante à célebre discussão sobre a validade dos atos praticados pela pessoa antes da sentença supressora de capacidade, o projeto do CPC se posicionava de maneira clara e precisa ao dispor que: “A sentença de interdição não invalida os atos jurídicos praticados pelo interdito, mas, observado o termo inicial, faz prova da incapacidade para administrar os seus bens ou praticar ato da vida civil” (§5º do art. 770 do projeto). Esse termo inicial seria a data a partir da qual se presume a incapacidade do interdito para administrar seus bens ou praticar ato da vida civil (§3º). Em face da natural dificuldade de demarcação do termo legal de incapacitação, o juiz supletivamente consideraria como tal “a data da propositura da ação de interdição” (§4º). Destarte, surgiriam três regimes sucessivos de qualificação dos atos jurídicos praticados pelo curatelado: a) atos praticados antes do termo inicial seriam válidos e eficazes; b) atos praticados após o termo da incapacidade poderiam ser invalidados e privados de eficácia em ação autônoma, desde que evidenciado o prejuízo do incapaz, presumindo-se a ciência da outra parte quanto à fragilidade psíquica da outra parte. Em face da natureza constitutiva de eficácia ex nunc da sentença, o câmbio do status jurídico da pessoa pela sujeição ao excepcional regime da incapacidade não poderia automaticamente impactar nas relações pregressas com terceiros; c) atos jurídicos pessoalmente praticados após a curatela seriam invalidados (art. 166, I, CC).

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Infelizmente, a norma projetada não encontrou respaldo na redação final do CPC/15. Todavia, em face da ausência de regula-mentação da matéria, poderá servir para o reforço de uma construção doutrinária que pondere a tutela do incapaz com a boa-fé de terceiros e a segurança jurídica exigida pela coletividade.

1.3 O fim da curatela extensiva

De acordo com o artigo 1.778 do Código Civil, “a autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens dos filhos do curatelado”. Trata o dispositivo da chamada “curatela extensiva”, pela qual o curatelado não apenas perde o controle sobre a sua própria vida, como também será destituído da autoridade parental, fato que poderá precipitar dolorosas consequências sobre pais, mães e filhos.10

O Código Civil de 2002 concebia a interdição como uma espécie de ilícito caducificante, materializado pela supressão do poder de família, como se a condição de incapaz impusesse ao ser humano a pecha de autor de um comportamento antijurídico. A curatela extensiva se revela uma técnica de controle social devastadora nas várias situações em que o curatelado ostenta manifestações objetivas de afetividade pelos filhos.

O artigo 1.778 do Código Civil não foi revogado pela Lei nº 13.146/15; porém, é incompatível com o art. 85, §1º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência: “A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. §1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Vale dizer, se a pessoa deficiente curatelada possuir autodeterminação residual para exercer a autoridade parental, não poderá invadir o curador o espaço reservado à privacidade familiar.

Outrossim, o CPC/15 feriu diretamente o tema ao dispor que “a autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz” (art. 757 do CPC/15).

10 Este episódio foi encantadoramente retratado no filme Uma Lição de Amor (I am Sam, 2001), no qual Sam (Sean Penn), de 40 anos, possuía deficiência mental que lhe reduzia o discernimento ao equivalente a uma criança de oito anos. Todavia, desde o nascimento, com a ajuda de amigos, cuidou com muito carinho de sua filha Lucy, trabalhando parte do tempo na rede de cafés Starbucks. Quando Lucy completa oito anos, percebe as limitações cognitivas do pai e se boicota para não agredi-lo. Percebendo as circunstâncias, uma assistente social pretende destituir o pai da autoridade parental. Indagada sobre a capacidade do pai, Lucy é convicta ao afirmar “ele tem capacidade para amar... tenho sorte, nenhum dos outros pais costuma levar o seu filho ao parque”.

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De fato, a curatela extensiva não pode repercutir automatica-mente, como se a privação psíquica induzisse ao inexorável expurgo do genitor do curatelado ao acesso ao direito fundamental à convi-vência familiar, tal como extraído do artigo 227 da CF. O preceito não se relaciona apenas com o imperativo da proteção integral da criança e adolescente por parte daqueles que exercitam a autoridade parental. Essa leitura da norma constitucional é insuficiente. Clarifica apenas a eficácia negativa de um direito fundamental “de convivência” pelo viés da dimensão defensiva da dignidade da criança e do adolescente. Em verdade, devemos extrair um compromisso ético ampliado do referido princípio. Carece ele de uma renovada configuração, que revele a sua eficácia positiva, como dever dos pais de não apenas proteger, mas de promover a personalidade de seus filhos, funcionalizando a autoridade parental ao desenvolvimento das potencialidades de seres humanos em desenvolvimento.

Essa dimensão afirmativa do princípio é extraída da integração, ao art. 227, da norma do art. 229 da Constituição Federal, que explicita os deveres parentais de assistência, criação e educação dos filhos. Dessume-se que a autoridade parental não é um fim em si, mas instru-mento consubstanciado em diuturno processo educacional, que, a seu cabo, edificará a autonomia de uma pessoa apta a realizar as suas escolhas existenciais e por elas se responsabilizar.

Acreditamos, contudo, que o art. 227 requer ainda uma terceira dimensão. Para além de um direito de proteção e promoção da convi-vência no interno da família constituída, há de se resguardar o direito fundamental “à convivência” como inegável prerrogativa de acesso da criança e do adolescente ao relacionamento familiar.

Portanto, a indiscriminada aplicação da curatela extensiva ofendia o direito fundamental de convivência em três planos, afetando situações existenciais de pais e filhos. Daí a necessidade de reservá-la para aquelas situações em que evidentemente os filhos se encontram em situação de risco diante de pais disfuncionais, pelo fato de a enfermidade ou deficiência influir negativamente na parentalidade. Aí então se justi-ficará a transmissão do poder de família para uma pessoa designada pelo magistrado.

1.4 A curatela transitória e as revisões periódicas

Tivemos a oportunidade de examinar aspectos legislativos que mereceram renovado enfoque por parte do Estatuto da Pessoa com

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Deficiência em vista a uma adequação da curatela ao respeito aos direitos, vontades e preferências da pessoa humana, o que exige normas e decisões proporcionais e apropriadas às suas circunstâncias.

Porém, outro imperativo que se relaciona à humanização da curatela diz respeito à necessidade de restringir o decreto de incapa-cidade ao mais curto período possível, ou seja, defende-se uma curatela não apenas motivada, como também submetida a prazo.

Nesse passo, de acordo com o art. 12.4 da CDPD:

Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exer-cício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, indepen-dente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. (Grifo nosso)

A curatela deve ser compreendida na lógica de um processo,11 ou seja, um conjunto de atos coordenados cuja finalidade é a restituição à pessoa do direito fundamental da capacidade civil. A curatela sem prazo subverte essa dinâmica, institucionalizando a incapacidade sem que os sujeitos do processo terapêutico percebam claramente a premência da função de libertação da pessoa humana submetida ao status de incapaz.

Nos moldes do Código Civil de 2002, a “interdição” seguramente ostenta o posto de mais grave sanção punitiva do direito brasileiro: ao contrário da prisão, não há proporcionalidade entre o delito e o apena-mento; inexiste previsão de duração da pena, assim como progressão de regime, revisão de condições ou qualquer benefício no transcurso de seu cumprimento. Em regra, ela será vitalícia e desprovida de controle sobre a situação pessoal do curatelado e fiscalização do comportamento do curador.

11 Aderimos aqui a noção de processo da forma concebida por Clóvis do Couto e Silva, utilizada para materializar o direito das obrigações, dinamizando o adimplemento: antes, mero ato formal de realização de uma prestação; agora, finalidade para o qual a obrigação se polariza desde a etapa embrionária das tratativas até a fase pós-negocial. O percurso é iluminado pela diretriz da concretude, que concretiza deveres de conduta, hábeis a guiar as partes ao cumprimento das prestações em um ambiente de lealdade e respeito, evitando-se a frustração das legítimas expectativas dos iguais titulares de direitos fundamentais.

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Como indicativo de acato à CDPD, dispõe o §3º do art. 84 da Lei nº 13.146/15 que “a definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível”.

No projeto original do Código de Processo Civil, havia a alvissareira instituição da curatela temporária, banindo-se do sistema a perpetuação da curatela. À luz do inciso III do art. 770 do CPC projetado, no momento da sentença o juiz fixaria “o termo da interdição” (melhor seria o “termo da curatela”). A submissão da decisão a um prazo não seria mera faculdade do magistrado, porém exigência legal calcada na esfera da proporcio-nalidade, densificando a dignidade da pessoa humana pela mínima restrição da norma infraconstitucional a direitos fundamentais. Sendo a supressão da capacidade civil uma excepcional mitigação da autonomia privada, não poderia a incapacitação exceder o prazo de cinco anos. Em complemento, consoante o natimorto art. 774 do projeto do CPC, o juiz reavaliaria “a situação do interditando e a curatela a cada cinco anos”. Caso o texto fosse preservado, a curatela oficialmente se converteria em modelo jurídico transitório, com nítido caráter resolúvel, independen-temente do transcurso do lustro legal da curatela.

De qualquer forma, o CPC/15 preservou o caráter rebus sic stantibus da sentença, eis que a curatela poderá ser levantada a qualquer tempo, sendo bastante que cesse a sua causa originária (art. 756 do CPC/15), com o acréscimo de que, mesmo nos casos excepcionais de curatela ilimitada, “a interdição poderá ser levantada parcialmente quando demonstrada a capacidade do interdito para praticar alguns atos da vida civil” (§4º do art. 756 do CPC/15).

A nosso viso, por mais que o CPC/15 tenha perdido a oportu-nidade de regulamentar a curatela com prazo, nada impedirá ao magistrado a prévia delimitação de um marco temporal para que se reavalie a necessidade da manutenção da curatela.

Realmente, uma curatela despida de um “ponto de chegada” revela duas ordens de questionamentos. Primeiramente, a ausência de expectativas com relação a uma reavaliação do curatelado robustece a incapacidade, pois suprime o ímpeto da pessoa de se submeter a tratamentos que possam restabelecer o equilíbrio psíquico. No mais, o levantamento da curatela depende de pedido do curador ou do indivíduo sentenciado. Caso a iniciativa não parta do representante (por negligência ou por não considerar que cessou a causa que motivou a sentença), dificilmente o requerimento partirá do próprio curatelado, seja pela natural barreira do acesso ao Judiciário sem o acompanha-mento do representante, ou mesmo pelo déficit de credibilidade de

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um requerimento de lavra de uma pessoa previamente deslegitimada pelo sistema jurídico.12

Outra exigência da CDPD concerne à necessidade de submissão da curatela a uma revisão regular, independente e imparcial (art. 12.4). O CC/02 é silente nesse particular, e o art. 1.774 nos remete às disposições concer-nentes à tutela. Assim, como norma comum a ambos os modelos jurídicos, resta o art. 1.755, impondo aos tutores (e extensivamente aos curadores) a obrigação de prestar contas de sua administração. Esse ultrapassado dispositivo reforça a preocupação com o patrimônio do curatelado em detrimento do necessário cuidado com o ser humano subjacente aos bens fiscalizados, como se houvesse uma presunção absoluta de diligência na conduta do curador perante a pessoa do curatelado.

Certamente, não se pode menosprezar a criteriosa aferição da legalidade dos atos de gestão econômica por parte de quem administra bens alheios e a sua eventual responsabilização pelos prejuízos consta-tados, mesmo porque a esmagadora maioria dos curatelados depende daquele patrimônio mínimo para extrair o necessário à sua sobrevi-vência. Todavia, da funcionalização desse modelo jurídico se extrai que a atuação do representante somente será merecedora de tutela se ele se compromete objetivamente a apoiar a recuperação do curatelado. O interesse digno de proteção da pessoa submetida à curatela se vincula à diuturna humanização do tratamento. Não será a omissão da legis-lação infraconstitucional que servirá como obstáculo a uma imediata aplicação da Constituição no sentido de vincular o Poder Judiciário a conjugar a prestação de contas a uma periódica revisitação do estado de saúde do ser humano curatelado e do zeloso cumprimento pelo curador do papel promocional da dignidade da pessoa submetida à curatela.

Por mais que a Lei nº 13.146/15 tenha aparentemente silenciado no tocante à necessidade de submissão da curatela a uma revisão regular,

12 Uma excepcional situação de levantamento da curatela pelo próprio destinatário da curatela é narrada no clássico Memórias de um doente de nervos, cujo autor, Daniel Schreber, magistrado e membro de corte superior de tribunal alemão, elabora relato autobiográfico, com destaque para o período de sua internação e o seu posterior reingresso na sociedade. Essa narrativa se tornou um dos recursos mais utilizados para o estudo da psicose, visto que os delírios do autor são descritos de forma muito detalhada. No início da obra, o autor assume que, “considerando que tomei a decisão de, em um futuro próximo, solicitar minha saída do sanatório para voltar a viver entre pessoas civilizadas e na comunhão do lar com minha esposa, torna-se necessário fornecer às pessoas que vão constituir meu círculo de relações ao menos uma noção aproximada de minhas concepções religiosas, para que elas possam, se não compreender plenamente as aparentes estranhezas de minha conduta, ter ao menos uma ideia da necessidade que me impõe tais estranhezas” (SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e introdução de Marilene Carone. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006).

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independente e imparcial, sem maiores dificuldades hermenêuticas será possível extrair do já realçado §3º do art. 84 que, se a curatela deve durar “o menor tempo possível”, naturalmente o magistrado conjugará a prefixação de um termo, a determinação de um novo exame multidisciplinar para a aferição das condições do tratamento, a atualização quanto ao grau de deficiência da pessoa e a viabilidade da cessação da incapacidade relativa. Mesmo que não se queira conferir tal elasticidade ao estatuto, nunca é por demais lembrar que, seguindo o procedimento do §3º do art. 5º da Constituição Federal, o Congresso Nacional aprovou a CDPD com status de emenda constitucional. Com isso, desde 2009 a convenção passou a gerar efeitos jurídicos internos, impondo a todos (inclusive ao Poder Judiciário) a adequação imediata de posturas e de políticas públicas.

Pelo fato de a sentença que declara a curatela ser revista a qualquer tempo, considerando o acompanhamento multidisciplinar e a evolução do estado psíquico do paciente, os dados de registro dos limites de exercício da autonomia privada oscilarão. Ilustrativamente, o curatelado poderá optar por não se sujeitar ao tratamento indicado pela equipe multidisciplinar. Nesse caso, com base na opinião de todos os envolvidos, inclusive do curatelado, o magistrado poderá interferir diretamente na medida da curatela por meio do reforço do cuidado por via das ações do curador.13

Não se pode mais reduzir a curatela a um encargo ou a um munus. A reconfiguração ou despatrimonialização do instituto necessariamente se prende a uma imposição solidarista pela qual todo curador será um “cuidador da saúde” que promoverá a autonomia do sujeito incapaz, favorecendo as decisões que respondam às suas preferências. A relação entre representante e representado necessariamente ostentará uma dinâmica de afetividade.

1.5 Curatela conjunta

Em nossa proposta, a curatela conjunta é um gênero que contém duas espécies: curatela conjunta compartilhada e curatela conjunta fracionada.

No Código Civil de 2002, não havia explícita previsão legal para a curatela conjunta em ambas as espécies. Pelo contrário, o art. 1.775 do Código Civil enunciou uma ordem sucessiva de nomeação do curador, com primazia para o cônjuge ou companheiro, passando pelos

13 SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Belo Horizonte: D’Placido Editora, 2016, p. 322.

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ascendentes e descendentes do curatelado, culminando na escolha pelo magistrado na falta das mencionadas pessoas.14

A omissão legislativa jamais serviu de empecilho para a consa-gração da funcionalização da curatela pela via da pluralização de curadores se esta fosse a construção que melhor se adaptasse à proteção e promoção de direitos fundamentais da pessoa submetida à curatela. Todavia, a Lei nº 13.146/15 inovou com o art. 1.775-A nos seguintes termos: “Na nomeação de curador para a pessoa com deficiência, o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa”.

1.5.1 Curatela conjunta compartilhadaO direito fundamental à convivência familiar é extraído do artigo

227 da CF. No sentido que atualmente lhe confere, relaciona-se com o imperativo da proteção integral da criança e adolescente por parte daqueles que exercitam a autoridade parental. Extrai-se de sua eficácia defensiva que os detentores do poder familiar efetivem a tutela infantojuvenil, assegu-rando o respeito ao sujeito de direito em sua progressiva formação da subjetividade, notadamente pela preservação de sua integridade psico-física. Mas não é só! Em sua dimensão afirmativa, o referido princípio incita os genitores a promover a personalidade de seus filhos, funcionalizando a autoridade parental ao desenvolvimento das potencialidades de seres humanos em desenvolvimento. Por fim, o referido art. 227 materializa uma terceira dimensão. Para além da dupla face de proteção e promoção da convivência no interno da família constituída, há de se resguardar o direito fundamental “à convivência” como inegável prerrogativa de acesso da criança e do adolescente ao relacionamento familiar. Trata-se do direito fundamental do filho de não se separar dos seus pais quando a vida afetiva do casal alcança os seus estertores.

Se a família se desestruturou, o estatuto do acesso se viabiliza pela via da guarda compartilhada, considerada como a responsabili-zação conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. O estatuto civil assegurou a guarda compartilhada quando fruto do consenso parental (art. 1.584, I, CC).

Sendo a guarda compartilhada a forma eleita pela lei civil para efetivar o direito fundamental à convivência na tríplice dimensão da

14 Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.692/2011, que visa acrescentar o art. 1.775-A ao Código Civil a fim de contemplar a curatela compartilhada entre os genitores nos casos de curatela de pessoa com deficiência física grave ou deficiência mental, tal como postulado no caso dos autos.

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proteção, promoção e acesso dos filhos menores a uma estruturação psíquica, evidentemente que a curatela compartilhada também concretiza o direito fundamental à convivência da pessoa interdita com ambos os pais. O momento de decretação da supressão da capacidade não pode representar um corte na relação entre o sujeito e um dos seus pais, o que geralmente ocorre quando o dever de cuidado é atribuído a apenas um dos genitores.

Assim, o requerimento de curatela compartilhada pelos pais não significa apenas mais uma opção concedida pelo art. 1.775-A do Código Civil, senão o desfecho prioritário e vinculativo do magistrado na eleição da pessoa do curador, que só poderá ser rechaçado por razões justificáveis, justamente por se tratar da solução virtuosa que melhor dignifica a pessoa do curatelado. Sendo o processo um instrumento de efetivação das aspirações do direito material, o aconselhável é que o Ministério Público e o magistrado concitem os genitores – se ambos possuírem condições físicas e psíquicas para tanto –, no sentido de compartilhar a curatela, como modo de dilatação da eficácia do poder familiar (art. 1.630, CC), originalmente dedicada aos filhos menores, mas seguramente favorável aos interesses existenciais das pessoas maiores, porém incapazes.

A guarda compartilhada poderá alcançar outros sujeitos conforme aponte a concretude do caso: ilustrativamente, a responsabilização conjunta de um genitor e um irmão, ou mesmo um filho da pessoa interdita; os dois avós do curatelado; um padrasto e um tio… enfim, no contexto ampliado das famílias, a noção de afetividade assume um caráter objetivo para se aproximar de um ethos de solidariedade entre pessoas que partilham a sua existência.15

1.5.2 Curatela conjunta fracionadaA compartilhada gera responsabilização conjunta para exercício

da totalidade de direitos e deveres relativos ao cuidado com a pessoa

15 Nesse sentido, o ensinamento de Maria Berenice Dias: “Embora a lei confira legitimidade ao pai ou a mãe para o exercício da curatela (CC 1.775, §1º), necessário reconhecer a possibilidade de ambos os genitores exercerem de forma compartilhada tal tarefa. Não só pais, mas também avós ou parentes outros que sejam casados ou vivam em união estável hétero ou homoafetiva, podem ser nomeados em conjunto. Afinal, situações particulares como a tutela de netos e a curatela de filhos não podem ficar atreladas à rigidez das normas e nem prescindir da utilização de novos critérios hermenêuticos de afirmação, que cumprem a verdadeira finalidade do direito: garantir ao cidadão o exercício efetivo de seus direitos fundamentais” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 623).

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sob curatela. Ambos os curadores atuam em prol da pessoa e de seu patrimônio sem distinção de funções ou periodicidade.

Todavia, diante de toda a valorização da pessoa do curatelado, naturalmente o ordenamento exigirá mais do curador. A curatela deixa de ser um simples munus, resumido à fase estrutural da designação formal do representante judicial de um incapaz. Em substituição, surge o curador-cuidador, modelo proativo que demandará de seu titular maior especialização e dedicação à pessoa sob curatela.

Em face da complexidade desse novo modelo e do evidente desgaste da pessoa que abraçará tal gama de cuidados, será aconse-lhável – quando possível – o fracionamento das funções entre cocuradores, cada qual empenhado nas atividades para as quais se dirijam as suas afinidades e talentos. Bem evidencia Rodrigo Mazzei16 que:

É perfeitamente possível a ocorrência de situações em que o curador virtual, embora possa atuar com exemplar empenho para a preservação dos atos para a vida e dignidade do interdito, não tenha aptidão para a atuação patrimonial em prol do curatelado, reconhecendo o fato perante o juiz. Em tais casos, não enxergamos motivo para se negar pedido de nomeação conjunta a fim de que as tarefas sejam fracionadas, assumindo cada um dos nomeados, função distinta, com sujeição de ambos aos efeitos (e deveres) do múnus público atrelado à figura do curador, espe-cialmente quando há postulação fundamentada e consensual assinada por aqueles que pretendem dividir a curatela.

Lembre-se, por necessário, que a tutela significa uma extensão do poder familiar para crianças e adolescentes, dispondo o art. 1.774 do Código Civil que se aplicam à curatela as disposições concernentes à tutela. Portanto, em um processo de curatela, as circunstâncias concretas podem aconselhar o recurso ao art. 1.742 do Código Civil, que institui a figura do protutor, pessoa designada pelo juiz para a fiscalização dos atos do tutor, beneficiando a conservação do patrimônio do infante e legitimando a prestação de contas.

Não obstante tenha o art. 1.775-A previsto tão somente a curatela compartilhada a mais de uma pessoa (Lei nº 13.146/15), nada impede que as peculiaridades do caso indiquem preferencialmente a cisão de responsabilidades entre duas pessoas.

16 MAZZEI, Rodrigo. Curatela compartilhada: exemplo (e possibilidade) de curatela conjunta. Necessidade de uma nova concepção da curatela, adequando-se aos reclames da atual sociedade. Revista de Direito de Família e Sucessões, Belo Horizonte: IBDFAM, v. 2, 2015.

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Com efeito, o fracionamento será mais necessário nas invulgares hipóteses em que a existência de um patrimônio mais significativo demande certa expertise do curador, o que atrairá a necessidade de reservar a outro curador a exclusividade do cuidado existencial da pessoa. Exemplificativamente, o cônjuge ou um dos genitores atua em benefício da saúde, enquanto um filho ou irmão evita a dilapidação de bens. Enfim, as possibilidades são inúmeras. Com a disjunção de áreas de atuação em prol dos melhores interesses do curatelado, simultanea-mente valorizamos o exercício dos deveres relacionados à afetividade e a fiscalização dos assuntos econômicos.

1.6 A humanização da curatela no CPC/15

Em certo ponto, o cenário apresentado pela legislação processual reformista se coaduna com os referenciais demarcados por Erik Jayme17 para o direito de família da pós-modernidade: o pluralismo, a narração, a comunicação e o regresso dos sentimentos. Admitir tais tendências pode soar caótico e ameaçador à segurança jurídica, porém possui a vantagem de melhor corresponder à complexidade da vida atual.

1.6.1 Curador-cuidadorEm sentido diverso à anacrônica ordem de preferência de

nomeação do curador, com prioridade para o cônjuge e o compa-nheiro ‒ sucessivamente delegada aos ascendentes e descendentes do curatelado (art. 1.775, caput e §1º, CC) ‒, o CPC/15 atribui a curatela a quem mais bem possa atender aos interesses do curatelado (§1º do art. 755 do CPC/15). A elogiável abertura do dispositivo materializa o dever de cuidado perante a pessoa curatelada, preservando o direito funda-mental de convivência com quem antes já lhe assistia, a despeito de sua condição ou não de componente da entidade familiar. O preceito se mostra igualmente eficaz para aquelas situações em que não se legitime com nitidez um personagem que exercite atos objetivos de afetividade, cabendo ao magistrado promover o acesso da pessoa ao acompanhamento responsável daquele que possua melhores condições de zelar pelo respeito e consideração com o ser humano incapacitado.

17 JAYME, Erik. Pós-modernismo e Direito de Família. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Universidade de Coimbra, v. LXXVIII, 2002, p. 220.

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Em idêntico sentido caminhou a Lei nº 13.146/15 ao incluir um parágrafo único no art. 1.772 do Código Civil com o seguinte teor: “Para a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências do interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa”. Apesar de o Estatuto da Pessoa com Deficiência ter preservado o citado o art. 1.775 do CC/02, ele praticamente perde a sua vitalidade, pois a ordem nele consagrada só será respeitada se coincidir com a pessoa que tenha condições efetivas de velar pela mais ampla tutela aos direitos fundamentais da pessoa interditada.

No perfil funcional da curatela como um processo consubstan-ciado por um conjunto de atos direcionados à recapacitação civil da pessoa, todos os atos desenvolvidos pelo curador somente serão legitimados pelo sistema jurídico se voltados à proteção e promoção das situações patrimoniais e existenciais daquele cuja autonomia é temporariamente suprimida. Daí se extrai a fundamentalidade da escolha daquele que conduzirá o processo de libertação do curatelado pela via do resgate de sua autonomia plena. Em outras palavras, tem-se aquilo que o art. 14 da Lei nº 13.145/15 define como processo de reabilitação:

O processo de habilitação e de reabilitação é um direito da pessoa com deficiência. Parágrafo único. O processo de habilitação e de reabilitação tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habili-dades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.

A permeabilidade do §1º do art. 755 do CPC/15 atrai a aplicação do princípio da afetividade jurídica objetiva. Vale dizer, na designação da pessoa que melhor possa conduzir o processo – de decretação da curatela até o seu levantamento –, o magistrado localizará fatos signopresuntivos que indiquem objetivas manifestações de afetividade na pregressa relação entre o curatelando e alguém que materialmente já o tratava como curador. O seu substrato envolve relações de cuidado, entreajuda, respeito, manutenção de subsistência, educação, proteção, carinho etc.18 A externalidade pública de todos ou alguns desses signos

18 Ricardo Lucas Calderón evidencia a existência de duas dimensões da afetividade: subjetiva e objetiva. A dimensão subjetiva restaria vinculada ao psíquico de cada pessoa (ao afeto em si), de modo que não interessa ao direito. Para a seara jurídica, esta dimensão subjetiva resta implícita sempre que presente a sua dimensão objetiva. Por outro lado, a dimensão objetiva

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identificadores de um dignificante convívio edificará o fato jurídico da socioafetividade, que, a seu turno, receberá eficacização no processo de curatela através da sua atribuição em prol do detentor fático da função de curador. A percepção dessa realidade pelo direito será decisiva para a conformação do encargo aos interesses patrimoniais e existenciais concretamente merecedores de tutela da pessoa curatelada.

Não se olvide que a melhor forma de materialização da pessoa que atenderá ao projeto terapêutico do horizonte do “melhor interesse do curatelado” será justamente a eleição da pessoa por ele designada, pela via da diretiva antecipada da vontade da autocuratela. O exercício da autonomia prospectiva no período da capacidade plena facultará a designação de uma ‒ ou mais de uma pessoa ‒ para o futuro papel de curador, consubstanciando um guia de orientações fundamentais acerca das vontades, desejos e crenças de alguém que eventualmente não possa mais se reconhecer no porvir da curatela.

Na falta de diretivas antecipadas, parece-nos evidente e aconse-lhável que o atendimento aos interesses do sujeito curatelado enseje uma pluralização da sua representação pela curatela conjunta, seja ela compartilhada ou fracionada, conforme as circunstâncias que indiquem a corresponsabilidade ativa ou a divisão de atribuições em prol do sujeito.

Outrossim, a curatela conjunta será especialmente valiosa para as excepcionais hipóteses em que “a autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsa-bilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz” (art. 757 do CPC/15). Em sua parte derradeira, o texto admite que o magistrado remova a curatela extensiva quando considere desaconselhável ampliar a representação do curador à pessoa sob a autoridade parental do curatelado (como exige o caput do art. 1.778 do Código Civil). Uma saudável herme-nêutica do texto projetado passa pelo compartilhamento da autoridade parental sobre o filho da pessoa incapacitado entre o próprio curatelado (que não será destituído do poder de família) e o seu curador, ou então entre aquele e um segundo curador, especialmente vocacionado para as tomadas de decisão conjuntas sobre a criança ou o adolescente.

envolve fatos da realidade concreta que permitam a constatação de uma manifestação de afetividade. Estando presentes tais fatos indicativos (dimensão objetiva), seria possível constatar desde logo a afetividade, visto que a outra esfera (dimensão subjetiva) seria sempre implícita. Ou seja, o direito não estaria regulando sentimentos, mas sim apenas valorando fatos representativos, tidos como relevantes para o ordenamento, no caso a afetividade. (CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 321-322).

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Digno de aplausos é o texto do art. 758 do CPC/15: “O curador deverá buscar tratamento e apoio apropriados à conquista da autonomia pelo interdito”. A ele se acresça o §2º do art. 85 da Lei nº 13.146/15: “A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado”. O curador definitivamente assume a condição de cuidador, protagonizando a função promocional de reinserir o curatelado em sua condição plena de cidadania. A curatela se converte em processo (na leitura de Clóvis do Couto e Silva) à medida que o sistema desvincula a curatela de um fim em si para tratá-la como fase intermediária e neces-sária, de gradual travessia entre um período patológico de ausência ou redução de discernimento para a aquisição de autodeterminação do paciente, na plenitude de sua condição fisiológica. Com ênfase na boa-fé objetiva, o curador assume deveres laterais de proteção, cuja forte carga ética consiste no exercício de comportamentos colaborativos direcionados à emancipação da pessoa.

1.6.2 Personalização da curatelaDe acordo com o art. 749 do CPC/15, ao promover a curatela,

“incumbe ao autor, na petição inicial, especificar os fatos que demonstram a incapacidade do interditando para administrar seus bens e, se for o caso, praticar ato da vida civil, bem como o momento em que a incapa-cidade se revelou”. Aqui há a louvável iniciativa de direcionar a curatela para o âmbito da gestão patrimonial, sem distinção entre a curatela da pessoa relativa ou absolutamente incapaz. A privação para o autônomo exercício dos direitos fundamentais e atos existenciais será medida excepcional, demandando motivação própria. O curador se despe da arrogante postura de alter ego do “sentenciado silenciado”, converten-do-se em auxiliar da travessia pela superação de suas limitações.

Em reforço, proclama o art. 751 do CPC/15 que “o interditando será citado para, em dia designado, comparecer perante o juiz, que o entrevistará minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens, vontades, preferências, laços familiares e afetivos, e sobre o que mais lhe parecer necessário para convencimento quanto a sua capacidade para prática de atos da vida civil, devendo ser reduzidas a termo as perguntas e respostas”. O CPC/15 expressamente revogou art. 1.771 do Código Civil. Enquanto o art. 1.771 do Código Civil dispõe que o magis-trado, assistido por especialistas, “examinará pessoalmente o arguido de incapacidade” (em sentido idêntico ao art. 1.181 do CPC/73, que determina obrigatório acompanhamento da inspeção por especialistas),

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o CPC/15 discrimina a atividade do juiz com relação aos profissionais da saúde como uma fase procedimental de “entrevista”, momento em que aquele vivenciará o diálogo com a pessoa, abrindo espaço para a escuta da sua narrativa, sem tecnicismos (doravante a presença de um especialista será facultativa, a teor do §2º do art. 751 do CPC/15). Trata-se de uma oportunidade de contato do juiz com a história de vida do ser humano, subjacente a um patrimônio que se queira acautelar. O conhe-cimento das suas crenças, motivações e versões não servirá para a coleta de aspectos técnicos do eventual transtorno psíquico, mas para que o magistrado colha importantes elementos de convicção sobre quem é de fato aquele ser humano conduzido à iminência de uma incapacitação civil. Como bem refere o §3º do mesmo dispositivo, será assegurado o emprego de recursos tecnológicos para que a entrevista seja levada a efeito da melhor forma possível. Ilustrativamente, pessoa que ostente enfermidade progressivamente incapacitante, como a esclerose lateral amiotrófica, poderá fazer uso de aparelhos especiais de comunicação com o magistrado.

Em complemento, o §1º do artigo 751 do CPC/15 – “Não podendo o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver” – atrai o dever de colaboração do juiz com as partes (art. 6º do CPC/15), mais precisamente pela materialização do dever de auxílio, assistindo a parte deficiente na superação de obstáculos que impediriam o exercício de seus direitos. Daí a imposição do deslocamento do magistrado para o local em que a pessoa estiver a fim de que este cumpra o seu dever processual de prestar a entrevista.

Preconiza o art. 755 do CPC/15 que, “na sentença que decretar a interdição, o juiz: I – nomeará curador, que poderá ser o requerente da interdição, e fixará os limites da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito”. Em louvável avanço, a regra flexibiliza a curatela em todos os níveis, eliminando a apriorística figura da curatela ilimitada (art. 1.772 do CC) como sanção padronizada para todos aqueles que se subsumam a moldura abstrata de absolutamente incapazes.

A variação do espaço de autonomia reservada à pessoa interdita oscilará conforme os interesses concretamente dignos de proteção – e não mais sobre signos estigmatizantes –, sendo alçados à posição de parâmetros objetivos de ponderação entre a preservação da autodeter-minação do curatelado e a necessidade de sua proteção aspectos como a consideração das “características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências” (inciso II do art. 755 do CPC/15). A instrumentalidade do processo legitimamente

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se curva à priorização da preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana, notadamente da capacidade civil, meio necessário para a diuturna afirmação da subjetividade, pelo livre acesso ao trânsito nas relações sociais, afetivas e familiares.

1.7 Conclusão

Assim, há de se enaltecer o desiderato funcionalizado da curatela. Não mais um instituto exclusivamente vocacionado à conservação do patrimônio do incapaz, porém um modelo jurídico instrumentalizado à proteção e promoção das situações existenciais da pessoa humana submetida à curatela. A partir de agora, com os olhos voltados para a CDPD (Decreto nº 6.949/09), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15) e o CPC/15, procuraremos materializar o que se deseja para a personalização da curatela, seja pelo expurgo do arcabouço jurídico incompatível com esse propósito, bem como pela submissão das normas infraconstitucionais ao primado da dignidade da pessoa humana e de direitos fundamentais incorporados ao bloco de constitucionalidade.

Referências

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.

COSTA FILHO, Waldir Macieira. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2017.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

JAYME, Erik. Pós-modernismo e direito de família. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Universidade de Coimbra, v. LXXVIII, 2002.

MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas incapazes pelo uso de drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a reflexão bioética. In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwing (Orgs.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

MAZZEI, Rodrigo. Curatela compartilhada: exemplo (e possibilidade) de curatela conjunta. Necessidade de uma nova concepção da curatela, adequando-se aos reclames da atual sociedade. Revista de Direito de Família e Sucessões, Belo Horizonte: IBDFAM, v. 2, 2015.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo Código Civil. v. XX. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

RODOTÀ, Stefano. Dal soggeto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007.

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44 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e introdução de Marilene Carone. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

SOUZA, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Belo Horizonte: D’Placido Editora, 2016.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010.

UMA LIÇÃO de amor (I’am Sam). Direção: Jessie Nelson. Produção: Richard Solomon. Intérpretes: Dakota Fanning, Laura Dern, Michelle Pfeiffer, Sean Penn, e outros. Roteiro: Jessie Nelson, Kristine Johnson. Estados Unidos, New Line Productions, 2001, 133min.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

ROSENVALD, Nelson. O novo perfil da curatela: interseções entre a LBI e o CPC. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 17-44. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 2

A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O

RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS COMO

EXERCÍCIO DA SUA AUTONOMIA PRIVADA

Cristiano Chaves de FariasMelissa Ourives Veiga

2.1 A importância das diretivas antecipadas como mecanismo de efetivação da autodeterminação da pessoa humana

De forma ainda mais acentuada em meios às complexidades da vida contemporânea (aberta, plural e multifacetada), dúvida inexiste de que a liberdade de autodeterminação há de ser a regra da conduta humana. É o que se denomina, no âmbito jurídico, de autonomia privada, ou seja, a pessoa humana tem o direito de escolher os seus caminhos nas relações entre particulares, sendo certo o velho e conhecido adágio de que, nas relações privadas, é possível tudo menos o que a lei proíbe.

Nessa ambiência, ganha especial relevância a cláusula geral de avançada proteção da dignidade humana (CF, art. 1º, III); na medida, em caráter ordinário, caberá fundamentalmente ao titular estabelecer as latitudes e longitudes do que seja, para si mesmo, o direito a uma vida digna.

Aliás, como consectário lógico e inexorável do reconhecimento de um direito à vida digna, exsurge a afirmação de que é seu desdobra-mento certo e incontestável a afirmação de um direito à morte digna.

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São, enfim, o verso e o reverso de uma mesma moeda. Em palavras mais claras: ao direito de viver com dignidade haverá de corresponder como espelho invertido o direito de morrer dignamente. Até mesmo porque uma morte digna é consequência natural de toda e qualquer vida digna.

Na certeira ponderação de Maria de Fátima Freire de Sá, “morrer é parte integral da vida, tão natural e previsível quanto nascer. É inevi-tável”. De toda maneira, o que parece mais assustar aos humanos é “que ninguém sabe o que lhe espera depois da vida”.1

Fatal e inevitável, a morte não precisa, contudo, ser marcada por dores e sofrimentos. Um processo digno da morte é corolário para uma vida que se qualificou pela dignidade do exercício de suas possibili-dades. Pondera, nessa trilha, Anderson Röhe que “a dor e o sofrimento tornaram-se desvalores rejeitados por uma sociedade adoradora do corpo e da perfeição. Daí a necessidade de uma medicina operante que assegure aos homens o seu bem-estar físico e mental, proporcionando uma boa morte, mais humana e capaz de ser compreendida”.2

Importante, no ponto, chamar a atenção para uma significativa advertência, evitando uma confusão conceitual com categorias distintas: não se trata de debater aqui a admissibilidade, ou não, de uma morte piedosa, bondosa, quase gentil. Cuida-se, em verdade, de buscar a afirmação do direito à morte digna como corolário, como consequência natural, do direito a uma vida digna. Equivale a dizer: a dignidade que norteou a vida de uma pessoa humana deve lhe acompanhar até o momento derradeiro, restando obstadas condutas procrastinatórias ou fúteis que, a par de causar sofrimento, afrontam a sua integridade física, psíquica e intelectual. Invocando a precisa ponderação de Diaulas Costa Ribeiro:

[...] a morte digna também é um direito humano. E por morte digna se compreende a morte sem dor, sem angústia e de conformidade com a vontade do titular do direito de viver e de morrer. E nesse sentido é paradoxal a postura social, muitas vezes emanada de uma religiosidade que a religião desconhece, que compreende, aceita e considera ‘humano’ interromper o sofrimento incurável de um animal, mas que não permite, com o mesmo argumento – obviamente sem a metáfora – e nas mesmas condições, afastar o sofrimento de um homem capaz e autônomo.3

1 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer, eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 80.

2 RÖHE, Anderson. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 123.

3 RIBEIRO, Diaulas Costa. A autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cadernos Rio de Janeiro: Saúde Pública, v. 22, n. 8, p. 1.749-1.754, ago. 2006, p. 1.752.

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É nessa exuberante arquitetura que se apresentam as diretivas antecipadas de vontade, indevidamente apelidadas de testamento vital,4 como um mecanismo de afirmação da autonomia privada, por meio do qual o titular concretiza a sua percepção sobre o que seria, para si, uma morte digna, como corolário de seu direito a uma vida digna. Cuida-se de interessante instrumento de afirmação da vontade humana no que tange à extensão da assistência médica a ser prestada a alguém.

Com essa fina percepção, a Resolução nº 1.995/12, do Conselho Federal de Medicina,5 louvando-se a toda evidência da afirmação da autonomia do paciente, a partir do livre consentimento informado, autoriza as diretivas antecipadas em solo brasileiro, procurando minimizar as dores e sofrimentos decorrentes de tratamentos e proce-dimentos médicos que prolongam a vida dos doentes terminais sem chance de cura (a chamada futilidade médica), em clara sintonia com o direito à vida e à morte dignas.6

Logo no comando do seu art. 1º, o ato normativo explica que as diretivas antecipadas de vontade constituem o “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.

O ato regulamentar determina aos médicos o respeito às diretivas antecipadas de vontade manifestadas pelo paciente, afastando, inclusive, eventual discordância dos familiares.7 Através dessas diretivas anteci-padas, o paciente pode definir, enquanto estiver no gozo de suas faculdades mentais, os limites terapêuticos a serem adotados em seu tratamento de saúde, em eventual hipótese de estado terminal. Exige-se,

4 Considerando que o conceito de testamento é intrinsecamente ligado à transmissão patrimonial, explicita-se a atecnia da terminologia. A título ilustrativo, convém lembrar que a melhor civilística brasileira assevera ser o testamento “o ato essencialmente revogável pelo qual a pessoa física ou natural, dentro dos ditames da lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, ou realiza determinações de caráter não patrimonial, cujos efeitos serão produzidos para depois da sua morte” (CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 536), deixando patente a sua absoluta impropriedade para servir de sinônimo para as diretivas antecipadas.

5 No sistema jurídico germânico, designa-se a medida como Patientenverfügungen, disciplinada pela reforma do Código Civil alemão, o BGB, nos §§1901a-1904.

6 Nos Estados Unidos da América, indo mais longe, já se normatizou, inclusive, a possibilidade do chamado durable power of attorney for health care, consistindo em um “ato de instituição de um procurador que tomará, em nome do paciente, as decisões relativas ao tratamento, suas formas, sua duração e sua cessação”, como noticia Luciana Dadalto (DADALTO, Luciana. Testamento vital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 100).

7 As diretivas antecipadas de vontade “prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares” (§3º do art. 2º da Resolução).

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para tanto, declaração expressa de vontade (diretiva antecipada de vontade, consoante a expressão consagrada na Espanha). Essa decla-ração, por óbvio, terá validade e eficácia e prevalecerá, inclusive, sobre qualquer outro parecer não médico e sobre a própria manifestação de vontade dos familiares (§3º do art. 2º da resolução).

Não há necessidade de manifestação de vontade por meio de instrumento público, bem como não se exige o registro em cartório da declaração de vontade para que possa surtir efeitos, em face da inexis-tência de exigência expressa da resolução.8

Trata-se de concretização da autonomia privada, conferindo ao titular o reconhecimento de efetivar pessoalmente o seu direito à morte digna como uma consequência natural do direito à vida digna. Cuida-se, fundamentalmente, do direito do paciente de morrer sem sofrimentos desnecessários na medida em que a medicina não conseguiu estabe-lecer a cura ou tratamentos mais adequados e eficazes para situações específicas.

Uma vida digna há de desembocar em um epílogo igualmente digno e, a cada pessoa, há de se reconhecer o direito de autodeterminação, sopesando os próprios sentimentos, medos, fraquezas e possibilidades. E as diretivas antecipadas se apresentam como mecanismo de concre-tização dessa autodeterminação, possibilitando a quem não deseja tratamentos incertos ou soluções paliativas o respeito à sua vontade.

Há, sobre o tema, interessante decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul corroborando da tese. No caso julgado, foi reconhecido a um paciente, internado em unidade hospitalar, o direito de não ser submetido a uma cirurgia indesejada de amputação, a partir de sua própria manifestação volitiva.

1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofri-mento”; e, conforme laudo psiquiátrico se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida.(...)3. O direito à vida, garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da

8 A partir da inteligência do art. 107 do Código Civil, somente é exigido o cumprimento de formalidade nos negócios jurídicos por força da norma ou por expressa disposição das partes. Diz o texto codificado: “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”.

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CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. (...)4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. (TJ/RS, Ac. 1ª Câmara Cível, Ap. Cív. 70054988266 – comarca de Viamão, rel. Des. Irineu Mariani, j. 20.11.2013, DJRS 27.11.2013).

Demais de tudo isso, harmoniza-se, a toda evidência, com o comando do art. 14 do Estatuto Civil,9 que consagra a possibilidade de dispor do corpo para depois da morte, concretizando substancialmente a autonomia privada, que rege as relações do direito civil, até porque não haveria justificativa ideológica para uma intervenção estatal nessa matéria.

Indubitavelmente, a pessoa humana que, no pleno gozo de sua faculdade mental, declarou a sua vontade, livre e desembaraçada, de não se submeter a determinados tratamentos de saúde ou intervenções médicas em certas situações deve ter a sua autonomia privada respeitada a fim de que se efetive a sua dignidade na plenitude. Trata-se de mera projeção de sua autonomia privada, concretizando a sua liberdade de autodeterminação, como corolário da dignidade almejada pelo constituinte.

Disso não diverge Roxana Cardoso Brasileiro Borges, cuja arguta percepção termina por asseverar a existência de uma “reapropriação da morte pelo próprio doente. Há uma preocupação sobre a salvaguarda da qualidade de vida da pessoa, mesmo na hora da morte. Reivindica-se uma morte digna, o que significa ‘a recusa de se submeter a manobras tecnológicas que só fazem prolongar a agonia’”.10

E é exatamente por isso que, mesmo antes do advento da Resolução nº 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina, já se nos afigurava válida e eficaz essa declaração prévia de vontade em face da premente neces-sidade de respeitar a autonomia privada do paciente terminal a partir de preceitos éticos e jurídicos e da terminalidade inexorável da vida

9 Art. 14, Código Civil: “É válida, com objetivo científico ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”.

10 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital. Análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001, p. 284.

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humana. Com o mesmo pensar, Luciana Dadalto, pioneiramente, já pontuava que a “declaração prévia de vontade do paciente terminal é válida no Brasil, mesmo com a inexistência de legislação específica, a partir de uma interpretação principiológica do ordenamento jurídico pátrio”.11 12

2.2 Nova teoria das incapacidades: a inclusão da pessoa com deficiência como sujeito de direito em igualdade de condições com as pessoas sem deficiência e a liberdade de declarar as diretivas antecipadas

Com a visível (e salutar) preocupação de inaugurar um novo tempo no tratamento jurídico e social das pessoas com deficiência, a Convenção de Nova Iorque13 impôs uma revisita à teoria das incapa-cidades no que tange à indevida (porém, histórica) correlação com a deficiência humana, em seus aspectos físico, psíquico ou intelectual.

11 DADALTO, Luciana. Testamento vital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 148.12 Bastante oportuna, no ponto, a lembrança de um trecho da sensível e emocionante película

Mar adentro, traduzindo na tela a história real do marinheiro Ramón Sampedro, passada em pequena cidade da Espanha. Tetraplégico desde os 25 anos de idade por conta de um acidente no mar que o deixou paralisado sobre a cama, apenas movimentando os músculos da face, Ramón resolveu requerer, em juízo, o reconhecimento do seu “direito de morrer”. Argumentou, inclusive, que a única visão que tinha era de uma pequena janela, aberta para o mar. Como o marinheiro não tinha como pôr fim à sua própria vida em face do estado físico e por não querer a ajuda de amigos (para evitar eventual responsabilização penal), pediu aos juízes dos Tribunais de Barcelona e La Coruña que lhe fosse permitido se objetar às sondas pelas quais era alimentado. Ambas as cortes negaram o seu pleito. O Tribunal Constitucional espanhol também não acolheu o pedido. Por isso, entendeu que foi “condenado a viver”. Em última tentativa, dirigiu-se à Comissão Europeia de Direitos Humanos, onde, mais uma vez, teve indeferida a autorização. Sem dúvida, o seu caso é emblemático para o direito civil e a discussão acerca da efetiva compreensão da morte.

13 Assinada em 30.3.07, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo impõe aos países signatários, inclusive o Brasil, proibir qualquer discriminação baseada na deficiência, garantindo às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. Elaborada ao longo de quatro anos, o aludido tratado contou com a colaboração direta de 192 países. Logo em seu art. 1º consta que o seu propósito é “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” e que reconhece as pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.

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De fato, uma deficiência não pode induzir necessariamente à incapacidade. Inexiste, enfim, uma correlação implicacional entre deficiência e incapacidade jurídica.

Todavia, de acordo com o histórico tratamento dedicado pela lei (inclusive pela redação originária do Código Civil de 2002), a pessoa com deficiência vinha, ao longo dos tempos, sendo enquadrada no conceito de incapaz – o que, para dizer pouco, escapava à razoabilidade e feria uma visão igualitária e digna sobre humanidade.

Com efeito, o conceito de deficiência (centrado na existência de uma menos valia de longo prazo, física, psíquica ou sensorial, indepen-dentemente de sua gradação) não tangencia, sequer longinquamente, uma incapacidade para a vida civil. A pessoa com deficiência pode desfrutar, plenamente, dos direitos civis, patrimoniais e existenciais. Já o incapaz, por seu turno, é um sujeito cuja característica elementar é a impossibilidade de autogoverno. Assim, a proteção dedicada pelo sistema jurídico a um incapaz há de ser mais densa, vertical, do que aquela deferida a uma pessoa com deficiência, que pode exprimir a sua vontade. A premissa metodológica estabelecida pelo estatuto, portanto, é irretocável.14

Desbravando essas sendas, antenada na proteção internacional pactuada pelo Brasil, a nova redação imposta pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência impôs significativas inovações no regime das incapa-cidades, absoluta e relativa.15

Por conseguinte, a Lei nº 13.146/15, apelidada de Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão, mitigou, mas não aniquilou, a teoria das incapacidades do Código Civil, apenas adequando-a às normas (regras e princípios) da Constituição da República e da Convenção de Nova Iorque. Com uma visão prática, ficou abolida ‒ para sempre (!) por conta da cláusula de proibição de retrocesso social, implícita no Texto Constitucional ‒ a perspectiva médica e assistencialista, pela qual se rotulava como incapaz aquele que, simplesmente, ostentava uma insuficiência psíquica ou intelectual.

14 Para aprofundamento sobre a matéria, seja consentido remeter a FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. v. 1. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, onde se trata com verticalidade dos novos quadrantes da teoria das incapacidades.

15 Art. 3º, Código Civil: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos” e Art. 4º, Código Civil: “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV – os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial”.

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Como não poderia ser diferente, agora se trata de pessoa humana plenamente capaz. Aliás, até porque toda pessoa humana é especial pela sua simples humanidade, tenha ou não algum tipo de deficiência. Não se justifica, em absoluto, impor a uma pessoa com deficiência o enquadramento jurídico como incapaz, por conta de um impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial. Toda pessoa é capaz em si mesma e, agora, o sistema jurídico reconhece essa assertiva, até porque, de fato, evidencia-se discriminatório e ofensivo chamar um humano de incapaz somente por conta de uma deficiência física ou mental.16

Realmente, em tempos pós-modernos, com preocupações de inclusão social e cidadania, não mais se pode admitir que a lei repute um ser humano incapaz absolutamente somente por conta de uma deficiência física ou mental e, muito pior do que isso, que promova uma transferência compulsória das decisões e escolhas sobre a sua vida e as suas relações existenciais para um terceiro, o curador, aniquilando a sua vontade e a sua preferência. Equivale, na prática, a uma verdadeira morte civil de um humano.

Há absoluta coerência filosófica: as pessoas com deficiência não podem ser reputadas incapazes em razão, apenas e tão somente, de sua debilidade. É que, na ótica civil-constitucional, especialmente à luz da dignidade humana (CF, art. 1º, III) e da igualdade substancial (CF, arts. 3º e 5º), as pessoas com deficiência dispõem dos mesmos direitos e garantias fundamentais que qualquer outra pessoa, inexistindo motivo plausível para negar-lhes ou restringir-lhes a capacidade.17

Seguindo nessa trilha garantista, nota-se que as pessoas com deficiência precisam ter pleno acesso aos direitos fundamentais, constitu-cionalmente reconhecidos a toda e qualquer pessoa humana, exercendo em sua plenitude a dignidade prometida no texto constitucional. Não se admite qualquer limitação ao exercício de direitos pela pessoa com deficiência no que tange aos seus direitos fundamentais, o que poderia, em última análise, representar uma afronta à sua própria dignidade.

16 Com esse mesmo espírito, colhe-se em nossa doutrina: “Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser rotulada como incapaz, para ser considerada – em uma perspectiva constitucional isonômica – dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos essenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos da vida civil” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. v. 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 150).

17 Para mais referências acerca da proteção deferida constitucionalmente às pessoas com deficiência, faça-se justa alusão à pioneira obra de ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: CORDE, 1994.

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No ponto, com idêntica sustentação teórica, Luciana Barbosa Musse, enfaticamente, assegura “o gozo das mesmas oportunidades concedidas aos ‘normais’ pelas pessoas com transtorno mental, em relação a qualquer dos direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal de 1988, sejam eles individuais – vida, honra, imagem, privacidade, liberdade, propriedade – ou sociais – educação, trabalho, saúde, transporte, aposentadoria, moradia, lazer”.18

É exatamente nesse espaço que se percebe estar situada a liberdade de autodeterminação e de expressão da própria vontade. Uma pessoa com deficiência, efetivamente, pode sofrer limitações de diferentes matizes, mas, seguramente, não perde a possibilidade de manifestação de sua própria individualidade em aspectos existenciais, como a afeti-vidade e o seu próprio eu.

À luz de tais considerações, uma conclusão deflui com convicção cristalina: uma pessoa com deficiência não mais estará enquadrada, automaticamente, no conceito de incapacidade (absoluta ou relativa) na medida em que a deficiência (física, mental ou intelectual) não enseja, por si só, incapacidade jurídica. A partir da plenitude de sua capacidade, então, uma pessoa com deficiência (física, mental ou intelectual) pode, sim, manifestar as suas vontades livremente, inclusive no que tange às diretivas antecipadas, que lhe são facultadas, por meio de instrumento público ou particular, como a qualquer outra pessoa sem deficiência.19

Trata-se de conclusão fatal e inexorável: a simples existência de uma deficiência não induz, automaticamente, incapacidade. E, assim, a pessoa com deficiência é plenamente capaz, podendo eleger os seus caminhos e opções, inclusive no que tange às diretivas antecipadas.

2.3 A pessoa com deficiência enquadrada no conceito de incapacidade, a estrita abrangência da curatela e a possibilidade de prática de atos existenciais, inclusive as diretivas antecipadas

Malgrado a regra geral do novo sistema, descortinado pela Lei Brasileira de Inclusão, seja o desatrelamento absoluto entre a deficiência

18 MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2008, p. 76.

19 Temos, portanto, um novo sistema que, vale salientar, fará com que se configure como imprecisão técnica considerar a pessoa com deficiência incapaz. Ela é dotada de capacidade legal, ainda que se valha de institutos assistenciais para a condução da sua própria vida (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. v. 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 150).

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e a incapacidade, tendo na tela da imaginação a clareza meridiana do comando do art. 4º da nova redação emprestada ao Código Civil, é possível que uma pessoa com deficiência seja considerada incapaz, nos mesmos moldes de uma pessoa plenamente capaz, quando não puder exprimir vontade.

Incorpora-se, no ordenamento interno, o art. 12.2 da Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, que é lacônico, porém absolutamente preciso. Veja-se: “Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”.

Dessa forma, concretizando o comando convencional, a pessoa com deficiência há de estar submetida à mesma normatividade das demais pessoas em relação à teoria das incapacidades. Por isso, nota-se que a única hipótese de se lhe imputar a condição de relativamente incapaz é quando não puder exprimir vontade, a partir do que reza o inciso III do art. 4º da Codificação de 2002.

Assim, não podendo manifestar a sua vontade, uma pessoa com deficiência (física, mental ou intelectual) pode ser reputada incapaz relativamente (jamais pode ser considerada absolutamente incapaz!), ficando submetida ao regime jurídico da curatela.

Atente-se, de todo modo, que o regime da curatela, a partir da nova sistemática imposta pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, é limitado, restrito a determinados atos,20 com vistas a que não se retire da pessoa curatelada (com ou sem deficiência, mas que não pode exprimir vontade) a liberdade de autodeterminação existencial. É dizer: a curatela há de ser compreendida como medida protetiva específica, abrangendo atos para os quais o curatelado não consiga exercer de per

20 O Tribunal de Justiça de São Paulo já teve oportunidade de, expressamente, asseverar que o decreto de curatela pode ter uma extensão maior, ou menor, de poderes para o curador, a depender da situação específica e concreta do curatelando. Assim, chegou a afirmar que “a quase total falta de discernimento da requerida para os atos da vida civil foi percebida e retratada nitidamente nos autos, não restando a mais pálida dúvida sobre a inexistência de plena capacidade da interditanda”. O ponto alto do decisum merece alusão: “Uma interpretação sistemática e teleológica do Estatuto da Pessoa com Deficiência impõe a conclusão de que as pessoas que não consigam exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente devem ser consideradas relativamente incapazes, pois em geral conservam sua autonomia para a prática de atos de natureza existencial, relacionados aos direitos da personalidade, a exemplo dos direitos sexuais e reprodutivos, e aqueles relacionados ao planejamento familiar. Todavia, dependendo do grau de comprometimento das faculdades mentais da pessoa, poderá ela submeter-se à curatela total ou parcial, que abrangerá eminentemente os atos de natureza patrimonial e negocial” (TJ/SP, 1ª Câmara de Direito Privado, Ap. Cív. 0307037-84.2009.8.26.0100 – Comarca de São Paulo, rel. Des. Francisco Loureiro, voto 29.643).

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si a individualidade. Bem por isso, inclusive, a sentença que constitui a curatela precisa estabelecer um projeto terapêutico individualizado21 para o curatelado, delimitando os atos e aspectos em relação aos quais reclamará a presença do curador.

Incorporando essas ideias, a própria Norma Estatutária cuidou de estabelecer, in litteris, em seu art. 85, que a curatela não pode trans-bordar os limites dos atos patrimoniais, preservados os atos existenciais ao curatelado, ou seja, a ninguém mais do que ao próprio curatelado interessa a sua essência humana, a sua existência. Não é despiciendo conferir a clareza da dicção legal:

Art. 85, Estatuto da Pessoa com Deficiência: A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.§1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. §2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os inte-resses do curatelado. §3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de na-tureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.

Ora, patenteia-se, com segurança, que a decisão judicial consti-tutiva da curatela não pode atingir valores constitucionalmente preservados em favor da pessoa humana, como a liberdade, as manifes-tações afetivas e sentimentais e a intimidade.22

Significa que a curatela somente é justificável, em ótica civil-constitucional, com especial atenção à dignidade humana, em nome das necessidades do próprio curatelando. E essas necessidades “devem ser compreendidas em função de seus interesses, devendo ser respeitadas

21 A respeito do projeto terapêutico individualizado, já se disse, com razão, que “a sentença de curatela apresentará, necessariamente, uma forte carga argumentativa para justificar o projeto terapêutico individualizado, além de regulamentar a extensão da intervenção sobre a autonomia privada daquela pessoa humana. Cada curatelando tem o direito (de envergadura constitucional) de ter parametrizada a sua curatela de acordo com as suas particularidades, sem fórmulas genéricas e neutras” (FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 270).

22 Na mesma direção, Flávio Tartuce consigna, expressamente, em relação à curatela, que “podem existir limitações para os atos patrimoniais e não para os existenciais, que visam a promoção da pessoa humana”. (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral. v. 1. 12. ed. São Paulo: Forense, 2016, p. 131).

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como manifestação de seu livre desenvolvimento e de vida”, consoante à percepção aguda de Célia Barbosa Abreu.23

E é exatamente por conta dessa necessária limitação da extensão da curatela que a atuação do terceiro em relação à pessoa do curatelado não pode alcançar situações atinentes “ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”, por dizerem respeito aos seus direitos fundamentais, concretizadores de sua dignidade. Ilustrativamente, não mais há qualquer obstáculo ou requisito de validade atrelado à deficiência física ou psíquica do agente para a celebração de um casamento. Casar é ato de vontade e de manifestação afetiva e, por isso, não pode ser invalidado por mera deficiência de uma das partes.

Assim, como regra, a atuação do curador está restrita, por óbvio, às relações patrimoniais do curatelado, não lhe sendo possível invadir a esfera personalíssima das relações do curatelado, sob pena de afronta à sua dignidade. Ademais, implicaria em transferência da própria titularidade da personalidade de um ser humano. Por isso, no que tange às relações existenciais, como a privacidade, sexualidade, afetos, integridade física e psíquica, não há atuação do curador, sendo possível ao curatelado livremente se comportar.

2.4 Possibilidade de diretivas antecipadas de vontade por pessoas com deficiência sob o regime de curatela

Como se nota, proclamando uma opção visivelmente humanista, o EPD delimitou as latitudes e longitudes do regime de curatela: somente são abrangidos os atos patrimoniais e negociais, como reza o seu art. 85.

Em sendo assim, o curatelado somente sofre restrições para a prática de atos de índole patrimonial (econômica), reclamando a presença do curador – que se apresentará como um representante ou um assistente, a depender da extensão da curatela.

A outro giro, os atos de natureza existencial (de matriz ontológica) podem ser praticados diretamente pela pessoa curatelada, independen-temente de representação ou de assistência. E é exatamente aqui que está domiciliada a efetiva possibilidade de uma pessoa com deficiência, sob o regime de curatela, manifestar, eventualmente, diretivas anteci-padas de vontade, dispensando, validamente, tratamentos médicos em

23 ABREU, Célia Barbosa. Curatela e Interdição Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 225.

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determinadas situações, conforme a regulamentação da Resolução nº 1.995 do CFM.

Efetivamente, tal ato pode ser praticado pela pessoa curatelada quando, de algum modo, possa externar os seus desejos. Isso porque o regime da curatela incide quando, por causa transitória ou definitiva, uma pessoa não puder exprimir vontades relacionadas à sua esfera patrimonial de interesses, incidindo no conceito de incapacidade relativa (CC, art. 4º, III). Nada impede que uma pessoa que não pode externar validamente vontade em negócios econômicos (por conta de uma potencialidade de prejuízo) tenha a exata noção do que deseja, ou não, em relação à sua existência na Terra, notadamente no que tange aos seus aspectos ônticos.

Efetiva-se, assim, uma clara afirmação da dignidade humana, respeitada a essência valorativa de uma pessoa, independentemente de estar, ou não, sob o regime de curatela, por não poder se autodeter-minar patrimonialmente.

Merece destaque o fato de que a declaração volitiva de uma pessoa sob curatela, acerca de suas diretivas antecipadas, pode ser inferida de diferentes atos ou condutas. Não se impõe a necessidade de uma manifestação formal, escrita – até por falta de previsão normativa. É de se lhe reconhecer a possibilidade de exteriorizar as suas vontades e desejos das mais diferentes maneiras, com vistas a efetivar a sua dignidade, sem aviltar a sua autodeterminação.

Invocando as palavras de Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral e Carlos Henrique Medeiros de Souza, a pessoa interessada nas diretivas antecipadas pode, inclusive, “solicitar ao médico que registre no prontuário sua decisão de não desejar se submeter a certas práticas, procedimentos ou utilização de suporte vital e quaisquer outros meios artificiais de manutenção da vida”.24

Incorporando e ampliando essa ideia, é perfeitamente possível a validade incontestável da manifestação de última vontade da pessoa com deficiência declarada aos familiares, amigos, cuidadores ou apoiadores, quer seja na forma verbal, escrita (desenhada) e até mesmo gestual. Sob esse aspecto, é importante que se afirme não existir legitimidade hierárquica entre as pessoas receptoras da informação das diretivas

24 CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat; SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de. As diretivas antecipadas de vontade e a efetividade da ortotanásia. In: CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat (Coord.). Ortotanásia: bioética, biodireito, medicina e direitos da personalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 117.

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antecipadas escolhida pelo paciente, devendo, necessariamente, preva-lecer a manifestação de última vontade do interessado.

Verticalizando ainda mais, é de se admitir até mesmo o supri-mento judicial quando a manifestação de vontade não foi precisa ou existirem dúvidas objetivas acerca dela. Seria o caso de uma declaração de vontade do curatelado externada a um determinado amigo que se colocou em rota de colisão com a vontade da família no que diz respeito ao tratamento a que deve ser submetido o paciente. Na hipótese, é de se admitir o suprimento de outorga através de um procedimento de jurisdição voluntária, devendo o juiz decidir com base no conjunto probatório, priorizando a autonomia privada da pessoa sob curatela. Aliás, em conformidade com o parágrafo único do art. 723 do Código de Processo Civil, em se tratando de jurisdição voluntária, o juiz não está adstrito à legalidade estrita, podendo decidir por equidade, adotando a solução mais conveniente e oportuna.

Admitir a possibilidade de suprimento judicial é preservar a autonomia privada do curatelado no campo das relações existenciais, respeitando a opção ideológica do EPD. Oportuna, inclusive, a lembrança da advertência de John Stuart Mill, ainda na Inglaterra liberal dos oitocentos, de que “a razão para não interferir nos atos voluntários de uma pessoa, exceto para salvaguardar terceiros, é a consideração pela sua liberdade. A sua escolha voluntária é a prova de que o que escolher é desejável, ou, pelo menos, suportável para si e, de um modo geral, atende melhor ao seu bem”.25

Em interessante precedente, a Corte de Justiça do Rio Grande do Sul, ancorada no supraprincípio da dignidade, reconheceu que a vontade humana de ter um mínimo de controle da morte deve ser respeitada, ainda que não tenha sido externada de maneira escrita e formal – o que serve para aplicar às pessoas curateladas que puderem, de algum modo, se manifestar sobre a sua existência:

Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo de ter a ‘morte no seu tempo certo’, evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser

25 MILL, John Stuart. On Liberty. Ontario: Batoche Books/Kitchener, 2001, p. 194.

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respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocu-pação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir. (TJ/RS, Ac. 21ª Câmara Cível, Ap. Cív. 70042509562 – comarca de Porto Alegre, rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa, j. 1.6.2011, DJRS 22.6.2011).

Não se ignore, inclusive, a depender de situações episódicas e casuísticas, a possibilidade de utilização de mecanismos tecnológicos variados para a captação da vontade da pessoa humana sob curatela, preservando a sua liberdade de autodeterminação.

Obtempere-se, por oportuno, que, não podendo a pessoa humana sob a curatela, de nenhuma maneira, exprimir a sua vontade, sequer para escolhas pessoais e existenciais, restará prejudicada a possibilidade das diretivas antecipadas de vontade. Não estará prejudicada por se lhe obstar o cabimento da medida, mas, sim, pela impossibilidade de se compreender os seus anseios e desejos. Nesse caso, caberá aos familiares deliberarem.

Referências ABREU, Célia Barbosa. Curatela e Interdição Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: CORDE, 1994.

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MUSSE, Luciana Barbosa. Novos sujeitos de direito: as pessoas com transtorno mental na visão da bioética e do biodireito. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2008.

RIBEIRO, Diaulas Costa. A autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cadernos Rio de Janeiro: Saúde Pública, v. 22, n. 8, p. 1.749-1.754, ago. 2006.

RÖHE, Anderson. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer, eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral. v. 1. 12. ed. São Paulo: Forense, 2016.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FARIAS, Cristiano Chaves de; VEIGA, Melissa Ourives. A concretização dos direitos da pessoa com deficiência e o reconhecimento da possibilidade das diretivas antecipadas como exercício da sua autonomia privada. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 45-60. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 3

DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL

PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ATRAVÉS DA TOMADA DE DECISÃO APOIADA

Bruno Oliveira de Paula BatistaMarcos Ehrhardt Jr.

3.1 Introdução

O atual Código de Processo Civil (CPC) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), em vigor no Brasil desde o ano de 2016, instau-raram novos paradigmas em suas respectivas áreas de atuação. De um lado, o novo Código traz um modelo de processo apoiado em uma série de garantias fundamentais e processuais que dão o tom e ritmo para a aplicação e interpretação de suas normas, voltado para um processo fundado num modelo de cooperação entre todos os sujeitos envolvidos. De outro lado, temos o EPD, que rompe completamente com o paradigma do deficiente incapaz, permitindo agora que este último seja incluído na sociedade e conferindo-lhe não só capacidade, mas também promovendo uma série de mudanças para assegurar a autonomia daquela pessoa.

Apesar de contemporâneos, os dois diplomas acima mencionados parecem nem sempre dialogar, tornando ainda mais relevante a tarefa do intérprete e aplicador do direito, de não permitir que os objetos e valores neles consagrados se tornem apenas mais um conjunto de dispositivos sem qualquer eficácia social dentro do nosso ordenamento jurídico.

Abordaremos uma novidade trazida por cada um dos mecanismos legais acima mencionados, ou seja, o negócio jurídico processual, decorrente do princípio do respeito ao autorregramento da vontade, previsto no art. 3º, §3º, do atual CPC, que permite às partes a disposição

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acerca de situações jurídicas processuais e também acerca do próprio procedimento, e a tomada de decisão apoiada, prevista no artigo 1.783-A do atual Código Civil, que foi acrescido pelo artigo 116 do EPD, por meio do qual a pessoa com deficiência pode escolher duas pessoas de sua confiança para auxiliá-la e também protegê-la em assuntos de natureza patrimonial.

Buscando conciliar os dois mecanismos acima mencionados, pretendemos analisar se é possível que a pessoa com deficiência, por meio da tomada de decisão apoiada, pode celebrar o negócio jurídico processual. O estudo de temas aparentemente sem qualquer relação (negócio jurídico processual e tomada de decisão apoiada) fez com que tivéssemos que revisitar alguns conceitos tradicionais tanto do direito material quanto do direito processual, a exemplo da capacidade jurídica, negócio jurídico e capacidade processual. Tudo isso só foi possível graças à realização de cortes que serão sempre mencionados no decorrer de todo o trabalho, esclarecendo não só nossa opção metodológica como o marco teórico utilizado para tratar de cada um desses assuntos.

Para o alcance do objetivo acima mencionado, dividimos o presente trabalho em três partes. Na primeira, abordaremos a situação da pessoa com deficiência após o advento do EPD, analisando a capacidade jurídica de tal pessoa, bem como a tomada de decisão apoiada e a autonomia da pessoa com deficiência. Na segunda parte, cuidaremos de analisar a figura do negócio jurídico processual, inserido na teoria do fato jurídico. E, na última parte, trataremos da possibilidade de celebração do negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência por meio da tomada de decisão apoiada, tentando apontar alguns problemas e soluções que a combinação de tais mecanismos pode fazer surgir.

Com isso, buscamos evitar uma abordagem meramente descritiva, bastante comum em estudos de figuras novas no direito, tentando não fugir ao tema proposto no presente trabalho. Não temos nenhuma pretensão, por óbvio, de lançar qualquer conclusão que se pretenda definitiva ou imune às críticas, mas apenas de fixar algumas bases para reflexão acerca de um tema que, apenas recentemente, começou a ser tratado pelo nosso legislador.

3.2 O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a tomada de decisão apoiada

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, ao entrar em vigor no Brasil, fez com que alguns conceitos clássicos do direito civil fossem

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63BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR. DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...

revisitados ou mesmo tivessem seu conteúdo alterado, passando por uma verdadeira ressignificação. Tal estatuto é decorrência da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que, por sua vez, reflete o “ideário de inserção dos deficientes nas relações jurídicas, com atuação ativa e manifestação de vontade expressa e reconhecida”,1 conforme ressaltam Correia Junior e Albuquerque. Para adequada compreensão do problema aqui proposto, é necessário analisarmos o sentido dado aos conceitos de personalidade e capacidade.

Destarte, é a personalidade o atributo que expressa a possibi-lidade de alguém ser parte numa relação jurídica como consequência da própria condição humana e de poder titularizar direitos e deveres.2 Em seu aspecto objetivo, a personalidade seria um conjunto de atributos do ser humano que garante a sua integridade e a sua dignidade, conforme afirmado por Menezes e Teixeira.3

Outro conceito a ser revisitado é o de capacidade, que, tradi-cionalmente, enquanto gênero, sempre foi compreendido através de suas duas espécies: capacidade de fato e capacidade de direito. Com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, este passou a utilizar o termo capacidade legal ou jurídica, que vinha sendo utilizado pela doutrina como sinônimo de capacidade de direito, como observado por Menezes e Teixeira,4 e que será doravante empregado também no presente trabalho.

A capacidade de direito seria a manifestação dos poderes de ação que são inerentes à personalidade, sendo medida jurídica desta última; é a aptidão para alguém ser titular de direitos e deveres. Já a

1 CORREIA JUNIOR, José Barros; ALBUQUERQUE, Paula Falcão. A influência do direito civil constitucional sobre a (im)prescritibilidade contra portadores de deficiências mentais após o Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR, Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 377.

2 Mendonça afirma que a noção de personalidade vai além da visão estrutural e abstrata que a associa à subjetividade, sendo ela o conjunto de características da pessoa humana e que possuem tutela privilegiada na ordem constitucional, diante do princípio da dignidade da pessoa humana (MENDONÇA, Bruna Lima de. Apontamentos sobre as principais mudanças operadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) no regime das incapacidades. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 259).

3 MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 178.

4 MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 178.

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capacidade de fato seria a aptidão que uma pessoa tem para praticar os atos da vida civil e para exercer os direitos previstos no ordenamento jurídico, independentemente de representação ou de assistência. Conforme afirmam Menezes e Teixeira,5 a capacidade de fato remete ao discernimento, à higidez psíquica, à capacidade mental de medir as consequências dos atos praticados. O pressuposto da primeira é o nascimento com vida (para as pessoas físicas), e o da segunda é a capacidade de querer e entender.

Nesse sentido, uma das principais inovações do EPD foi a de retirar a categoria dos deficientes (que sempre foram tidos pela ordem jurídica brasileira como incapazes) desse rol de pessoas sem a capacidade de fato, ou seja, o estatuto em questão excluiu a deficiência como critério redutor da capacidade. Correia Junior e Albuquerque6 afirmam que, independentemente da limitação mental, toda pessoa é um sujeito de direito e, por conseguinte, deve desfrutar da maior dignidade que o direito deve proporcionar.

Tal mudança se fez necessário não só como medida de inclusão do deficiente na sociedade, mas também como corolário da própria ressignificação da noção de capacidade que, tradicionalmente, sempre serviu como proteção para os aspectos patrimoniais do sujeito, sem levar em consideração seus aspectos existenciais. Essa nova visão da capacidade civil decorre dos princípios da dignidade da pessoa humana, autodeterminação, inclusão social e da cidadania, como observam Nishiyama e Toledo.7 E prosseguem os mesmos autores:

(...) a capacidade civil se estendeu tornando-se mais ampla, mais personificada, mais jurídica onde a manifestação da vontade amplia sua definição e alcança outros sujeitos, tornando-se plena a garantir o exercício de direitos existenciais, como os sexuais, ou reprodutivos, os que tratam do planejamento familiar, da conservação da fertilidade, os que preservam a formação da família, a convivência familiar e comu-nitária, bem como os relativos à guarda, à tutela, à curatela e à adoção,

5 MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 179-180.

6 CORREIA JUNIOR, José Barros; ALBUQUERQUE, Paula Falcão. A influência do direito civil constitucional sobre a (im)prescritibilidade contra portadores de deficências mentais após o Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR, Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 371.

7 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. O estatuto da pessoa com deficiência: reflexões sobre a capacidade civil. v. 974. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 42.

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como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

O que se observa, portanto, é que a noção de capacidade passa a levar em consideração a própria pessoa, e não apenas os seus interesses patrimoniais. É exatamente por conta dessa restrição ao âmbito patri-monial que Meirelles8 afirma que a restrição da ordem jurídica a um aspecto exclusivamente patrimonial faz com que a personalidade civil se distancie cada vez mais da dignidade humana.

Nessa ordem de ideias, a noção de capacidade deve ser revista, deixando-se de lado o sujeito abstrato e valorando-se a pessoa humana concreta, bem como se levando em consideração a possibilidade de autodeterminação, consoante acentuam Menezes e Teixeira.9

A autodeterminação10 é uma categoria mais ampla que a autonomia privada da vontade, configurando um poder juridicamente reconhecido e socialmente útil, que permite a abertura do homem para o mundo e suas experiências, qualificando o modo de regência humana num plano individual, conforme defendido por Rodrigues Junior.11 Tal autodeterminação é decorrência da própria dignidade da pessoa humana, que põe o sujeito com limitações intelectuais ou psíquicas em igualdade com as demais pessoas, no que diz respeito à sua capacidade. Nesse sentido, a autodeterminação vira expressão do próprio princípio da dignidade. Tal noção fica ainda mais clara quando a CDPD, em seu artigo 12, §1º, assegura que as pessoas com deficiência têm direito ao

8 MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 97-98.

9 MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Desvendando o conteúdo da capacidade civil a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 187-188.

10 É inevitável, ao tratar do tema ora proposto, enfrentar a distinção entre os termos “autonomia da vontade, autonomia privado e autodeterminação”, que, ainda hoje, são empregados em sentido equivocado ou, o que é pior, como se fossem sinônimos. A despeito de tal observação, tal enfrentamento foge aos limites do problema aqui proposto e pensamos que não influencia a conclusão a que chegaremos, razão pela qual apenas deixaremos claro o que entendemos por autodeterminação. Para uma melhor compreensão dessa temática, recomendamos a leitura de RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação. Notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 113-130. ISSN 0034-835x. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496895>.

11 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação. Notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 113-130. ISSN 0034-835x. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496895>.

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reconhecimento de sua personalidade jurídica e, por conseguinte, à capacidade jurídica, ou seja, tais pessoas têm assegurada sua autode-terminação, independentemente da sua capacidade mental.

Lôbo,12 ao tratar da autonomia privada, afirma que esta não pode mais ser considerada como um espaço livre e desimpedido onde os indivíduos podem autorregular seus interesses, mormente quando se está diante de uma parte vulnerável. Para aquele autor, em um sentido axiológico, a finalidade da autonomia privada é servir como instrumento para promoção da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social. É justamente em tal sentido axiológico13 que o EPD busca preservar a autonomia da pessoa portadora com deficiência.

Daí porque também, em relação à capacidade, é isso que o EPD busca assegurar: igual dignidade a todas as pessoas, com igual reconhecimento de capacidade jurídica, deixando esta última de se concretizar como uma barreira ampliadora da desigualdade e que impede a fruição de direitos existenciais. Em outras palavras, conforme acentua Mendonça,14 o EDP busca provocar uma mudança social capaz de assegurar às pessoas com deficiência sua plena inclusão na sociedade através da eliminação das barreiras que impedem o alcance de tal objetivo.

Assim, a capacidade jurídica, frise-se, passa a ser garantida a todos, independentemente de sua capacidade mental.15 Esta última,

12 LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 92.13 É também nesse sentido que Perlingieri defende a autonomia privada, entendendo que esta

não se restringe, nem se identifica apenas com a liberdade econômica da pessoa. É que, para o autor, por trás da noção sempre difundida de autonomia privada – como sendo a liberdade de regular por si as próprias ações – estão escondidos tão somente o liberalismo econômico e a tradução em regras jurídicas de relações de força mercantil. Ainda segundo o referido autor, as expressões de liberdade em matéria não patrimonial ocupam uma posição mais elevada na hierarquia constitucional (PERLINGIERI, Pietro; CICCO, Maria Cristina de (Trad.). Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17-18).

14 MENDONÇA, Bruna Lima de. Apontamentos sobre as principais mudanças operadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) no regime das incapacidades. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 263.

15 Para Mendonça, tal afirmação não seria correta, pois a incapacidade será concretamente apurada com base na situação global da pessoa, sob pena de se imputar responsabilidades infundadas às pessoas com deficiência. Entendemos a preocupação da autora; todavia, a despeito da aparente discordância com o que afirmamos, o que acaba sendo defendido é que a capacidade não seja um elemento de exclusão ou obstáculo ao exercício de direitos de conteúdo não patrimonial. (MENDONÇA, Bruna Lima de. Apontamentos sobre as principais mudanças operadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) no regime das incapacidades. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no Direito Civil Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 267-269).

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quando reduzida ou quando se afigura como obstáculo para tomadas de decisão, faz com que surja para o Estado e para a sociedade como um todo a obrigação de que seja disponibilizada toda uma rede de apoio, que pode ir desde o auxílio informal até a tomada de decisão apoiada ou a curatela.

Por isso, é correto afirmar que a mudança de paradigma verificada em relação ao tratamento jurídico dispensado aos portadores de deficiência ocorre por meio da troca de um modelo protetivo fundado na substituição de vontade – no qual um terceiro era escolhido para gerir e tomar todas as decisões em nome da pessoa com deficiência – para um modelo de apoio, no qual se asseguram o respeito à dignidade e a autonomia, incluindo aí a liberdade de fazer as próprias escolhas.

3.2.1 A tomada de decisão apoiada16 e a autonomia da pessoa com deficiência

Como forma de concretizar seus objetivos, ou seja, de permitir a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, bem como o exercício da autodeterminação por aquela mesma pessoa, o Estatuto da Pessoa com Deficiência inovou ao trazer um mecanismo denominado tomada de decisão apoiada (TDA). É uma forma de concretizar o comando do artigo 1º17 da Convenção Internacional sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, aprovada por meio do Decreto nº 6.949/09.

Por meio do artigo 116, o EPD incluiu o artigo 1.783-A no Código Civil vigente, trazendo a tomada de decisão apoiada, que, sendo uma forma alternativa à curatela, permite que a pessoa com deficiência, por sua própria iniciativa, nomeie pelos menos duas pessoas idôneas “com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, forne-cendo-lhes os elementos e informações necessárias para que possa exercer sua capacidade”.

16 Como não pretendemos fazer aqui uma abordagem descritiva e procedimental da tomada de decisão apoiada, recomendamos a leitura integral do artigo 1.783-A do Código Civil vigente, que cumpre satisfatoriamente tal objetivo.

17 Artigo 1º. Propósito: O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. (Grifamos)

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Conforme afirma Requião,18 o mecanismo em questão confere autonomia ao portador de deficiência, permitindo que ele constitua, em torno de si, uma rede de sujeitos de sua confiança, objetivando que tais pessoas prestem auxílio em assuntos de seu interesse, ou seja, é o oposto da antiga curatela, na qual alguém era escolhido (sem a participação do curatelado) para decidir em nome da pessoa com deficiência e, às vezes, até contra a vontade e interesses daquela última. É um terceiro gênero protetivo que auxilia as pessoas com deficiência na prática de atos patrimoniais, garantindo não só a igualdade com as demais pessoas, mas também a efetividade da dignidade e liberdade, segundo as lições de Nishiyama e Toledo.19

Com a tomada de decisão apoiada, o respeito à autodeterminação da pessoa com deficiência é muito maior, pois, além de haver neces-sidade de iniciativa do próprio apoiado, é este quem escolherá seus apoiadores, ou seja, como lembra Requião, a pessoa com deficiência possuirá apoiadores “não porque lhe foram designados, mas sim porque assim quis”.20

Por ser um tema bastante recente, há uma questão pouco debatida que importa para os limites do presente trabalho e que, por tal razão, necessita ser enfrentada. Ela diz respeito ao seguinte: com a TDA, a capacidade do apoiado é afetada?

Pelo próprio texto e objetivos do EPD, entendemos que a pessoa apoiada não tem sua capacidade afetada por conta do procedimento da TDA, de maneira que ela não perderá sua capacidade, tampouco terá reduzido tal atributo. Consoante também defendido por Requião, ela é apenas um reforço à validade dos negócios jurídicos realizados pela pessoa apoiada.21

18 REQUIÃO, Maurício. As mudanças na capacidade e a inclusão da tomada de decisão apoiada a partir do estatuto da pessoa com deficiência. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Coord.). Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 43.

19 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. O estatuto da pessoa com deficiência: reflexões sobre a capacidade civil. v. 974. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 42.

20 REQUIÃO, Maurício. As mudanças na capacidade e a inclusão da tomada de decisão apoiada a partir do estatuto da pessoa com deficiência. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Coord.). Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 43.

21 REQUIÃO, Maurício. As mudanças na capacidade e a inclusão da tomada de decisão apoiada a partir do estatuto da pessoa com deficiência. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Coord.). Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 43.

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Prova do que acaba de ser dito pode ser encontrada no próprio artigo 1.783-A, §§4º e 5º, do Código Civil vigente,22 que não fornece espaço para invalidação de negócio jurídico praticado com base e nos limites do termo de tomada de decisão. A conclusão a que acaba de se chegar influencia diretamente no problema aqui proposto, haja vista poder influenciar na possibilidade ou não de a pessoa portadora de deficiência praticar negócio jurídico processual por meio da TDA. Ora, se a TDA afetasse a capacidade da pessoa apoiada, restringindo tal atributo, certamente a prática do negócio jurídico processual restaria comprometida pela pessoa com deficiência.

Feita a observação acima, pode-se afirmar, conforme defendem Tostes e Aquino,23 que a TDA é mais um reflexo do compromisso que o Estado brasileiro assumiu24 na ordem internacional, com vistas a proteger a dignidade das pessoas com deficiência. O que se observa, portanto, é que tal mecanismo é essencial para o exercício da autodeterminação e, por conseguinte, da dignidade, permitindo que a pessoa com deficiência possa exercer suas escolhas individuais, gerindo livremente sua esfera de interesses e orientando sua vida de acordo com as suas preferências, com bem acentua Ribeiro.25

É importante salientar que, como corolário da necessidade de manter a autonomia das pessoas com deficiência, o Estado brasileiro deve garantir o efetivo acesso de tais pessoas à justiça, nas mesmas condições que as demais, inclusive por meio de adaptações processuais que sejam adequadas à idade, facilitando o exercício efetivo de todas

22 Art.1.783-A [...] §4º A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. §5º Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado.

23 TOSTES, Camila Strafacci Maia; AQUINO, Leonardo Gomes de. A repercussão do estatuto da pessoa com deficiência no regime da capacidade civil. In: NERY JÚNIOR, Nelson (Coord.). Revista de Direito Privado. v. 75. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 69.

24 O artigo 32 da convenção assim dispõe: Artigo 32. Cooperação internacional.1. Os Estados Partes reconhecem a importância da cooperação internacional e de sua promoção, em apoio aos esforços nacionais para a consecução do propósito e dos objetivos da presente Convenção e, sob este aspecto, adotarão medidas apropriadas e efetivas entre os Estados e, de maneira adequada, em parceria com organizações internacionais e regionais relevantes e com a sociedade civil e, em particular, com organizações de pessoas com deficiência. Estas medidas poderão incluir, entre outras: (...).

25 RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999, p. 22.

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as garantias processuais, na condição de participante direto ou indireto do processo, conforme ressaltam Nishiyama e Toledo.26

3.3 Negócio jurídico processual

Negócio jurídico é uma espécie de fato jurídico, integrando a Teoria Geral do Direito. Isso não significa dizer, contudo, que seja um conceito estanque, imutável e que não tenha seus contornos adaptados ao ramo do direito a que ele serve. Os conceitos e categorias, elaborados por Pontes de Miranda e difundidos por Marcos Bernardes de Mello e dos quais o negócio jurídico faz parte, são de indiscutível utilidade para solução de situações conflituosas que não se limitam ao direito privado e que podem ser aplicados, entre outros ramos, ao direito processual civil.

Isso sem contar na própria evolução do conceito de negócio jurídico, sobretudo a partir do final do século passado, quando surgiram novas tentativas de redefinição do instituto com vistas a adequá-lo às exigências do Estado social e da própria noção de autonomia da vontade, à força normativa da Constituição, bem como à eficácia das normas constitucionais, conforme acentuado por Nogueira.27

A evolução conceitual acima mencionada passou por uma noção em que a vontade seria o elemento essencial do negócio jurídico, de modo que os efeitos por ele produzidos estariam ligados diretamente ao querer da parte (teoria subjetivista). Depois, contrapondo-se a tal noção, surge a ideia segundo a qual o negócio jurídico se configuraria num preceito com vistas à realização dos efeitos jurídicos correspon-dentes (teoria preceptiva). Por fim, apresentando uma visão que nega as duas concepções até aqui apresentadas, tem-se a noção de negócio jurídico com um ato de autonomia privada.

O que acaba de ser dito serve para deixar claro que a concepção de negócio jurídico defendida no presente trabalho não se coaduna com a teoria subjetivista, segundo a qual o negócio seria um ato de vontade que busca produzir determinados efeitos jurídicos (defendemos que os efeitos do negócio já estão definidos na norma; não derivam da vontade), tampouco com a noção que enquadra o negócio jurídico como um

26 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; TOLEDO, Roberta Cristina Paganini. O estatuto da pessoa com deficiência: reflexões sobre a capacidade civil. v. 974. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 37.

27 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 123.

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preceito, uma vez que, conforme acentuado nas lições de Nogueira,28 ela não se prestaria a definir o que é um negócio jurídico, bem como não fornece uma explicação satisfatória acerca da figura do negócio nulo.

Ainda em relação à teoria subjetivista, são esclarecedoras as lições de Mello,29 para quem o sistema jurídico, quando estabelece o conteúdo das relações por ele reguladas, pode: a) formular uma regulação exaustiva, sem deixar qualquer liberdade para a vontade dos agentes, podendo estes escolherem apenas a categoria do negócio, ou b) permitir que a vontade dos agentes escolha, dentre as espécies negociais, variações quanto à irradiação e intensidade de cada uma, de maneira que é possível escolher a categoria negocial e estruturar o conteúdo eficacial das relação jurídica dela decorrente. Porém, em nenhuma das duas situações é permitido que a vontade seja criadora de efeitos que não estejam previstos ou, no mínimo, que sejam permi-tidos pelo sistema.

A ressalva acima formulada é fundamental para que se afaste o que se denomina de “dogma da vontade”30 e se delimite o conceito aqui adotado de negócio jurídico, fundamental para que se possa rebater a grande maioria das críticas que são dirigidas à admissão da figura do negócio jurídico processual, conforme se demonstrará no item a seguir.

É por tal razão que concordamos com a noção de Mello,31 para quem o negócio jurídico é um fato jurídico que traz como elemento nuclear de seu suporte fático a manifestação da vontade de forma consciente e em relação ao qual o sistema jurídico permite aos sujeitos envolvidos, dentro de certos limites já predeterminados, a escolha da categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico; ou ainda, nas palavras de Lôbo,32 poder ser conceituado

28 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 132.

29 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 225.

30 De acordo com Cunha, tal dogma impediu que no processo se construísse uma adequada teoria sobre os atos processuais, bem como um tratamento satisfatório sobre sua interpretação e sobre os vícios da vontade sobre os atos processuais. Isso porque sempre se entendeu que no processo, a vontade das partes seria irrelevante, tendo estas unicamente a opção de praticar ou não o ato previsto numa sequência fixada de antemão pelo legislador. (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 10-11. Disponível em: <www.academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>).

31 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 233.

32 LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 228.

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como “fato jurídico cujo núcleo é a vontade negocial exteriorizada nos limites da autonomia privada, ou a conduta humana participante de tráfico jurídico, a que o direito confere validade e eficácia negociais”.33

Ainda nesse sentido, observa-se que o elemento que vai distinguir o negócio jurídico das demais espécies de fato jurídico é o autorregra-mento da vontade,34 que engloba a liberdade de negociação (negociações preliminares), liberdade de criação (criar novos modelos negociais atípicos), liberdade de estipulação (referente ao conteúdo do negócio) e liberdade de vinculação (celebrar ou não o negócio). Assim, ainda que só reste ao indivíduo uma das esferas de liberdade acima mencio-nadas, o negócio jurídico permanecerá de pé, uma vez que preservado (mesmo que de forma mínima) o autorregramento,35 como bem acentua Nogueira.36

33 Essa segunda parte do conceito do autor, conforme ele mesmo adverte, difere do conceito tradicional de negócio jurídico, posto que inclui as condutas ou comportamentos avolitivos, sendo necessário apenas a inclusão destes no tráfico jurídico, ou seja, são negócios nos quais se exclui a vontade, atribuindo-se eficácia negocial à conduta das pessoas. Para Lôbo, a noção tradicional de negócio jurídico não atende à realidade dos fenômenos contemporâneos da concentração empresarial e da massificação social, onde os negócios jurídicos têm no núcleo de seu suporte fático não a vontade exteriorizada, mas as condutas, abstraídos os aspectos volitivos. Seriam exemplos os contratos de adesão e os chamados contratos massificados (transporte coletivo, telefonia, água etc.), nos quais pouco importa a vontade do sujeito contratante (LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 229-231).

34 Nogueira, com fundamento nas lições de Pontes de Miranda, utiliza a expressão “autorregramento” no lugar de “autonomia privada”, pois entende que ela é mais apropriada ao direito processual e, especificamente, para relacioná-la aos negócios jurídicos processuais (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 135-136). É assim que faremos também neste trabalho, sem prejuízo das observações que já fizemos acima, na nota de nº 10, quando tratamos da expressão “autodeterminação”. Para Toledo, o autorregramento é a prerrogativa que os sujeitos possuem de escolha da categoria eficacial do negócio jurídico, bem como o preenchimento do conteúdo de tal categoria eficacial, por meio da manifestação da vontade humana (TOLEDO, Arthur de Melo. O poder de autorregramento da vontade e os seus limites. In: BESERRA, Karoline Mafra Sarmento; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; SILVA, Jéssica Aline Caparica (Orgs.). Estudos sobre a teoria do fato jurídico na contemporaneidade: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. Sergipe: Editora Universitária Tiradentes, 2016, p. 82-88). Sobre o mesmo assunto, é interessante a opinião de Cabral, para quem não é a liberdade contratual do direito privado que justifica a autonomia das partes no processo. Esta última autonomia seria assegurada pela combinação do princípio dispositivo e princípio do debate (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 141).

35 Lôbo não concorda com a ideia defendida nesse parágrafo, afirmando que onde entra a necessidade sai a liberdade (LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 229-230). Apesar do peso argumentativo de tal afirmação, ficamos com a opinião contrária, defendida por Nogueira (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 136) e que tem apoio nas lições de Mello, para quem, mesmo na alternativa de aceitar ou não aceitar a celebração do negócio, está presente a liberdade de escolha (autorregramento), ainda que de forma mínima. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 190).

36 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 136.

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Destarte, a vontade das partes, mesmo integrando o suporte fático dos negócios jurídicos, não é plena e não é capaz de ilidir os limites que são impostos pelo ordenamento jurídico, conforme acentua Toledo.37 No caso do direito processual civil, que é regulado, em sua maior parte, por normas cogentes, tais limites são ainda mais fortes, mas não a ponto de eliminar o poder de autorregramento da vontade.

3.3.1 Delimitação do conceito de negócio jurídico processual38

Feitas as considerações acima, resta-nos definir os contornos do que vem a ser um negócio jurídico processual.39 Para Nogueira,40 o negócio jurídico processual é:

O fato jurídico voluntário em cujo suporte fático e descrito na norma processual, esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentre os limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais.41

É preciso esclarecer que, no presente trabalho, a noção de negócio jurídico processual exige como elemento essencial a referibilidade a

37 TOLEDO, Arthur de Melo. O poder de autorregramento da vontade e os seus limites. In: BESERRA, Karoline Mafra Sarmento; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; SILVA, Jéssica Aline Caparica (Orgs.). Estudos sobre a teoria do fato jurídico na contemporaneidade: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. Sergipe: Editora Universitária Tiradentes, 2016, p. 79.

38 No presente trabalho, partimos da premissa de que os negócios processuais são admitidos pelo direito processual civil. Assim, não trataremos (até por conta dos próprios limites aqui traçados) das posições contrárias ao negócio jurídico processual. Tal discussão (acerca da possibilidade ou não de celebração de negócios jurídicos processuais), a nosso ver, perdeu muito de sua importância em razão da positivação, pelo atual CPC, de tais negócios processuais. Prova do que foi dito, apenas a título de exemplo, encontra-se nos artigos 190 e 200 daquele mesmo diploma legal.

39 A nomenclatura “negócio jurídico processual” não é utilizada de forma unânime na doutrina. Há quem prefira a locução “convenção processual”, como o fazem CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 31 e segs.; e MOREIRA, José Carlos Barbosa. Convenções das partes sobre matéria processual. In: Temas de Direito Processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 89, ou “atos de disposição processual”, utilizada por GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – Primeiras reflexões. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. (Coords.). Os poderes do juiz e controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p. 290. Por coerência com a teoria do fato jurídico, utilizaremos também a expressão “negócio jurídico processual” ao longo de todo o trabalho.

40 O autor adota uma noção ampla de fato processual, com a qual concordamos, e que engloba (ou é capaz de englobar) certos acontecimentos (mesmo que extraprocedimentais) e que estejam ligados ao processo, resultando situações jurídicas exercitáveis no procedimento.

41 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 152.

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um procedimento, ou seja, os negócios jurídicos que têm como objeto uma demanda futura, também chamados de negócios jurídicos sobre o processo, estão fora da definição aqui proposta e, portanto, do próprio objeto deste trabalho.42

Para Cabral,43 é um ato que produz ou pode produzir seus efeitos no processo escolhido como decorrência da vontade do sujeito praticante e que é capaz de constituir, modificar ou extinguir situações processuais ou alterações no procedimento.44

Tal negócio é uma espécie de ato jurídico processual lato sensu e se contrapõe ao ato jurídico processual stricto sensu, no qual a vontade é importante para a estrutura do ato, mas não é capaz de determinar seu conteúdo eficacial. Segundo Cunha,45 os atos jurídicos seriam incondi-cionáveis e inatermáveis, cabendo ao sujeito apenas praticar (ou não) o ato. Já nos negócios jurídicos processuais, tal vontade é relevante não só na opção por praticar ou não o ato, como também na definição de seus efeitos,46 conforme esclarece Cabral.47

Por meio da categoria ora em comento, os sujeitos do processo podem influir e participar no procedimento, em todas as suas etapas. É preciso ter em mente, contudo, que o que importa para que se caracterize

42 A mesma posição é defendida por Nogueira, ao afirmar que os negócios que “têm em mira futuras demandas não são adjetivados de ‘processuais’, uma vez que faltaria a ‘processualidade’ inerente à existência concreta de um procedimento ao qual se refira” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 231). Já Cabral não exclui tais espécies de acordos dos quais ele denomina de “convenção processual” (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 75-80).

43 Apesar do conceito apresentado, o objeto de estudo do autor mencionado são as convenções processuais, sendo tal expressão, ainda segundo o autor, mais adequada para se referir aos negócios plurilaterais pelos quais as partes, antes ou durante o processo, criam, modificam e extinguem situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento. Note-se, assim, que tal noção é mais ampla do que a que apresentamos quando mencionamos a expressão “negócios jurídicos processuais”.

44 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 48.45 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In:

I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 5. Disponível em: <www.academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>.

46 Uma das principais objeções feitas à categoria dos negócios jurídicos processuais é que, em razão da publicidade do processo, todas as condutas das partes já teriam seus efeitos fixados na lei, havendo apenas, portanto, o ato jurídico processual em sentido estrito. Todavia, conforme salienta Nogueira, não existem efeitos jurídicos que decorram exclusivamente da vontade das partes, como se costumava acreditar nas teorias que defendiam o “dogma da vontade” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 155). Didier Júnior defende que a categoria negócio jurídico é conceito lógico-jurídico e que, portanto, pela sua pretensão de validez universal, não se restringe ao âmbito do direito privado (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 52-55 e 60).

47 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 49.

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determinado ato como negócio jurídico processual é que a vontade do sujeito esteja direcionada não só para a prática do ato, mas também à produção de determinado efeito. Isso não significa, porém, que todos os efeitos do ato sejam decorrentes da vontade do sujeito, como se houvesse a necessidade de correspondência entre eles (vontade e efeitos do ato), haja vista que tal correspondência não se verifica nem mesmo no plano material, como advertem Didier Junior e Nogueira.48

Assim, a realização de negócio jurídico processual, além de possível, é fruto da autonomia privada (ou autorregramento), sendo caracterizada pela liberdade de celebração e de estipulação. Tal liberdade, contudo, não impede que a lei fixe determinados limites, bem como o regime para celebração de tais negócios, como ressalta Cunha.49 Tais limites, diga-se de passagem, também são fixados para os negócios jurídicos não processuais, e nem por isso se cogita negar que tais negócios são admitidos no ordenamento jurídico.

Os negócios jurídicos processuais são, antes de tudo, desdo-bramento do próprio Estado Democrático de Direito, que exige a participação de todos os sujeitos envolvidos no processo e que serão submetidos às decisões proferidas em assuntos que lhes digam respeito.

O atual CPC (Lei nº 13.105/15) torna a realidade acima mencionada ainda mais evidente, uma vez que instaura, de forma expressa, o chamado modelo cooperativo de processo, no qual a vontade das partes é valorizada. Neste sentido, merecem ser transcritas as palavras de Cunha:

Põe-se a descoberto, no novo CPC, o prestígio da autonomia da vontade das partes, cujo fundamento é a liberdade, um dos principais direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal. O direito à liberdade contém o direito ao autorregramento, justificando o chamado princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo.50

Percebe-se, portanto, que a figura dos negócios processuais, assim como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem como ponto comum a fundamentação na autonomia privada da vontade (ou autorregramento), posto que ambos tentam concretizar a dignidade da pessoa humana por meio do respeito das escolhas feitas pelo indivíduo, sejam elas no

48 DIDIER JÚNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos Fatos Jurídicos Processuais. 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 64-65.

49 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 14. Disponível em: <www.academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>.

50 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual. Lima, Peru, nov. 2014. p. 21. Disponível em: <www.academia.edu/10270224/Negócios_jurídicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>.

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âmbito pessoal ou no próprio processo, decidindo os melhores rumos para o alcance de seus objetivos.

O que nos resta saber, constituindo aqui o ponto central do tema proposto, é se a pessoa com deficiência, que se encontra auxiliada por meio do procedimento da tomada de decisão apoiada, pode celebrar o negócio jurídico processual ou se tal auxílio se limita apenas a questões patrimoniais fora do âmbito do processo. É sobre este ponto que nos debruçaremos no item a seguir.

3.4 Possibilidade de realização do negócio jurídico processual por meio da tomada de decisão apoiada

No presente subcapítulo, abordaremos a capacidade das pessoas com deficiência para celebrar o negócio jurídico processual, bem como a realização de tal ato por meio da tomada de decisão apoiada.

3.4.1 Esclarecimentos sobre a capacidade processualO problema da participação das pessoas com deficiência no

processo guarda estreita relação com a questão da capacidade processual. Assim, é necessário que se faça uma pequena abordagem acerca de tal capacidade para que se construa mais uma das premissas em que se funda o trabalho ora apresentado.

As normas que tratam da capacidade processual asseguram a participação das partes, permitindo que estas possam compreender o significado de tal participação e os efeitos produzidos na esfera jurídica de todos os interessados. E não é só: elas asseguram o direito funda-mental à paridade de armas e ao processo justo, conforme ressaltam Marinoni, Arenhart e Mitidiero.51 É preciso ter em mente, contudo, que, em qualquer acordo, se deve verificar a capacidade da parte à luz dos requisitos previstos tanto no direito material quanto no direito processual, como lembra Cabral.52

É exatamente nesse sentido que ganha relevo a questão da participação das pessoas com deficiência no processo. Por tal razão, antes da entrada em vigor do EPD, o atual Código de Processo Civil exigia que tais pessoas, quando consideradas relativa ou absolutamente

51 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 81.

52 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 273.

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incapazes, estivessem assistidas ou representadas. Tal situação, contudo, foi alterada, consoante se verá um pouco mais adiante.

Tradicionalmente, a doutrina sempre dividiu a capacidade processual em capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória. A capacidade de ser parte é o que se denominada de personalidade judiciária, conforme ensina Didier Júnior,53 ou seja, é a aptidão para ser sujeito da relação jurídica processual ou assumir uma situação jurídica processual. Em suma: é a aptidão de figurar como parte no processo civil.

A noção de capacidade de ser parte confunde-se com a própria noção de personalidade jurídica, prevista no art. 1º do atual Código Civil, não obstante ser mais ampla, posto que, em alguns casos, a lei processual confere a capacidade de ser parte a quem não possui perso-nalidade jurídica, a exemplo do nascituro e da massa falida. Possuem a capacidade ser parte todos os que possuem a personalidade civil, decorrente de garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição, que se encontra prevista no artigo 5º, XXXV, da constituição vigente.

A capacidade de estar em juízo é definida pelo próprio artigo 70 do atual Código de Processo Civil e, segundo o qual, “toda a pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo”. Percebe-se que tal capacidade guarda estreita relação com a capacidade de fato54 (ou de exercício), prevista no direito civil, e da qual já cuidamos neste trabalho ao discorrermos sobre a capacidade civil. Por tal razão, as pessoas que não possuem a capacidade de estar em juízo devem regularizar tal situação nos moldes disciplinados pela própria legislação processual.

A capacidade postulatória, por seu turno, também conhecida como jus postulandi, diz respeito a uma capacidade técnica que pode ser exigida do sujeito para a prática de atos processuais. Na lição de Marinoni, Arenhart e Mitidiero, “é a capacidade de traduzir juridicamente as manifestações de vontade e as declarações de conhecimento das partes no processo civil, portando a partir daí a produção de efeitos jurídicos”.55 Possuem-na os advogados regulamente inscritos na OAB, os defensores

53 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 314.

54 Nada impede, porém, que a lei processual restrinja a capacidade processual de pessoas que possuem a capacidade de fato (ou de exercício), como são exemplos as situações previstas nos artigos 72, II, e 73 do Código de Processo Civil.

55 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 81.

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públicos e os membros do Ministério Público. Excepcionalmente, também pode ser conferida a outras pessoas que não teriam a formação técnica dos aludidos profissionais, a exemplo das partes nos processos que tramitam sob o procedimento previsto na Lei nº 9.099/95.

Note-se, portanto, que a capacidade processual é a aptidão para praticar atos processuais sem representação ou assistência, consistindo no somatório das três modalidades acima mencionadas, ou seja, da capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e da capacidade postulatória. Por isso, ausentes quaisquer das três modalidades, não se pode falar em capacidade processual, devendo esta ser integrada na forma do próprio Código de Processo Civil.

3.4.2 Negócio jurídico processual por meio da tomada de decisão apoiada

Pois bem, feitas as considerações acima, é preciso salientar que, conforme já mencionado, com o advento do EDP, a regra é que as pessoas com deficiência são dotadas de capacidade jurídica, ou seja, possuem tanto a capacidade de ser parte num processo (o que sempre se admitiu) quanto a capacidade de estar em juízo (situação que não existia nem mesmo com o advento do atual CPC).

Tal fato significa, por óbvio, que as pessoas com deficiência possuem a capacidade de estar em juízo independentemente de repre-sentação ou assistência, permitindo assim amplo acesso à justiça, na forma garantida pelo já mencionado artigo 5º, XXXV, do CPC. Assim, não se pode excluir a possibilidade de as pessoas com deficiência poderem utilizar o importante mecanismo de reforço de acesso à justiça, que se traduz na possibilidade da prática de negócio jurídico processual. Nas palavras de Cabral:

De fato, a possibilidade de celebração de acordos processuais por grupos vulneráveis, sejam pessoas com deficiência, sejam incapazes (pensemos em crianças, já não em pessoas com deficiência), deve ser admitida sobretudo porque estes pactos podem beneficiar o vulnerável, ampliando prazos, facilitando-lhes a produção de prova ou conferindo oportunidade de ajuizamento da demanda em foro mais próximo da sua residência.56

56 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 276-277.

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O procedimento da tomada de decisão apoiada vem ao encontro do objetivo acima mencionado. Ora, sendo uma participação quali-ficada por meio da qual a pessoa com deficiência pode tomar decisões, preservando sua manifestação de vontade e autonomia, então não há razão para que se negue a possibilidade de celebração de negócio jurídico processual.

E não é só. A admissão da prática do negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência atende não só aos objetivos do EPD,57 mas do próprio sistema instaurado pelo atual CPC. Destarte, como acentua Cabral, tais negócios contribuem não só para a contenção do arbítrio, mas também para o controle e a mais adequada repartição de poder no processo.58

Ademais, se a pessoa com deficiência tem domínio sobre assuntos patrimoniais e existenciais que lhe dizem respeito, por que não poderia dispor também de assuntos que digam respeito ao processo? Em outras palavras, se há autonomia para tomadas de decisão cujos assuntos estejam regulados pelo direito material, por que não admitir que tal autonomia ocorra também em relação ao processo, que serve exatamente como método de solução para os problemas que digam respeito aos assuntos do direito material?

Entendemos que restringir a autonomia da pessoa com deficiência, impedindo a prática do negócio jurídico processual, viola todos os objetivos e princípios até aqui mencionados. E nem se cogite que tal restrição seria necessária para proteger a limitação de discernimento que algumas pessoas com deficiência possuem. Tal proteção revelaria um preconceito velado, desprezando a autonomia e capacidade que tais pessoas possuem, sobretudo com o advento do EPD, que também assegura salvaguardas para permitir a efetiva inclusão social da pessoa com deficiência, sempre que necessário.

Outrossim, a eventual vulnerabilidade das pessoas com deficiência não é motivo, por si só, para que se impeça a prática do negócio processual, a nosso ver. Isso porque tal vulnerabilidade não é exclusiva de tais pessoas e não decorre apenas de deficiências, mas de diversos fatores de natureza econômica, social, cultural, técnica, tecnológica, entre outros, conforme lembrado por Cabral.59 Tais fatores de vulnerabilidade

57 O próprio artigo 79 do EPD assegura que “o poder público deve assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva”.

58 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 137-138.59 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 320.

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não são suficientes para impedir a prática dos referidos negócios pelas pessoas que se incluem em tais grupos, mas tão somente exigem uma maior atenção com vistas a se preservar a igualdade e, consequente-mente, o exercício da liberdade.

Nessa ordem de ideias, a tomada de decisão apoiada surge como importante ferramenta não só de apoio, mas também de proteção à pessoa com deficiência, permitindo que esta última possa celebrar o negócio jurídico processual sem que nenhuma garantia fundamental ou processual seja violada.

A possibilidade que aqui acaba de ser defendida é ainda mais evidente quando se trata de um negócio jurídico processual unilateral, em que não há a necessidade de concordância de outros sujeitos, uma vez que envolvem apenas a esfera jurídica do sujeito que o pratica. Mais uma vez aqui, reveste-se a tomada de decisão apoiada da condição de importante instrumento não só de apoio, mas também de proteção da pessoa com deficiência.

3.4.3 Alguns limites ao negócio processual praticado por meio da tomada de decisão apoiada

A prática de negócios jurídicos processuais pela pessoa com deficiência encontra limites, mas não em decorrência do fato de ser o praticante uma pessoa com deficiência. Repita-se: esta última possui a capacidade jurídica e também a capacidade de estar em juízo. Tais limites são decorrentes da própria natureza dos negócios jurídicos processuais.60 Ademais, o negócio jurídico processual celebrado pela pessoa com deficiência submete-se aos mesmos requisitos de validade do negócio jurídico comum, a saber: o sujeito capaz, a forma prescrita ou não defesa em lei e o objeto lícito, além do respeito ao formalismo processual. Destarte, impor limites à prática de negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência seria impor restrição que contraria aos próprios objetivos do EPD, que já foram comentados ao longo do presente trabalho.

Situação interessante, porém, diz respeito aos limites para a prática dos atos por meio da tomada de decisão apoiada. Isso sucede

60 Para Nogueira, os limites do negócio jurídico processual são ditados pelo formalismo processual, que, sendo uma noção ampla, abrange não só as formalidades do processo, mas “delimitarão os poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, a organização do procedimento a fim de que suas finalidades essenciais sejam alcançadas” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídico processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 161).

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porque o §1º do artigo 1.783-A do Código Civil vigente61 exige que o pedido formulado deve vir acompanhado de termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, bem como o prazo de vigência do acordo, além de outros requisitos. Assim, cabe a seguinte indagação: acaso o termo referido no dispositivo legal ora mencionado não conste expressamente a possibilidade de negócio jurídico processual, é permitido à pessoa com deficiência a prática de tal negócio?

Em outras palavras, se o termo que delimitará o âmbito de atuação dos apoiadores não fizer nenhuma menção à prática de negócio jurídico processual, poderá a pessoa portadora de deficiência praticar tal ato?

Entendemos que a resposta à indagação acima formulada está na própria observação que já fizemos em relação à capacidade de estar em juízo, ou seja, se a pessoa portadora de deficiência é juridicamente capaz e se possui também a capacidade de estar em juízo, não há por que proibir a celebração do negócio jurídico processual, sob pena de restrição indevida no autorregramento de vontade daquela última. O argumento de que tal pessoa não teria o adequado discernimento para a prática de tal ato também não parece nos convencer, isso porque uma pessoa sem deficiência que não possua a capacidade postulatória não parece, a nosso juízo, ter mais ou menos noção – em relação a uma pessoa com deficiência – do inteiro significado da desistência de um recurso,62 por exemplo. Nem por isso alguém ousaria afirmar que a pessoa sem deficiência estaria proibida de praticar o negócio jurídico processual.

Pois bem, respondida a primeira indagação, é necessário enfrentar outro problema, a saber: ainda ausentes, nos limites do termo referido no §1º do artigo 1.783-A, os poderes para a prática do negócio jurídico processual, ainda assim os apoiadores poderiam auxiliar a pessoa com deficiência? Ou seja, poderiam prestar auxílio para a prática de um ato não previsto no termo ora em questão?

61 §1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar.

62 Será mesmo que uma pessoa sem deficiência teria a inteira compreensão das consequências práticas de seu ato processual? Teria ela conhecimento de que a desistência do recurso é um fato extintivo do direito de recorrer? Que traria o imediato trânsito em julgado da decisão? Que permitiria a execução da obrigação reconhecida na decisão? Não acreditamos que as respostas sejam positivas. Daí porque frisamos que a ausência de discernimento completo em relação ao ato praticado não serve como argumento contra a prática de negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência.

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Mais uma vez, não enxergamos obstáculo. Se a pessoa com deficiência pode praticar o negócio jurídico processual, independente-mente de assistência ou representação, posto que dispõe da capacidade de estar em juízo, por que não poderia praticá-lo com o auxílio de pessoas de sua confiança? A ausência de poderes expressos nos termos em que se funda a decisão apoiada seria obstáculo para a prática de tais atos? Apesar da resposta negativa, devemos admitir que a questão interferirá na responsabilidade dos apoiadores, bem como na eficácia do ato perante terceiros. Expliquemos.

A responsabilidade do apoiador parece estar presente apenas nos casos em que ele agir com culpa (v.g. negligência), exercer pressão indevida sobre o apoiado ou não adimplir as obrigações assumidas. É o que se depreende da leitura do §7º63 do artigo 1.783-A. Assim, desde que o negócio processual seja realizado com o auxílio do apoiador, sem que este incorra em uma das condutas mencionadas no dispositivo ora em comento, não há que se falar na sua responsabilidade, ainda que a prática de tal ato não esteja inserida expressamente no termo de que trata o §1º do artigo 1.783-A do Código Civil vigente.

Todavia, é preciso que se esclareça que o apoiador, com funda-mento neste motivo (ausência de poderes incluídos no termo), pode apresentar recusa em prestar o apoio para a prática do negócio jurídico processual ou solicitar que seja feita a ressalva de que tal negócio está sendo praticado pela pessoa com deficiência contra a vontade daquele apoiador. Contudo, repita-se, mesmo diante de tal recusa do apoiador ou ressalva apresentada, a pessoa com deficiência pode praticar o negócio jurídico processual.

Já no que diz respeito à eficácia do negócio processual praticado na forma acima mencionada em relação a terceiros, é preciso que se interprete o §4º do artigo 1.783-A,64 que regula exatamente a eficácia da decisão tomada por pessoa apoiada perante terceiros. Tal dispositivo não parecer trazer qualquer influência sobre os negócios jurídicos processuais, haja vista que estes últimos apenas podem produzir efeitos para os sujeitos celebrantes, vinculando também o juiz (que não é terceiro na forma do artigo 1.783-A). Assim, não há como o negócio jurídico processual, a nosso ver, afetar a esfera jurídica de terceiros que, repita-se, não se vinculam ao aludido ato negocial.

63 §7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz.

64 A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado.

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83BRUNO OLIVEIRA DE PAULA BATISTA, MARCOS EHRHARDT JR. DA (IM)POSSIBILIDADE DE CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL PELA PESSOA COM DEFICIÊNCIA...

3.5 Considerações finais

Apesar de algumas conclusões já terem sido apresentadas ao longo do trabalho, como consequência da necessidade de realização de cortes necessários para apresentação do tema nos limites de um artigo, cuidaremos de reforçar as principais premissas aqui utilizadas na tentativa de apresentar uma resposta ao problema proposto.

O EPD, ao entrar em vigor no Brasil, retirou as pessoas com deficiência do rol de incapazes previstos no Código Civil vigente. Assim, com o advento daquele estatuto, as pessoas com deficiência passaram a gozar de capacidade jurídica e, por isso, não mais precisam ser assistidas ou representadas para a prática de quaisquer atos. Mas não foi só isso: o EPD criou uma verdadeira rede de apoio à pessoa com deficiência, garantindo, na perspectiva promocional voltada à inclusão social, a efetivação da dignidade daquela por meio do exercício de sua autonomia.

Dentre os mecanismos que integram a rede de apoio acima mencionada, tem-se a tomada de decisão apoiada, representando importante instrumento para o exercício de autonomia da pessoa com deficiência sem que esta tenha sua vontade substituída por um terceiro nomeado contra a sua vontade. Pelo contrário, a tomada de decisão apoiada preserva o direito de escolha da pessoa com deficiência não só no que diz respeito à nomeação dos apoiadores – que devem ser pessoas de confiança do apoiado – como também das próprias decisões a serem tomadas.

Com relação ao atual Código de Processo Civil, verificou-se que o aludido diploma consagra o princípio do respeito ao autorregramento da vontade e afasta as opiniões contrárias à aceitação do chamado negócio jurídico processual. Decerto, o Código em comento, a exemplo do EPD, também consagra a autonomia das partes para decidirem acerca da melhor maneira de como solucionar seus conflitos, podendo dispor tanto de situações jurídicas processuais como do próprio procedimento.

Assim, uma vez admitida a possibilidade de negócio jurídico processual – agora positivado no CPC/15 – resta-nos saber se é possível à pessoa com deficiência praticar tais atos, utilizando, inclusive, a tomada da decisão apoiada, se for o caso.

Ora, se com o advento do EPD a pessoa com deficiência possui capacidade jurídica, então não há mais a necessidade de assistência ou representação para exercício da capacidade de estar em juízo. Portanto, é clara, a nosso ver, a possibilidade de celebração do negócio jurídico processual por aquela pessoa, sujeitando-se aos limites impostos apenas para a prática de tais negócios e não aos limites que antes existiam por ser ela considerada incapaz.

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A tomada de decisão apoiada surge como um instrumento de auxílio à pessoa com deficiência, mas não se revela como condição necessária para a prática do negócio jurídico processual. Isso porque uma pessoa com deficiência não é mais ou menos capaz porque se encontra (ou não) auxiliada por um apoiador. Note-se que o pedido de tomada de decisão apoiada deve partir da própria pessoa com deficiência. Apenas ela tem a iniciativa na forma do artigo 1.783-A do Código Civil vigente. Se ela optou por não tomar tal iniciativa, deve-se respeitar tal decisão e não presumir uma redução em sua incapacidade, criando obstáculos não previstos em lei para a prática de atos jurídicos.

A restrição da prática do negócio jurídico processual, pela pessoa com deficiência, não encontra fundamento no ordenamento jurídico e viola os objetivos previstos pelo EPD e, sobretudo, pela Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BATISTA, Bruno Oliveira de Paula; EHRHARDT JR., Marcos. Da (im)possibilidade de celebração do negócio jurídico processual pela pessoa com deficiência através da tomada de decisão apoiada. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 61-85. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 4

NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ:

ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015)

Paulo NalinRenata C. Steiner

4.1 Apresentação do problema: a validade

Analisar a validade de determinado negócio jurídico significa realizar a verificação de sua adequação a preceitos jurídicos basilares de determinado ordenamento. Isso admitido, pode-se afirmar, de maneira bastante introdutória, que o regime das invalidades se presta a delimitar requisitos mínimos que devem ser observados pelas partes de um negócio jurídico, cuja inobservância,1 usualmente, obstará a produção de seus efeitos.2

1 Conforme ensina Marcos Bernardes de Mello, a invalidade é uma sanção imposta pelo ordenamento jurídico a negócios jurídicos (ou atos jurídicos) que não observem as regras de validade. Assim, “embora concretize suporte fático previsto em suas normas, importa, em verdade, violação de seus comandos cogentes. A recusa de validade a um ato jurídico consubstancia uma forma de punição, de penalidade, à conduta que infringe as normas jurídicas, com a qual se busca impedir que aqueles que a praticaram possam obter resultados jurídicos e práticos vantajosos” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6).

2 No mundo concreto, do sujeito localizado, são os efeitos do negócio jurídico que efetivamente interessam. Assim, a discussão entre existência e validade perde sua importância, observando-se no direito atual uma ênfase ao plano da eficácia, no qual os efeitos jurídicos dos fatos, atos e negócios jurídicos são produzidos.

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Assim, será nulo o negócio jurídico firmado por absolutamente incapaz porque se elege, como pressuposto de validade, o discernimento das partes para prática do negócio jurídico. Da mesma forma, serão nulas a compra e a venda de imóveis acima de trinta salários mínimos realizadas por instrumento particular, porque também se elegeu a escritura pública como formalidade adequada à segurança desses tipos de negócio (art. 108 do CC).

Exemplos e correspondentes explicações poderiam ser feitos em relação a todas as hipóteses de nulidade, expressas ou virtuais,3 previstas no direito brasileiro. Isso se dá porque a eleição de um critério como integrante do plano de validade corresponde a uma escolha fundamentada em valores e princípios orientadores de determinada ordem jurídica. Exatamente por isso é que não se pode pensar em uma teoria geral universal das invalidades, já que estas somente podem ser compreendidas quando ligadas a um ordenamento jurídico específico.4

Da mesma forma e sem qualquer contradição, pode-se então afirmar que o regime das invalidades está em constante transformação, ainda que o seu regime possa ser menos flexível. Não é repetitivo afirmar que a escolha dos critérios de validade é intrinsicamente dependente de considerações culturais e políticas feitas pelo legislador em deter-minado momento.5

É no Código Civil brasileiro que se encontra a base fundamental desse regime próprio das invalidades. Porém, uma compreensão completa somente possa ser obtida pela análise de outros diplomas legais. Isso se dá tanto porque há invalidades previstas em legislação extravagante – ou seja, o Código Civil apenas fixa um regime jurídico, mas não cria taxativamente as hipóteses de invalidade – como também

3 Há invalidades consideradas expressas, porque a lei, além de proibir determinada circunstância, expressamente determina a aplicação da nulidade. Há casos, contudo, em que a lei proíbe a prática de determinado ato, mas não lhe aplica sanção. Estes são chamados de nulidades virtuais ou tácitas, tendo como base o art. 166, VII, do CC, que serve para fechamento do sistema.

4 Na crítica de Clóvis Bevilaqua, à luz do Código Civil de 1916, mas que pode ser considerada atual ainda hoje, a teoria das nulidades ainda é vacilante na doutrina, ao que se alia a falta de nitidez dos dispositivos legais e ausência de princípios diretores do pensamento legislativo (BEVILAQUA, Clóvis. Theoria geral do Direito Civil. Actualizada por Achilles Bevilaqua. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1951, p.326).

5 Exemplificativa dessa afirmação é a alteração, empreendida pelo Código Civil de 2002, a respeito do grau de invalidade da simulação. Sob a égide do Código Civil de 1916, negócios simulados eram anuláveis (art. 147, II, CC/1916) e, a partir do novo Código, passaram a ser nulos (art. 167). Como se vê, a escolha do grau de invalidade é também uma escolha legislativa e naturalmente mutável, respeitada a eficácia da lei no momento da formação do contrato (art. 6º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro).

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porque o reconhecimento das invalidades será usualmente realizado no curso de processo judicial (ou arbitral), o que torna imprescindível o diálogo com normas próprias de processo civil.

Com efeito, em se tratando de invalidades, o sincretismo legal se mostra indispensável para uma leitura mais ampla e completa do complexo sistema jurídico. Normas processuais e normas de direito material devem caminhar em consonância e adequação uma com a outra.

É exatamente no diálogo entre direito civil e direito processual que se localiza o tema central do presente texto. Sem pretender descer às vicissitudes das invalidades na teoria geral do direito, o ensaio busca fundamentalmente estabelecer seu relacionamento entre o disposto no art. 168 do Código Civil, o qual determina que as nulidades devem ser pronunciadas de ofício, com o disposto no art. 10 do novo Código de Processo Civil (2015, doravante NCPC), o qual, inovando no direito positivado brasileiro, estabelece que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

Nesse viés, foca-se exclusivamente na análise do regime das nulidades, vez que são elas que podem (rectius, devem) ser conhecidas de ofício pelo julgador e que, portanto, são diretamente abrangidas pela regra processual agora expressa no direito brasileiro.

4.2 Características próprias das nulidades

As invalidades são classificadas no direito brasileiro a partir de dois diferentes graus. Aquelas mais graves se submetem ao regime das nulidades; e as menos graves, ao regime da anulabilidade. Falar em regime jurídico é trabalhar com regime consequencial, que, por critério de proporcionalidade, é diverso a depender da gravidade respectiva.6 Conforme delimitado, interessa-nos exclusivamente o regime das nulidades, remetendo o leitor a uma breve comparação ao regime das anulabilidades nas notas de rodapé.7

6 Na síntese de Pontes de Miranda, o negócio nulo é aquele deficiente desde a entrada e para sempre, e o anulável, desde a entrada no mundo jurídico, mas por algum tempo (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, p. 4).

7 A diferenciação entre nulidade e anulabilidade se dá essencialmente no que toca ao seu regime jurídico, ou seja, às consequências aplicáveis para cada qual. Aliás, não se pode perder de vista que o CC/1916 continha inúmeras imprecisões a respeito da distinção entre esses dois graus de invalidade, o que foi corrigido pelo CC/2002. Nesse sentido, a crítica de José Carlos

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A fixação de consequências mais gravosas à nulidade se dá, em grande parte, porque os interesses protegidos por elas transcendem a esfera individual dos partícipes do negócio. É o que se passa, retomando o exemplo acima apresentado, na proibição de prática de atos por absolu-tamente incapazes sem a devida representação, em que se protege a própria ordem jurídica e não apenas o incapaz, mesmo porque a tutela da pessoa humana, em sua plenitude, é de natureza constitucional.

Cabe prioritariamente ao legislador fixar as consequências e regras aplicáveis às nulidades. Isso posto, há algumas características de seu regime jurídico que são extraídas expressamente do disposto no Código Civil brasileiro. Outras, contudo, são obtidas pela análise doutrinária, que, como não poderia deixar de ser, se fundamenta também no alcance das normas legais.

Do ponto de vista normativo, sobressai-se o disposto nos artigos 1688 e 169,9 os quais estabelecem três regras gerais aplicáveis à nulidade: o rol de legitimados para alegá-la, o dever de conhecimento de ofício, bem como a impossibilidade de ser sanada com o tempo ou confirmada pelas partes.

No que toca ao rol de legitimados, a lei estabelece que qualquer interessado pode alegar a nulidade, inclusive o Ministério Público nos casos em que sua intervenção é cabível.10 Para Orlando Gomes, essa amplitude dos legitimados corresponde ao reflexo processual de seu caráter absoluto.11 Mais do que isso, dessa regra se pode extrair a eficácia erga omnes da decretação de nulidade.

Barbosa Moreira: “A terminologia equívoca terá provavelmente contribuído para a frequência com que a linguagem forense, e às vezes a doutrinária, incorreu no erro de misturar as duas figuras, empregando promiscuamente os substantivos ‘nulidade – anulabilidade’, os adjetivos ‘nulo – anulável’ e as expressões ‘declarar nulo – anular’. O problema não seria grave, se a disciplina fosse igual num e noutro caso; mas não era, conforme ressaltava, antes de mais nada, do disposto nos arts. 146 e 152 [CC1916]”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Invalidade e ineficácia do negócio jurídico. In: MENDES, Gilmar Ferreira; STOCO, Rui. Doutrinas essenciais. Direito Civil. Parte Geral. v. VI. São Paulo: RT, 2011, p. 369).

8 Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir.Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes.

9 Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.

10 Já no que toca às anulabilidades, o art. 177 estabelece que somente interessados podem alegá-la e que a sentença somente produz efeitos em relação a eles, ressalvados os casos de indivisibilidade ou solidariedade.

11 GOMES, Orlando; BRITO, Edvaldo (Coord.). Introdução ao Direito Civil. 19. ed. revista, atualizada e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2008,

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Ainda segundo Orlando Gomes, as nulidades são também incuráveis e perpétuas, ou seja, não podem ser sanadas com o transcurso do tempo ou por ato de vontade das partes.12 A regra atinge também a figura do juiz, a quem a lei proíbe a possibilidade de supri-la, mesmo quando a requerimento das partes.13 Dessa consideração, expressa no Código Civil, decorre o reconhecimento doutrinário de que as nulidades são imprescritíveis, ou seja, podem ser alegadas a qualquer tempo – ainda que pendente relevante discussão quanto à prescritibilidade de seus efeitos patrimoniais.14

Por fim, o regime estabelecido pelo Código Civil cria um dever ao magistrado de decretar15 a nulidade quando ela estiver demons-trada, o que se fará de ofício, ou seja, independente de arguição pelas partes, pelo Ministério Público ou por algum interessado. Dito de outra forma, a decretação de invalidade pode ser obtida como objeto principal do processo – como nas hipóteses em que se ajuíza ação para esta finalidade – bem como incidentalmente, inclusive nas hipóteses em que sequer foi trazida a discussão sobre a invalidade do negócio jurídico pelas partes.

É o que se passaria, por exemplo, no caso de ação ajuizada com pedido de cumprimento da obrigação contratual em que as partes colidem a respeito da existência de pagamento integral e o juiz, ex officio, verifica a ilicitude do objeto. Como é natural, uma decisão que

p. 425. Alguns doutrinadores entendem, contudo, que nem todas as nulidades podem ser alegadas pelos legitimados dispostos no art. 168 do CC. É o caso de Marcos Bernardes de Mello, para quem, em algumas hipóteses (como é o caso do art. 48 do CC) se delimita o rol de legitimados, o que se faz sem afastar a aplicação do regime mais gravoso da nulidade. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247-248).

12 GOMES, Orlando; BRITO, Edvaldo (Coord.). Introdução ao Direito Civil. 19. ed. revista, atualizada e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 425-426.

13 Em comparação com o regime das anulabilidades, diga-se que estas podem ser confirmadas expressa ou tacitamente pelas partes, bem como que o tempo convalesce o defeito negocial. Isso importa concluir que os negócios anuláveis podem se tornar válidos com o passar do tempo, o que também afasta a imprescritibilidade da anulação (arts. 172, 174, 176 e 178, CC).

14 Sustentando que o art. 169 do CC estabelece a imprescritibilidade da decretação de nulidade, mas não dos seus efeitos patrimoniais, vide TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. v. I. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 320.

15 Adere-se aqui à concepção de Pontes de Miranda, tão bem expressada por Marcos Bernardes de Mello, no sentido de que a nulidade é decretada, e não apenas declarada. Trata-se de provimento constitutivo-negativo (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 251).

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reconhecesse a invalidade nesta hipótese não extrapolaria os limites da demanda, exatamente porque passível de ser proferida de ofício.16

Com essas características, o Código Civil cria um regime bastante gravoso aplicável à nulidade. Dentre elas, os focos passam a ser dirigidos apenas à regra pela qual o juiz deve conhecer da nulidade de ofício, quando se encontrar demonstrada.

4.3 O caráter absoluto da nulidade e as exceções à sua decretação

Segundo disposto no parágrafo único do art. 168 do Código Civil, o juiz deve pronunciar a nulidade quando conhecer do negócio jurídico, ainda quando não arguida pelo interessado, quando seus elementos se encontrarem comprovados nos autos, não sendo permitido supri-la, ainda que a requerimento das partes. Trata-se, como a utilização do verbo dever denota, de uma obrigação do julgador, o que dialoga de forma estreita com a gravidade do regime de nulidades no direito brasileiro. A conclusão encontra abrigo nas regras gerais do regime das nulidades, acima revisitadas. Ora, se nulidades são absolutas, incuráveis e perpétuas, características conferidas a elas por Orlando Gomes e aceitas com tranquilidade pela doutrina brasileira, não haveria discricionariedade judicial no reconhecimento da sua ocorrência. À mesma conclusão chegar-se-ia pela leitura literal e isolada do disposto no art. 168 do CC, no sentido de se concluir que o magistrado não poderia deixar de pronunciar a nulidade que se encontre provada: a única alternativa possível seria a decretação da nulidade.

Ocorre que uma leitura sistemática do atual Código Civil afasta o absolutismo dessa interpretação, o que se faz essencialmente à luz

16 Sobre o tema, não se pode deixar de notar que há súmula do Superior Tribunal de Justiça que relativiza a regra de conhecimento de ofício de nulidade de cláusula inserta em contratos bancários (Súmula nº 381: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas). Segundo disposição do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, cláusula abusiva nada mais é do que cláusula nula e, portanto, seja por disposição do CC, seja por regra própria do CDC, deveria ser conhecida de ofício. O entendimento do STJ – sem que se tenha aqui espaço para lhe traçar qualquer consideração crítica – sublinha o fato de que as características próprias da nulidade não são imutáveis, podendo ser flexibilizadas em determinadas circunstâncias. No caso específico da Súmula nº 381, Bruno Miragem conclui que, apesar das críticas, “sua aplicação resultou, na prática, na exigência de pedido e demonstração in concreto da abusividade da cláusula, o que se aplica ao controle da cláusula de juros bancários”, do que se pode retirar um fundamento da decisão tomada pelo STJ (MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: RT, 2013, p. 300).

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de uma ressignificação do conteúdo rígido das nulidades a partir do princípio da conservação dos pactos.

O próprio Código Civil prevê hipóteses de aproveitamento de negócios jurídicos nulos. É o que se passa com o instituto da conversão substancial do negócio jurídico, previsto no art. 170 do CC.17 Ou seja, ainda que existente a nulidade, o juiz não é obrigado a decretá-la, podendo converter o negócio inválido em negócio jurídico válido, que produzirá os seus efeitos.18

Verifica-se uma importante passagem dos poderes do juiz, da codificação de 1916 para a vigente de 2002, os quais de absolutos e inflexíveis passaram a ser discricionários (mas, sempre, devidamente fundamentados), tendo em vista do máximo aproveitamento dos efeitos do negócio. Trata-se de um novo capítulo no estudo das invalidades e que, antes aprisionadas apenas ao plano da validade, agora se voltam também à eficácia dos negócios jurídicos; afinal, é para produção de efeitos que os fatos jurídicos se voltam.

A mesma previsão de conservação é encontrada na hipótese do art. 167, caput, no que toca a negócios jurídicos simulados.19 Segundo dispõe o Código Civil, o negócio dissimulado pode subsistir se válido for na substância e na forma. Ainda que nulo o negócio simulado, pode-se interpretar como válido o ato dissimulado nas hipóteses de simulação relativa. O instituto é chamado por Pontes de Mirada de extraversão e aproxima-se (ainda que não se confunda)20 com a conversão dos negócios jurídicos prevista no art. 170 do CC.

É o que se passa, por exemplo, quando uma compra e venda a preço vil são feitas para dissimular uma doação. Nesses casos, se válida for a doação na substância e na forma (dentre outros, se observar a

17 Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.

18 Os exemplos de aplicação prática da conversão são muitos. A título exemplificativo, vide: “(...) 6. Na hipótese, sendo nulo o negócio jurídico de doação, o mais consentâneo é que se lhe converta em um contrato de mútuo gratuito, de fins não econômicos, porquanto é incontroverso o efetivo empréstimo do bem fungível, por prazo indeterminado, e, de algum modo, a intenção da beneficiária de restituí-lo. 7. Em sendo o negócio jurídico convertido em contrato de mútuo, tem a recorrente, com o falecimento da filha, legitimidade ativa e interesse de agir para cobrar a dívida do espólio, a fim de ter restituída a coisa emprestada. (...)” (REsp nº 1225861/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22.04.2014, DJe 26.05.2014).

19 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

20 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 402.

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forma legal, bem como não se prestar a fraudar lei imperativa), será possível receber a compra e venda simulada como contrato de doação, produzindo os efeitos deste.21

Em outras circunstâncias mais tradicionais, o direito brasileiro permite uma relativização das características próprias da nulidade. É o que se passa quando se admitem: a nulidade parcial do negócio, desde que destacável a parte inválida (art. 184, CC);22 a redução do negócio jurídico para adequação às regras legais e cogentes;23 a separação do instrumento e do negócio, quando este puder ser comprovado de outra forma (art. 183, CC);24 ou mesmo a manutenção de certos efeitos contratuais derivados de contratos nulos, quando impossível o retorno ao status quo ante.25

Todas essas circunstâncias representam, com suas peculiaridades próprias, a aplicação do princípio da conservação dos pactos, cuja observância na teoria do negócio jurídico e no regime das validades tem sido sustentada por abalizada doutrina e aplicada, mesmo quando sem menção expressa à nomenclatura específica, pela jurisprudência nacional.26

21 Sobre o tema, veja-se o seguinte julgado: “(...) Pretensão voltada à declaração de nulidade absoluta de negócio jurídico, consistente em cessão de direitos sobre bem imóvel, a fim de ocultar doação. Instâncias ordinárias que reconheceram a existência de simulação, declarando, no entanto, a nulidade parcial da avença, reputando parcialmente válido o negócio jurídico dissimulado (doação), isto é, na fração que não excedia à legítima. (...) 3.1 De acordo com a sistemática adotada pelo novo Código Civil, notadamente no artigo 167, em se tratando de simulação relativa – quando o negócio jurídico pactuado tem por objetivo encobrir outro de natureza diversa – , subsistirá aquele dissimulado se, em substância e forma, for válido. (...) 3.3 O negócio jurídico dissimulado apenas representou ofensa à lei e prejuízo a terceiro (no caso, o recorrente) na parte em que excedeu o que a doadora, única detentora dos direitos sobre o bem imóvel objeto do negócio, poderia dispor (doação inoficiosa)” (REsp nº 1102938/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10.03.2015, DJe 24.03.2015).

22 Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.

23 Exemplificativamente, no caso de haver cláusula penal que exceda os limites impostos pelo art. 412 do CC, nada impede que o juiz a reduza até o limite legal. Da mesma forma, em caso de doação que exceda o limite da legítima (art. 2.007 do CC) ou mesmo na inserção de juros acima do limite previsto em lei.

24 Art. 183. A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurídico sempre que este puder provar-se por outro meio.

25 Pense-se, por exemplo, na invalidade de um contrato de trabalho ou de um concurso público. Nesses casos, é possível “modular” os efeitos da decretação de nulidade, a qual somente produziria efeitos ex nunc. A noção de modulação, aliás, é amplamente admitida mesmo nos casos de vícios de inconstitucionalidade.

26 Sobre o princípio da conservação, assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: “(...) A ordem jurídica é harmônica com os interesses individuais e do desenvolvimento econômico-social. Ela não fulmina completamente os atos que lhe são desconformes em

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Essa constatação importa uma leitura acautelada do disposto no art. 168, parágrafo único, do Código Civil, no sentido de se compreender o dever de decretação da invalidade como relativo: o juiz não é obrigado a decretá-la quando se puder, mediante aplicação de regras expressas ou implícitas do direito brasileiro, conservar o pacto em detrimento de sua invalidação. Em outras palavras, as regras de nulidade não devem ser consideradas como absolutas, ainda que em sua gênese a teoria das invalidades se prestasse a tal interpretação.27

4.4 Conhecimento da nulidade de ofício e oitiva das partes: art. 168, parágrafo único, do Código Civil versus art. 10 do novo Código de Processo Civil

Ora, se o princípio da conservação dos pactos importa lançar novas luzes ao dever judicial de conhecimento de ofício das nulidades, a regra disposta no art. 10 do NCPC vem fomentar ainda mais o debate sobre o alcance desse dispositivo, integrando-o com outras possibilidades de interpretação desse poder-dever judicial. E não sem tempo.

O Código de Processo Civil de 2015 não é apenas resultado da soma de regras processuais, mas antes um código funcionalmente novo. Com efeito, pese embora as inúmeras críticas ao NCPC (e que somente serão de fato explicitadas, confirmadas ou excluídas a partir de sua entrada em vigor e consequente aplicação), certo é que a racionalidade do novo diploma é prestigiar o papel das partes no processo, sem que isso signifique mitigar o poder-dever instrutório do juiz.

Os exemplos dessa democratização do processo civil são inúmeros e talvez possam ser essencialmente representados pelos chamados negócios processuais (arts. 190 e 191 do NCPC), pelos quais se confere às partes (em alguns casos previamente à instauração do litígio) fixar

qualquer extensão. A teoria dos negócios jurídicos, amplamente informada pelo princípio da conservação dos seus efeitos, estabelece que até mesmo as normas cogentes destinam-se a ordenar e coordenar a prática dos atos necessários ao convívio social, respeitados os negócios jurídicos realizados. Deve-se preferir a interpretação que evita a anulação completa do ato praticado, optando-se pela sua redução e recondução aos parâmetros da legalidade” (REsp nº 1106625/PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 16.08.2011, DJe 09.09.2011).

27 Na ocasião da edição do Código Civil de 2002, afirmou Leonardo Mattietto que não apenas o novo diploma civil, como o princípio da conservação dos pactos seriam vieses para a revisão crítica das regras de invalidades, profundamente inspiradas em subsídios históricos do direito romano (MATTIETTO, Leonardo. Invalidade dos atos e negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 325).

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regras de flexibilização do procedimento judicial. Aliás, conforme afirmou Fredie Didier, o autorregramento da vontade é um princípio vetor no NCPC e que se desdobra no reconhecimento de que o devido processo legal é também um processo exercido em torno da liberdade.28

Falar em autorregramento da vontade – expressão utilizada por Pontes de Miranda para se referir ao que usualmente se denomina autonomia privada – é falar em liberdade individual, que, no âmbito do processo, é funcionalizada para o exercício de garantias processuais que não podem ser afastadas (aqui se incluem, por exemplo, garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal). E, embora o art. 10 do NCPC não se refira expressamente à liberdade das partes, certamente sua disposição é um desdobramento da nova racionalidade que o legislador pretendeu imprimir ao processo civil. Explica-se.

Com a entrada em vigor do NCPC, passou a ser expressamente defeso ao juiz decidir com base em fundamento novo, sobre o qual as partes não tenham tido oportunidade de se manifestar. Trata-se de postulado que decorre do princípio do contraditório e que, na definição de Fredie Didier, é apenas uma pseudonovidade normativa. Isso porque a proibição da decisão-surpresa e a invalidade deste pronunciamento já eram plenamente defensáveis à luz dos princípios processuais e constitucionais.29

A regra é também adotada em outros ordenamentos jurídicos, correspondendo a uma tendência de compreensão do princípio do contraditório. É o caso, exemplificativamente, do art. 3º, 3, do CPC português30 e do §139 (2) do ZPO alemão.31 É certo, porém, que agora o legislador deixou bastante claro, e é neste ponto que o disposto no art.

28 A afirmação foi feita em conferência intitulada Devido processo legal e respeito ao autorregramento da vontade, proferida no curso Negócios processuais no novo CPC promovido pela AASP e retransmitido pela OAB/PR em 18.03.2014.

29 DIDIER, Fredie. A eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Disponível em: <https://www.academia.edu/9008318/Efic%C3%A1cia_do_novo_CPC_antes_do_t%C3%A9rmino_do_per%C3%ADodo_de_vac%C3%A2ncia_da_lei>. Acesso em: 04 abr. 2015.

30 Art. 3º, 3 (Código de Processo Civil de Portugal) – O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

31 §139 ZPO (Direção substancial do processo): (2) A Corte pode embasar sua decisão em aspecto sobre o qual a parte tenha reconhecidamente negligenciado ou considerado irrelevante, desde que não se esteja diante de uma pretensão acessória, somente quando tenha apontado este aspecto e conferido a possibilidade de manifestação. O mesmo é válido para aspecto sobre o qual a Corte decide diferentemente a ambas as partes (em tradução livre de §139 Materielle Prozessleitung. (2) Auf einen Gesichtspunkt, den eine Partei erkennbar übersehen oder für unerheblich gehalten hat, darf das Gericht, soweit nicht nur eine Nebenforderung betroffen ist, seine Entscheidung nur stützen, wenn es darauf hingewiesen und Gelegenheit zur Äußerung

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10 do NCPC passa a ser relevante ao tema aqui tratado, que a decisão surpresa é defesa inclusive nos casos em que a matéria invocada possa ser conhecida ex officio. Chega-se então a um ponto de contato entre o regime da nulidade e a “nova” regra processual.

Ora, como visto, o Código Civil cria ao juiz o dever de conhecer a nulidade quando se encontrar provada (art. 168, parágrafo único). O NCPC, por sua vez, proíbe que haja decisão fundamentada em argumento não ventilado no curso do processo. Conclusivamente, o juiz deve conhecer a nulidade do negócio jurídico, mas, preliminarmente, também deve abrir oportunidade de manifestação às partes.

Uma leitura apressada dessa conclusão – que se tem como bastante lógica – poderia levar à incompreensão do alcance do dispositivo no que toca à nulidade. O leitor poderia se perguntar, afinal, qual o objetivo de se determinar a prévia oitiva das partes quando houver causa de nulidade: afinal, se os negócios jurídicos nulos não são sanáveis e não podem ser confirmados por ato das partes, haveria utilidade em ouvi-las?

Duas ordens de argumentos afastam a aparente incongruência entre os dispositivos e sublinham o acerto do legislador ao incluir a regra de prévia oitiva das partes para decretação de nulidade. O primeiro deles dialoga com a interpretação e aplicação do direito e está intima-mente vinculado às garantias e aos princípios processuais. O segundo tem ligação com as regras de conservação dos pactos acima estudadas.

4.4.1 Decretação de nulidade e direito de participação no processo

Sob a primeira ótica, referente à interpretação e à aplicação do direito ao caso concreto, não se pode perder de vista que, embora as regras de nulidade sejam cogentes, o preenchimento de seu suporte fático não é objetivo, mas essencialmente dependente da atividade interpretativa. Aqui se insere um elemento subjetivo e de convencimento do juiz. Às partes não pode ser negada a possibilidade de interferir no processo decisório, essencialmente quando são surpreendidas pelo reconhecimento de nulidade que, a seu ver, nem sequer seria existente.

Se em algumas hipóteses de nulidade é possível, em tese (e apenas em tese), objetivar seu reconhecimento – vide, por exemplo, a incapacidade absoluta do agente32 ou o vício de forma, que são externa

dazu gegeben hat. Dasselbe gilt für einen Gesichtspunkt, den das Gericht anders beurteilt als beide Parteien).

32 Antes da entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), nem mesmo a incapacidade absoluta poderia ser tida como objetivamente aferível. Basta

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e objetivamente determinados –, outras hipóteses dependerão em maior ou menor grau da atividade interpretativa. Entram nesse grupo, por exemplo, a nulidade por motivo ilícito e fraude à lei (art. 166, III e VI, do CC), por simulação (art. 167 do CC)33 ou mesmo a ilicitude, indetermina-bilidade ou impossibilidade do objeto (art. 166, II, do CC), especialmente quando se reconhece que ilicitude não se confunde com ilegalidade.34

Nesses casos, abrir o contraditório às partes é essencial à formação do convencimento judicial e dá luz à ideia de que as partes não podem ser surpreendidas por decisão sobre fundamento não ventilado no curso do processo. Aliás, veja-se que o art. 168, parágrafo único, do CC possibilita ao juiz conhecer de ofício a nulidade quando esta estiver provada nos autos, o que sublinha que os elementos da nulidade também são objeto de prova e, portanto, que as partes devem ter o direito de participar na formação do convencimento judicial sem que isso afaste o princípio do livre convencimento do juiz.

Dentro dessa concepção, o disposto no art. 10 do NCPC cria um requisito suplementar de validade da decisão judicial proferida, qual seja, de que o fundamento invocado de ofício pelo juiz tenha sido previamente compartilhado com as partes. Somente assim é que elas podem manifestar-se em favor da interpretação de validade do negócio jurídico. A contrario senso, a decisão que reconhece a invalidade do negócio de ofício, porém sem dar oportunidade de manifestação às partes, será inválida por vício processual.

pensar na hipótese de um negócio firmado por um maior de idade que sofresse alguma deficiência cognitiva, mas ainda não houvesse sido interditado ao tempo da conclusão do negócio, embora já estivessem presentes os requisitos que autorizariam a interdição. Como a sentença de interdição pode produzir retroativos à data em que se constatar, teve início a causa de incapacidade. Como se sabe, a Lei nº 13.146/2015 revogou o art. 3º e incisos do Código Civil e conferiu nova redação ao caput: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”.

33 Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, decidiu o juízo a quo – sem oitiva as partes – pela nulidade do negócio jurídico firmado ao argumento de que haveria cláusula não verdadeira e, portanto, que o negócio seria simulado. No caso específico, as partes haviam acordado uma forma de pagamento e, no curso da execução, este foi realizado de forma diversa da acordada, mediante quitação. Em recurso de apelação, o TJPR considerou que “a modificação da forma de pagamento da parcela ajustada na cessão de direitos hereditários não caracteriza simulação e não autoriza concluir que possa comprometer a validade do negócio”, reformando a sentença para afastar a nulidade (TJPR – 17ª C. Cível – AC – 1081904-2 – Curitiba – Rel.: Lauri Caetano da Silva – Unânime – J. 21.05.2014). Trata-se de típico exemplo em que a prévia oitiva das partes poderia ter influenciado no convencimento judicial, com ganhos evidentes em economia processual.

34 Conforme interpretação conferida por Marcos Bernardes de Mello e aqui referendada, o conceito de ilicitude compreende tanto a contrariedade à lei, à moral (bons costumes), como à ordem pública, na trilha do art. 122 do CC (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da Validade. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 91).

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Veja-se que a oportunidade de manifestação quanto ao funda-mento invocado ex officio pelo juiz não se confunde com a possibilidade de sanar ou confirmar o ato nulo. Está-se aqui apenas invocando o direito de participação no processo e, essencialmente, no convencimento judicial em defesa da validade do negócio. Sob esta primeira ótica, o art. 10 do NCPC contém regra exclusivamente processual e que, de forma alguma, retira do juiz o poder-dever disposto no art. 168, parágrafo único, do CC. Os dispositivos são plenamente compatíveis.

4.4.2 Decretação de nulidade e princípio da conservação dos pactos

Sob o segundo ponto de vista, ou seja, da conservação dos negócios jurídicos, não se pode perder de vista que é conferida às partes a possibilidade de conservar alguns dos efeitos pretendidos pelo negócio jurídico, ainda que este seja considerado nulo. O princípio da conservação dirige-se não apenas ao juiz, como também às próprias partes, que têm melhores condições de estabelecer a vontade hipotética buscada na conversão, na extraversão ou mesmo na redução parcial do negócio ou de cláusula contratual.

Por evidente que essa possibilidade de atuar ativamente na aplicação de tais mecanismos não transforma as regras de nulidade em regras dispositivas, e nem se poderia interpretar (e não é isso que se sugere) uma alteração de sua natureza jurídica por força do disposto no art. 10 do NCPC. Mas é certo que, nesta mesma linha interpretativa, a abertura do contraditório pode estar intimamente ligada à conservação dos pactos, em atenção ao interesse das partes.

Quando previamente ouvidas, podem as partes tanto defender a validade do negócio, como também atuar na defesa da conservação de seus efeitos, ou de alguns de seus efeitos, influenciando o convencimento judicial no que toca à preservação do negócio jurídico. Trata-se de uma atuação processual, mas estreitamente ligada ao próprio direito material.

Nesse ponto específico, a prévia oitiva das partes encontra algum paralelo com o reconhecimento ex officio da prescrição, possibilitado, desde a revogação do art. 194 do CC e inclusão do §5º ao art. 219 do CPC/1973,35 dispositivo que se manteve no art. 487, II, do NCPC. Veja-se que tanto nulidade como prescrição são normas de ordem pública e conhecíveis de ofício pelo juiz.

35 Ambos (revogação e inclusão) se deram por força da Lei nº 11.280/2006.

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No que toca à prescrição, relevante doutrina, seguida por parte da jurisprudência, já sustentava à luz do CPC/1973 entendimento de que o conhecimento de ofício não afasta a necessidade de prévia oitiva do devedor. Conforme afirmam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidero, “embora seja uma exceção de direito material, pode o juiz pronunciar de ofício a prescrição. Tem, todavia, de dialogar previamente com o demandado a fim de colher eventual renúncia à prescrição”.36

O principal fundamento da conclusão é a possibilidade de renúncia à prescrição (art. 191 do CC),37 ato jurídico que somente pode ser exercido por seu titular (in casu, o devedor).38 A forma pela qual se adequam o direito da parte à renúncia e o dever do juiz de decretação, é justamente a instauração do contraditório prévio ao reconhecimento da prescrição.

Melhor do que se falar apenas em oitiva do devedor, contudo, é abrir a possibilidade de manifestação às partes processuais. Com efeito, a natureza da demanda, o prazo prescricional incidente bem como o próprio termo a quo de sua contagem podem ser matérias estreitamente ligadas à interpretação e à produção de provas e, consequentemente, caberá às partes influenciar o convencimento judicial. Com a entrada em vigor do NCPC, certamente é este o entendimento a ser observado por força do disposto no art. 10.

Veja-se que a lógica inerente à declaração ex officio da prescrição é bastante próxima àquela da nulidade. Embora as partes não possam renunciar à nulidade – frise-se, não se trata de direito dispositivo –, podem manifestar sua vontade de conservação do pacto mediante aplicação de mecanismos admitidos por lei ou, ainda, da modulação dos

36 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2008, p. 224.

37 Art. 191. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.

38 Há entendimento reiterado no Superior Tribunal de Justiça, contudo, que, no caso de prescrição direta (ou seja, que não sejam qualificados como prescrição intercorrente) em execuções fiscais, é dispensável a prévia oitiva da Fazenda Pública para seu reconhecimento. Para o STJ, o disposto no art. 40, §4º, da Lei nº 6.830/1980, que determina prévia oitiva, somente é aplicável no caso de prescrição intercorrente. Vide, exemplificando jurisprudência consolidada: “(..) 4. O caso dos autos não cuida de prescrição intercorrente, porquanto não houve interrupção do lapso prescricional. Tratando-se de prescrição direta, pode sua decretação ocorrer de ofício, sem prévia oitiva da exequente, nos termos do art. 219, §5º, do CPC, perfeitamente aplicável às execuções fiscais. Agravo regimental improvido” (AgRg no AREsp nº 515.984/BA, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 18.06.2014, DJe 27.06.2014). Veja-se que, nesses casos, afasta-se a intimação do credor, enquanto que, no caso do entendimento aqui defendido, deve-se intimar o devedor para que, querendo, exerça sua renúncia.

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efeitos do reconhecimento da nulidade. E, da mesma forma pela qual podem atuar no convencimento do juiz a respeito da inaplicabilidade de determinado prazo prescricional, podem defender a manutenção, ainda que parcial ou convertida, do negócio jurídico (sendo o mesmo raciocínio válido para inúmeras outras questões que formam o conven-cimento judicial).

Também nessas hipóteses, a não observância do disposto no art. 10 do NCPC levará à invalidade da decisão judicial proferida sem oportunizar a oitiva das partes. Frise-se que o dispositivo do novel CPC apenas se refere à oportunidade de manifestação, sendo ônus processual das partes efetivamente se utilizar da prerrogativa. A mera intimação para manifestação já supre, assim, o objetivo do NCPC, não sendo necessário que haja efetiva manifestação.

A incompatibilidade entre as características próprias da nulidade e a abertura do contraditório prévio ao seu conhecimento de ofício é meramente aparente, portanto. O cabimento da regra agora expressa no NCPC é fundamentado tanto na ordem processual como à luz do direito material.

4.4.3 Da validade à eficácia: tendências de direito material e processual

De todo o exposto, resta possível apontar algumas tendências de direito civil e de direito processual no que toca ao regime das nulidades dos negócios jurídicos.

Sob o ponto de vista do direito material, o diálogo necessário a ser estabelecido entre o art. 168, parágrafo único, do CC e o art. 10 do NCPC pressupõe a compreensão de um novo capítulo do regime de nulidades no direito brasileiro no sentido de que só há sentido decre-tá-las quando o negócio jurídico for efetivamente incompatível com princípios sensíveis ao ordenamento jurídico.

É certo, conforme se tem afirmado, que essa compreensão não é inaugurada com o NCPC, mas, sim, tem seus fundamentos na releitura do estrito e rígido regime de nulidades ensinado como algo natural nos cursos de direito ao longo das décadas. O direito de hoje não parece ser mais condizente com uma análise meramente estruturalista ou forma-lista e, ainda que as regras de validade sejam imprescindíveis – e nem se cogita dizer o contrário –, é na eficácia das relações jurídicas que os acentos devem ser voltados.

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A lógica inerente ao NCPC, ligada à valorização da democra-tização do processo, pode e deve contribuir para essa reestruturação do direito privado, especificamente aqui no que toca ao regime das nulidades. E, neste ponto, uma nova racionalidade do direito material encontra também abrigo em garantias e princípios processuais sensíveis à ordem jurídica brasileira.

Sob o ponto de vista processual, a observância ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal vem possibilitar às partes que atuem na defesa do ato considerado nulo e que possam ativamente influenciar o convencimento judicial, sem que isso importe danos à celeridade e economia processuais.39 Aliás, muito pelo contrário. Em sendo a nulidade matéria preliminar à análise do plano da eficácia – no qual se desenrolam questões referentes ao cumprimento ou descumpri-mento das obrigações, por exemplo –, a prévia oitiva das partes mitiga os riscos de retorno dos autos para instrução probatória não realizada ao tempo correto ou, ainda, da indesejável supressão de instância.

Em um desenrolar lógico do processo, matérias de invalidade negocial devem ser apreciadas antes mesmo da análise de questões eficaciais e, como são também fundamentos de decisão, devem encontrar abrigo naquilo que foi debatido no curso do processo. Sempre que a nulidade é conhecida de ofício, altera-se (legitimamente, contudo) o curso natural do processo e da tutela esperada pelas partes. É a expec-tativa das partes do processo na tutela de direito material buscada, de um lado, e as garantias processuais, de outro, que afirmam o acerto do legislador ao incluir a regra do art. 10 no NCPC.

4.5 Notas conclusivas

Como é natural, o NCPC somente poderá ser efetivamente compreendido a partir de sua entrada em vigor e de sua aplicação prática. Lições doutrinárias podem ser traçadas antes disso, mas é o dia a dia dos tribunais que dará conteúdo às novas regras processuais e estabelecerá seu relacionamento com regras de direito material já existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

Sob o ponto de vista estrutural, não se vislumbra nenhuma incompatibilidade entre a regra do art. 168, parágrafo único, do CC, que

39 Afinal e conforme afirma com precisão Rodrigo Ramina de Lucca, “tanto o contraditório como a ampla defesa só se justificam se forem dirigidos ao convencimento judicial” (RAMINA DE LUCCA, Rodrigo. O dever de motivação das decisões judiciais. Salvador: JusPodivm, 2015).

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103PAULO NALIN, RENATA C. STEINER NULIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS E CONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO JUIZ: ENTRE O CÓDIGO CIVIL E O NOVO...

estabelece o dever de conhecimento ex officio da nulidade dos negócios jurídicos, e aquela do art. 10 do NCPC, que proíbe decisão embasada em fundamento sobre o qual as partes não tiveram oportunidade de se manifestar, ainda quando conhecível de ofício. Pelo contrário, são regras complementares e em harmonia com os objetivos buscados pelo direito brasileiro, material e processual.

Uma leitura rígida e absoluta das nulidades, mesmo sob a égide do Código Civil, parece incompatível com o reconhecimento de que nulidades são obtidas mediante interpretação jurídica, ato naturalmente subjetivo, e com a existência de inúmeros mecanismos de promoção à conservação dos pactos, que afastam o caráter absoluto da decretação de nulidade. Não há nulidade de pleno direito, por assim dizer, porque toda e qualquer nulidade dependerá de uma atividade cognitiva prévia à sua decretação.

Da mesma forma, a observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal fomentados pelo NCPC não serve, de forma alguma, para alterar o caráter cogente da nulidade, mas, sim, para consagrar a união de uma teia complexa de prerrogativas dispostas entre o dever de conhecimento pelo juiz, o caráter cogente da nulidade e a diretriz de conservação buscada pelo Código Civil, ainda que implicitamente.

A estabilização de regra expressa no art. 10 do NCPC, embora não seja condição indispensável à aplicação do resultado pretendido, enaltece o processo civil como locus de participação democrática, que, em última análise, pode ser importante instrumento para que se voltem os olhos ao plano da eficácia, tantas vezes esquecido em detrimento de formalidades e estruturas não compatíveis com a função que se busca conferir, hoje, ao direito privado brasileiro.

Referências

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104 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

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TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. v. I. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NALIN, Paulo; STEINER, Renata C. Nulidade dos negócios jurídicos e conhecimento de ofício pelo juiz: entre o Código Civil e o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015). In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 87-104. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 5

SISTEMA DE PROVA DO FATO JURÍDICO À LUZ DOS CÓDIGOS

CIVIL E DE PROCESSO CIVIL

Guilherme Calmon Nogueira da Gama

5.1 Noções gerais

O Código Civil de 2002 encerra sua Parte Geral (no Livro III) com o título reservado à “Prova”, consolidando algumas posições doutrinárias e jurisprudenciais adotadas na interpretação do Código Civil de 1916 e procedendo às devidas e necessárias alterações, em consonância com as diretrizes observadas pela Comissão Elaboradora e Revisora do texto projetado. Nesta parte da disciplina do direito civil, houve opção metodológica de tratar tão somente da prova do fato jurídico (em sentido amplo), abrangendo os fatos jurídicos, atos jurídicos e negócios jurídicos, e não cuidar da forma dos negócios jurídicos. José Carlos Barbosa Moreira registra, com propriedade, que outros fatos (não jurídicos, os fatos simples) também podem ser objeto de prova – como no exemplo do fato indiciário –, não sendo justificável considerá-los fora da abrangência do Código Civil de 2002.1 O Código de Processo Civil em vigor – Lei nº 13.105/2015 – trata “Das Provas” no capítulo XII do Livro I da Parte Especial, nos arts. 369 a 484. O direito à prova no âmbito do processo tem natureza constitucional, pois está inexoravelmente vinculado à garantia do contraditório (CF/88, art. 5º,

1 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código Civil. In: DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 208.

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LV), eis que o contraditório abrange a oportunidade que as partes se manifestem e produzam provas sobre os fatos afirmados, além de se manifestarem sobre a matéria que o juiz deva conhecer de ofício antes de proferir qualquer decisão.2

A respeito da forma do negócio jurídico, é essencial observar que toda forma negocial apresenta inelutavelmente uma função – “todo ‘como’ do direito tem sempre um ‘porquê’ juridicamente relevante”.3 Nos casos em que a forma é perfil essencial do acordo negocial e, assim, se vincula ao conteúdo deste, ela não pode faltar ou se mostrar alheia aos aspectos funcionais da ordem negocial. A prova passa a fazer parte inseparável do conteúdo do negócio. Assim, levando em conta a noção de interesse na acepção axiológica-constitucional, a perspectiva funcional incide no campo da interpretação das normas jurídicas e do regulamento negocial sobre a forma, permitindo se indagar acerca de qual é o seu objetivo.4

As questões referentes à prova, no âmbito do direito civil, passaram a ser tratadas em título autônomo, a demonstrar a impor-tância do assunto, além de não necessariamente haver direta e exclusiva pertinência entre a prova e o negócio jurídico.5 E, como acontecia ainda na vigência do Código Civil de 1916, houve fundado questionamento sobre a pertinência do texto codificado civil ainda apresentar uma disciplina própria em relação ao tema, levando em conta o tratamento legal dispensado pelo Código de Processo Civil.6 A opção do legis-lador foi a de seguir a linha divisória sugerida pela doutrina: a) ao direito civil cabe realizar a determinação das provas, indicar seu valor jurídico e suas condições de admissibilidade; b) ao direito processual são reservadas as atribuições de fixar o modo de constituir a prova e

2 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva: MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 640.

3 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 296.4 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 296-297.5 José Carlos Moreira Alves justificou a opção da estruturação da prova em título autônomo

devido à circunstância de que todos os fatos jurídicos – e não apenas o negócio jurídico – são suscetíveis de ser provados (ALVES, José Carlos Moreira. A Parte Geral do Projeto de Código Civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 87).

6 José Carlos Barbosa Moreira registra a ocorrência de intromissões e de superposições a respeito, já que normas relativas ao direito civil “insinuam-se em códigos processuais, ou vice-versa”, sendo denominadas de heterotópicas (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 92). No âmbito do Código de Processo Civil de 2015, houve novamente o tratamento da prova dos fatos jurídicos no processo (arts. 369 a 484).

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de produzi-la em juízo.7 É fundamental registrar que nem sempre as questões relacionadas aos fatos, atos e negócios jurídicos deságuam nos tribunais por variados motivos, dentre os quais a não configuração do conflito de interesses ou a resolução do conflito por meios alternativos, como, por exemplo, a conciliação, a mediação e a arbitragem, o que, por si só, já seriam suficientes para justificar a disciplina normativa no direito civil tendo como objeto de regulamentação a prova.8

Caio Mário da Silva Pereira confirma a existência de uma zona fronteiriça entre o direito civil e o direito processual civil na matéria relacionada à prova, reconhecendo que se trata de assunto que é, simul-taneamente, objeto de disciplina pela lei civil e pela lei processual.9 Assim, enquanto o direito civil define os meios de prova, enuncia os lineamentos do regime a que deve se submeter a comprovação do fato jurídico (em sentido amplo) – em especial a declaração de vontade –, ao direito processual incumbe estabelecer a técnica de apresentação e valoração da prova em juízo.10 Em resumo: a) nos casos em que houver litígio levado ao conhecimento do Poder Judiciário, o direito processual terá a missão de disciplinar a técnica de demonstração concreta do valor de suas pretensões, enquanto que o direito civil determinará o valor intrínseco dos meios de prova; b) nos demais casos, incumbe exclusivamente ao direito civil definir quais são os meios de prova que os interessados (não litigantes ou contendores) devem se valer para provar qualquer fato jurídico.11

7 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. v. 1. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 42.

8 Fredie Didier Jr. indica a utilidade do tratamento da prova no Código Civil em dois pontos: a) sua aplicação à prova extrajudicial, e b) a delimitação da forma de certos negócios jurídicos (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 30).

9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 589.

10 Alexandre Freitas Câmara anota que a disciplina da prova no Código Civil de 2002 contempla disposições que melhor estariam no âmbito do Código de Processo Civil (CÂMARA, Alexandre Freitas. Das relações entre o Código Civil e o Direito Processual Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 111). Assim, observa que o exemplo mais claro da má relação entre o Código Civil de 2002 e o direito processual é o título destinado às provas, eis que, para Alexandre Câmara, o Código Civil não é o lugar apropriado para estabelecer regras sobre provas (CÂMARA, Alexandre Freitas. Das relações entre o Código Civil e o Direito Processual Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 117).

11 Carlos Santos de Oliveira segue o entendimento exposto no texto: “Compete, portanto, ao direito civil determinar os requisitos para a validade da emissão volitiva, bem como se pronunciar a respeito do valor de certo meio de prova do negócio jurídico. À lei processual fica reservado, por exemplo, a atribuição de disciplinar o modo através do qual os advogados dos

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Renan Lotufo acentua que, na contemporaneidade, o conheci-mento dos fatos é adquirido por meio de probabilidades, ou seja, é relativo, já que os fatos não podem ser conhecidos na sua totalidade e, assim, o direito desenvolve metodologia das hipóteses. Desse modo, após a passagem pelas teorias dos centros de argumentação, da teoria do provável e do normal, alcançou-se a teoria da relevância da prova – formulada em termos negativos, com base na lógica das exclusões.12

De acordo com o art. 369 do Código de Processo Civil de 2015, a prova deve incidir sobre “a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. A parte final do art. 369 do CPC/2015 consagra o princípio do contraditório participativo, no qual se reconhece a posição jurídica de vantagem das partes de influenciarem o juiz na formação do seu convencimento sobre a matéria a ser decidida.13

5.2 Prova: conceito, princípios e espécies

Em termos bem-resumidos, pode-se conceituar a prova como o conjunto dos meios empregados por alguém para demonstrar, em conformidade com a ordem jurídica, a existência de um fato, ato ou negócio jurídico.14 No conceito, são destacados alguns aspectos: a) a ideia de instrumento, e não de fim em si mesmo; b) o efeito de demonstrar algo; c) a legitimidade e licitude da prova; d) a demonstração de um fato jurídico em sentido amplo – fato jurídico, ato jurídico e negócio jurídico.

Com efeito, a prova é do fato, e não do direito15 e, em razão da prova do fato, são extraídos os efeitos jurídicos dele decorrentes (ex facto oritur jus). Tal circunstância permitiu a construção do regime

litigantes deverão se utilizar, bem como o tempo processual oportuno, para a demonstração da existência e da validade do negócio jurídico” (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 430).

12 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 561.13 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Novo Código

de Processo Civil Anotado e Comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 213.14 Os conceitos apresentados pela doutrina sempre destacam as ideias de instrumento e de

demonstração. Assim, para Renan Lotufo, “a prova é o meio de que o interessado usa para demonstrar legalmente a existência fática de um negócio jurídico” (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 562). Silvio Rodrigues, servindo-se do auxílio de Clovis Bevilaqua, leciona que “prova é o conjunto dos meios empregados para demonstrar legalmente a existência de um ato jurídico” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 266).

15 Uma ressalva a tal afirmativa pode ser encontrada no art. 376 do Código de Processo Civil de 2015, que prevê a necessidade de demonstração do teor e da vigência do direito municipal,

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de prova, consoante o qual da mihi factum, dabo tibi jus ou jura novit curia, representando apenas a necessidade da comprovação dos fatos narrados para o fim de o magistrado aplicar o direito que, por óbvio, lhe é conhecido. Há, nos casos de litígios judiciais, necessidade de se verificar a quem cabe o ônus da prova (se do autor, do réu, do terceiro interveniente), ou seja, o ônus de produzir a prova para o fim de permitir o convencimento do juiz a respeito das consequências jurídicas dele decorrentes e que são favoráveis a tal pessoa. A distribuição do ônus da prova segue o critério do interesse relativo à afirmação do fato: cabe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito, ao passo que incumbe ao réu o ônus de provar os fatos modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor. O Código de Processo Civil de 2015 inova ao estabelecer a possibilidade de o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso do previsto no caput do art. 373 do referido texto nos casos previstos em lei (como no exemplo das relações de consumo – Lei nº 8.078/90) ou diante das peculiaridades da causa quanto à impossi-bilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou, ainda, à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, desde que haja decisão judicial fundamentada, facultando à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído (CPC/2015, art. 373, §1º). É também admitido o negócio jurídico processual a respeito do ônus da prova, ocasião em que as partes podem convencionar de forma distinta da prevista em lei a distribuição do ônus da prova, seja no período anterior ao processo ou no curso deste. É possível que o negócio jurídico processual abranja a admissibilidade de provas atípicas, tal como a realização de perícia consensual.16

A doutrina costuma apontar como características da prova no direito brasileiro a admissibilidade, a pertinência e a concludência. Prova admissível é aquela não proibida ou vetada no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente em se considerando o disposto no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal – que não admite, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Prova pertinente é aquela que efetivamente se relaciona à situação de fato enfocada, sendo idônea a demonstrar tal fato. Finalmente, prova concludente é a que permite a demonstração do fato jurídico, sem necessidade de qualquer outro

estadual, estrangeiro ou consuetudinário à parte que o alegar, desde que haja determinação judicial.

16 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 649.

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recurso ou meio, ou seja, apta a esclarecer pontos controvertidos ou a confirmar alegações feitas.17

Alguns princípios específicos em matéria de prova são também enunciados. Inicialmente, o princípio da unidade da prova, que significa que a evidência do fato é uma só, produzindo efeitos quanto aos interessados; daí ser impróprio afirmar que a testemunha é do autor ou do réu, na demanda judicial, ou, ainda, do credor ou do devedor, na hipótese de ainda não existir litígio. Logo, demonstrado determinado fato, não pode excluir de suas consequências qualquer dos interessados, em cuja esfera jurídica percuta.18 Outro princípio importante se refere ao ônus da prova: aquele que sustenta a ocorrência de determinado fato, ato ou negócio jurídico tem o ônus de comprová-lo, como regra, já que há a ideia da tentativa de mudança de uma situação jurídica e fática anteriormente existente. Há, ainda, o princípio da liberdade ou da livre admissibilidade da prova, que significa a possibilidade de demonstração do fato (em sentido amplo) por qualquer meio, sendo que, apenas a título excepcional e com previsão expressa na lei, poderá ser exigida a comprovação do fato por certo e determinado meio de prova. Tal princípio está intimamente associado à distinção entre prova geral e prova especial. Na primeira, aplica-se inteiramente o princípio da liberdade da prova, ao passo que, na segunda, existe a obrigatoriedade de observância de determinado meio de prova, como no exemplo da comprovação do pacto antenupcial por escritura pública (art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil de 2002).

Assim, costuma-se classificar a prova dos negócios jurídicos (excluídos, pois, os fatos jurídicos stricto sensu e os atos jurídicos) em: a) prova de natureza geral (ou livre), que é consectário do princípio da liberdade da prova, observada a consonância da prova com o ordenamento jurídico em vigor, daí a verificação da característica da admissibilidade; b) prova de natureza especial, que, ao contrário, não é livre, devendo ser observado o comando legal acerca do meio de prova específico sem o qual não há como considerar provado determinado negócio jurídico e, consequentemente, não haverá produção de efeitos jurídicos.

O art. 212 do Código Civil de 2002 encampa o princípio da liberdade de forma – e, portanto, a regra da prova de natureza geral –,

17 Por todos: DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 430.

18 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 591.

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ressalvando, no entanto, os negócios que, por força de lei, demandam a observância de forma especial. Os fatos e os atos jurídicos lícitos (art. 185 do Código Civil), via de consequência, podem ser provados por qualquer meio em direito admitido.19 No campo do direito processual civil, o art. 369 do Código de Processo confirma tal conclusão ao estabelecer que “as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. De modo excepcional, portanto, há determinados casos em que se imporá prova de natureza especial que, em regra, se confundem com os negócios jurídicos solenes devido à exigência de determinado documento ou conjunto de solenidades para sua concretização, como nos pactos antenupciais, na renúncia à herança, na cessão do direito à sucessão aberta, entre outros. O art. 212 do Código de 2002 expressamente ressalva a hipótese do negócio a que a lei impõe forma especial do princípio da liberdade da prova. No art. 406 do Código de Processo Civil de 2015, da mesma forma, é reafirmada tal exceção ao enunciar que, nos casos de exigência legal do instrumento público para o negócio jurídico, nenhuma outra prova poderá suprir-lhe a falta, por mais especial que seja.

A esse respeito, observa-se também o disposto no art. 220 do Código Civil em vigor, que prevê que a anuência ou autorização de outrem à realização do negócio jurídico, indispensável para sua validade, deverá ser provada do mesmo modo deste, de preferência no mesmo instrumento negocial.

Há, ainda, a questão da prova pré-constituída, ou seja, aquela produzida previamente com o objetivo de produzir efeito no futuro, como a lavratura dos assentos no registro civil (nascimento, casamento, separação, divórcio, morte), o título de confissão de dívida firmado pelo devedor e entregue ao credor, ou mesmo o caso de vistoria ad perpetuam rei memoriam. E, no passado, houve período histórico em que se adotou o princípio da prova legal – e não o da liberdade da prova –, em que a lei indicava os meios de prova sobre determinado fato e, assim, o fato

19 Precisa é a observação de Fredie Didier Jr., que aponta alguns atos jurídicos em sentido estrito que devem também seguir forma especial, como no exemplo do reconhecimento voluntário de paternidade, não havendo óbice na limitação contida no art. 212 do Código Civil de 2002 aos negócios jurídicos (DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p.36).

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não era reputado provado quando se produzisse outro meio de prova, diverso daquele previsto na lei.20

O art. 212 do Código Civil enuncia os seguintes meios de prova: a confissão, o documento, a testemunha, a presunção e a perícia. No art. 136 do Código Civil de 1916, havia, ainda, a menção aos atos proces-sados em juízo, aos exames, vistorias e arbitramento, além de referência aos documentos públicos e particulares. A alteração do dispositivo que correspondia ao art. 136 (revogado) não excluiu tais provas do ordenamento jurídico brasileiro por duas principais razões: a) o rol do art. 212 do Código de 2002 não é exaustivo e, consequentemente, podem ser considerados outros meios de prova, desde que sejam provas obtidas por meios lícitos (art. 5º, LVI, da Constituição Federal); b) houve aprimoramento da redação no art. 212, levando em conta que atos processados em juízo, documentos públicos e particulares são espécies de documento, e exames, vistorias e arbitramento são espécies de perícia. Desse modo, a ideia foi apenas de aprimorar a redação do dispositivo que trata dos meios de prova, mantendo, ainda, a noção do caráter exemplificativo do rol.21

5.3 Modalidades de prova

Como bem registra Carlos Santos de Oliveira, o art. 212 do texto codificado civil de 2002 elenca as modalidades de prova para a demonstração dos fatos, atos e negócios jurídicos, estes últimos desde que não solenes, de forma livre, enquanto que, para os negócios jurídicos solenes, a prova é “o próprio instrumento que a lei eleva à categoria de substância do próprio negócio”.22

20 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 593.

21 Oportuno, no entanto, o registro de José Carlos Barbosa Moreira acerca do art. 212 do Código Civil de 2002 e sua convivência pacífica com o art. 332 do Código de Processo Civil de 1973 – atual art. 369 do CPC/2015 – (que acolheu a tese da não taxatividade das provas especificamente reguladas na lei), sendo importante observar que a atipicidade não se refere às fontes de que o juiz se serve para extrair elementos na formação de seu convencimento, e sim ao modo pelo qual as informações ministradas pelas fontes (pessoas, coisas, fenômenos naturais ou artificiais) chegam ao órgão do Poder Judiciário (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 104).

22 OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 434.

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Feitas tais ponderações e, em consonância com a ideia da existência de zona fronteiriça entre o direito civil e o direito processual civil em matéria de normatização da prova, serão analisados os principais aspectos relacionados às modalidades de prova no contexto do Código Civil de 2002, sem a pretensão de esgotar aspectos que se relacionem mais diretamente ao direito processual civil.

5.3.1 ConfissãoA confissão está prevista no inciso I do art. 212 do Código Civil,

além de ser regulada nos arts. 213 e 214 do mesmo texto legal. No Código de Processo Civil de 2015, a confissão é tratada nos arts. 389 a 395. A confissão é a admissão da veracidade de determinado fato, contrário ao interesse do confitente e favorável à outra pessoa, podendo ter sido alegado (ou não) por esta. Enquanto o Código Civil não apresenta os contornos da confissão, o Código de Processo Civil, no art. 389, estipula que “há confissão, judicial ou extrajudicial, quando a parte admite a verdade de fato contrário ao seu interesse e favorável ao do adversário”. Caio Mário considera a confissão como a mais convincente das provas, já que representa a negação da contrariedade aos fatos relacionados aos efeitos jurídicos em desfavor do confitente.23 A confissão é ato jurídico em sentido estrito, ou seja, ato decorrente da vontade humana de efeitos necessários, não sendo possível sua efetivação sob condição ou termo.24

A confissão pode ser: a) judicial, ou seja, quando se concretiza no curso do processo judicial em tramitação; b) extrajudicial, ou seja, quando operada fora do processo judicial, como na hipótese de confissão por termo lavrado nos autos do procedimento administrativo.25 Lembra a doutrina que a confissão judicial normalmente terá força de prova plena do fato admitido, e o mesmo poderá se verificar na confissão extrajudicial quando reduzida a escrito, sendo, neste caso, passível

23 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 603.

24 DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 44.

25 José Carlos Barbosa Moreira anota, com razão, que a confissão não poderia figurar ao lado da testemunha e do documento no art. 212 do Código Civil de 2002, porquanto, seja judicial ou extrajudicial, ela se corporifica num depoimento pessoal, nos testemunhos ou num documento. “A fonte da prova, a rigor, não é a confissão, e sim a parte que confessa (quando presta seu depoimento), ou o documento em que ela admite o fato contrário ao seu interesse e favorável ao adversário.” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 214).

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de oposição pela parte contrária, pois consiste numa declaração de vontade; não seguindo a forma escrita, a confissão se sujeita à verificação (reconstituição) através de prova testemunhal.26

Nos termos do art. 213 do Código Civil de 2002 – na mesma linha do art. 392 do Código de Processo Civil de 2015 –, a confissão deve ser feita, de maneira válida, por pessoa que tenha o poder de dispor do direito a que se referem os fatos confessados. Assim, além de ter plena capacidade, o confitente não pode sofrer qualquer restrição acerca da disponibilidade do direito a que se refere o fato confessado. É possível a confissão feita por representante desde que haja poderes específicos (e especiais) para tanto (art. 390, parágrafo único, do Código de Processo Civil), não tendo eficácia quanto à parte que ultrapassar os limites em que o representante poderia vincular o representado (art. 213, parágrafo único, do Código Civil).

Outra classificação envolvendo a confissão é aquela que distingue a confissão expressa da confissão presumida, mais especialmente no campo processual civil. A confissão expressa é a inequívoca, em que houve assunção ou reconhecimento da verdade do fato contrário ao seu interesse pelo confitente por expressa deliberação sua representada verbalmente ou por escrito. A confissão presumida (ou ficta) se verifica quando a própria lei presume a admissão da verdade dos fatos contrários à determinada pessoa em razão de comportamento omissivo da parte litigante (arts. 341, 344 e 385, §1º, todos do Código de Processo Civil de 2015); por não ter impugnado especificamente determinado fato narrado na inicial, em razão da revelia; ou por não comparecer em audiência para prestar depoimento pessoal requerido pela parte contrária – ou, comparecendo, se recusar a depor. De se ressalvar que não se aplica, por óbvio, a noção de confissão presumida ou ficta aos fatos relacionados aos direitos indisponíveis.

Como regra, a confissão judicial é indivisível, ou seja, não pode ser fracionada ou dividida para o fim de a outra pessoa somente a invocar como prova na parte que a beneficia, mas não na outra parte que lhe é desfavorável (art. 395 do Código de Processo Civil). Poderá, no entanto, ser cindida quando o confitente aduzir fatos novos, passíveis de constituir fundamento de defesa de direito material ou de reconvenção na ação já instaurada. Ademais, a confissão é irrevogável (irretratável) devido à sua natureza não negocial, não podendo o confitente se retratar

26 OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 434.

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da admissão da verdade do fato contrário ao seu interesse (art. 214 do Código Civil de 2002). Contudo, nos casos de vício de consentimento representado por erro de fato ou coação, será possível a invalidação da confissão com fundamento na sua anulabilidade.27

5.3.2 Prova documentalO documento é previsto no inciso II do art. 212 do Código de

2002, além de ser objeto de regulamentação nos arts. 215 a 226 do mesmo texto civil. No Código de Processo Civil, a prova documental vem tratada nos arts. 405 a 441, com a inclusão de seção sobre os documentos eletrônicos. A verificação da extensão do tratamento legislativo acerca do documento – sem dúvida, trata-se do meio de prova que mereceu maior atenção do legislador – já é revelador da importância da prova documental no direito civil brasileiro, sendo reputada a mais nobre das provas.28

Conceitua-se o documento como o escrito que permite a perpe-tuação e formalização do ato ou negócio jurídico mediante a enunciação

27 Caio Mário da Silva Pereira sustenta que, mesmo com outro vício de consentimento como o dolo, será anulável a confissão, tendo a lei (art. 214) dito menos do que queria (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 604). Renan Lotufo assinala que, com o disposto no art. 214 do Código Civil de 2002, há um aparente conflito entre tal norma e aquela constante do art. 352 do Código de Processo Civil de 1973 – atual art. 393 do CPC/2015 –, que se refere à revogação da confissão em caso de erro, dolo ou coação, mas de fato não ocorre tal conflito eis que o termo “revogação” foi empregado de modo inadequado na legislação processual, eis que se trata de anulação da confissão (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 569). No mesmo sentido: MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 104. Fredie Didier Jr. entende que, de maneira correta, o dolo foi excluído das hipóteses de anulabilidade da confissão, daí porque houve revogação parcial do art. 352 do Código de Processo Civil de 1973. É válido transcrever trecho da posição do referido autor: “De fato, o dolo somente é relevante para o direito privado enquanto tenha sido capaz de levar outrem a erro. A circunstância de o confitente declarar o fato por dolo de outrem somente tem relevância jurídica, para fins de invalidação, se o dolo tiver sido apto a gerar erro. Se houve dolo, mas não houve erro, não se pode invalidar a confissão. Eis a razão pela qual se preferiu a expressão ‘erro de fato’, como síntese da hipótese de invalidade: o que importa é a falsa percepção da realidade; se o erro foi espontâneo ou provocado, pouco importa” (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49). Na realidade, observa-se que as posições doutrinárias acima enunciadas coincidem a respeito das conclusões a respeito da anulabilidade da confissão, havendo divergência apenas de fundamentação. O CPC de 2015 não incluiu o dolo nos casos de invalidação da confissão (art. 393, caput), empregando melhor redação e com preceito harmônico com o Código Civil de 2002 (BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 283).

28 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 593.

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da declaração de vontade. Desse modo, a reconstituição da vontade declarada não fica vinculada à falibilidade de fatores precários à sua demonstração.29 Nesse sentido, o art. 219 do Código Civil de 2002 prevê que “as declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários”, o que, sem dúvida, representa maior força probante do que outros meios de prova acerca do conteúdo material de tais declarações volitivas.30 Silvio Rodrigues observa que o termo documento não se confunde com o vocábulo instrumento ‒ sendo aquele, o gênero; e este, a espécie.31 O instrumento, nesta visão, seria o elemento criador do negócio, quer por ser de sua substância, quer por representar prova pré-constituída de sua existência. O documento, por sua vez, é mais abrangente, já que, além de também abranger o instrumento, abarca outros papéis úteis para comprovar a existência do negócio jurídico. Ressalve-se, no entanto, que a maior parte da doutrina não faz tal distinção.

A principal classificação dos documentos é aquela que os distingue em: a) documentos públicos, ou seja, aqueles que emanam de autoridade ou agente público, nos limites de suas atribuições legais, e que também constam de livros, notas, papéis e registros oficiais; b) documentos parti-culares, isto é, os escritos feitos pelos próprios interessados, totalmente manuscritos ou datilografados, digitados ou impressos, e assinados por eles. Acerca dos documentos públicos, há a mesma natureza e força pública nas certidões e traslados que o oficial público – tabelião ou oficial de registro – extrai dos instrumentos e documentos lançados em suas notas (art. 217 do Código Civil), bem como as certidões fornecidas pela autoridade competente dos atos e fatos próprios da repartição pública no âmbito do Poder Executivo, Poder Legislativo e do Poder Judiciário. No que tange aos atos praticados no processo judicial, os arts. 216 e 218, ambos do Código Civil de 2002, estabelecem que as certidões textuais de qualquer peça judicial, do livro de registro de atas das audiências, de qualquer outro livro sob a responsabilidade cartorária, e os traslados de documentos originais apresentados em juízo como prova de algum ato farão a mesma prova que os originais, desde que extraídos pelo

29 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 594.

30 Renan Lotufo, com razão, anota que as enunciações que não se relacionem diretamente com as disposições principais do negócio, sendo irrelevantes, meramente incidentes, ou explicações desnecessárias, não podem receber a mesma força probante das disposições principais, já que não se referem à parte essencial do ato negocial (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 577).

31 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 274.

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escrivão ou sob sua vigilância (e por ele subscritos), sendo considerados também documentos públicos. Há, ainda, a previsão dos traslados de autos, concertados por outro escrivão, considerados com a mesma força probante dos originais.32

No segmento dos documentos públicos, deve ser destacada a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, dotada de fé pública, fazendo “prova plena”33 da declaração nela contida (art. 215, caput, do Código Civil de 2002). Em regra, a escritura pública deve conter os requi-sitos previstos no §1º do referido art. 215: data e local de sua realização; reconhecimento da identidade e capacidade das partes e dos demais participantes do ato (representantes, intervenientes ou testemunhas); nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência das partes e demais participantes, e, em se tratando de pessoa casada, o regime de bens do casamento, o nome do cônjuge e filiação; manifes-tação clara da vontade das partes e dos demais participantes; menção à observância das exigências legais e fiscais referentes à legitimidade do ato praticado;34 declaração de ter sido a escritura lida na presença das partes e dos demais participantes, ou de que todos a leram; assinatura das partes e dos demais participantes, além do tabelião ou seu substituto legal, para fins de encerramento do ato. É obrigatório o emprego da língua nacional na redação da escritura pública (§3º do art. 215), sendo que, na eventualidade de algum participante não poder ou não souber

32 Caio Mário da Silva Pereira critica a manutenção de tal possibilidade no Código de 2002: “O conserto ou a conferência, realizada por outro escrivão, é praxe tabelioa que o Código de 1916 consagrava, e que o Código de 2002 deveria ter eliminado. A autenticidade do documento decorre da fé pública do serventuário que o subscreve. Não aumenta com a assinatura de um colega, e não desmerece pela ausência dela” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 594).

33 Há fundada crítica a tal expressão devido ao princípio contemporâneo da livre valoração da prova, remontando a expressão “prova plena” ao período em que se adotava o sistema da prova legal: “Falta manifestamente qualquer rigor científico” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e o Direito Processual. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 105). Alexandre Freitas Câmara também critica a expressão, lembrando, nos termos do art. 131 do Código de Processo Civil de 1973 – atual art. 371 do CPC/2015 –, que o direito brasileiro adota o sistema da persuasão racional (CÂMARA, Alexandre Freitas. Das relações entre o Código Civil e o Direito Processual Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 121).

34 Importante registrar a manifestação de José Carlos Moreira Alves sobre tal requisito: “Não se trata de formalidade inútil, mas de exigência no sentido de que o tabelião ateste que cumpriu com o dever, imposto por leis especiais, de fiscalização que elas lhe impõem, e cuja inobservância acarreta a ilegitimidade do ato, respondendo o tabelião inclusive pelo dano causado à parte prejudicada” (ALVES, José Carlos Moreira. A Parte Geral do Projeto de Código Civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 195).

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escrever, outra pessoa capaz assinará por ele, a rogo. Caso haja alguma parte que não saiba a língua nacional e o tabelião não compreenda o idioma estrangeiro em que ela se expressa, deverá participar do ato o tradutor público como intérprete ou, na impossibilidade de sua presença, outra pessoa que tenha idoneidade e conhecimento daquela língua alienígena suficiente para compreender a manifestação do estrangeiro (§4º do referido art. 215). Há a obrigatoriedade da presença de duas testemunhas para o fim de atestar a identidade de uma das partes quando o tabelião não a conhecer, nem houver possibilidade de sua identificação por documento de identidade idôneo.35

No que tange ao documento particular, deve o instrumento ser assinado pelo declarante ou seu representante (legal ou voluntário), sendo que, neste caso, deve ser declarado que firma o documento na representação dos interesses do representado.36 Não é válida a aposição de carimbo como firma ou assinatura, salvo nos casos expressamente ressalvados em lei especial.37 O art. 221 do Código Civil de 2002 – diferentemente do que acontecia com o art. 135 do Código Civil de 1916 – não exigiu a assinatura de duas testemunhas no documento particular, em claro tratamento diferenciado no que tange ao instru-mento público. Tal mudança se revela importante e atual, em perfeita consonância com a maior agilidade e celeridade das relações jurídicas modernas, sendo certo que, na prática, havia apenas a aposição de assinatura de duas testemunhas – meramente instrumentárias –, sem que soubessem do conteúdo do documento particular no sistema do Código Civil de 1916. Os documentos particulares devem ser exibidos no original, como regra, sendo que, em havendo apresentação de cópia, o questionamento a respeito de sua autenticidade exige a exibição do original. O documento particular, em não havendo exigência legal ou convencional quanto à forma pública, faz prova das obrigações conven-cionais de qualquer valor, produzindo efeitos entre as partes. Contudo,

35 Silvio Rodrigues sustenta que, com a disciplina legal do art. 215 do Código Civil de 2002, não há mais a exigência da presença de duas testemunhas para a validade da escritura pública, medida que vem a confirmar a maior relevância da substância do negócio do que a sua forma, salvo na hipótese em que o tabelião não conhecer qualquer dos declarantes (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 269).

36 São exemplos de documento particular a carta, o telegrama, o bilhete, o memorando ou qualquer outro escrito que se refira a determinado fato, assinado pela pessoa contra quem poderá ser produzida a prova (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 435).

37 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 595.

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para ter eficácia em relação a terceiros, o documento particular deverá ser levado a registro no Cartório de Títulos e Documentos, como ocorre nos casos de contrato de locação de imóvel residencial para o fim de ser reconhecido o direito de preferência do locatário na eventual venda do bem a terceiro. O art. 223 do Código Civil de 2002 prevê que a cópia de documento, devidamente conferida pelo tabelião, terá o mesmo valor probante da declaração de vontade constante do original, mas, havendo impugnação, deverá ser exibido o original, salvo no caso de título de crédito em que a lei ou as circunstâncias exigem a exibição do original do título para o exercício do direito (parágrafo único do art. 223).

Os documentos públicos são, logicamente, oponíveis às pessoas que participaram da sua formação e, em regra, também a terceiros, ressalvados os casos em que a lei exige o registro. Há fé pública na autenticidade do ato ou negócio jurídico realizado devido à sua reali-zação perante e pelo oficial público ou seu substituto legal. A doutrina costuma diferenciar a falsidade material (autenticidade do ato notarial sob o aspecto extrínseco) da falsidade ideológica (falta de correlação entre o conteúdo da declaração e a verdade a respeito) para o fim de somente considerar eventual responsabilidade do tabelião no primeiro caso.38

Quanto aos documentos elaborados no exterior, redigidos em língua estrangeira, exige o art. 224 do Código Civil de 2002 que sejam traduzidos para a língua portuguesa por tradutor oficial, onde houver, ou por tradutor juramentado em juízo, de modo a produzir efeitos no Brasil (art. 192 do Código de Processo Civil de 2015).39 Relativamente ao telegrama, o Código Civil de 2002 prevê, no art. 222, que tal documento faz prova mediante a conferência com o original; ocorre que o dispo-sitivo é omisso a respeito do telegrama fonado, do “fac-símile” (fax)40

38 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 596.

39 Há de ser ressalvada a regra constante do Decreto nº 2.067/96, que aprovou, no âmbito do MERCOSUL, o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional (Protocolo de Las Leñas), consoante o qual os documentos produzidos em espanhol, sendo públicos, têm o mesmo valor que os nacionais, independentemente de tradução. Corretamente, Fredie Didier Jr. defende a flexibilização da regra do art. 224 do Código Civil de 2002 para os documentos públicos produzidos nos países signatários do MERCOSUL (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 55). O CPC/2015, no art. 192, parágrafo único, admite, além da versão portuguesa do documento redigido em língua estrangeira firmada por tradutor juramentado, poder ser a versão em português tramitada pela via diplomática ou pela autoridade central, nos termos dos tratados e convenções internacionais aplicáveis.

40 A respeito do “fax”, Renan Lotufo lembra que a Lei nº 9.800/99 permite a transmissão de dados para a realização de atos processuais, de modo a salvaguardar os prazos, tendo a parte que se utiliza de tal expediente o dever de apresentar os originais em juízo no prazo

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e à comunicação eletrônica via e-mail, o que evidencia a defasagem da letra do Código de 2002 em relação aos avanços tecnológicos nessa matéria.41 O Código de Processo Civil de 2015 prevê que a forma impressa de mensagem eletrônica tem aptidão para fazer prova dos fatos representados (art. 422, caput e §3º). É prevista a viabilidade de as fotografias digitais e aquelas extraídas da rede mundial de compu-tadores fazerem prova das imagens nelas reproduzidas, sendo que, se houver impugnação, poder ser apresentada a respectiva autenticação eletrônica ou ser realizada perícia a esse respeito (art. 422, §1º). Tais previsões se revelam em sintonia com a modernização dos meios de documentação e, por isso, o CPC/2015 não poderia ignorá-los.42

O art. 225 do Código Civil inova o sistema de prova no direito civil ao tratar da regra referente às reproduções fotográficas, cinemato-gráficas, registros fonográficos, bem como quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou coisas.43 Há bastante semelhança com a regra contida no art. 422 do Código de Processo Civil de 2015, que também estabelece que tais reproduções fazem prova dos fatos ou das coisas representadas se a pessoa contra quem foi produzida tal prova não impugnar a autenticidade ou, se impugnar, a perícia realizada concluir pela sua exatidão. O Código de 2002, além dos outros meios de reprodução, se refere expressamente às reproduções eletrônicas, em sintonia com os avanços tecnológicos na área dos meios de comunicação e documentação mais céleres e ágeis. Caio Mário da Silva Pereira adverte, no entanto, a necessidade de cautela na valoração de tais reproduções e processos técnicos como meio de prova, salien-tando que é possível que a gravação do som, ao mesmo tempo em que permite a reprodução das conversas, pode também ensejar deturpações, supressão de trechos e enxerto de declarações que, eventualmente, podem não deixar qualquer vestígio.44 Há de ser feita a ressalva, nesta matéria, acerca das provas obtidas por meio ilícito, como no exemplo do “grampeamento” clandestino das conversações telefônicas sem a

de cinco dias, nos termos do art. 2º da referida lei (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 581).

41 OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 449.

42 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Novo Código de Processo Civil Anotado e Comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 237.

43 Correta é a crítica de Fredie Didier Jr. à expressão “prova plena” empregada no art. 225 do Código Civil de 2002, já que representa resquício do sistema da prova legal (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 39).

44 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 609.

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devida e necessária autorização judicial, que, nos termos do art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, é reputado prova obtida por meio ilícito e, portanto, inadmissível ou imprestável para o fim de comprovar determinado fato, ato ou negócio jurídico.

O Código de Processo Civil de 2015 trata, em seção específica, dos documentos eletrônicos, estabelecendo a necessidade de sua conversão à forma impressa e de verificação da autenticidade na forma da lei (art. 439). Como o documento é considerado qualquer meio para preservar a representação de um fato, uma imagem, um som, ideias, pensamentos através do decurso do tempo,45 atualmente é possível que ele seja baseado em suporte digital de modo a ser armazenado, autenticado e poder transmitir dados. O CPC/2015 remete a admissão dos documentos eletrônicos produzidos e conservados à legislação específica (art. 441), que, atualmente, consiste na Lei nº 11.419/2006 (sobre o processo eletrônico) e na Lei nº 12.682/2012 (sobre documento eletrônico). O art. 3º da Lei nº 12.682/2012 prevê que o documento eletrônico deve ser “assinado” com uso de certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). O juiz deverá valorar o documento eletrônico não convertido como prova,46 assegurando às partes o acesso ao seu teor (CPC/2015, art. 440).

Nos termos do art. 226 do Código Civil de 2002, os livros e fichas dos empresários individuais e das sociedades empresárias fazem prova contra as pessoas a que pertencem, desde que sejam escriturados sem vício extrínseco ou intrínseco, e venham a ser confirmados por outros subsídios,47 além de não haver exigência legal quanto à observância da escritura pública ou documento particular revestido de requisitos especiais. Tais livros e fichas também são considerados provas a favor do empresário ou da sociedade, desde que cumpridas as exigências legais. A matéria também tem previsão normativa nos arts. 417 a 421 do Código de Processo Civil de 2015. O art. 226 do Código Civil de 2002 resolve a polêmica anteriormente instaurada acerca do valor probante da prova resultante em lançamento feito nos denominados livros “comerciais” na vigência do Código Civil de 1916, sendo possível, com

45 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 719.

46 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Novo Código de Processo Civil: principais modificações. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 182.

47 Renan Lotufo ressalta que o tratamento da matéria referente à escrituração dos dados e informações pelos empresários e sociedades empresárias, e seu valor probante se relacionam à diretriz da unificação do Direito das Obrigações no bojo do Código Civil de 2002 (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 585).

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o novo sistema, substituir os livros previamente encadernados pelas fichas soltas, desde que atendidos critérios de segurança no lançamento e escrituração dos dados e informações. A prova relacionada aos livros e fichas dos empresários ou das sociedades empresárias serve como demonstração das operações, dos fatos, dos atos e negócios realizados no âmbito da atividade empresarial, não suprindo, no entanto, a prova especial quando esta for exigida. Nos termos do Código de Processo Civil de 2015, a exibição dos livros e documentos do empresário ou da sociedade somente será parcial, determinada de ofício pelo magistrado ou a requerimento de algum interessado no processo (art. 421 do Código de Processo), sendo que a exibição integral ocorrerá na eventualidade de ocorrer a liquidação da sociedade, sucessão por morte de sócio ou em outros casos previstos na lei.

5.3.3 Prova testemunhalO art. 212, inciso III, do Código Civil de 2002 arrola a testemunha

como outro meio de prova, sendo que os arts. 227 a 229 do mesmo texto regulam alguns aspectos importantes a respeito da prova testemunhal. A matéria vem regulada, no âmbito do Código de Processo Civil de 2015, nos arts. 442 a 463.

Registre-se, a respeito do tema, que somente fatos perceptíveis pelos sentidos (visão, audição, principalmente) podem ser objeto da prova testemunhal, já que somente aquilo que é visto e ouvido pode ser exposto por uma pessoa que tenha presenciado o fato jurídico (em sentido amplo). Testemunha é a pessoa humana ‒ excluída, pois, a pessoa jurídica ‒ que tenha condições de esclarecer a verdade sobre o ato ou o fato que se pretende demonstrar em razão de ter assistido ou, de algum modo, obtido informações de relevo para o esclarecimento do fato, ato ou negócio jurídico.48

Nos termos do art. 227, caput, do Código Civil de 2002, a prova exclusivamente testemunhal somente é admissível nos negócios jurídicos cujo valor não seja superior a dez vezes o maior salário mínimo vigente no Brasil ao tempo em que foram realizados. O parágrafo único do referido dispositivo prevê a possibilidade da prova testemunhal ser subsidiária ou complementar da prova documental, independentemente do valor

48 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Capacidade para testar, para testemunhar e para adquirir por testamento. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). Direito das Sucessões e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 224.

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do negócio. No Código Civil de 1916, havia referência a valor certo (dez mil cruzeiros), que, com o passar do tempo e as transformações da economia e do padrão monetário, se tornou sem qualquer expressão econômica. Em 1973, com o advento do Código de Processo Civil à época aprovado, o art. 401 estabeleceu a regra do décuplo do maior salário mínimo vigente no país, o que foi repetido no art. 227 do Código Civil de 2002. Tal disposição não foi repetida no Código de Processo Civil de 2015. Registre-se que, relativamente aos fatos jurídicos stricto sensu e também aos atos jurídicos lícitos (art. 185 do Código), a prova pode ser exclusivamente testemunhal, como nos exemplos das ações possessórias, de reparação de danos decorrentes de responsabilidade civil extracontratual, ações de separação ou divórcio, entre outras.49

No passado, havia convicção de que uma só testemunha não teria condições de demonstrar a ocorrência de determinado fato (testis unus, testis nullus), sendo que tal orientação foi, paulatinamente, cedendo ao entendimento de que, mais importante do que a quantidade, é a qualidade da prova testemunhal. Desse modo, pode um só testemunho ser suficiente para se alcançar a certeza do fato testemunhado, com a devida valoração feita pelo destinatário da prova – normalmente, o magistrado no litígio judicial – acerca da suficiência daquele único testemunho. O Código de Processo Civil de 2015 estabelece o número máximo de testemunhas que podem ser chamadas e ouvidas em juízo (art. 356, §6º), sem fixar número mínimo de testemunhas, sendo atual-mente uniforme o entendimento de que o sistema da persuasão racional do juiz permite considerar suficiente uma única testemunha para fins de comprovação de determinado fato.

De acordo com orientação doutrinária a respeito, as testemunhas se dividem em: a) testemunhas instrumentárias (ou testemunhas certifica-doras), a saber, aquelas que assistem e subscrevem o documento relativo ao ato para o qual foram chamadas; b) testemunhas judiciárias, ou seja, aquelas que declaram o que sabem e conhecem sobre determinados fatos controvertidos durante a fase de instrução em litígio judicial. A testemunha instrumentária, na sucessão testamentária, é a pessoa que presenciou a facção do testamento (ou ao menos sua apresentação à pessoa com atribuições de recebê-lo para depois cerrá-lo), normalmente

49 Há outra hipótese de prova exclusivamente testemunhal que tem previsão no art. 445 do Código de Processo Civil de 2015 – “quando o credor não pode ou não podia, moral ou materialmente, obter a prova escrita da obrigação, em casos como de parentesco, de depósito necessário ou de hospedagem em hotel ou em razão de práticas comerciais do local onde contraída a obrigação” (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 59).

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subscrevendo-o para assegurar que efetivamente não houve qualquer vício, podendo ser chamada para confirmar os fatos e atos presenciados, após a morte do testador, em juízo.

A temática da prova testemunhal inclui a incapacidade e a falta de legitimação para testar. Assim, enquanto a incapacidade se carac-teriza pela inaptidão da pessoa a praticar determinado ato ou negócio jurídico – inclusive ser testemunha –, a falta de legitimação (ou ilegiti-midade) decorre da proibição imposta pela lei de determinada pessoa intervir em uma determinada relação jurídica devido à posição jurídica (ou fática) peculiar.

Diante da diferença entre incapacidade e falta de legitimação, podem ser considerados os seguintes casos de incapacidade para teste-munhar, baseados em motivos de inaptidão resultantes de aspectos físicos ou psíquicos (art. 228, incisos I, II e III, do Código Civil de 2002): a) os menores de dezesseis anos, independentemente de sexo, levando em conta sua imaturidade; b) as pessoas que, por enfermidade ou retar-damento mental, não tiverem discernimento para a prática dos atos da vida civil devido à ausência de condições psíquicas para testemunhar; c) os cegos e os surdos, apenas quando a ciência do fato que se quer provar dependa dos sentidos que lhes faltam. Os analfabetos foram apontados por Itabaiana de Oliveira como incapazes de testemunhar, no campo da sucessão testamentária, devido à assinatura da testemunha na cédula testamentária ser considerada requisito essencial nas várias modalidades de testamento.50

Na condição de pessoas desprovidas de legitimação para teste-munhar, nos termos do art. 228, incisos IV e V, do Código Civil de 2002, devem ser considerados: a) o interessado no litígio que pode vir a ser instaurado,51 bem como o amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes do negócio ou ato jurídico; b) o cônjuge, os ascendentes, os descendentes e os colaterais, até o terceiro grau de qualquer das partes, seja por vínculo de parentesco – não restrito à ideia de parentesco natural

50 OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de direito das sucessões. 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987, p. 202.

51 Renan Lotufo tece interessante comentário a respeito do inciso IV, parte inicial, do art. 228, do Código Civil de 2002 (proibição de testemunhar ao interessado no litígio), considerando-o incompatível com a regra prevista no art. 405, §3º, inciso IV, do Código de Processo Civil de 1973, que o considerava suspeito de testemunhar. Nas suas palavras, “há que se entender que a limitação pela lei civil é revocatória da disposição do CPC” (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 589) e, desse modo, não há necessidade de haver contradita pela parte contrária na audiência, eis que o juiz, de ofício, não permitirá a oitiva de tal pessoa. O CPC de 2015 considera, igualmente, suspeito para testemunhar aquele que tiver interesse no litígio (art. 447, §3º, II).

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(em decorrência da consanguinidade), seja por vínculo de afinidade. Tais restrições para as pessoas indicadas serem testemunhas se fundamentam no interesse (direto ou indireto) que poderia conduzir à falta de isenção a respeito do que testemunhou, havendo risco de desvio da realidade no campo probatório.52 Desse modo e levando em conta a própria inserção do companheirismo no rol das famílias constitucionalmente protegidas (art. 226, §3º, da Constituição Federal), deve também o companheiro de qualquer das partes ser considerado pessoa desprovida de legitimação para testemunhar. O CPC de 2015 acolhe tal orientação ao expressa-mente incluir o companheiro de alguma das partes como impedido de testemunhar (art. 447, §2º, I). O parágrafo único do art. 228 do Código Civil inova ao prever a excepcional admissibilidade do testemunho das pessoas indicadas no caput do mesmo dispositivo a respeito da prova dos fatos que somente elas conheçam. Tal exceção já era contemplada no art. 405, §4º, do Código de Processo Civil de 1973 – atual art. 447, §4º, do CPC/2015 –, ocasião em que os depoimentos serão prestados independentemente de compromisso, devendo o juiz proceder à devida valoração para considerá-los no julgamento da causa.

É fundamental asseverar que tanto a incapacidade quanto a ilegitimidade para testemunhar devem ser aferidas no momento da produção da prova testemunhal. Outro aspecto a ser considerado é a possibilidade da presença de testemunhas extranumerárias – ou seja, aquelas que ultrapassam o limite mínimo das testemunhas instrumen-tárias, com reforço da segurança, aumento da cautela e aperfeiçoamento da prova. Caso haja alguma testemunha incapaz ou ilegítima, tal motivo não contaminará necessariamente o negócio realizado – como no exemplo do testamento – quando houver número suficiente mínimo de testemunhas capazes e dotadas de legitimação.

O art. 229 do Código Civil de 2002 elenca algumas situações que autorizam a manifestação de recusa da pessoa a servir como testemunha. Assim, aqueles que, por estado ou profissão, devem guardar segredo de determinado fato que souberam em razão de seu ofício ou ministério (como o advogado, o médico, o padre, parteira, o auditor fiscal, entre outros) podem se recusar a ser testemunha em juízo, sendo que alguns se encontram sujeitos ao sigilo profissional de acordo com o regulamento

52 Fredie Didier Jr. registra que o art. 228 do Código Civil de 2002 não repetiu a previsão do condenado por crime de falso testemunho e de pessoa que, por seus costumes, não for digno de fé como suspeitos de testemunhar, diversamente do que consta do art. 405, §3º, incisos I e II, do Código de Processo Civil, o que mereceu elogios do autor (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 65-67).

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de suas profissões ou ofícios. Além deles, também não são obrigadas a depor sobre fato as pessoas que não possam responder às questões sem desonra própria, de seu cônjuge, parente em grau sucessível ou amigo íntimo;53 no inciso II do art. 229, também deve ser considerada a desonra de seu companheiro para não obrigá-lo a ser testemunha.54 Finalmente, também estão excluídas da obrigação de depor as pessoas que porventura ficariam expostas (bem como as pessoas a elas ligadas no inciso II) a perigo de vida, de demanda judicial ou de dano patri-monial imediato (inciso III do art. 229).

5.3.4 Prova pericialA perícia vem arrolada no inciso V do art. 212 do Código Civil

de 2002, sendo regulada, em aspectos específicos, nos arts. 231 e 232 do mesmo texto legal. O Código de Processo Civil de 2015 regula a prova pericial nos arts. 464 a 480.

A perícia é meio de prova relacionado aos fatos que dependem de conhecimento técnico ou mais específico, não sendo próprio da percepção comum das pessoas em geral. No Código Civil de 1916, não se utilizou o termo “perícia” no art. 136, e sim as expressões exames, vistorias e arbitramento (incisos VI e VII), que, na realidade, são espécies de perícia. De acordo com o art. 464, caput, do Código de Processo Civil de 2015, a prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação, sendo caso de indeferimento da perícia nos casos em que a prova do fato não depender de conhecimento especial de técnico, for desnecessária devido à presença de outros meios de prova (falta de pertinência) ou quando a verificação do fato ou coisa for impraticável (impossibilidade material da realização da prova pericial).

O exame consiste na verificação ou apreciação de determinada coisa ou pessoa por pessoas especializadas (peritas) para permitir subministrar esclarecimentos fundamentais ao destinatário da prova, que, assim, poderá valorar. Daí o exame de sangue, o exame médico,

53 Carlos Santos de Oliveira anota, com propriedade, que os incisos II e III do art. 229 do Código de 2002 objetivam dar proteção à pessoa humana, em consonância com a orientação constitucional de preservação da dignidade da pessoa chamada a testemunhar como valor maior (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 439). No mesmo sentido, revela-se a doutrina de Renan Lotufo (LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 590).

54 Caio Mário da Silva Pereira assim justifica tal exceção à obrigação de testemunhar: “Não é razoável que, chamado como testemunha, o indivíduo incrimine-os, ou os exponha à execração no ambiente social em que vivem” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 601).

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o exame grafotécnico. A vistoria, por sua vez, consiste em inspeção ocular com o objetivo de apurar o estado de fato de determinada coisa, como, por exemplo, ter a mesma sofrido avaria (ou não), ou seu estado de conservação.55 O arbitramento é a perícia realizada em determinada coisa visando estimar o respectivo valor em dinheiro ou para o fim de ser fixado o correspondente pecuniário de determinada obrigação a ser cumprida. No processo judicial, há várias regras detalhadas acerca do modo de produção da prova pericial, com a previsão da quesitação, da possibilidade de atuação de assistentes técnicos, da elaboração e apresentação do laudo pericial, entre outros aspectos.

No campo da perícia, há novidades nas regras contidas nos arts. 231 e 232, ambos do Código Civil de 2002, que se referem, implicitamente, ao direito da personalidade referente à integridade físico-corporal. No curso da demanda, pode ocorrer de o juiz entender fundamental para o deslinde da controvérsia judicial a realização de um exame médico. Nos termos do art. 231 do Código Civil, é possível que a pessoa se recuse a submeter-se a exame médico, mas não poderá tal pessoa se aproveitar de sua oposição à realização do exame: o magistrado formará seu conven-cimento de acordo com o conjunto de provas ou de circunstâncias do caso concreto. Todavia, não se revela razoável e possível que a pessoa, sob o manto protetor do direito à integridade física, pratique abuso (art. 187 do Código Civil de 2002), sendo mister observar “a dosagem do comportamento do litigante” que se opõe ao exame.56 De qualquer modo, o art. 232 do Código Civil de 2002, encampando orientação do Supremo Tribunal Federal, prevê a possibilidade de a recusa à submissão à perícia médica suprir a prova que se pretendia obter com o próprio exame, como nos casos de recusa do investigado, nas ações de investi-gação de paternidade, à realização do exame do DNA.

O direito à identidade pessoal,57 com importantes reflexos no pleno desenvolvimento da pessoa humana no contexto de uma vida sadia, deve prevalecer, como regra, ao direito à integridade física do

55 Carlos Santos de Oliveira observa que a vistoria é modalidade de perícia não técnica, com o objetivo precípuo de descrever e relatar objetos e locais (OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 443). Silvio de Salvo Venosa exemplifica tal hipótese com a vistoria ad perpetuam rei memoriam, no campo da produção antecipada de provas, de modo a fixar fatos que podem, muito provavelmente, se modificar ou desaparecer com o tempo (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 567).

56 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 607.

57 A análise da questão foi feita de maneira mais detalhada no trabalho intitulado A Nova Filiação: o Biodireito e as Relações Parentais (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 901-917).

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investigado. No julgamento do Habeas Corpus nº 71.373-4-RS, o Supremo Tribunal Federal considerou, por maioria, a impossibilidade de o réu ser submetido, coercitivamente, ao exame pericial conhecido como exame de determinação da paternidade pelo método do DNA (ácido desoxirribonucleico) em ação de investigação de paternidade, sendo que houve manifestações de alguns ministros acerca do respeito do direito ao conhecimento da origem biológica.58 Importante notar que, naquele julgamento, houve a abordagem a respeito do “direito elementar que tem a pessoa de conhecer sua origem genética”, na expressão adotada pelo relator do recurso, o Ministro Francisco Resek.59 Na ponderação entre dois direitos fundamentais – direito à identidade e direito à integridade físico-corporal60 –, o relator considerou que “o sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim como a certeza que a prova pericial pode proporcionar à decisão do magistrado”61 e, em seguida, também afastou a suposta prevalência do direito à intimidade sobre o direito à identidade pessoal. É imperioso observar que o voto acima transcrito não prevaleceu na solução da questão concreta levada ao conhecimento do Poder Judiciário, mas representa, sem sombra de dúvida, parâmetro seguro para o trabalho do jurista na ponderação

58 O julgamento referido foi bastante comentado pela doutrina, valendo lembrar, entre outros, os seguintes trabalhos: MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame do DNA na investigação de paternidade e direitos da personalidade. In: BARRETO, Vicente (Org.). A Nova Família: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 169-194; MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa ao exame de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 217-233; LÔBO, Paulo Luiz Netto. O Exame de DNA e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Brasileira de Direito de Família, v. 1, n. 1. Porto Alegre: Síntese, abr./jun. 1999, p. 67-73; MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o Teste de Paternidade através do Exame do DNA em Direito Brasileiro – Direito Pós-Moderno à Descoberta da Origem? In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 27-60.

59 A íntegra do v. acórdão foi publicada na edição do seguinte trabalho: COUTO, Sérgio (Coord.). Nova Realidade do Direito de Família. t. 1. Rio de Janeiro: COAD-SC Editoria Jurídica, 1998, p. 110-117.

60 Sugerindo que seja considerado o princípio da proporcionalidade dos valores, José Renato Silva Martins e Margareth Vetis Zaganelli comentam que o valor maior a ser tutelado é o da personalidade e/ou identidade, devendo o intérprete procurar conciliar as normas constitucionais num sistema buscando a máxima efetividade (MARTINS, José Renato Silva; ZAGANELLI, Margareth Vetis. Recusa à realização do Exame de DNA na investigação de paternidade: direito à intimidade ou direito à identidade? In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 160).

61 Trecho do voto do Ministro-Relator Francisco Resek, publicado em: COUTO, Sérgio (Coord.) Nova Realidade do Direito de Família. t. 1. Rio de Janeiro: COAD-SC Editoria Jurídica, 1998, p. 113.

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dos interesses e bens jurídicos para o fim de verificar qual dos vários direitos ou interesses em conflito deve prevalecer. Neste mesmo julga-mento, o Ministro Carlos Velloso, ao proferir seu voto, expressamente se referiu ao maior interesse moral que deve ser reconhecido na civilização humana – “o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico” – e, em seguida, reconheceu que deve ser considerada no contexto do direito à dignidade a realização do exame de DNA para que a criança possa conhecer, com certeza, se a pessoa que se recusa a se submeter à perícia é ou não o seu genitor biológico.62

Tal direito à identidade se especializa no direito à historicidade pessoal, buscando compreender, por exemplo, suas diferenças físicas ou psíquicas em relação aos seus pais (jurídicos). A matéria que foi apreciada no julgamento referido dizia respeito à paternidade que era investigada, sendo que o réu se recusou a se submeter ao exame de DNA sob o argumento de que o direito à liberdade não permite que ele pudesse ser constrangido a fazer algo que ele não tinha vontade (diante da reserva absoluta de lei para criar deveres e obrigações), além do direito à integridade física. Como bem observou Maria Celina Bodin de Moraes, não se pode reconhecer a tutela integral da criança, em particular de sua dignidade, sem o conhecimento da identidade – verdadeira , e não presumida – dos seus pais: “Núcleo fundamental da origem de direitos a se agregarem no patrimônio do filho, sejam eles direitos da personalidade ou direitos de natureza patrimonial, a pater-nidade e a maternidade representam as únicas respostas possíveis ao questionamento humano acerca de quem somos e de onde viemos”.63 O conhecimento da verdade a respeito da sua própria origem biológica64 – e, consequentemente, da sua história – é direito fundamental que integra o conjunto dos direitos da personalidade. Deve-se reconhecer abusivo, no caso concreto, o ato praticado pelo investigado no sentido de se recusar a se submeter ao exame pericial. Na linha do pensamento doutrinário que deve ser aplicado a respeito, é necessário reconhecer

62 Trecho do voto do Ministro Carlos Velloso, publicado em: COUTO, Sérgio (Coord.) Nova Realidade do Direito de Família. t. 1. Rio de Janeiro: COAD-SC Editoria Jurídica, 1998, p. 115.

63 MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa ao exame de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 226-227.

64 Nas palavras de Claudia Lima Marques, “a bagagem genética é hoje parte da identidade de uma pessoa” (MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o Teste de Paternidade através do Exame do DNA em Direito Brasileiro – Direito Pós-Moderno à Descoberta da Origem? In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 45).

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que o princípio que veda o abuso do direito deve ser materialmente considerado para limitar internamente o próprio direito que, desse modo, somente poderá ser exercido pelo titular se e enquanto não for nocivo ao interesse social. O abuso do direito, portanto, serve como limite interno ao próprio direito e normalmente se verifica quando o exercício do direito, de maneira antissocial, concretiza séria e fundada ameaça à fruição dos direitos de outras pessoas, acarretando objetiva desproporção – sob o prisma axiológico – entre a utilidade do exercício do direito e as consequências que as demais pessoas precisam suportar.65

Diante da nova ordem civil-constitucional instaurada em 1988, especialmente relacionada à prevalência da pessoa humana sobre qualquer outro valor, é fundamental atribuir efetividade aos direitos da personalidade no seu conteúdo mais básico e essencial: a historicidade da pessoa para que ela possa gozar de uma vida sadia e desenvolver plenamente todas as suas potencialidades, priorizando o ser em detri-mento do ter. Assim, deve ser interpretado o art. 232 do Código Civil de 2002, no sentido de se considerar a paternidade provada quando efetivamente houver recusa à perícia médica determinada pelo juiz, devido à circunstância do comportamento do investigado, associado a outros elementos de prova, permitir a avaliação do conjunto de provas em desfavor do réu da ação investigatória. Contudo, na eventualidade de não existir outro elemento de prova, será fundamental realizar a devida ponderação no caso concreto e, desse modo, será possível reconhecer o abuso do direito para o fim de ser possível a condução coercitiva do réu para se submeter à perícia.66

Além da perícia, há a inspeção judicial, tratada exclusivamente no Código de Processo Civil (arts. 481 a 484), que consiste na verificação feita pelo próprio magistrado, pessoalmente, no exame de uma pessoa ou de uma coisa, para o fim de colher elementos importantes para a prova dos fatos tratados na causa. Uma vez encerrada a diligência,

65 MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa ao exame de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 231-232.

66 De acordo com a posição de Gisele Santos Fernandes Góes, o art. 232 do Código Civil de 2002 cuida de uma presunção simples (judicial ou hominis), havendo avaliação casuística da sua incidência, daí ser equivocada a orientação contida na Súmula nº 301 do Superior Tribunal de Justiça – in verbis: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade” –, já que a redação do enunciado jurisprudencial induz à conclusão de que se trataria de presunção legal ou relativa (GÓES, Gisele Santos Fernandes. O art. 232 do CC e a Súmula 301 do STJ – presunção legal ou judicial ou ficção legal? In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 236).

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deverá ser lavrado um auto circunstanciado, com menção a tudo aquilo que se mostrar útil para o julgamento do litígio (art. 484 do Código de Processo Civil de 2015). José Carlos Barbosa Moreira observa que, na inspeção judicial, o próprio juiz dirige de propósito sua visão ou audição a determinado alvo, comparecendo pessoalmente ao local para captar a informação relevante.67

5.4 Presunção

O Código Civil de 2002, no inciso IV do art. 212, elenca, entre os meios de prova, a presunção, repetindo a mesma regra contida no inciso V do art. 136 do Código Civil de 1916.68 Como já advertia a doutrina no período de vigência do Código Civil de 1916, a presunção não é prova, e sim um processo lógico através do qual se revela possível a descoberta do fato ocorrido. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, “presunção é a ilação que se tira de um fato certo, para prova de um fato desconhecido”.69 No fundamento da presunção se localiza um fato, provado e certo, ou seja, na comprovação de um “fato base”. Observa-se que três elementos são essenciais para haver verdadeira presunção: a) um fato provado (chamado, por alguns, fato conhecido); b) um fato não provado (também chamado de fato desconhecido); c) uma relação entre eles, admitida pelo juiz ou reconhecida na lei, em função da qual da ocorrência do primeiro se possa também inferir a do segundo.70

A doutrina costuma classificar a presunção em: a) presunção comum (praesumptio hominis), ou seja, aquela que se funda no que ordina-riamente acontece (advém de circunstâncias da vida), e não decorre da lei; b) presunção legal, isto é, aquela que decorre da lei de modo a

67 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 215. O autor critica o Código Civil de 2002 por não ter incluído a inspeção judicial no art. 212.

68 Nas lições de Fredie Didier Jr., o art. 212, IV, do Código Civil de 2002 se refere à prova indiciária, já que é a partir do indício que se elabora a presunção judicial (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 38).

69 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. I. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 605.

70 MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. União estável e posterior casamento, celebrado em 1999. Regime de bens. A “presunção” da Lei n. 9.278, de 1996. Revista Forense, v. 379, p. 187. O mesmo autor apresenta o seguinte esquema da estrutura fundamental das presunções: “fato provado + presunção (tomado o termo como atividade intelectiva) → fato presumido” (idem, ibidem).

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servir para considerar um fato ou situação tratada no ordenamento. Nos termos do art. 230 do Código Civil de 2002, pode ser considerada a presunção comum nos casos em que a prova testemunhal exclusiva é aceita.71 No âmbito das presunções legais, há outra divisão: i) presunção absoluta (praesumptio iuris et de iure) – aquela que não admite prova em contrário, como no exemplo da coisa soberanamente julgada; ii) presunção relativa (praesumptio iuris tantum) – a presunção que pode ser ilidida ou contrariada por prova em contrário. Na presunção absoluta, há um interesse de ordem pública em que a dedução feita pela lei seja verdadeira, impedindo qualquer tentativa contrária. Na presunção relativa, a ilação que a lei considera de um fato certo deve ser mantida enquanto não for contrariada por prova em contrário, como na comoriência (art. 8º do Código Civil de 2002). Com efeito, no caso da presunção relativa, ocorre a inversão do ônus da prova, como bem observa Silvio Rodrigues, já que, em havendo a presunção legal relativa a respeito de determinado fato, a outra parte deverá demonstrar não ser verdadeira tal circunstância.72

Na distinção entre as presunções absolutas e relativas, há funções próprias de cada uma de tais presunções legais. De acordo com a doutrina mais contemporânea, apenas as presunções relativas guardam pertinência com a prova, atuando no campo do ônus probatório: “As presunções relativas constituem fenômeno puramente processual: é no processo (e, mais precisamente no momento de julgar) que elas exercem sua verdadeira função”.73 Não há qualquer relevância das presunções relativas, em termos de eficácia, no campo do direito material, e sim na seara do direito processual, servindo como regras de julgamento.

As presunções absolutas, ao revés, desempenham função no plano do direito material. Ao invés da norma legal estabelecer, diretamente, que certo efeito jurídico se produz independentemente da presença de certo fato, prefere mencionar que tal fato se presume. Em outras palavras: a presunção absoluta tem sua eficácia no plano do direito material, e o esquema legal poderia tranquilamente evidenciar que o fato presumido se mostra irrelevante no que tange à produção de

71 Há fundada e procedente crítica de Fredie Didier Jr., que considera a regra do art. 230 do Código Civil de 2002 como um parâmetro, mas não deve ser considerado absoluto, nem inexorável (DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 73).

72 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 1. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 279.73 MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. União estável e posterior casamento, celebrado em

1999. Regime de bens. A “presunção” da Lei n. 9.278, de 1996. Revista Forense, v. 379, p. 188.

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determinado efeito jurídico.74 O exemplo do art. 550 do Código Civil de 1916 – referente à usucapião extraordinária de imóveis no sistema anterior –, em que o texto empregava o verbo “presumir” ao se referir à boa-fé e ao título do possuidor (hipótese de presunção absoluta), é emblemático, bastando observar que o art. 1.238 do Código Civil de 2002 (correspondente no novo sistema ao art. 550 do Código de 1916), ao alterar a redação anterior, estabeleceu que haverá a aquisição da propriedade imóvel, nas condições previstas, “independentemente de título e boa fé”.75

Não há que se confundir presunção com indício. O indício é o fato provado que, por si só, não é suficiente para caracterizar, por exemplo, a lesão como defeito do negócio jurídico. O indício é o meio de se alcançar uma presunção, ou seja, “o ponto de partida de onde, por inferências, se pode estabelecer uma presunção”.76

5.5 Nota conclusiva

Ainda que o texto do Código Civil de 2002 seja merecedor de várias críticas relacionadas ao tratamento dado a respeito da prova, o certo é que algumas das alterações realizadas tiveram claro objetivo de observar as diretrizes da Comissão Elaboradora e Revisora do texto projetado. Desse modo, os princípios norteadores e as regras gerais e específicas acerca da matéria objeto deste estudo – constantes do Código Civil de 2002 – foram mais bem apresentados no curso do Título V, do Livro III, da Parte Geral, reservado à prova. Houve a encampação de algumas orientações doutrinárias e orientações jurisprudenciais verifi-cadas no período de vigência do Código de 1916. De qualquer maneira, ainda deve ser empreendido intenso e árduo esforço interpretativo por parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras.

Há, no âmbito da temática relacionada à prova, importante capítulo referente ao fenômeno da constitucionalização do direito civil e do processo civil, conforme se pôde demonstrar no âmbito da recusa

74 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Anotações sobre o título “Da Prova” do Novo Código Civil. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 210: “(...) quando a lei consagra uma presunção absoluta (...) o que na verdade faz é tornar irrelevante, para a produção de determinado efeito jurídico, a presença deste ou daquele elemento ou requisito no esquema fático”.

75 MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. União estável e posterior casamento, celebrado em 1999. Regime de bens. A “presunção” da Lei nº 9.278, de 1996. Revista Forense, v. 379, p. 190.

76 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 437.

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à perícia médica, por exemplo, prestigiando-se os valores e princípios constitucionais que congregam a unidade, a harmonia e a coerência no sistema jurídico. Efetivamente, as normas jurídicas editadas com o Código Civil de 2002, apesar de toda a preocupação do legislador na cautela e zelo na sua elaboração, ainda se ressentem de certa ideologia associada à época das codificações oitocentistas, impondo que haja constante avaliação axiológica e teleológica das normas em consonância com seus efeitos na sociedade. O Código de Processo Civil de 2015, nesse particular, se revela mais consentâneo com a tábua de valores inserida na Constituição Federal de 1988, quando determina, logo no início (art. 1º), que o processo civil será ordenado, disciplinado e inter-pretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidas na Constituição Federal de 1988. É indubitável todo o esforço legislativo, neste início do século XXI, de encampar os princípios mais importantes, como o da eticidade, o da operabilidade e da socialidade na Parte Geral do Código Civil de 2002, além de se associar aos princípios constitu-cionais, como se verifica na Parte Especial do Código de Processo Civil de 2015 no tratamento sobre as provas no processo. Contudo, não se mostra possível, nos dias contemporâneos, retroceder ao período das codificações, com o hermetismo e a rigidez das normas jurídicas, sem qualquer análise e consideração axiológicas. Somente com o espírito e o pensamento voltados para a concretização dos valores e princípios fundamentais do ordenamento jurídico, localizados na Constituição Federal de 1988, será possível reconstruir o direito civil brasileiro. É fundamental reafirmar a perda do sentido individualista, materialista e patrimonialista do direito privado, que, em razão das transformações ocorridas, se caracteriza pela solidariedade e pela eticidade, desempe-nhando autêntica função social.77

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77 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 54.

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CAPÍTULO 6

TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS

Felipe Peixoto Braga NettoKarine Cysne Frota Adjafre

6.1 Introdução: contextualização e precisões conceituais

O referencial clássico associa à ilicitude civil a culpa, o dano e o dever de indenizar. São elementos sem os quais – pensa-se – é impossível a caracterização de um ilícito civil. Nesse contexto, “ato ilícito é, assim, a ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente, um preceito jurídico do direito privado, causando-se dano a outrem”.1 São fartas, nos livros de doutrina, as menções a tais conceitos quando se analisam os ilícitos civis. Aliás, não é sem significação o uso, quase sempre no singular, do termo ilícito civil, e não ilícitos civis, expressão essa que denota um gênero com várias espécies. Entendemos que nem a culpa, nem o dano, nem o dever de indenizar caracterizam a ilicitude civil. Estão eventualmente, não necessariamente, ligados à ilicitude civil. Convém formular uma análise crítica da concepção que vê os ilícitos como atos voluntários, adjetivados pela culpa, pelo dano e pela eficácia ressarcitória. O direito material, acorde com os valores constitucionais, está redimensionando seus conceitos e categorias, em ordem a suprimir o obsoleto e o anacrônico, prestigiando os valores que projetam a pessoa humana em suas múltiplas dimensões.

1 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 415.

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Uma compreensão teórica mais profunda, em nosso juízo, não pode prescindir da tentativa de conferir à categoria uma maior adequação valorativa e uma maior adequação empírica. O que isso significa? Primeiro, por adequação valorativa entendemos uma efetiva compreensão do direito civil – ilícitos inclusive – à luz dos valores, princípios e normas constitucionais. Essa é uma perspectiva, por assim dizer, substantiva, que remodela significativamente o direito civil, com notáveis mudanças hermenêuticas. Segundo, por adequação empírica entendemos o trabalho, analítico e amplo, de pensar as espécies possíveis de ilícitos civis. Apenas para exemplificar, é possível identificar no sistema jurídico ilícitos civis cujas eficácias não se resumem ao dever de indenizar. Então, tem inegável interesse teórico conhecer essas modalidades possíveis de eficácia, inclusive para melhor operacionalizar a aplicação do direito.

O ilícito civil, se perspectivado em termos contemporâneos, ostenta uma permeabilidade aos valores que é inédita aos olhos clássicos. Possui uma mobilidade que lhe permite transitar pelo sistema jurídico incorporando referências axiológicas e as traduzindo em sanções, em ordem a assegurar, de forma aberta e plural, a preponderância dos valores fundamentais no sistema do direito civil. É possível perceber – no contexto brevemente descrito – que o ilícito civil é um tema fascinante – repleto, porém, de ambiguidades. Algumas precisões conceituais, porém, se impõem desde já. A doutrina nacional, em sua ampla maioria, identifica ilícito civil com responsabilidade civil. Imagina, portanto, que ilícitos civis são aqueles previstos no Código Civil (Código Civil, arts. 186 e 187), cujo efeito é, sempre e apenas, o dever de indenizar (Código Civil, art. 927). Tal visão, segundo cremos, é parcial e não dá conta da realidade do mundo jurídico. Na verdade, bem vistas as coisas, os ilícitos civis perfazem um rico gênero, variado e multiforme, cujos contornos não aceitam a tradução dogmática oferecida pela doutrina clássica, ainda hoje repetida nas novas edições.

Outro aspecto relevante – que independe do que dissemos no parágrafo anterior – é que está havendo, atualmente, uma redescoberta das funções da responsabilidade civil – um tema que estranhamente ficou ausente do debate por muito tempo. A função preventiva da responsabilidade civil tem sido objeto de valiosos estudos neste século. Convém frisar que:

A função preventiva da responsabilidade civil tanto pode ser instru-mentalizada pela sanção punitiva, como pela sanção reparatória, ex-clusivamente nos casos em que esta se aparta do mecanismo da tutela ressarcitória e se apropria da tutela restituitória, como regra de incentivo

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à reação aos ilícitos, superando o plano intersubjetivo da neutralização de danos para valorizar a função de desestímulo de comportamentos nocivos a toda a sociedade.2

Ainda outra observação relevante, que (também) independe das anteriores: não se deve confundir excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa e exercício regular de direito) com as excludentes de responsabilidade civil (caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima). As excludentes de ilicitude retiram a contra-riedade ao direito da conduta, mas não isentam, de modo absoluto, o responsável pela reparação dos danos – no estado de necessidade o ato, apesar de lícito, é indenizável (Código Civil, art. 188, II; art. 929). Na legítima defesa com erro na execução (aberratio ictus), embora lícita, gera o dever de indenizar os terceiros atingidos (Código Civil, art. 188, I; art. 930, parágrafo único). Já as excludentes de responsabilidade civil, por romperem o nexo de causalidade, afastam o próprio dever de reparar os danos (durante a viagem de ônibus, o assalto à mão armada, que causa danos aos passageiros, é, segundo sólida jurisprudência – em relação a qual guardamos reserva – caso fortuito externo, e não gera responsabilidade da empresa de transporte).

Existem, portanto, fatos jurídicos lícitos que provocam dever de indenizar3 – estado de necessidade, por exemplo, na linha de disposição legal expressa (Código Civil, art. 188, II; art. 929). Existem, também, conforme veremos adiante, fatos jurídicos ilícitos cuja eficácia não é o dever de indenizar. As sanções civis, desse modo, não se resumem no dever de indenizar ou ressarcir, podendo também compreender: a) a autorização para a prática de certos atos pelo ofendido, b) a perda de certas situações jurídicas (direitos, pretensões e ações) ou c) a neutralização da eficácia jurídica (não produção dos efeitos jurídicos como sanção).

O CPC/2015, de modo correto, encarou o ilícito civil de modo amplo, prevendo no artigo 497:

Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado práti-co equivalente. Parágrafo único: Para a concessão da tutela específica

2 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 109.

3 Expressiva a ponderação de Orizombo Nonato: “Contudo é possível, diante deles, afirmar, como o egrégio Clóvis, que a ideia de dano ressarcível é, em nosso direito, mais ampla do que a de ato ilícito” (Apud SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 69).

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destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

Ou seja, o conceito de ilícito civil não está vinculado ao dano ou à culpa. Também não é possível vincular, de forma absoluta, a ilicitude à reparação, seja porque existe, no atual sistema civil-material, uma tutela preventiva, seja porque existe, na própria tutela repressiva clássica, ilícitos cujos efeitos não se enquadram na reparação. Sejamos mais claros. A ilicitude civil, tradicionalmente, é perspectivada como uma condição por cujo intermédio tem lugar uma sanção, representada, com exclusi-vidade, segundo se pensa, pela reparação dos danos causados. Estaria correta tal perspectiva se proposta com exclusividade? A resposta só pode ser negativa. A ilicitude civil, se vista com olhos de hoje, apresenta-se multiforme, aberta e plural, sendo inadequadas as tentativas, muito comuns no passado, de restringi-la a aspectos estáticos e estanques.

6.2 Ilícito civil é sinônimo de responsabilidade civil?

A doutrina nacional, em sua amplíssima maioria, identifica ilícito civil com responsabilidade civil. Imagina, portanto, que ilícitos civis são aqueles previstos no Código Civil (arts. 186 e 187), cujo efeito é, sempre e apenas, o dever de indenizar (art. 927). Acreditamos que tal visão é parcial e não dá conta da realidade do mundo jurídico. Na verdade, bem vistas as coisas, os ilícitos civis perfazem um rico gênero, variado e multiforme, cujos contornos não aceitam a tradução dogmática oferecida pela doutrina clássica, ainda hoje repetida nas novas edições. Não cabe, portanto, como dissemos, confundir a categoria (ilícitos civis) com um de seus efeitos (responsabilidade civil).

6.2.1 Uma categoria com eficácia única?Uma das mais conhecidas associações, que se faz a respeito dos

ilícitos, diz respeito aos efeitos por eles produzidos. De fato, sempre que se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o dever de indenizar, como eficácia naturalmente produzida. Essa é uma ideia que nasceu muito provavelmente da definição de ilícito do Código Civil de 1916, que relacionou, de forma peremptória, ilícito ao dever de indenizar como eficácia supostamente única: “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Tal

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disposição, que praticamente exaure o Título Dos Atos Ilícitos do Código Civil de 1916, sempre foi lida como se esgotasse as possibilidades de ilícitos no campo do direito civil.

Bem sintomática dessa crença foi a postura de Clóvis Beviláqua. O ilustre jurista, quando das discussões para a feitura do nosso Código Civil de 1916, pugnava contra a inclusão legislativa dos ilícitos num título único, ao argumento que lhes faltava “a necessária amplitude conceitual”.4 Tal posição – que restou vencida quando da redação do Código – reflete bem a mentalidade dos juristas a respeito da matéria, que não foi sequer encarada como um problema que merecesse cogitação teórica.

O Código Civil de 2002 se referiu aos atos ilícitos por intermédio de duas cláusulas gerais. O art. 186 prescreve: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.5 O art. 187 tem a seguinte redação: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Consagrou-se, com esse dispositivo, a teoria do abuso de direito, velha conhecida da jurisprudência, cuja caracterização como ilícito, todavia, era polêmica.6 O Código Civil, mais adiante, no art. 927, estatui: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (lembrando que o suporte fático e o preceito – determinação de efeitos – de determinada norma podem não estar no mesmo dispositivo legal, como é o caso). É fácil perceber que o Código Civil de 2002, se interpretado literalmente, conduz à conclusão que a única eficácia possível, derivada dos ilícitos civil, é a obrigação de indenizar os danos causados.

6.2.2 Críticas à concepção da eficácia únicaDissemos que o ilícito civil, tradicionalmente, apareceu identi-

ficado com a responsabilidade civil. São comuns, destarte, ponderações

4 BEVILÁQUA, Clóvis. O Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. 5 Trata-se, por certo, da mais conhecida cláusula geral do direito privado brasileiro, a cláusula

geral da responsabilidade civil subjetiva (CC/1916, art. 159; CC/2002, art. 186). 6 O art. 187 está informado pela ideia de relatividade dos direitos. Isto é, os direitos flexibilizam-

se mutuamente; não há direito isolado, mas dentro do corpo social, onde outros direitos convivem. Pontes de Miranda observou que “repugna à consciência moderna a ilimitabilidade no exercício do direito; já não nos servem mais as fórmulas absolutas do direito romano” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p. 62).

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no sentido da absoluta indissociabilidade entre os atos ilícitos civis e a responsabilidade civil.7 Nesta concepção – que chamaremos, por brevidade, de clássica – o ilícito é pensado e tratado, sempre e sem exceção, como um apêndice da responsabilidade civil.

Talvez a confusão se explique pela identificação entre o gênero – os ilícitos civis – e uma espécie – o ato ilícito indenizante. Sempre que se falava no tema, invocava-se essa espécie, e tudo que fosse carac-terística sua se atribuía, em descabida generalização, à classe, ao gênero ilícito. E como essa espécie é geradora de responsabilidade civil, nasceu outra identificação: ilícito civil é igual à responsabilidade civil. No entanto, a experiência jurídica atual desmente essa identi-ficação entre ilícito civil e responsabilidade civil. Não é possível, teoricamente, manter a tradicional associação.8 Primeiro, responsa-bilidade civil é efeito, não é causa. Seu isolamento temático induz a certas análises equivocadas, que ofuscam o fato jurídico, lícito ou ilícito, que origina o dever de indenizar. Depois, uma abordagem restrita à responsabilidade civil necessariamente oblitera as eficácias não indenizantes dos ilícitos civis.

Seria, mutatis mutandis, o mesmo que confundir uma fábrica, produtora de um largo espectro de produtos, com apenas uma de suas produções. A nosso sentir, tal postura empobrece, inexplicavelmente, o contexto dos ilícitos, reduzindo o gênero ao estudo dos efeitos de uma de suas espécies. A responsabilidade civil – cabe sempre repetir – é efeito de certos ilícitos civis, não de todos. Existem, portanto, ilícitos civis que não produzem, como eficácia, o dever de indenizar. Nada, nestes termos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica que obscureça as diferenças significativas existentes.

No direito dos oitocentos, cujo paradigma legislativo foi tão bem traduzido pelo nosso Código Civil de 1916, os ilícitos já não ostentavam apenas a eficácia indenizante. Essa foi uma falha de perspectiva advinda do apego ao literalismo do Código. Existiam então – como ainda hoje existem – ilícitos com efeitos que consistem em autorizações, ou ilícitos

7 Mesmo entre os maiores juristas, como, por exemplo: GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 417.

8 Pontes de Miranda, escrevendo em meados do século passado, já consignava: “Há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar” (Tratado de Direito Privado. t. II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 201). Aliás, ainda antes, em 1928, no seu livro Fontes e Evolução do Direito Civil brasileiro, Pontes já intuía que os ilícitos não se esgotavam no dever de indenizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos adotada pelo Código Civil, bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem delitos (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928, p. 176).

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que implicam na perda de direitos em relação a quem os praticou. Por outro lado, o dever de indenizar pode resultar de ato lícito. O dever de indenizar resultante de ato praticado em estado de necessidade não importa em resultante de ato ilícito, porquanto a contrariedade ao direito foi pré-excluída. Assim, “há indenizabilidade – excepcionalmente, é certo – que não resulta da ilicitude. Reparam-se danos que se causaram sem que os atos, de que resultaram, sejam ilícitos”.9

Ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de indenizar, isso, decerto, não pode servir como escusa para que se lancem as demais espécies para debaixo do tapete. Se a eficácia indenizante não exaure o espectro das eficácias possíveis dos ilícitos civis, está evidenciada a inconveniência do critério clássico. É interes-sante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Esse dever, bem vistas as coisas, representa a eficácia de uma espécie de ilícito – o ilícito indenizante –, sem que possa ser tido, ademais, como propriedade exclusiva sua, mercê da possibilidade de surgir como eficácia produzida por um ato lícito.

6.2.3 Convivendo com as outras eficáciasA responsabilidade civil é tema cuja relevância não pode ser

posta em dúvida. Experimenta, atualmente, notável evolução, com o aprofundamento matizado de seu estudo, sendo visível o surgimento, a cada dia, de temas inéditos a reclamar ponderações e análises.10 O que nos incomoda, entretanto, é a redução indevida dos ilícitos civis à responsabilidade civil. Seja como for, parece fundamental, para a adequada visualização do problema, conhecer as espécies ilícitas no direito civil brasileiro (não se trata de gênero com espécie única). Assim, sob o ângulo da eficácia produzida, os atos ilícitos no direito civil podem ser classificados11 em: a) ilícito indenizante; b) ilícito caducificante; c) ilícito invalidante; d) ilícito autorizante. Vejamos, muito brevemente, cada uma das espécies.

9 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p. 197.

10 Pedimos licença para remeter à obra onde o tema é fartamente desenvolvido (FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017).

11 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 89.

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6.2.3.1 Ilícito indenizanteÉ o ilícito que produz como eficácia o dever de indenizar.

Ressalte-se, porém, que, no dever de indenizar, pode estar compreendido o dever de ressarcir, que, aliás, deve ser priorizado. Denota, de qualquer sorte, o dever do agressor de recompor a esfera jurídica do agredido. É tão conhecido e tão comum que nos dispensaremos de maiores referências a propósito. Diga-se apenas que quem, culposamente, causa danos a outrem, comete ato ilícito e deverá repará-los (Código Civil, art. 186). Os ilícitos apresentam, como eficácia preponderante no direito civil, o dever de reparar os danos causados. O Código Civil reconheceu essa realidade e definiu, no art. 927, que: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Portanto, os ilícitos civis, causando danos, obrigam aquele que os provocou a repará-los. É, sob o prisma sociológico, o efeito que presumivelmente mais importa ao ofendido, porquanto possibilita restaurar, na medida do possível, seu patrimônio jurídico, atingido com a violação. As demais eficácias, em princípio, não se prestam a isso, senão indiretamente.

6.2.3.2 Ilícito caducificanteNo ilícito caducificante, o sistema relaciona ao ilícito a perda de

um direito;12 aliás, mais propriamente, a perda de qualquer categoria eficacial.13 Assim, decorre do ilícito, de modo direto e imediato, a perda de um direito.

O Código Civil prevê no art. 1.638: “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o filho; II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;14 IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente” (havia, no Código Civil de 1916, dispositivo correspondente: art. 395). Assim, o pai (ou a mãe) que espanque o filho pode perder o poder familiar. Se a mãe de recém-nascido o abandona,

12 No direito brasileiro, Pontes de Miranda percebeu, precursoramente, que ilícitos civis podem ensejar a caducidade. (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 216).

13 Partido da premissa, forte em Pontes de Miranda, de que a relação jurídica está no plano da eficácia, integrada, no seu esquema integral, por direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e situação de acionado (ação de direito material) e exceção e situação de exceptuado.

14 Escrevemos em outra ocasião: “Moral e bons costumes é uma expressão cujo conteúdo remete a uma moral oficial, linear e preconceituosa. Andaria melhor o Código Civil se não a trouxesse. A jurisprudência, no entanto, saberá interpretar o termo em consonância com a Constituição, traduzindo os padrões comportamentais plurais da sociedade contemporânea”. Há outras menções no Código Civil aos bons costumes, como, por exemplo, no art. 187.

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de igual modo a sanção poderá se fazer presente. Trata-se, na espécie, de um ilícito civil, sem prejuízo do ilícito penal porventura caracterizado (lembremos que, se o efeito – perda do poder familiar – é civil, o fato jurídico que originou esse efeito também o é). Sem prejuízo, repita-se, do fato configurar, simultaneamente, suporte fático de ilícito penal.

Os ilícitos civis – cabe insistir – podem dar ensejo à perda de direitos ou de outras categorias de eficácia. Apenas para exemplificar, o herdeiro que sonegar bens, não os levando à colação, perde o direito que sobre eles pudesse ter. Quer dizer, a perda de um direito como efeito de um ilícito civil. Digamos que um dos filhos, que mora com o pai, rico colecionador de arte, esconde dos irmãos alguns quadros após a morte do pai, evitando que esses bens entrem para o inventário. Se assim agir, escondendo bens, perderá o direito sobre eles. Trata-se da clássica sanção de sonegados (pena civil que só pode ser imposta judicialmente, em ação proposta pelos herdeiros ou por credores da herança: Código Civil, art. 1.994).

O contraente que pratica ato proibido pelo contrato pode perder certos direitos, como o direito à resolução, o direito à posse de deter-minado bem, etc. Tal perda não decorrerá de um ato inválido, mas apenas de um ilícito ao qual o sistema imputa, diretamente, a perda de um direito, mercê do ato praticado. Outrossim, a posse de má-fé é um ilícito civil cujo efeito é a perda – ilícito caducificante, portanto – de certas benfeitorias porventura realizadas (Código Civil, art. 1.220). Tal perda, importa frisar, não decorre de um ato inválido, mas apenas de um ilícito ao qual o sistema imputa, diretamente, a perda de um direito, mercê do ato praticado. Sempre, portanto, que a sanção civil consistir, de forma direta e imediata, na perda de um direito, o ilícito é caducificante.15 Dissemos de forma direta e imediata porquanto os atos inválidos podem, eventualmente, ter sua eficácia neutralizada, mas será de forma oblíqua, como consequência da invalidade, o que não ocorre nos caducificantes.

6.2.3.3 Ilícito autorizanteSão os ilícitos cujo efeito consiste na autorização, facultada pelo

sistema, ao ofendido (ou mesmo outrem) para praticar, ou não, deter-minado ato. Cabe sempre relembrar que as sanções, em direito civil, não se resumem ao ressarcimento, à reparação ou à indenização. Existem

15 Importa sempre frisar que caducidade é eficácia (Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 205).

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outros efeitos, além do dever de indenizar, que podem resultar dos ilícitos civis. Desde que se perceba, com clareza, essa realidade, que emerge do próprio direito legislado, é possível dimensionar, com mais exatidão, os atos ilícitos e perceber-lhes os limites e as possibilidades.16 Não se deve negar, conceitualmente, que certas autorizações sejam concedidas através do Judiciário (embora isso não seja necessário em todos os casos).

No ilícito autorizante, o ordenamento relaciona ao ilícito uma autorização que, sem o ilícito, não existiria. Nasce, geralmente para o ofendido, a possibilidade de praticar certo ato como efeito do ato ilícito. Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um ilícito civil cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o ordenamento faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver (art. 557, Código Civil). A revogação, em linha de princípio, não seria possível. Sua possibilidade surge como eficácia do ilícito praticado. O doador, mercê do ilícito, pode revogar, se assim lhe aprouver, o negócio jurídico.

Imaginemos que alguém doe uma fazenda para seu afilhado. O afilhado (donatário), porém, é ingrato para com o doador (conceito de ingratidão de acordo com a lei civil). O Código Civil autoriza o doador, nesse caso, a revogar, caso deseje, a doação válida e formalizada. Qual o ilícito? A ingratidão do donatário. Qual o efeito? A possibilidade de revogação da doação. Cabe repetir que essa possibilidade de revogação da doação – autorização – só existe porque o ilícito foi praticado. Sem o ilícito, ela não existiria. É mais uma demonstração de que os efeitos dos ilícitos civis são múltiplos, não se resumem a uma eficácia única.

Formulemos outras hipóteses. Uma pessoa tem sua residência invadida por desconhecidos. Poderá, caso queira, expulsar à força os invasores, desde que o faça logo e sem excessos. Trata-se de um dos poucos casos de exceção ao monopólio estatal no uso legítimo da força, ao lado da legítima defesa. O Código Civil, art. 1.210, §1º, regula a situação descrita: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. Trata-se, novamente, de uma autorização (expulsar os invasores) que o Código Civil disponibiliza a quem sofre um ilícito civil. Outrossim, a possibilidade de resolução do negócio jurídico bilateral em razão do inadimplemento é uma autori-zação que decorre de um ilícito. Assim, se, por exemplo, num contrato,

16 Cf. DIDIER, Fredie. Curso de Processo Civil. v. I. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 252.

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o devedor praticar o ato a cuja abstenção se comprometera, há violação do acordo, e surge, para o credor, a possibilidade de resolver o contrato, sem prejuízo de outros efeitos, igualmente possíveis.

É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre ilícitos civis e o dever de indenizar.

6.2.3.4 Ilícito invalidanteA grande questão que aqui se põe não é tanto identificar os

inválidos, mas caracterizá-los como lícitos ou ilícitos. A doutrina tradicional, mercê da identificação do ilícito civil com uma de suas espécies, afastou, sem maiores discussões, os inválidos da seara ilícita. Assim, no direito civil, salvo em tópicas manifestações, os inválidos são considerados lícitos, ainda que por exclusão.

Há juristas, contudo, que distam dessa orientação, em posição que julgamos mais adequada (considerando os inválidos como ilícitos). Basta dizer, aqui, que inválido, em direito civil, é o ato (em sentido amplo) cuja ausência do requisito ou presença do defeito compromete sua validade. É preciso, nesse ponto, firmar uma premissa: invalidade é sanção.17 É uma sanção atípica se nos atermos ao senso comum de que sanção, em direito civil, corresponde, fundamentalmente, à reparação dos danos causados, mormente pecuniários.

Não há, de fato, razão jurídica a secundar a peremptória exclusão dos inválidos da seara dos ilícitos civis, ou seja, a tese tradicional pugna pela conformidade ao direito de atos forjados à base de dolo, coação, etc. Como, por exemplo, defender o caráter lícito de um contrato em cujo firmamento um dos contraentes foi coagido? Ora, a coação, ainda que exercida por terceiro, estranho à relação jurídica contratual, é causa de anulação do negócio, mesmo que as partes desconheçam sua existência. Não há razão jurídica para postular a conformidade ao direito de um ato tal. Eles são contrários ao direito e, como tais, ilícitos.

A sanção, aqui, será a possível neutralização dos efeitos produ-zidos pelo contrato em virtude de ato contrário ao direito. Figure-se, outrossim, a hipótese, bastante comum, de um bem gravado com a cláusula da inalienabilidade. O negócio jurídico que intenta aliená-lo é nulo, e o efeito do ilícito, no caso, é impedir a alienação, neutralizando os efeitos do negócio, de forma a resguardar o interesse objetivado na cláusula. Cabe lembrar que o dualismo lícito/ilícito esgota, sob o

17 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p. 104.

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prisma da conformidade ou contrariedade ao direito, as possibilidades de categorização dos atos jurídicos. Destarte, o que não for lícito será ilícito, e vice-versa. Portanto, os que perfilham a tese de que somente são ilícitos os atos cujo efeito é a indenização aceitam, de modo oblíquo, a conformidade ao direito de atos realizados por pessoas coagidas ou contratos firmados com objetos ilícitos, por exemplo.

Em alguns casos facilmente imagináveis, os atos inválidos, se o sistema não lhes podasse os efeitos, levariam o direito a situações vexatórias. Pense-se no jornal ou empresa de comunicação que realize negócio com político, comprometendo-se, sob certa paga, a não divulgar notícias de corrupção que o envolvam. Cometem, por óbvio, ato ilícito, realizando acordo nulo, que não produz, obviamente, sob o prisma jurídico, os efeitos pretendidos. Os atos inválidos funcionam, por vezes, como uma espécie de rede de segurança, impedindo a eficácia indesejada pelo sistema jurídico. Nos inválidos, apenas ocorre a negativa da produção dos efeitos do ato ilícito realizado sem que se perca direito já integrante do patrimônio jurídico (caducificantes), sem que surja autorização para praticar um ato (autorizantes) ou sem que surja, necessariamente, o dever de indenizar (indenizantes).

6.3 Abuso de direito ou ilícito funcional

A teoria do abuso de direito somente surgiu no final do século XIX como superação de concepções individualistas que entendiam o direito subjetivo como poder da vontade e expressão maior da liberdade individual e, assim, ilimitado. Ela resulta – como nota Orlando Gomes – de uma concepção relativista dos direitos;18 aliás, os conceitos funcionais aparecem, com frequência, nas mais diversas searas jurídicas, sendo nota indissociável do direito contemporâneo.

Desde a clássica obra de Bobbio, sublinhando a necessidade do abandono de uma concepção puramente estrutural em favor de uma postura funcional,19 é evidente a importância de semelhante perspectiva. Há uma tendência difusa, porém perceptível, no direito contemporâneo de tolerar cada vez menos a dimensão puramente formal dos conceitos. Aliás, conforme ponderou Wieacker, uma das notas próprias do Estado Social é a relativização dos direitos, à luz

18 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 131. 19 BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione. Milano: Edizioni di Comunitá, 1977.

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de sua função social.20 Atualmente, mercê da força, no direito atual, das diretrizes constitucionais pertinentes, é algo fora de dúvida que a utilização de um direito não pode se prestar a fins opostos àqueles que orientaram seu nascimento, tampouco podem colidir com princípios maiores, se em choque.

Por exemplo, o produto adequado, ao qual o fornecedor está obrigado, não é, apenas, aquele que cumpra as normas técnicas perti-nentes. Vê-se que o direito atual vai além: para que o produto seja escorreito, livre de vícios, ele deve ser adequado ao fim a que se propõe. Funcionaliza-se, assim, o conceito de produto, evidenciando-se a insuficiência de se respeitar, estática e estruturalmente, as regras a ele aplicáveis. É necessário que ele satisfaça o consumidor nos fins a que se propôs. O fornecedor, seja ele público ou privado, deve qualidade, segurança, presteza, adequação, pontualidade etc.

Embora a funcionalidade, sendo um conceito social, se preste a interpretações diversas, comportando certa dose de fluidez, é inegável a utilidade do instituto, cuja feição há de surgir dos casos concretos, segundo standards valorativos consensuais. No campo negocial, observa-se, com perspicácia, a função de controle da boa-fé objetiva (e as outras funções, que já vimos). Com ela, tem-se valioso mecanismo operacional para impedir ações ou omissões abusivas antes, durante ou depois da relação negocial.21 Nesse contexto, denominamos ilícito funcional o ilícito que surge do exercício dos direitos. Não haveria aqui, a princípio, contrariedade ao direito, porquanto o ato não figura entre aqueles vedados pelo ordenamento. A contrariedade surge quando há uma distorção funcional, ou seja, o direito é exercido de maneira desconforme com os padrões aceitos como razoáveis para a utilização de uma faculdade jurídica (a teoria do abuso de direito permite vislumbrar uma via intermediária entre o permitido e o proibido, trazendo maior fluidez conceitual para o ilícito civil, o que é positivo).

A cada direito conferido pelo sistema, corresponde um perfil, mais ou menos nítido, que fornece as proporções de sua utilização. Se ocorre um desvio no perfil objetivo do direito, cessa a tutela e passa a haver uma situação contrária ao direito. Os padrões ético-sociais de

20 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967, p. 624.

21 Judith Martins-Costa anota que a boa-fé objetiva implica “em cabal limitação do exercício de direitos abusivos que contrariam o valor maior da solidariedade da vida social” (MARTINS-COSTA, Judith. A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões em torno de uma notícia jornalística. Revista do Consumidor, São Paulo: RT, São Paulo, 1992, p. 155).

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comportamento, devidamente contextualizados, aliados às circunstâncias do caso, definirão quando uma conduta ultrapassa os limites do aceitável, timbrando-se como ilícita. O direito contemporâneo repudia a utilização arbitrária, caprichosa ou inconsequente das situações jurídicas. Toda ação secundada em norma jurídica está condicionada à sua projeção social, onde certamente encontrará outras ações igualmente amparadas, dentre as quais deve haver uma mútua flexibilização. Isso implica, por óbvio, uma análise menos formal. Sempre que os limites socialmente aceitos forem ultrapassados, dando lugar a situações geradoras de perplexidade, espanto ou revolta decorrentes do exercício de direitos, a resposta do ordenamento só pode ser uma: a repulsa ao agir abusado, desarrazoado.

É um ilícito que nasce da função dos direitos ou, melhor dizendo, da disfunção dos direitos. Na sistemática do direito civil, a função social atua de forma intensa. Nesse sentido, não só a propriedade imóvel, mas a propriedade de quaisquer bens, sejam materiais ou imateriais, deve plasmar-se pelo princípio da função social (sobretudo em ricos diálogos com a boa-fé objetiva). A existência do direito não é único padrão de referência. Não basta, atualmente, ter direito. A análise ganhou uma ótica funcional. A dimensão social é valorizada, impedindo que, a pretexto do exercício de um direito, atos de conteúdo socialmente perversos sejam praticados. As virtuais interpretações que podem ser extraídas dessa mudança são formidáveis. Se antes seria anedótico pensar em limitar, funcionalmente, o exercício dos direitos, mormente a propriedade, hoje seu conteúdo já nasce com semelhante feição. Ser proprietário não é mais ser titular de um bloco rígido de prerrogativas, mas ser titular de direitos cuja conformação varia de acordo com a inserção social.

São múltiplas as possibilidades de desvio funcional dos direitos. A doutrina, nos mais variados setores, principia a aprofundar a análise a respeito das consequências do exercício dos direitos. Os altos destinos do art. 187, na ordem jurídica brasileira, dependem, sobretudo, da jurisprudência. Ela, na concretização mediadora que opera, realizará, iluminada pela Constituição, os fins sociais do direito, que não se conciliam com o abuso. Não se trata, portanto, de um ato proibido, estaticamente incompatível com o ordenamento. O ilícito funcional – que abrange ações e omissões, liberdades, faculdades, situações jurídicas em geral – decorre de uma conduta que, apesar de assegurada pelo sistema, foi exercida de modo desarrazoado, ostentando caracteres abusivos (verifica-se não apenas a infração à legalidade estrita de uma regra, mas a normatividade generosa dos princípios e a legitimidade em geral). O ilícito funcional é algo que só faz sentido em sistemas

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abertos, percebidos – como sugere o civilista alemão Claus-Wilhelm Canaris – como “ordem teleológica de princípios gerais de direito”. Tem caráter dinâmico, não estático, e dialoga com as mudanças sociais, incorporando-as às dimensões normativas através da interpretação.

6.3.1 O ilícito funcional como uma cláusula geralEstudamos que os ilícitos, em direito civil, são fatos jurídicos dos

quais muitas vezes decorre – mas nem sempre – o dever de indenizar. Quem, culposamente, causa dano a outrem comete ato ilícito (Código Civil, art. 186). Quem excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou social do direito, pela boa-fé ou pelos bons costumes (Código Civil, art. 187) também pratica ato ilícito, e a consequência, segundo a literalidade da lei, em ambos os casos, é o dever de reparar. O art. 187 do Código Civil realça que o critério do abuso não reside no plano psicológico da culpabilidade, mas no desvio do direito de sua finalidade ou função social. Acolhe-se a teoria objetiva finalista, que tem em Josserand seu maior expoente.

Os ilícitos apresentam, como eficácia preponderante no direito civil, o dever de reparar os danos causados. O Código Civil dispôs a propósito no art. 927: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187)22 causar dano a outrem, fica obrigado a repará-los”. Porém, como pensamos ter demonstrado, os ilícitos não se esgotam nas hipóteses dos artigos citados. Há outros possíveis. Mesmo se permanecêssemos nos artigos 186 e 187, a letra da lei, ainda assim, estaria equivocada. É que a eficácia do art. 187, do abuso de direito, nem sempre é indenizatória. Muitas outras cargas de eficácia podem resultar do abuso de direito (perdas de direito, nulidades e anulabilidades, revisão de cláusulas abusivas, eficácia probatória contrária aos interesses de quem age abusivamente etc.). Em outras palavras, a classificação quanto à eficácia que antes expusemos (ilícitos indenizantes, ilícitos caducificantes, ilícitos invali-dantes e ilícitos autorizantes) aplica-se, também, aos ilícitos funcionais, que é uma cláusula geral com eficácia múltipla, multiforme.

O ilícito funcional opera como uma cláusula geral da ilicitude – uma das mais ricas do Código Civil –, destinada a manter o exercício

22 O art. 187 tem suporte fático distinto do art. 186. “Se assim não fosse – isto é, se para a configuração do abuso de direito tivessem de concorrer os pressupostos do art. 186 – tornar-se-ia inútil o art. 187. Haveria, não equiparação, mas identificação, ou melhor, subsunção da figura do abuso de direito na do ato ilícito segundo o art. 186” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Abuso de direito. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 13, p. 97-110, jan./mar. 2003).

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do direito nos limites socialmente toleráveis. Tem aplicação ampla, em qualquer setor da experiência jurídica. Há, assim, no sistema do direito civil, uma espécie ilícita aberta que se manifesta no exercício dos direitos.23 O direito subjetivo, em nossos dias, é direito-função, isto é, não pode ser usado para desequilibrar (outras) situações jurídicas legitimamente construídas.

Toda utilização de um direito, portanto, que ultrapassar os limites do razoável, orçando pelo abuso, pelo perturbador, traz em si, de forma insofismável, a pecha da oposição aos valores que permeiam o sistema do direito civil brasileiro. Será, nesse contexto, contrário ao direito o ato ou a omissão que implicar um estorvo social incompatível com a dimensão do direito fruído. Convém sempre lembrar que a eficácia do abuso de direito (Código Civil, art. 187) não é apenas indenizante. Outras dimensões de eficácia podem surgir, e frequentemente surgem.

6.4 Tutela contra o ilícito no novo Código de Processo Civil

6.4.1 Noções preliminaresMuitos debates já foram travados sobre qual seria efetivamente

o conteúdo do direito constitucional de ação. Outrora confundido com o próprio provimento do direito material almejado, passando-se por discussões sobre sua natureza concreta ou abstrata, fato é que, qualquer que seja a elaboração conceitual adotada, certamente o direito de ação apresenta intrínseca e necessária relação com “o direito ao modelo processual capaz de propiciar a tutela do direito afirmado em juízo”.24 Pois bem, se nossa Constituição Republicana garante que nenhuma lesão ou ameaça a direito deixará de ser apreciada pelo Poder Judiciário, nada mais condizente que, em complemen-tação a essa garantia, ao apreciar a demanda levada a sua cognição,

23 Aliás, nosso tão citado art. 187 do Código Civil – claramente inspirado no art. 334 do Código Civil português – tem conteúdo normativo assim disposto: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Cremos que a referida norma não inovou substancialmente o sistema jurídico brasileiro. O exercício abusivo de um direito já não era tolerado, mesmo antes do Código de 2002. O dispositivo tem, contudo, o inegável mérito de destacar que os ilícitos civis não se esgotam na fórmula tradicional que reúne a culpa, o dano e o dever de indenizar.

24 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 32.

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o Judiciário aplique instrumentos processuais efetivamente aptos a tutelar o direito pleiteado. De nada adiantaria ao jurisdicionado obter o legítimo reconhecimento da existência de seu direito25 se fosse este desacompanhado de institutos capazes de garantir sua proteção ou aplicação prática. Decorre, portanto, que um modelo ideal de direito processual, em harmonia com os direitos e garantias constitu-cionais, necessariamente deverá propiciar diferenciadas tutelas, que se amoldem à efetiva proteção exigida por cada uma das possíveis situações jurídicas do direito material.

Tutela é termo que apresenta diferentes sentidos em nosso ordenamento jurídico, podendo ser utilizado: a) como sinônimo do próprio procedimento processual empregado; b) em referência ao tipo de decisão judicial proferida; c) como o resultado jurídico-substancial buscado.26 Em todas essas três significações, mostra-se imprescindível a aplicação do princípio da adequação. Para além de ritos e meios executivos adequados, é preciso identificar que tipo de resultado (tutela jurisdicional) está sendo objetivado a fim de que seja aplicada a técnica processual capaz de viabilizar sua concretização.

Levando-se em consideração a referida ideia de adequação, vem sendo bastante difundida a noção de “tutela jurisdicional diferenciada”. Novamente há mais de uma ótica sob a qual esse conceito pode ser analisado. Pode dizer respeito à cronologia da tutela no iter procedimental (como a possibilidade de antecipação de seus efeitos ou mesmo em relação à atividade cognitiva necessária para sua concessão), bem como à tutela em si mesma, entendida como o provimento jurisdicional que satisfaz a pretensão da parte.27 De maneira simples, Fredie Didier nos ensina que “toda vez que o legislador confere um tratamento diferente do tratamento padrão, seja no procedimento, na decisão ou no resultado, pode-se falar em tutela jurisdicional diferenciada”.28

Por isso a importância, num primeiro momento, de procedi-mentos especiais, os quais, como o próprio nome sugere, possuem

25 Ressalve-se o ajuizamento de ação objetivando uma sentença meramente declaratória.26 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,

Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 407.

27 ARMELIN Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. Revista de processo, São Paulo: RT, n. 65, p. 105.

28 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 409.

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processamento diferente do procedimento padrão (ordinário) e, assim, por meio de uma distinta sequência de atos processuais ‒ incluindo-se a possibilidade de provimento antecipatório ‒, permitem uma tutela jurisdicional em maior conformidade com o resultado demandado pelo direito material em questão. No Código de Processo Civil de 2015, alguns dos procedimentos especiais previstos no Diploma de 1973 foram suprimidos. No entanto, a nova lei processual promoveu uma maior flexibilização no processo ordinário comum, a exemplo da previsão contida no art. 139, que faculta ao juízo dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito, de modo a conferir maior efetividade, justamente, à tutela do direito. Some-se a isso a previsão de tutelas provisórias, tanto de caráter antecipado quanto cautelar (sendo dispensável, inclusive para esta última, o processamento em autos apartados exigido pelo código anterior), que podem ser concedidas de modo antecedente ou incidental (art. 294, parágrafo único, CPC/15), bem como a possibilidade conferida ao juiz de efetuar quaisquer providências necessárias à garantia da tutela específica pleiteada ou, na sua impossibilidade, a tutela pelo resultado equivalente (art. 497, CPC/15). Diante dessas técnicas processuais aplicáveis ao procedimento comum ordinário (algumas inclusive já implementadas no CPC/73), conferindo tratamento diferenciado tanto no bojo do rito procedimental quanto no resultado material, caminha-se cada vez mais para a prestação de uma tutela jurisdicional de melhor qualidade, do ponto de vista da adequação e da eficiência.

As tutelas jurisdicionais, como gênero, podem ser alvo das mais diversas classificações: tutelas de urgência e de evidência; final e antecipada; genérica e específica; repressiva e preventiva. Tutelas final e antecipada dizem respeito ao momento processual de sua concessão e ao grau de cognição exigido para tanto. Já as de urgência e evidência tratam de situações processuais distintas (não necessariamente contra-postas), sendo a primeira concedida diante de elementos que explicitem a probabilidade do direito, somada à existência de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo (art. 300, CPC/15), ao passo que a segunda dispensa este último requisito, recaindo exclusivamente sobre as hipóteses previstas nos incisos do art. 311 do CPC/15. Há muito que se comentar sobre a nova disciplina conferida a essas tutelas no novo diploma processual. No entanto, o objeto do presente trabalho centra-se na análise das duas outras classificações (tutelas genérica e específica, tutelas preventiva e repressiva), de suma relevância para a compreensão do tratamento conferido à tutela contra o ilícito.

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6.4.2 Tutela genérica × tutela específicaEssa classificação está intrinsecamente relacionada à noção de

tutela como resultado do processo. A tutela específica efetiva-se quando a resposta jurisdicional coincide com o resultado desejado no âmbito material, como se a parte ré houvesse voluntariamente cumprido o que o autor esperava no mundo fático, sem a necessidade de intervenção judicial. Lado outro, na tutela genérica, conhecida também como tutela pelo equivalente em dinheiro,29 não se proporciona ao sujeito o exato bem da vida que ele judicialmente reclama. Sua efetivação ocorre mediante ressarcimento pecuniário. Com efeito, é vislumbrada mediante um caráter genérico em razão do (suposto) fato de que qualquer prestação pode ser convertida no pagamento de perdas e danos.

Quanto à tutela específica, sua maneira mais clara de concreti-zação ocorre através do cumprimento in natura da prestação postulada. Assim, o resultado material do processo variará conforme a natureza de cada um dos pedidos em jogo, explicitando o caráter específico desse tipo de tutela. Podemos ainda pensar em sua concretização mediante aquilo que se denomina “resultado prático equivalente ao do adimple-mento”, tipicamente aplicado às obrigações de fazer fungíveis. Existem mecanismos tendentes a coagir o réu a cumprir a prestação devida (a exemplo da multa); porém, quando ele ainda assim se recusar a praticar o ato, é possível, sempre que a obrigação não for personalíssima, que ela seja executada por um terceiro. Assim, tarefas que, primitivamente, cabiam ao devedor podem ser autorizadas ao próprio credor, que as implementará por si ou por prepostos, como previsto no art. 249 do Código Civil. O autor deve, ao final, apresentar nos autos as contas dos gastos efetuados e dos prejuízos acrescidos, sendo imputado ao réu o pagamento daquilo que foi despendido para o cumprimento da prestação.30 Embora o devedor seja, em desfecho, condenado a uma prestação pecuniária, o Judiciário não deixa de ter prestado uma tutela específica, visto que o sujeito obteve exatamente a prestação in natura pretendida (embora não praticada diretamente pelo réu).

Ressalte-se que, quanto às obrigações de pagar quantia, não há maiores problemas em se imputar uma resposta pecuniária. Contudo,

29 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 411.

30 THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. III. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 258.

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em relação aos outros tipos de prestações (fazer e não fazer; dar coisa diversa de dinheiro), claramente denota-se que o sujeito da relação jurídica inicialmente objetivava uma prestação específica, diversa do recolhimento monetário. Ora, pensando na maior efetividade dos direitos, um sistema processual ideal é aquele que se preocupe em tutelar, exatamente, a satisfação do direito material do autor em vez de, como resposta automática a qualquer resistência à referida pretensão, converter a prestação em perdas e danos.

Diante disso, é importante destacar uma alteração ocorrida ainda na vigência do CPC de 1973: a reforma processual de 1994 (Lei nº 8.952/94) conferiu nova redação ao art. 461, dispondo, em seu parágrafo único, que “a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente”. No caput do dispositivo, foi imposta ao juiz a concessão da tutela específica, de modo que a sentença que desse provimento à prestação de fazer ou não fazer deveria condenar o devedor a realizar, in natura, a prestação devida. Para tanto, a Lei nº 8.952/94 conferiu ao juiz a possibilidade de adotar providências que assegurassem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

Tem-se aqui a positivação da preferência pela tutela específica em detrimento da tutela genérica. O legislador pátrio acabou por romper com o dogma liberal dos séculos anteriores, quando então imperava certa confusão entre a tutela contra o ilícito e a tutela ressarcitória, de modo que converter a prestação em seu equivalente em pecúnia confi-gurava prática jurídica comum.31

Portanto, sob a égide do CPC anterior, foi consagrado o que se pode denominar de “tutela diferenciada”, entendida como a prestação jurisdicional específica e adequada para cada espécie de violação de direitos. Vislumbra-se, destarte, um relevante passo na individuali-zação da noção de ato ilícito. Afinal, como já tratado neste estudo, nem sempre um comportamento contrário ao direito ensejará pagamento de perdas e danos. Na verdade, em alguns casos, a ocorrência de ato ilícito prescindirá de dano, o que certamente, por si só, já afasta eventual conversão da resposta em equivalente pecuniário por “perdas e danos”. Fez muito bem o atual CPC em manter a primazia da tutela específica, determinando, em seu artigo 499, que a obrigação somente

31 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 18-19.

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será convertida em perdas e danos se o autor assim requerer ou se impossível a tutela específica. Como bem observa Marinoni:

A confusão entre tutela contra o ilícito e tutela ressarcitória pelo equiva-lente, portanto, tem raízes na monetização dos direitos, acentuada pelos valores do Estado liberal antigo, em que o equivalente em pecúnia, sem pôr em risco a liberdade, mantinha em funcionamento os mecanismos do mercado. A tutela jurisdicional não tinha qualquer preocupação de fazer valer o desejo das normas ou de tutelar direitos – garantindo sua integridade ou repristinação – mas apenas de prestar um equivalente ao sinal da lesão, o que significava dizer que a jurisdição não tinha como meta primária a tutela de direitos. A sanção do faltoso pressupunha a intangibilidade da sua vontade e a equivalência dos bens, a evidenciar a liberdade individual e o equilíbrio do mercado como limite e justificativa de uma tutela jurisdicional de natureza negativa.32

Tradicionalmente, os institutos jurídicos são permeados por intensa carga de patrimonialidade. Em contrapartida, o atual século é marcado por um elevado pluralismo, o qual se mostra presente não apenas nas diversas concepções de mundo, mas, sobretudo, no âmbito dos sujeitos protegidos pelas normas, das próprias normas e, como não poderia deixar de ser, dos interesses tutelados. A tendência do direito, portanto, caminha no sentido da despatrimonialização e da repersonalização das relações sociais. Muitos dos direitos que ensejam a tutela jurisdicional não apresentam cunho patrimonial. Desse modo, o anterior modelo ‒ que primava pela tutela genérica de conversão em pecúnia ‒ ainda estava assentado na interdependência entre os institutos da ilicitude e da responsabilidade civil (especificamente no que tange à tutela reparatória). Essa compreensão, como já vimos, é insuficiente para a correta tutela contra o ato ilícito, visto ser a reparação civil apenas uma de suas possíveis consequências.

6.4.3 Tutela preventiva × tutela repressivaAvançando nessa análise, temos que ter em mente que os desafios

e ameaças atuais são, de certo modo, distintos daqueles dos tempos passados. Reparar danos é uma função essencial; porém, não deixa de ser uma resposta tardia do ordenamento jurídico ‒ atuando somente após a infeliz perpetração da lesão ‒ e muitas vezes imperfeita, visto

32 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 19.

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que, em grande parte dos casos, sobretudo em se tratando de direitos extrapatrimoniais, a repristinação ao estado anterior à lesão é comple-tamente inviável. A tutela ideal seria, evidentemente, a preventiva, dirigindo esforços para impedir que lesões ocorram ou que continuem a ocorrer. Diante da intensificação das transações comerciais, das novas tecnologias, da massificação das relações de consumo, da velocidade com que se propagam as informações – enfim, da intensificação da sociedade de riscos –, nosso atual paradigma clama, cada vez mais, por prevenir ilícitos ao invés de, passivamente, esperar que eles ocorram para só depois remediá-los. Anuncia Nelson Rosenvald que a prevenção é o cerne do direito contemporâneo. O que se deu à reparação de danos em termos de protagonismo nos últimos dois séculos necessariamente se concederá à prevenção daqui em diante.33 Hoje já não se questiona apenas sobre a melhor forma de reparar danos, mas, sim, se repará-los seria, efetivamente, a melhor solução.34

Diante disso, ainda buscando a máxima tutela dos direitos, sobretudo daqueles bens jurídicos desprovidos de valoração material, passemos à análise da segunda classificação anteriormente mencionada, qual seja, as tutelas preventiva e repressiva. Entendida como uma espécie de tutela específica, a modalidade preventiva tem como escopo preservar a integridade do direito, antes mesmo da perpetração do ato ilícito. Consoante os ensinamentos de Marinoni,35 ela assume enorme importância não apenas em razão do fato de que alguns direitos simples-mente não podem ser reparados (ou não podem ser suficientemente tutelados pela técnica ressarcitória), mas, sobretudo, por ser, como já discorrido neste trabalho, melhor prevenir do que ressarcir. Assim, enquanto se confere preferência à tutela específica sobre a genérica, é igualmente imperativa a primazia da tutela preventiva sobre a repressiva. Esta última, também denominada tutela reparatória ou sancionatória,36 incide quando a resposta jurisdicional ocorre após a prática de um ilícito.

A tutela preventiva encontra fundamento no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, por meio do qual é garantido o acesso à

33 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 79.

34 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 228.

35 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 38.

36 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 411.

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justiça em face de qualquer ameaça a direito (dispensando, portanto, a concretização de uma lesão). No plano infraconstitucional, Silva Nunes observa que, curiosamente, embora se trate de sistema processual mais recente, o instituto foi primeiramente positivado na esfera do direito processual coletivo, consoante artigo 84 do CDC (Lei de 1990).37 Apenas foi inserido no diploma processual civil, de maneira genérica, quando da já mencionada reforma processual ocorrida em 1994 (ainda na vigência do CPC de 1973), determinando, no art. 461, mecanismos técnico-processuais capazes de garantir a eficácia da tutela específica.

Marinoni destaca que, quando editado, o CPC de 1973 apenas estabeleceu tutelas preventivas (específicas) no caso de interdito proibi-tório (art. 932) e nunciação de obra nova (art. 936, II). Para o doutrinador, a alteração do art. 461 significou a quebra do princípio da tipicidade das formas executivas, permitindo que o juiz aplicasse o meio mais adequado para impedir a violação do direito.38 E isso teria ocorrido em caráter geral, abarcando inclusive a tutela de direitos da personalidade, não obstante, à primeira vista, pareça ter sido confeccionado tão somente para as obrigações stricto sensu de fazer e não fazer.

A reforma processual de 1994 foi norteada pelo princípio da efeti-vidade. Ora, toda norma deve ser interpretada em função da unidade sistemática do ordenamento jurídico. Para o ilustre autor, é inconcebível que o legislador tenha previsto uma tutela preventiva restrita a essas obrigações: “Na verdade, não há como não se vislumbrar na ratio, no fim do art. 461 (interpretação teleológica), a intenção da tutela de direitos que não poderiam ser adequadamente protegidos a partir de uma interpretação excessivamente comprometida com o tecnicismo da linguagem jurídica”.39

Direitos extrapatrimoniais, como a integridade física, a perso- nalidade, a saúde, o meio ambiente, o patrimônio histórico, entre outros, não podem ser efetivamente tutelados por uma técnica repressiva (a posteriori). Considerando esse fato, a fim de fazer valer a inafastabilidade da jurisdição, é que se defende a ideia de uma tutela preventiva geral.40 Aos poucos construída a partir do Código de Defesa do Consumidor e da

37 NUNES, Leonardo Silva. Tutela inibitória coletiva. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2013, p. 74.

38 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 86.

39 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 88.

40 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – volume único. 8. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 91.

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reforma processual de 1994, tal disciplina geral, felizmente, encontra-se consagrada de forma clara no novo CPC ao prever expressamente a possibilidade de uma “tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito” (art. 497, parágrafo único). E encerrando a discussão de possível restrição às obrigações stricto sensu, o novo diploma legal utiliza-se da designação de qualquer “ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer”, e não simplesmente da obrigação de fazer e não fazer.

6.4.4 Tutela inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória

Celebrando a alteração promovida pelo Código Processual de 2015, Marinoni aduz que o parágrafo único do artigo 497 “consagra a necessidade de tutela jurisdicional contra o ato contrário ao direito, ou melhor, de tutela jurisdicional contra o ilícito”.41 Para ele, a norma em comento elenca duas formas de tutela jurisdicional em desfavor do ilícito: i) a tutela inibitória, que pode ser voltada contra a prática, a repetição ou a continuação de um ilícito; ii) a tutela de remoção do ilícito, direcionada à remoção dos efeitos concretos da conduta ilícita.

Ambas as tutelas (inibitória e de remoção), diferentemente do que ocorre com a ressarcitória (forma clássica de tutela contra o ato ilícito), independem da ocorrência de dano, visto que o escopo é, justamente, conceder efetividade à própria norma violada (ou em vias de violação) – nunca sendo demais lembrar que o ato ilícito, em si, prescinde da existência de lesão. O processualista paranaense sugere um esclarecedor exemplo para melhor compreendê-las: se há uma norma que proíbe a venda de determinado produto, mostra-se possível uma ação judicial que simplesmente pleiteie inibir sua violação, diante da existência de indícios de que a norma será desobedecida. Caso a regra já tenha sido efetivamente violada, havendo a exposição do produto em prateleiras, abre-se espaço para uma ação que demande a remoção dos efeitos oriundos da inobservância do dispositivo legal, o que poderia ser concretizado mediante medida de busca e apreensão dos produtos colocados à venda. Observe-se que em momento algum se exigiu a perpetração de uma lesão. Caso o consumidor adquira o produto e de

41 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: art. 497, parágrafo único, CPC/2015. Disponível em: <http://revistadeprocessocomparado.com.br/wp-content/uploads/2016/01/6-MARINONI-Luiz-Guilherme-TUTELA-CONTRA-O-ILICITO.pdf>.

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seu uso resulte um dano, será cabível uma ação que pleiteie a tutela ressarcitória dos prejuízos gerados.

Nada impede que as três tutelas sejam cumuladas em uma única ação. No caso ilustrado, seria perfeitamente possível demandar que a empresa: a) não coloque à venda o produto em questão; b) remova das prateleiras os bens já colocados à venda; c) repare os prejuízos causados pelo consumo do produto. Raciocínio idêntico pode ser transplantado para o direito ambiental, no qual comumente se postula, para além da reparação dos prejuízos ambientais ocasionados, que o poluidor não pratique o ato lesivo ao meio ambiente e, se possível, reverta todos aqueles já colocados em prática.

É evidente a natureza preventiva da tutela inibitória, utilizada para evitar ou obstar a prática do ato contrário ao direito. Ressalte-se que o fato de o ilícito já ter sido uma vez praticado não retira o caráter preventivo dessa tutela.42 Consoante redação do parágrafo único do art. 497 do CPC/15, ela visa inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito. O próprio texto legal nos indica que ela ainda é útil diante da reiteração ou continuação da perpetração. Pois bem, quanto ao ato em si praticado, provavelmente haverá demanda de uma tutela de remoção ou de ressarcimento de danos, mas, se ainda subsiste a ameaça de reiteração ou continuidade da prática ilícita, subsiste também o interesse nesse tipo de tutela.

Igualmente, não restam dúvidas acerca da natureza repressiva da tutela ressarcitória, visto incidir contra o dano já consumado (seja ele oriundo ou não da prática de um ilícito) a fim de promover sua reparação. Note-se que a reparação de um prejuízo não necessariamente está vinculada à forma pecuniária (embora seja a mais comum). Assim, a tutela ressarcitória pode se manifestar tanto na forma genérica quanto na específica.43 No primeiro caso, fatalmente ocorrerá a entrega de soma em dinheiro para ressarcir o prejuízo patrimonial ocasionado (ou para compensar um dano moral). Já no segundo, é possível pensarmos numa tutela que permita restabelecer a situação que vigia antes da prática da lesão (ou, pelo menos, propiciar o estado mais próximo possível). Como exemplo, há o ato do desagravo público, previsto no art. 7º, XVIII, da Lei 8.906/94, por meio do qual será promovido um pedido público de

42 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – volume único. 8. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 90.

43 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: execução. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 418.

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desculpa em relação à ofensa ocorrida contra o advogado no exercício de sua profissão ou em razão dela (não é possível remover o ato que ensejou o dano à honra, mas é possível tentar remediar a lesão gerada).

Por outro lado, quanto à tutela de remoção do ilícito, também denominada reintegratória, encontramos uma zona um pouco mais nebulosa. Certo é que ela incide, precisamente, após a prática do ilícito, pois é impossível remover algo que ainda não ocorreu (cabendo, nesse momento fático, tão somente a tutela inibitória). Seria esse fato suficiente para atribuir a essa técnica uma natureza repressiva? Preferimos concluir, por hora, pela impossibilidade de lhe atribuir uma natureza puramente preventiva. Passemos então à análise do ponto de vista repressivo: a tutela reintegratória busca remover o ilícito, ao passo que a ressarcitória objetiva reparar uma lesão. Ora, estando mais do que esclarecido que o ato ilícito prescinde de dano, a tutela em questão não necessariamente serviria para remover um prejuízo, o que nos leva à impossibilidade de lhe imputar também um caráter puramente repressivo. Melhor então designar a ela uma natureza sui generis. Em brilhante exposição, Marinoni esclarece que “esta forma de tutela não se destina a inibir o ilícito, uma vez que o ilícito já foi praticado, mas também não se dirige contra o dano. A tutela jurisdicional se destina a remover ou eliminar a realidade concreta que a norma proíbe para que o dano não ocorra”.44

Sua aplicação pode ser muito bem visualizada num exemplo de tutela contra concorrência desleal. O caput do artigo 109 da Lei nº 9.279/96 garante o ressarcimento de perdas e danos em razão de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou presta-dores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio (tutela ressarcitória). Logo adiante, seu §2º permite ao juiz determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada (tutela de remoção do ilícito). Desse modo, caso um agente esteja utili-zando indevidamente marca registrada alheia, independentemente da verificação de qualquer prejuízo às vendas ou reputação da empresa detentora do registro, é possível pleitear tutela judicial simplesmente em razão da violação normativa. Se há indicação de que a prática do ilícito

44 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 27.

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será reiterada, é cabível também a ação inibitória. Com efeito, a tutela de remoção volta-se exclusivamente ao ato já consumado, buscando remover-lhe os efeitos (qual seja, no caso, a permanência no mercado de produtos com marca usurpada). É evidente que tal técnica processual poderá impedir eventual ocorrência de lesão, porquanto exclui a fonte do dano potencial. Porém, é preciso ter em mente que seu objetivo não é prevenir o prejuízo, e sim remover o ilícito praticado.

Observando a confusão presente na doutrina e jurisprudência italiana a respeito da tutela ressarcitória específica e a tutela reintegra-tória, Marinoni destaca que essa ambiguidade deve-se a uma “constante sobreposição do ilícito e do dano, ou melhor, a uma falta de distinção entre a transgressão das normas jurídicas e a produção do dano, fruto de uma posição que não distinguia as necessidades de eliminar o ilícito e de reparar o dano”.45 Não são raras as decisões judiciais que consideraram, como tutela reparatória in natura, a demolição em razão de construção efetuada em desobediência à legislação urbanística. Na verdade, a demolição não pretende remediar eventual dano causado pela obra indevida, mas, sim, precisamente, remover o ilícito (visto que construir em desacordo com a legislação é, por si só, ato contrário ao direito). A concreta lesão gerada por esse ato ‒ como, por exemplo, a poluição provocada pela obra, por ter dificultado o escoamento de esgoto ‒ é que será alvo da tutela reparatória.

6.5 Considerações finais – tutela contra o ilícito e prescindibilidade de discussão judicial sobre dano

Podemos concluir, com Marinoni, à luz do que foi dito, que “se da revisão do conceito de ilícito exsurge indiscutível a importância da distinção entre o ato contrário ao direito e dano para o efeito de tutela civil dos direitos, não há qualquer razão para pensar que a tutela contra o ilícito futuro é necessariamente tutela contra a probabilidade de dano”.46 Justamente nesse aspecto reside um dos grandes méritos do Código de Processo Civil de 2015, ao positivar, com clareza, que, “para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a

45 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 218.

46 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 25.

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reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano” (art. 497, parágrafo único).

É desnecessário, nesse contexto – para obtenção da tutela inibitória ou reintegratória –, que o autor faça prova da possibilidade de dano, eventualmente oriundo da prática do ato ilícito que busca inibir ou remover. De tal sorte, possível defesa da parte ré no sentido de que, por exemplo, a obra construída em desacordo com a legislação pertinente não acarretará qualquer prejuízo ao meio ambiente e ao bem-estar da vizinhança, ou que o produto indevidamente exposto à venda não prejudicará a saúde e segurança dos consumidores definitivamente não poderá ser valorada pelo juízo como argumento capaz de afastar a tutela contra o ilícito.

Não obstante esse avanço, ao tratar da técnica processual da tutela antecipada, o legislador perdeu uma boa oportunidade de encerrar, de vez, qualquer dúvida acerca da prescindibilidade da discussão de dano em ação contra o ilícito. Dispõe o art. 300 que “a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano”. De sua leitura literal, poderia resultar a conclusão segundo a qual, para a concessão de tutela inibitória antecipada, seria imprescindível a demonstração do perigo de dano, ou seja, a tutela antecipada estaria restrita, exclusivamente, à ação contra o ilícito que provoca lesão.47

No entanto, preferimos nos valer de uma interpretação sistemática, levando em consideração todo o avanço doutrinário e legislativo acerca da distinção entre ato ilícito e dano, bem como uma maior adequação valorativa e empírica – comentadas no início deste trabalho –, de modo a compreender a tutela contra o ilícito à luz da melhor operacionali-zação da aplicação do direito e, principalmente, dos valores, princípios e normas constitucionais. Desse modo, para se demandar uma tutela inibitória em caráter antecipado, seria descabido exigir a comprovação

47 Inclusive, encontramos em respeitável doutrina (pós-edição da Lei nº 13.105/15) a seguinte passagem: “Cabe observar que, para a concessão da tutela específica que se destine a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo (art. 497, parágrafo único). A tutela, na espécie, é preventiva, tem por objetivo evitar o dano ou sua continuação, e não repará-lo” (THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. v. III. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 261-262). Ao final de sua exposição, o renomado processualista insiste em associar as tutelas inibitória e de remoção ao propósito de evitar a ocorrência de dano, embora concorde que elas independem da alegação de já ter sido concretizada a lesão.

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da probabilidade de dano,48 bastando a prova da probabilidade da prática de ato contrário ao direito (fumus boni iuris) e de sua possível concretização antes da efetivação da sentença (periculum in mora).

Ressalte-se que, quando uma norma proíbe determinada conduta, o legislador já está, de antemão e de modo amplo, considerando a proba-bilidade de dano49 (embora este nem sempre esteja presente nos suportes fáticos dos ilícitos). Portanto, embora primordialmente o objetivo da tutela inibitória seja evitar um ato contrário ao direito, sua concessão pode – como efeito secundário, porém jamais necessário – impedir a ocorrência de circunstancial lesão (haja vista que, fatalmente, eliminará a possível fonte de prejuízo). A discussão acerca do dano não entra, portanto, no horizonte de eventos da tutela inibitória antecipatória. Se assim fosse, o juiz, ao negar a tutela inibitória antecipada por falta de prova da potencialidade de lesão, praticamente estaria autorizando que o réu concretizasse a conduta contrária ao direito, em afronta ao princípio da prevenção.

Note-se que em momento algum é vedado ao autor reforçar a necessidade da tutela inibitória com supedâneo no argumento da lesividade da conduta – é desnecessário, porém não vedado. Todavia, caso a parte contrária fundamente a improcedência do pedido com base na ausência de probabilidade de dano, não é possível exigir do autor, como requisito para a concessão da tutela antecipada contra o ilícito, a desconstrução dessa alegação. Direito civil e direito processual civil, embora autônomos, dialogam e constroem conceitualmente, de modo conjunto, soluções mais razoáveis e harmônicas aos conflitos dos nossos dias (tão sabidamente complexos). O conceito de ilícito, hoje, não é mais singular, é plural. As notas clássicas já não nos servem. Um dos pontos que foram teoricamente reverenciados nos séculos passados foi a associação entre ilícito civil e dano. Essa associação, hoje, já não seria adequada, já não descreveria, com exatidão, o que se passa nas dimensões normativas do direito brasileiro do século XXI. A tutela contra o dano, nesse contexto, se dissociou da tutela contra o ilícito, havendo especificidades em cada uma delas.

48 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 125.

49 Assim, “a probabilidade de dano é um juízo contido na norma, o que significa que a remoção imediata de um ilícito é tutela da norma, e, por consequência, tutela contra a probabilidade de dano suposta da norma” (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 126).

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MARTINS-COSTA, Judith. A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões em torno de uma notícia jornalística. Revista do Consumidor, São Paulo: RT, São Paulo, 1992.

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ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2014.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. São Paulo: Saraiva, 1974.

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167FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO, KARINE CYSNE FROTA ADJAFRE TUTELA CONTRA O ILÍCITO: EM BUSCA DE CONTORNOS CONCEITUAIS

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ADJAFRE, Karine Cysne Frota. Tutela contra o ilícito: em busca de contornos conceituais. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 137-167. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 7

TUTELA PROVISÓRIA E A LIMINAR POSSESSÓRIA

Marcelo de Oliveira Milagres

7.1 Introdução

Em tempos de intensa movimentação de pessoas, coisas, bens e ideias, das mais diversificadas e sofisticadas formas de comunicação, vivenciamos experiências em tempo real. A vida parece on demand. As fronteiras geográficas foram superadas. A previsibilidade e a segurança parecem desafios crescentes.

Em razão disso, vivenciamos a necessidade contínua de novos mecanismos de regulação de complexos fenômenos até então não imaginados. Nada mais provisório que o definitivo, nada mais obsoleto que o presente. O ultrapassado de hoje foi o novo de ontem. O porvir se insere nos riscos da existência.

Nessa perspectiva, como pensar e aplicar o direito?O tempo influencia as relações jurídicas, e o próprio direito tem

o poder de condicionar os efeitos do tempo nas relações da vida. Como não pensar em prescrição e decadência, suppressio e surrectio?

Como acentua François Ost, a dialética entre tempo e direito é profunda: “O direito afeta diretamente a temporalização do tempo, ao passo que, em troca, o tempo determina a força instituinte do direito. Ainda mais precisamente: o direito temporaliza, ao passo que o tempo institui”.1

1 OST, François. O tempo do direito. [Le temps du droit]. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: Universidade do Sagrado Coração, 2005, p. 13.

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Os desafios são enormes. No âmbito da judicialização dos conflitos, o julgador tem a difícil

missão de dizer o sentido atual dos textos e a versão contemporânea dos acontecimentos a partir dos fatos de ontem.2

O ritmo do processo judicial, à evidência, não acompanha a velocidade da vida. Muitas vezes, não se pode esperar; daí por que o contraditório deve ser diferido, sob pena da absoluta ausência de efeti-vidade do provimento jurisdicional. O direito material não se realiza por si só, não é o bastante. A efetividade do bem da vida requer tutela juris-dicional ou tutela processual, que, em face de toda essa dinamicidade, deve ser diferenciada, com mecanismos de celeridade, de urgência. O fator temporal deve ser sempre considerado pelo Estado-Juiz.

A noção de uma uniformidade e neutralidade procedimental restou superada há muito.

Como já apontava Luiz Guilherme Marinoni, “[...] é fundamental para o encontro da real efetividade do processo a tomada de consciência de que são de natureza vária os bens envolvidos nos litígios”.3 O processo, pois, não pode ser indiferente a essa realidade complexa, dinâmica e plural.

Ao iniciado no universo jurídico não são estranhas discussões sobre medidas cautelares, antecipação dos efeitos da tutela, liminares, tutela inibitória, procedimentos especiais – enfim, uma diversidade de mecanismos na busca da efetividade processual.

Se o processo deve ter uma duração razoável, somente se pode pensá-lo a partir de seu caráter instrumental. As formas de tutela sumária e a diversidade de procedimentos de cognição devem objetivar o mesmo propósito: uma tutela eficiente, adequada, tempestiva e justa.

Nesse sentido, benfazeja a edição do Código de Processo Civil de 2015, que, superando a clássica divisão defendida por Carnelluti, afastando a autonomia do processo cautelar, prevê mecanismos de celeridade, com destaque para as tutelas provisórias.

A propósito, merece relevo uma Parte Geral, com disposição sobre normas fundamentais do processo civil. Enfatiza-se um processo cooperativo, resolutivo, com mecanismos de tutela satisfativa. A coope-ração interna e internacional é prevista. Os mecanismos de solução alternativa dos conflitos se apresentam como realidade fundada na

2 OST, François. O tempo do direito. [Le temps du droit]. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: Universidade do Sagrado Coração, 2005, p. 17.

3 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 23.

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perspectiva também de contratualização do processo. As demandas individuais repetitivas, as situações de decisão antecipada de mérito, os precedentes, a inserção e a modificação de procedimentos especiais, tudo isso se insere nessas diretrizes.

O Código de Processo Civil de 2015 também nos impõe algumas reflexões. Haveria a possibilidade de uma tutela definitiva no âmbito de uma cognição sumária, enfim, não exauriente? Como explicar a regra do art. 304, que propõe a estabilização da tutela antecipada sem o efeito de coisa julgada?

A tutela provisória parece ganhar maior complexidade em se tratando da posse. O regime geral de cognição sumária é parcialmente afastado pelo procedimento especial de tutela da posse, particularmente, nos conflitos coletivos.

Este é, pois, o propósito do artigo: apresentar a disciplina da tutela provisória pelo atual Código de Processo Civil, analisando-se a tutela provisória da posse.

7.2 Tutela provisória: disposições gerais

Com a atual disciplina processual, temos a técnica da cognição sumária mediante a tutela provisória, que se divide em tutela de urgência (arts. 300 a 310) e tutela de evidência (art. 311).

A tutela de urgência pode ter natureza satisfativa (tutela de urgência antecipada) ou natureza conservativa (tutela de urgência cautelar).

Quanto ao momento de concessão da tutela de urgência, ela pode ser antecedente ou incidental; pode também ser concedida liminar-mente, ou seja, com o recebimento da inicial (parágrafo único do art. 294 e §2º do art. 300).

Em se tratando de decisão proveniente de cognição sumária, prevalece a regra de sua temporariedade, podendo ser fundamen-tadamente modificada ou revogada (arts. 296 e 298). A decisão de tutela provisória, a teor do art. 1.015, I, desafia o recurso de agravo de instrumento.

Reconhece-se o poder geral de cautela do juiz, consoante as regras inscritas nos arts. 297 e 301. Segundo este último, o juiz pode determinar arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bens e qualquer outra medida de caráter conservativo, buscando, pois, resguardar o direito material.

Em termos bem práticos, há a previsão de que a tutela provisória seja requerida em caráter incidental independentemente do pagamento de custas (art. 295).

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7.3 Tutela de urgência

A tutela de urgência requer a probabilidade do direito material e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300).

Essa tutela de urgência pode ter caráter satisfativo ou natureza meramente conservativa. Em se tratando de tutela de urgência antecipada, não se pode concedê-la se houver risco de irreversibilidade dos seus efeitos (art. 300, §3º), o que não exclui a possibilidade de sua concessão na hipótese de irreversibilidade recíproca. Exemplo disso é a situação comum de tratamento médico urgente: se não for realizado, pode-se chegar ao óbito do autor-requerente; realizado, não se tem como voltar ao estado de fato anterior.

Para Luiz Guilherme Marinoni, “[...] não há razão para não admitirmos a possibilidade de uma tutela antecipatória que possa produzir efeitos fáticos irreversíveis, pois a tutela cautelar não raramente produz tais efeitos”.4

A concessão da tutela de urgência pode ser condicionada a uma garantia, a uma caução, para garantir o ressarcimento de eventuais prejuízos da parte contra quem a tutela foi deferida. Independentemente do dano processual, os prejuízos pela efetivação dessa tutela de cognição sumária podem ser indenizáveis nas situações reconhecidas pelo art. 302.

7.3.1 Tutela de urgência antecipada antecedente Em situação de máxima efetividade, pode-se adiantar o bem da

vida ao requerente sem a necessidade de cognição exauriente, podendo a satisfação do direito material ocorrer de forma liminar. Segundo o art. 303, essa tutela pressupõe situação de urgência contemporânea ao ajuizamento da pretensão de cognição sumária. A petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela provisória.

Se a tutela for concedida, o autor deverá aditar a inicial no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito.

Em caso de indeferimento do pedido de tutela antecipada antecedente, o autor deverá aditar a inicial no prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de extinção da relação processual.

4 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 169.

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O grande ponto de discussão diz respeito à possibilidade de estabilização da tutela antecipada antecedente, deferida liminarmente ou após justificação.

Segundo o art. 304, a tutela antecipada antecedente é estável se não for objeto do devido recurso. Trata-se, pela literalidade da regra, da interposição de agravo de instrumento, não se podendo falar em meios autônomos de impugnação. Ocorrerá a estabilização pela ausência ou intempestividade do recurso de agravo de instrumento, ainda que o réu conteste a pretensão do autor.

Poder-se-ia questionar se essa estabilização se cingiria à falta de recorribilidade. E se, ausente o recurso, o autor buscasse o aditamento da inicial nos termos do art. 303, §3º, I? Presumir-se-ia o propósito da busca à cognição plena? Entendo que essa estabilização, na hipótese única de tutela de urgência antecipada antecedente, independe desse aditamento. Essa parece ser a proposta normativa, mesmo porque o autor, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito, vai aditar a inicial no prazo de 15 (quinze) dias, não tendo, possivelmente, ciência de eventual recurso interposto pelo réu contra essa decisão de deferimento da tutela provisória de urgência. Ou seja: o aditamento do autor virá antes do agravo de instrumento do réu. O aditamento não significa, pois, intenção de busca da cognição exauriente. Em verdade, busca-se evitar a extinção do processo sem resolução do mérito.

E se o agravo de instrumento não for provido? Ocorrerá a estabilização da tutela provisória? Não se tem, como condição dessa estabilização, o resultado do julgamento recursal. Em termos práticos, pode-se fomentar a recorribilidade apenas com o propósito de impedir a estabilização da tutela antecipatória antecedente.

Interposto o recurso de agravo de instrumento e aditada a inicial, segue-se o processo principal, ou seja, o procedimento comum de cognição exauriente.

Uma vez estabilizada, a decisão de tutela provisória de urgência antecedente somente pode ser revista ou invalidada por ação própria ou autônoma, nos termos do §2º do art. 304. O ajuizamento dessa ação deve observar o prazo decadencial de 2 (dois) anos contados da ciência da decisão que extinguiu o processo pela estabilização da tutela provisória. Ultrapassado esse prazo, não se admite a possibilidade de revisão. Trata-se de natureza definitiva de decisão proferida no âmbito de cognição sumária, que, como se sabe, pode ter sido deferida liminar-mente sem a oitiva do réu. Não há que se falar, pois, em coisa julgada. A estabilização definitiva do provimento sumário, sem formação da coisa julgada, impediria o reexame da matéria, sendo justificável o

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fundamento do art. 487, II, do Código de Processo Civil (reconhecimento de decadência). Tem-se a possibilidade de decisão definitiva fundada no provimento de natureza provisória. Paradoxo apenas aparente.

Esse mecanismo de estabilização, pela ordem normativa vigente, não alcançaria a tutela antecipada incidente, ou seja, concedida no curso do procedimento ordinário, não se podendo falar, igualmente, em estabilização na hipótese de tutela de urgência cautelar.

Finalmente, pode haver dúvida quanto ao alcance da tutela provisória requerida: se ela alcançaria a antecipação do próprio bem da vida ou se teria natureza meramente conservativa. O próprio Código de Processo Civil reconhece a possibilidade de fungibilidade (art. 305, parágrafo único), podendo e devendo o juiz, por exemplo, conhecer do pedido cautelar antecedente como se fosse de tutela antecipada antecedente. Em verdade, ao tratar desses mecanismos, sob o gênero de tutela provisória, busca-se a unificação entre a tutela cautelar e a tutela antecipada.

7.3.2 Tutela de urgência cautelar antecedente A tutela de urgência cautelar objetiva assegurar a efetividade

da relação processual, a utilidade da prestação jurisdicional. Pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental.

Como bem aponta Luiz Guilherme Marinoni:

A tutela cautelar tem por fim assegurar a viabilidade da realização de um direito, não podendo realizá-lo. A tutela que satisfaz um direito, ainda que fundada em juízo de aparência, é “satisfativa sumária”. A prestação jurisdicional satisfativa sumária, pois, nada tem a ver com a tutela cautelar. A tutela que satisfaz, por estar além do assegurar, realiza missão que é completamente distinta da cautelar. Na tutela cautelar há sempre referibilidade a um direito acautelado. O direito referido é que é protegido (assegurado) cautelarmente. Se inexiste referibilidade, ou referência a direito, não há direito acautelado.5

Em se tratando de tutela cautelar antecedente, a teor do art. 305, o requerente indicará a lide e seu fundamento, a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. O pedido cautelar poderá ser formulado juntamente com o principal (art. 308, §1º). Como já afirmado, o nosso

5 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 86.

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ordenamento não previu a estabilização da tutela de urgência cautelar antecedente.

Segundo o art. 308, efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 (trinta) dias, caso em que será apresentado nos mesmos autos em que deduzido o pedido de tutela cautelar.

Uma das hipóteses de cessação da eficácia da tutela cautelar antecedente é justamente a ausência de formulação do pedido principal no prazo legal (art. 309, I), seguida da ausência de sua efetivação no prazo de 30 (trinta) dias (art. 309, II) e julgamento improcedente do pedido principal ou a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 309, III).

O indeferimento da tutela de urgência cautelar não impede a formulação e a análise da pretensão principal, não se podendo associar a cognição sumária àquela de natureza exauriente. Nesse sentido, é o disposto no art. 310, segundo o qual o indeferimento da tutela cautelar não obsta a que a parte formule o pedido principal, nem influi no julga-mento deste, salvo se o motivo do indeferimento for o reconhecimento de decadência ou de prescrição.

7.4 Tutela de evidência

Em se tratando de tutela provisória na modalidade de evidência, não há necessidade de demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo.

Trata-se de antecipação da tutela do mérito em razão de situações reconhecidas pela lei. Segundo o art. 311 do Código de Processo Civil, a tutela de evidência alcança: i) abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; ii) alegações comprovadas documentalmente e existência de tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; iii) pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito; iv) petição inicial instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.

A tutela de evidência poderá ser concedida liminarmente apenas nas situações descritas nos itens ii e iii, nas quais não há necessidade de prévia oitiva da parte requerida. Trata-se de observância do disposto no art. 9º do Código de Processo Civil, reconhecendo-se a diretriz do contraditório substancial.

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7.5 Tutela liminar possessória

Nesse quadro de tutela provisória, sobressai a discussão sobre o enquadramento da liminar possessória. O Código de Processo Civil de 2015, no âmbito dos procedimentos especiais, manteve vários do diploma processual anterior e suprimiu alguns, destacando-se o procedimento especial das ações possessórias (arts. 554 a 568).

A tutela da posse – particularmente em se tratando de situação de esbulho – tem por fundamento o tempo da posse. Vale dizer: na definição do procedimento, é preciso saber se a pretensão foi ajuizada dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho (art. 558).

Verificando-se situação de tutela da posse nova, o procedimento poderá ser o especial, com destaque para a liminar possessória (art. 562), ou seja, a tutela satisfativa em cognição sumária. Nesse sentido, a tutela provisória seria de urgência ou de evidência?

O questionamento se afigura relevante, pois, se a posse é nova, o dano e a urgência são legalmente presumidos. Ao requerente, cumpre apenas demonstrar o exercício fático da posse. Tratar-se-ia, pois, de tutela provisória de evidência, nos termos do art. 311 do Código de Processo Civil?

A resposta é negativa. A uma, porque a tutela possessória não se encontra no rol da referida regra. A duas, porque as únicas hipóteses legais de tutela de evidência liminar envolvem prova meramente documental e tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante (art. 311, I); ou pedido reipersecutório fundado em contrato de depósito (art. 311, II).

Muito antes do Código de Processo Civil de 2015, entendia Humberto Theodoro Júnior que os interditos possessórios se inseriam no âmbito da tutela do direito evidente:

Descarto, pois, o tratamento indiscriminado das liminares, no direito processual brasileiro, como medidas cautelares. Muitas delas não se baseiam sequer no periculum in mora, mas na conveniência da tutela do direito evidente, como é o caso dos interditos possessórios e das ações locatícias, a propósito das revisionais e renovatórias, onde se cuida de assegurar efeitos econômicos imediatos, sem o pressuposto do periculum in mora.6

Em verdade, a tutela especial da posse poderia ser enquadrada como tutela provisória de urgência (art. 300). O fato, como já sublinhado,

6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela jurisdicional de urgência. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001, p. 7.

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é que, tratando-se de posse nova, o dano ou o risco são legalmente presu-midos. Destarte, a tutela liminar da posse nova seria uma modalidade diferenciada de provimento provisório de urgência.

No caso da tutela da posse velha, o procedimento, segundo o parágrafo único do art. 558 do Código de Processo Civil, será comum, o que, por certo, não exclui a possibilidade de tutela de urgência. Nessa situação, cabe ao requerente o ônus de demonstrar a probabilidade do direito e, principalmente, o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

No mais das vezes, até pela efetividade, a tutela possessória seguirá o procedimento especial. Ainda, nessa situação, o Código de Processo Civil parece apontar algumas incoerências. Vejamos.

O pressuposto da tutela liminar possessória pelo procedimento especial é a posse nova (art. 558). Porém, segundo o art. 565, no litígio coletivo pela posse do imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de liminar, deverá designar audiência de mediação. Como apreciar o pedido de tutela de urgência há mais de um ano e um dia se o pressuposto da própria liminar possessória é a tutela da posse nova? A regra parece sugerir que o pedido de tutela liminar foi apresentado dentro de ano e dia, mas sua apreciação se verificou após tal lapso temporal. A demora na apreciação do pedido liminar ensejará a designação de audiência de mediação.

A inconsistência parece insuperável. Não se pode limitar a tutela provisória possessória de urgência

pela demora da prestação jurisdicional. O tempo do processo não pode ser um ônus para o autor.

De outro lado e com fundamento no art. 3º, §3º, do Código de Processo Civil, deve ser incentivada a autocomposição, a resolução consensual dos conflitos.

Para dirimir essa incoerência, defende-se, em conflitos coletivos possessórios, seja posse nova ou posse velha, a realização de audiência de mediação.

A preocupação com autocomposição se destaca pelo teor do §1º do art. 565, segundo o qual, concedida a liminar, se esta não for executada no prazo de 1 (um) ano, a contar da data de distribuição, caberá ao juiz designar audiência de mediação.

Em síntese, a tutela judicial da posse se diferencia pelo tempo da posse e pela natureza do conflito. Como forma de compatibilizar a aparente incoerência entre as regras veiculadas pelos arts. 558 e 565, defende-se a necessidade de audiência de mediação em conflitos

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possessórios coletivos, não se afirmando a possibilidade da tutela de urgência liminar.

Diferencia-se a tutela possessória do regime geral previsto nos artigos 294 a 311. Trata-se de tutela provisória especial incidental de urgência.

7.6 Conclusão

A efetiva realização do direito material deve ser o objeto do processo. Nesse sentido, devem ser pensadas e implementadas as mais diversas técnicas processuais.

Muito salutar a disciplina geral do Código de Processo Civil da tutela provisória, compreendendo, no âmbito da cognição sumária, as tutelas de urgência e de evidência, com destaque para a estabilização da tutela de urgência antecipada antecedente, o que não exclui a possi-bilidade de aprimoramento das tutelas, como, v.g., a igual estabilização da tutela de urgência cautelar em caráter antecedente.

A partir da lógica trazida pelo atual Código de Processo Civil, pode-se pensar a tutela da posse nova a partir de provimento provisório especial incidental de urgência. Trata-se de tutela que não se ajusta, à perfeição, à moldura prevista no art. 294 e seguintes desse diploma legal, o que também não afasta a possibilidade de tutela provisória da posse velha mediante mecanismo de urgência.

ReferênciasMARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

OST, François. O tempo do direito. [Le temps du droit]. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: Universidade do Sagrado Coração, 2005.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela jurisdicional de urgência. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Tutela provisória e a liminar possessória. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 169-178. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 8

REPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE

PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)

Humberto Theodoro Júnior

8.1 Introdução

O CPC/2015 mantém o sistema unitário da relação processual, no qual não existe uma nova ação – a actio iuticati, distinta da ação condenatória –, outrora necessária para que o credor pudesse fazer atuar concretamente o comando sentencial. Uma única relação processual se presta ao acertamento do direito subjetivo material da parte e à realização da prestação jurisdicional juris-satisfativa. Diante dos títulos executivos judiciais, não há duas ações (uma para emissão da sentença, e outra para sua execução forçada). Um só e único processo se compõe de duas fases: a primeira, de certificação do direito subjetivo do credor, descumprido pelo devedor; e a segunda, que, sem solução de continuidade, enseja a prática dos atos judiciais de cumprimento da sentença pronunciada no primeiro estágio do procedimento. É por isso que se fala em processo “unitário” ou “sincrético”.

8.2 Abolição dos embargos à execução do título judicial

Uma vez que não há mais ação de execução de sentença civil condenatória, desaparece também a ação incidental de embargos do devedor no âmbito do cumprimento dos títulos judiciais. Sendo única a relação processual em que se obtém a condenação e lhe dá cumpri-mento, as questões de defesa devem, em princípio, ficar restritas à

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contestação, onde toda matéria oponível à pretensão do credor haverá de ser exposta e avaliada.

No entanto, como os atos executivos se sujeitam a requisitos legais, não se pode pretender realizá-los sem propiciar às partes o adequado controle de legalidade. A garantia constitucional do contraditório exige que ao executado seja dada oportunidade de se manifestar e de se defender, diante de cada ato processual executivo, ou de preparação do provimento satisfativo pretendido pelo exequente.

A peça básica de defesa do executado é a impugnação ao cumpri-mento da sentença, que pode ser produzida no prazo de quinze dias contados da intimação1 para realização voluntária correspondente à obrigação certificada no título judicial (NCPC, arts. 523 e 525).2

Vê-se, assim, que o executado, após a intimação para pagar a dívida, terá o prazo trinta dias úteis (art. 219)3 4 para apresentar a impugnação: quinze dias para realizar o pagamento voluntário, e mais

1 Para o novo CPC, a ciência inequívoca da parte equivale à sua intimação: (a) “CONTESTAÇÃO – Intempestividade – Caracterização – Comparecimento espontâneo do demandado – Termo inicial da contagem – Juntada de procuração ao processo – Ciência inequívoca – Aplicação do art. 239, §1º, do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15)” (TJ/SP, 2ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2001205-74.2016.8.26.0000, Rel. Des. Alvaro Passos, data do julgamento 25.08.2016, data do registro 25.08.2016); (b) “O cômputo do prazo para a interposição do agravo de instrumento deve se dar a partir da data em que ocorreu a ciência inequívoca da decisão, ou seja, da formulação de pedido de reconsideração perante o R. Juízo a quo e não da disponibilização desta no DJE” (TJ/SP, 30ª Câm. de Direito Privado, AgIn 2113476-26.2016.8.26.0000, Rel. Des(a). Maria Lúcia Pizzotti, data do julgamento 28.09.2016, data do registro 07.10.2016).

2 O TJ/SP decidiu que, por enquanto, não há condições necessárias à intimação da Fazenda Pública por meio eletrônico: “Agravo de Instrumento. Embargos à execução. Cumprimento de sentença. Decisão que indeferiu o pedido de intimação da Fazenda por meio eletrônico. Pretensão à reforma. Desacolhimento. Impossibilidade, por ora, da realização de intimação por meio eletrônico da Fazenda Pública, no âmbito deste Tribunal de Justiça. Inteligência do artigo 270 do NCPC” (TJ/SP, 18ª Câm. de Direito Público, AgIn nº 2105973-51.2016.8.26.0000, Rel. Des. Ricardo Chimenti, data do julgamento 03.11.2016, data do registro 08.11.2016).

3 A contagem dos prazos em dias úteis, segundo o TJ/SP, aplica-se tanto aos processos regulados pelo CPC, como por leis especiais: “Alienação fiduciária. Ação de busca e apreensão. Aplicação do novo Código de Processo Civil no tocante à forma de contagem dos prazos. Cabimento. Falta de disciplina sobre o tema na lei especial que impõe adotar o regime comum traçado pelo CPC, inexistindo motivo para se aplicar forma de contagem de lei já revogada” (TJ/SP, 36ª Câm. de Direito Privado, AgIn 2148811-09.2016.8.26.0000, Rel. Des. Arantes Theodoro, data do julgamento 25.08.2016, data do registro 25.08.2016).

4 A contagem em dobro, de acordo com o TJ/SP, refere-se aos prazos processuais, e não aos de direito material: “Agravo de instrumento – tutela antecipada requerida em caráter antecedente – sustação de protestos – art. 303 do Código de Processo Civil – tutela cautelar efetivada – pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 dias – natureza jurídica do prazo do art. 308 do Código de Processo Civil – material – prazo que deve ser contado em dias corridos e não em dias úteis” (TJ/SP, 16ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2150988-43.2016.8.26.0000, Rel. Des. Coutinho de Arruda, data do julgamento 03.11.2016, data do registro 03.11.2016).

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quinze dias para a impugnar o cumprimento da sentença, se for o caso. E tal prazo se conta agora independentemente de penhora ou depósito, pondo fim à controvérsia doutrinária ao tempo do CPC/1973 acerca de ser ou não a garantia da execução o marco inicial do prazo da defesa do executado.5 Ou seja, o executado pode apresentar a impugnação sem qualquer garantia prévia do juízo.6 Não haverá contagem em dobro do respectivo prazo, mesmo em caso de litisconsortes representados por advogados diferentes, se o processo for eletrônico.7

8.3 Natureza jurídica da impugnação

A impugnação ao cumprimento da sentença não tem a natureza de ação, como se dá com os embargos à execução de título extrajudicial. Estes, sim, podem conter ataques ao direito material do exequente, tal como se passa nos prosseguimentos do processo de conhecimento. E, por isso, deságuam em provimento que pode tanto certificar a existência como a inexistência do direito subjetivo substancial, que se pretendeu executar em juízo.

Uma vez que a dívida exequenda já foi acertada por sentença, não cabe ao executado reabrir discussão sobre o mérito da condenação. Sua impugnação terá de cingir-se ao terreno das preliminares constantes dos pressupostos processuais e condições da execução. Matérias de mérito (ligadas à dívida propriamente dita) somente poderão se relacionar com fatos posteriores à sentença que possam ter afetado a subsistência, no todo ou em parte, da dívida reconhecida pelo acertamento judicial

5 A garantia do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao cumprimento da sentença (...). Se o dispositivo – art. 475-J, §1º, do CPC [de 1973] – prevê a impugnação posteriormente à lavratura do auto de penhora e avaliação, é de se concluir pela existência de garantia do juízo anterior ao oferecimento da impugnação (...) (STJ, 3ª T., REsp nº 1.195.929/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, ac. 24.04.2012, DJe 09.05.2012). Nossa opinião, todavia, era no sentido de que “a referência à penhora, no aludido dispositivo legal não deve ser entendida como definidora de um requisito do direito de impugnar o cumprimento da sentença. O intuito do legislador no §1º, do art. 475-J foi apenas o de fixar um momento processual em que a impugnação normalmente deva ocorrer” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. II. n. 652. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 58).

6 A impugnação ao cumprimento da sentença não impede o credor de proceder ao protesto e à inscrição do devedor em cadastro de proteção ao crédito (TJ/SP, 1ª Câm. Reservada de Direito Empresarial, AgIn nº 2211802-21.2016.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, data do julgamento 24.11.2016, data do registro 24.11.2016; TJ/SP, 13ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2195397-07.2016.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Giaquinto, data do julgamento 04.11.2016, data do registro 04.11.2016).

7 TJ/SP, 14ª Câm. de Direito Privado, Ap 1023351-50.2015.8.26.0554, Rel. Des. Carlos Abrão, data do julgamento 02.12.2016, data do registro 02.12.2016.

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condenatório, como o caso de pagamento, novação, remissão, compen-sação, prescrição etc., ocorridos supervenientemente.

A mesma razão que levou a extinguir a ação de embargos do devedor prevalece também para os embargos à arrematação e à adjudi-cação. Se os primeiros foram transformados explicitamente em simples impugnação, não há razão para se manter a natureza de ação incidental para o ataque aos atos executivos posteriores à penhora. Num e noutro caso, os questionamentos do executado haverão de ser feitos por meio de incidentes no bojo do próprio procedimento de cumprimento da sentença. A solução sempre será encontrada por meio de decisão inter-locutória, e o recurso interponível será o agravo de instrumento,8 9 salvo quando a decisão decretar a extinção da execução.10

A impugnação – a exemplo do que se admitia nas chamadas exceções de pré-executividade ou objeção de não executividade – manifesta-se por meio de simples petição no bojo dos autos. Não se trata de petição inicial de ação incidental, como é o caso dos embargos à execução de título extrajudicial. Por isso, não há citação do credor e nem sempre se exige autuação apartada. Cumpre-se, naturalmente, o contraditório, ouvindo-se a parte contrária e permitindo-se provas necessárias à solução da impugnação.11

8 Os embargos à arrematação e à adjudicação passam a constituir ação que diz respeito, como regra geral, à execução fundada em título executivo extrajudicial. Incidentes relativos à expropriação apoiada em título executivo judicial devem ser resolvidos, doravante e via de regra, dentro do próprio processo originário, em sua fase executiva, mostrando-se inadequado o ajuizamento de embargos de segunda fase (OLIVEIRA, Robson Carlos de. Embargos à arrematação e à adjudicação. v. 59. São Paulo: RT, 2006, p. 322 – Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman).

9 A partir da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, inexiste razão para que os recursos interpostos antes da ocorrência do termo inicial do prazo deixem de ser conhecidos sob a alegação de intempestividade – Art. 218, §4º, do NCPC (TJ/SP, 31ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2196581-95.2016.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Nunes, data do julgamento 18.10.2016, data do registro 18.10.2016).

10 É sentença o ato que extingue a execução: “Impossibilidade de interposição de agravo de instrumento contra pronunciamento que extingue a execução – Recurso cabível de apelação – Dicção dos artigos 203, §1º e 1.009, caput do novo Código de Processo Civil” (TJ/SP, 28ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2143233-65.2016.8.26.0000, Rel. Des. Mario Chiuvite Júnior, data do julgamento 10.11.2016, data do registro 10.11.2016).

11 Necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais, ainda que de modo conciso, sob pena de nulidade – Inteligência dos artigos 11, do novo Código de Processo Civil, vigente à época da prolação da decisão agravada, e 93, inciso IX, da Constituição Federal (TJ/SP, 24ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2169787-37.2016.8.26.0000, Rel. Des. Plinio Novaes de Andrade Júnior, data do julgamento 27.10.2016, data do registro 19.12.2016).

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8.4 Defesa de mérito

Em regra, a impugnação do devedor restringe-se às irregula-ridades dos atos executivos, já que não se pode permitir ataque ao mérito da causa resolvido na sentença exequenda. A coisa julgada a torna imutável e indiscutível (CPC/2015, art. 502). A obrigação certificada judicialmente, sem embargo da intangibilidade da sentença, tem, no entanto, vida própria, a qual pode sofrer modificações, impedimentos e até extinção por eventos supervenientes ao trânsito em julgado. O pagamento e a remissão, por exemplo, quando ocorridos após a sentença, extinguem a obrigação certificada no título judicial, impedindo a insta-lação ou o prosseguimento da segunda fase do processo unitário (fase executiva ou de cumprimento da sentença).12

O mesmo se passa com a prescrição, cuja arguição, não sendo feita antes da sentença, sofre o efeito inibidor da preclusão máxima derivada da coisa julgada (NCPC, art. 508), o que, entretanto, não impede que novo lapso prescricional possa se iniciar e consumar depois da res iudicata.

Eventos dessa natureza, obviamente, podem ser suscitados na impugnação ao cumprimento da sentença sem que se afete a sua autoridade de coisa julgada (CPC/2015, art. 525, §1º, VII). A executi-vidade, todavia, ficará suprimida, uma vez extinta a obrigação definida na sentença, ou a pretensão dela oriunda, se eventualmente a defesa do executado for acatada.13

8.5 A prescrição é basicamente um fenômeno do direito material

Dentre as duas grandes propostas de conceituação da prescrição encontradas no direito comparado – a do direito alemão (extinção da pretensão não exercida no prazo legal) e a do direito italiano (extinção do direito por falta de exercício pelo titular durante o tempo determinado

12 Extinção do processo executivo por sentença. Homologação judicial de acordo celebrado pelas partes. Substituição do título executivo pelo acordo. Descumprimento da avença. Possibilidade de protesto da decisão judicial, se transitada em julgado e o prazo para pagamento voluntário do débito tiver expirado. Exegese do art. 517 do CPC/2015 (TJ/SP, 34ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2162001-39.2016.8.26.0000, Rel. Des. Gomes Varjão, data do julgamento 28.09.2016, data do registro 30.09.2016).

13 É nula a sentença que não se manifesta sobre todos fundamentos e fatos invocados pelas partes, e julga a ação procedente sem atentar para a pretensão acidentária do benefício, caracterizando ofensa ao princípio da fundamentação dos atos processuais (TJ/SP, 17ª Câm. de Direito Público, Ap. nº 0000291-67.2011.8.26.0146, Rel. Des. Afonso Celso da Silva, data do julgamento 27.09.2016, data do registro 29.09.2016).

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em lei) –, o atual Código Civil brasileiro optou pelo primeiro modelo, que, à luz do seu art. 189,14 pode assim ser explicado: “A prescrição faz extinguir o poder de uma pessoa de exigir de outra uma prestação (ação ou omissão), ou seja, provoca a extinção da pretensão, quando não exercida no prazo definido na lei”.15

A compreensão desse posicionamento normativo exige que se faça uma nítida distinção entre direito subjetivo e pretensão, já que, para nosso Código Civil, “não é o direito subjetivo descumprido pelo sujeito passivo que a inércia do titular faz desaparecer, mas o direito de exigir em juízo a prestação inadimplida que fica comprometido pela prescrição”.16

Quem, por exemplo, é titular de um crédito não vencido detém, sem dúvida, um direito subjetivo. Acha-se, porém, numa situação jurídica estática ou de inércia momentânea perante o devedor. Se, todavia, a obrigação se vence e o devedor deixa de resgatá-la, nasce para o credor o poder de exigir a prestação a que se obrigou o devedor, cabendo, por isso, atuar em juízo, se necessário for, para fazer prevalecer a pretensão oriunda da violação cometida contra seu direito subjetivo. Assim, a situação jurídica torna-se dinâmica diante do nascimento da pretensão.

A anspruch (isto é, a pretensão), segundo Windscheid, citado por Pugliese, nada mais é do que o direito de postular a eliminação da violação de um direito primário; portanto, é uma figura distinta do direito violado, cuja não satisfação seria a condição da actio.17

Para nosso Código Civil, nessa ordem de ideias, não é nem o direito subjetivo material da parte, nem o direito processual de ação (direito à sentença) que será objeto da prescrição, mas, sim e apenas, “a pretensão de obter a prestação devida por quem a descumpriu (actio romana ou ação em sentido material)”.18

Tampouco se pode afirmar que o titular do direito material alcançado pela prescrição perca o direito processual de ação, visto que tal direito se exprime como poder de exigir do juiz uma decisão que

14 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 157.

15 Código Civil/2002, art. 189: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.

16 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 158.

17 PUGLIESE, Giovanni. Actio e dirittosubiettivo. n. 43. Milano: Giuffrè, 1939, p. 253, apud MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do Projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 151, nota 7.

18 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 160.

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solucione o conflito de direito material, sem indagação de qual parte esteja com a razão no plano substancial. E quando se reconhece ou se recusa a configuração da prescrição, o litígio, sem dúvida, resulta composto pelo mérito (CPC, art. 487, II).

Quanto à sobrevivência do direito substancial, mesmo após a prescrição, é bom que se diga que “o direito subjetivo, embora desguar-necido da pretensão, subsiste, ainda que de maneira débil (porque não amparado pelo direito de forçar o seu cumprimento pelas vias jurisdi-cionais), tanto que, se o devedor se dispuser a cumpri-lo, o pagamento será válido e eficaz, não autorizando repetição de indébito (art. 882)”.19

A par disso, a subsistência do direito subjetivo do credor violado pelo devedor, após o transcurso do lapso prescricional, é evidenciada também pela faculdade reconhecida ao devedor de renunciar aos efeitos da prescrição já consumada, o que pode acontecer de forma expressa ou tácita (Código Civil, art. 191).

É certo que o art. 194 do Código Civil, que vedava o reconhe-cimento da prescrição pelo juiz, de ofício, foi revogado pela Lei nº 11.280/2006, tornando possível a respectiva decretação, independen-temente de requerimento do interessado. Isto, porém, só será feito depois de ouvidas as partes, as quais poderão evidenciar a ocorrência de impedimentos ou de suspensão da fluência do prazo prescricional, ou viabilizar a renúncia aos efeitos extintivos da prescrição (CPC/2015, art. 487, parágrafo único).20

Nessa perspectiva, as Jornadas de Direito Civil, patrocinadas pelo Centro de Estudos Jurídicos (CEJ) do Conselho da Justiça Federal, emitiram o Enunciado nº 295, assim redigido: “A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei nº 11.280/2006, que determina ao juiz o

19 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. n. 302. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 158.

20 (a) “EXECUÇÃO – PRESCRIÇÃO – ‘DECISÃO-SUPRESA’ – Pretensão de reforma da respeitável sentença que extinguiu o processo, reconhecida a prescrição da pretensão executiva – Cabimento – Hipótese em que deve ser anulada a respeitável sentença, pois não houve prévia manifestação da parte acerca do decurso do prazo prescricional – Vedação da chamada ‘decisão-surpresa’, nos termos do novo Código de Processo Civil (arts. 9º E 10º)” (TJ/SP, 13ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 0042876-03.2006.8.26.0602, Rel. Des(a). Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca, data do julgamento 15.09.2016, data do registro 15.09.2016); (b) “Patente a afronta ao artigo 10 do CPC – Antes de desconstituir a constrição com base na simples nota de devolução, o Juízo a quo deveria oportunizar à parte a manifestação sobre o documento, – Decisão anulada” (TJ/SP, 11ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2149313-45.2016.8.26.0000, Rel. Des. Marino Neto, data do julgamento 18.10.2016, data do registro 18.10.2016); (c) Todavia, não se anula o ato se a “decisão surpresa” não causou prejuízo à parte (TJ/SP, 12ª Câm. de Direito Privado, AgIn nº 2144216-64.2016.8.26.0000, Rel. Des. Cerqueira Leite, data do julgamento 11.10.2016, data do registro 11.10.2016).

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reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possi-bilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado”. Por isso mesmo, a lição de Arruda Alvim, mesmo antes do novo Código de Processo Civil de 2015, já era no sentido de não poder o juiz, sem ouvir o réu e o autor, pura e simplesmente, indeferir a pretensão objeto da prescrição, de ofício.21

A estrutura clássica da arguição da prescrição em juízo sempre foi a de uma exceção de direito material (defesa de mérito, manejável por iniciativa do demandado).22 A possibilidade de a questão ser suscitada por iniciativa do juiz não altera a natureza da decisão. Se a matéria está afetada ao mérito da causa, a solução que lhe dê o juiz somente poderá ser qualificada como julgamento de mérito, suscetível, portanto, de revestir-se da autoridade de coisa julgada material (CPC, art. 502).

Com maior razão, esse entendimento se aplica ao regime da lei que trata a prescrição como causa de extinção do direito subjetivo, a exemplo do Código Civil italiano. Se assim é, seja em nosso direito, seja no italiano, ao acolher a exceção de prescrição formulada pelo demandado, o juiz estará pronunciando a rejeição do próprio pedido do autor constante da petição inicial. Configurar-se-á, portanto, a forma mais típica de resolução do mérito, qual seja, a do acolhimento ou rejeição do pedido formulado na ação (CPC/2015, art. 487, I).

8.6 Prescrição da pretensão condenatória e da pretensão executiva

Dentre as matérias de mérito arguíveis na impugnação ao cumpri-mento da sentença, figura a prescrição, se acaso tiver ela ocorrido após a coisa julgada (CPC/2015, art. 525, §1º, VII). A propósito, está sumulado o entendimento do STF de que há duas prescrições distintas: (i) a da pretensão veiculada no processo de conhecimento e (ii) a da execução da condenação obtida com a sentença. O prazo a observar, nas duas situações, é, no entanto, o mesmo (Súmula nº 150/STF).

O novo Código de Processo Civil, por sua vez, não deixa dúvida de que continuam a existir as duas prescrições distintas e sucessivas: uma, para a pretensão condenatória; outra, para a pretensão executiva.

21 ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel. Lei 11.280, de 16.02.2006: análise dos arts. 112, 114 e 305, do CPC e do §5º, do art. 219, do CPC. Revista de Processo, v. 143, p. 23, jan. 2007.

22 Segundo o art. 487, II, do CPC/2015, “haverá resolução de mérito quando o juiz (...) decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição”.

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187HUMBERTO THEODORO JÚNIORREPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)

Tanto é assim que, transformado o procedimento cognitivo em executivo, admite-se, entre as defesas possíveis contra o cumprimento da sentença transitada em julgado, a exceção de prescrição, desde que superveniente ao aperfeiçoamento do título judicial (art. 525, §1º, VII). Por isso, é evidente que a Súmula nº 150 do STF não restou invalidada com o advento da atual sistemática de cumprimento do título executivo judicial.23

Outra questão que o novo CPC superou foi a da prescrição inter-corrente (art. 924, V), que pode se consumar tanto no curso do processo de conhecimento quanto no de execução, embora o dispositivo legal aludido só se refira à execução.24 O seu pressuposto é o abandono do feito, pelo autor, deixando-o paralisado por tempo superior ao prazo prescricional aplicável ao caso. Há, entretanto, no art. 1.056, uma regra de direito intertemporal, que veda a contagem da prescrição intercor-rente em período anterior à vigência do novo CPC.25

8.7 Um caso particular de prescrição e decadência: a sentença da ação de repetição do pagamento indevido

Quando a sentença resolve questão ligada à invalidação de cláusula contratual ou do próprio contrato, costumam-se reunir num só processo duas pretensões: a de invalidar o negócio viciado e a de recuperar os pagamentos indevidamente feitos em função do ajuste nulo ou anulado.

23 Não obstante a concepção do cumprimento do título judicial, como incidente do processo único previsto para certificação e realização do direito do credor, continua persistindo o discernimento entre a pretensão de acertamento e a de execução, de modo a sujeitar cada uma delas a uma prescrição própria e não contemporânea. Primeiro, flui a da pretensão de condenação; depois, a da pretensão de fazer cumprir a respectiva sentença (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. III. n. 52. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 92). No mesmo sentido: STJ, 2ª T., REsp nº 1.072.882/SP, Rel. Min. Castro Meira, ac. 20.11.2008, DJe 12.12.2008; STJ, 1ª T., AgRg no Ag nº 1.418.380/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, ac. 15.12.2011, DJe 02.02.2012; STJ, 1ª T., AgRg no AREsp nº 186.796/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, ac. 25.06.2013, DJe 07.08.2013.

24 Em execução fiscal, o reconhecimento da prescrição intercorrente não enseja remessa ex officio: “Inteligência do art. 496, §3º, inciso III, do novo Código de Processo Civil – Reexame necessário não conhecido” (TJ/SP, 18ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 0530167-77.2007.8.26.0266, Rel. Des. Wanderley José Federighi, data do julgamento 24.11.2016, data do registro 28.11.2016).

25 O artigo 1.056 do Novo Código de Processo Civil determina que se considerará como termo inicial do prazo para a prescrição a que alude o art. 924, V, a data de vigência da nova lei adjetiva, inclusive para as execuções em curso (TJ/SP, 37ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 1006835-17.2014.8.26.0577, Rel. Des. Pedro Kodama, data do julgamento 22.11.2016, data do registro 22.11.2016).

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188 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Não há no Código Civil a previsão específica do prazo prescri-cional aplicável à repetição do indébito. Existe, porém, a regra do seu art. 206, §3º, IV, que estabelece o prazo de três anos para “a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa”. Seria esta a prescrição aplicável à repetição do pagamento indevido? Ou seria a prescrição decenal genérica do art. 205?

Em diversas hipóteses de repetição de pagamento efetuado com base em cláusula negocial abusiva ou nula, o STJ, inclusive em recursos repetitivos, tem assentado a tese de que, com o reconhecimento judicial da nulidade ou com a invalidação promovida em juízo, desaparece a causa lícita do pagamento, caracterizando, assim, o enriquecimento indevido daquele que o recebeu.

Nessa perspectiva, o enriquecimento sem causa, visto mais como um princípio do que como um instituto, abrange, para efeito prescricional, a pretensão de recuperação do pagamento realizado em função do negócio ou cláusula invalidados. Por conseguinte, a pretensão de reconhecimento de nulidade de cláusula de reajuste de preço, constante de determinado contrato – como, v.g., o de plano de saúde, com a consequente repetição do indébito –, corresponde à ação fundada no enriquecimento sem causa, de modo que o prazo prescricional a aplicar é o trienal de que trata o art. 206, §3º, IV, do Código Civil.26

Para a aplicação da prescrição própria do enriquecimento sem causa, na espécie, não importa que a ação seja declaratória (de nulidade), insuscetível de prescrição ou constitutiva (de nulidade), sujeita a prazo decadencial, visto que, a respeito da repetição do pagamento indevido, a pretensão é de natureza condenatória. A qualquer tempo, o requeri-mento do contratante de reconhecimento da cláusula contratual abusiva ou ilegal poderá ser deduzido em juízo. “Porém, sua pretensão conde-natória de repetição do indébito terá que se sujeitar à prescrição das parcelas vencidas no período anterior à data da propositura da ação, conforme o prazo prescricional aplicável”, como ressaltado no REsp. nº 1.361.182/RS, pela 2ª Seção do STJ.

26 STJ, 2ª Seção, REsp. nº 1.361.182/RS, Rel. p. acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, ac. 10.08.2016, DJe 19.09.2016. A mesma tese foi aplicada à cláusula que abusivamente imputava ao promissário comprador a obrigação de pagar comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere. Também aqui, em caráter uniformizador da jurisprudência, foi fixada a tese da incidência da prescrição trienal própria da pretensão de ressarcimento do enriquecimento sem causa (Código Civil, art. 206, §3º, IV) (STJ, 2ª Seção, REsp. nº 1.551.956/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, ac. 24.08.2016, DJe 08.09.2016).

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189HUMBERTO THEODORO JÚNIORREPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)

8.8 Visão pretoriana moderna do enriquecimento sem causa

O voto do Ministro Marco Aurélio Bellizze no REsp nº 1.361.182, que foi o condutor do respectivo acórdão, contém uma larga história do enriquecimento sem causa como fonte de obrigação, tanto no direito comparado como no direito brasileiro. Nele se faz uma resenha de como o tratamento legal da matéria evoluiu desde o Código Civil de 1916 até o vigente Código de 2002, de modo a evidenciar, com ampla invocação de precedentes do STJ, que o instituto do enriquecimento sem causa foi adotado, entre nós, em seu sentido mais amplo possível. Por isso, qualquer que seja a origem do locupletamento ilícito, mesmo o derivado de relações contratuais, sempre será possível o seu enquadramento nos parâmetros do enriquecimento sem causa. Dentre as diversas hipóteses de enriquecimento sem causa, figura aquela correspondente à “ausência de causa jurídica para a recepção da prestação que foi realizada”, devendo esta ausência de causa ser definida em sentido subjetivo, “como não obtenção do fim visado com a prestação”. Caberá a restituição da prestação sempre que for realizada com vistas à obtenção de determinado fim, e tal fim não vier a ser obtido”, no dizer de Menezes Leitão.27

Nesse sentido, além da doutrina alemã citada no acórdão do STJ, são invocadas as lições de Agostinho Alvim, que inspirou o Código de 2002, e de Menezes Leitão, formulada em análise direta de nosso atual Código Civil. Por fim, arrola o Ministro Marco Aurélio Bellizze vários acórdãos do STJ para demonstrar que, em sua jurisprudência, é firme o entendimento de que o pagamento indevido em função de cláusula contratual nula ou abusiva se sujeita à repetição, dentro do prazo prescricional do ressarcimento do enriquecimento sem causa (Código Civil, art. 206, §3º, IV),28 isto porque – aduz o ilustre Ministro – “é entendimento assente desta Corte que a repetição é consequência lógica do reconhecimento judicial da ilegalidade de cláusulas contratuais abusivas e do acolhimento do pedido de restituição do que foi pago a mais, em atenção

27 MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004, p. 28.

28 STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.220.934/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, ac. 24.04.2013, DJe 12.06.2013; STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.249.321/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, ac. 10.04.2013, DJe 16.04.2013; STJ, 3ª T., REsp nº 1.238.737/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. 08.11.2011, DJe 17.11.2011.

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ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, prescindindo, pois, da prova do erro prevista no art. 965 do Código Civil”.29

Toda essa rica orientação pretoriana provém de uma visão do fenômeno do enriquecimento sem causa que não fica restrito à sua função subsidiária lembrada pelo art. 886 do Código Civil. De fato, por derivação do caráter subsidiário ou complementar (Código Civil, art. 886), atribuído costumeiramente ao enriquecimento sem causa, como fonte da obrigação de ressarcir o dano provocado por aquele que se locupleta, sem justa causa, com o prejuízo de outrem, é recorrente atribuir-lhe o feitio de um instituto jurídico destinado a completar o sistema de reparação do dano injusto nas relações patrimoniais (art. 884). Mas não é só nas lacunas do sistema repressivo do prejuízo injusto que o enriquecimento sem causa opera. Há, nas previsões do direito civil, vários institutos que, se destinando a gerar a obrigação de ressarcir o prejuízo injusto, embora de maneira típica, encontram fundamento primário na repressão necessária ao enriquecimento sem causa.

Pense-se, por exemplo, na obrigação do dono de indenizar benfeitorias necessárias introduzidas pelo possuidor de coisa alheia, ainda que de má-fé (Código Civil, art. 1.220), bem como na obrigação do dono do negócio de reembolsar ao gestor as despesas necessárias ou úteis que este houver feito na administração benéfica do interesse alheio (Código Civil, art. 869). Estes e outros casos correspondem a obrigações de ressarcir regulados pela lei de maneira própria e com requisitos específicos. Todos, porém, se inspiram, em última análise, no princípio geral que veda o enriquecimento sem causa.

É por isso que todos esses institutos, naquilo que não contarem com regras específicas, poderão se valer da sistemática do regime do enriquecimento sem causa, para se completarem, como, por exemplo, faz convincentemente a jurisprudência do STJ em matéria de prescrição da pretensão de repetição do pagamento indevido.

29 STJ, 4ª T., Ag Rg no REsp nº 557.301/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, ac. 28.06.2005, DJU 22.08.2005, p. 283. Precedentes arrolados: STJ, 4ª T., AgRg no REsp 733.037/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, ac. 05.05.2005, DJU 13.06.2005, p. 322; STJ, 3ª T., AgRg no REsp nº 699.352/RS, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, ac. 24.05.2005, DJU 20.06.2005, p. 284; STJ, 4ª T., AgRg no REsp nº 546.446/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, ac. 07.04.2005, DJU 02.05.2005, p. 356. No mesmo sentido: STJ, 4ª T., AgRg no AREsp nº 182.141/SC, Rel. Min. Isabel Gallotti, ac. 12.05.2015, DJe 19.05.2015; STJ, 4ª T., AgRg no REsp nº 1.052.209/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, ac. 16.06. 2009, DJe 04.08.2009; STJ, 3ª T., AgRg no Ag 1.125.621/SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, ac. 19.05.2009, DJe 03.06.2009.

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191HUMBERTO THEODORO JÚNIORREPETIÇÃO DE PAGAMENTO INDEVIDO. CONDENAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO (NCPC, ART. 525, §1º, VII)

8.9 Observações conclusivas

Prevalecem, enfim, no STJ, os entendimentos seguintes:

(a) O conceito de enriquecimento sem causa no direito moderno não é unívoco, de modo que sua proibição “consiste apenas numa máxima de justiça comutativa que se encontra a um nível de abstração tal, que carece de preenchimento pelo julgador, efetuado pela integração ao caso numa categoria específica de enriquecimento sem causa”.30

(b) Na mais atualizada concepção, o enriquecimento sem causa é um largo gênero (mais próximo de um princípio do que mesmo de um instituto), que abarca tanto o campo da transmissão dos bens como o pro-longamento da eficácia do direito de propriedade, inserindo-se, de tal modo, “no âmbito da proteção jurídica dos bens” (WILBURG). Vários tipos ou hipóteses de fenômeno jurídico podem, exemplificativamente, configurar enriquecimento sem causa, como o enriquecimento por prestação, por intervenção, por liberação de dívida paga por terceiro, por despesas efetuadas em coisa alheia, etc. (VON CAEMMERER).31

(c) “Cuidando-se de pretensão de nulidade de cláusula de reajuste prevista em contrato de plano ou seguro de assistência à saúde, com a consequente repetição do indébito, a ação ajuizada está fundada no enri-quecimento sem causa e, por isso, o prazo prescricional aplicável é o trienal, previsto no art. 206, §3º, IV, do Código Civil de 2002”.32 (g.n.)(d) “Tanto os atos unilaterais de vontade (promessa de recompensa, arts. 854 e ss.; gestão de negócios, arts. 861 e ss.; pagamento indevido, arts. 876 e ss.; e o próprio enriquecimento sem causa, arts. 884 e ss.) como os negociais, conforme o caso, comportam o ajuizamento de ação fundada no enriquecimento sem causa, cuja pretensão está abarcada pelo prazo prescricional trienal previsto no art. 206, §3º, IV, do Código Civil de 2002.” (g.n.) 33

Última observação: mesmo que a ação de repetição do indébito, decorrente de cláusula contratual abusiva ou nula, tenha sido ajuizada e julgada sem infringir o prazo trienal de prescrição, é preciso estar atento ao posterior prazo de prescrição da pretensão executiva, aplicável

30 MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004, p. 25-27 (orientação seguida no REsp nº 1.361.182/RS).

31 MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004, p. 25-27 (orientação seguida no REsp nº 1.361.182/RS).

32 STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.361.182/RS, Rel. p. acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, ac. 10.08.2016, DJe 19.09.2016 (tese firmada em recurso repetitivo).

33 STJ, 2ª Seção, REsp nº 1.361.182/RS, Rel. p. acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, ac. 10.08.2016, DJe 19.09.2016 (tese firmada em recurso repetitivo).

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ao cumprimento da sentença condenatória (NCPC, art. 525, §1º, VII). Se o credor, após o trânsito em julgado da decisão que reconheceu o seu direito à repetição do pagamento indevido, permanecer inerte, deixando de requerer a instauração da fase executiva do processo (NCPC, art. 523, caput), a pretensão ao cumprimento da sentença se extinguirá em três anos. É bom ter sempre em mente que, a partir da res iudicata, “prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação” (Súmula nº 150/STF).34

ReferênciasARRUDA ALVIM NETO, José Manoel. Lei 11.280, de 16.02.2006: análise dos arts. 112, 114 e 305, do CPC e do §5º, do art. 219, do CPC. Revista de Processo, v. 143, jan. 2007.

MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil brasileiro. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2004.

OLIVEIRA, Robson Carlos de. Embargos à arrematação e à adjudicação. v. 59. São Paulo: RT, 2006 ‒ Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman.

PUGLIESE, Giovanni. Actio e diritto subiettivo. Milano: Giuffrè, 1939 apud MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do Projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1986.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 4. ed. v. III. t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Repetição de pagamento indevido. Condenação judicial. Exceção de prescrição (NCPC, art. 525, §1º, VII). In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 179-192. ISBN 978-85-450-0456-1.

34 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 49. ed. v. III. n. 52. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 90-93.

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CAPÍTULO 9

ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO

ESTADO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Mariza Rios, Newton Teixeira Carvalho

9.1 Introdução

A Constituição Federal de 1988 garantiu, no inciso XXXV de seu art. 5º, o princípio conhecido como acesso à justiça ou direito de ação. Este princípio foi incorporado ao texto pelo legislador para garantir que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”1 e, por essa razão, pode-se afirmar que todos têm direito de requerer a tutela jurisdicional para amparar direito ameaçado ou conseguir a adequada reparação quando ele é ofendido.

Assim, a consequência lógica natural da Constituição republicana de 1988 foi o reconhecimento de inúmeros outros direitos no nosso ordenamento jurídico, razão de ser aquela Lei Maior rotulada, com perfeição, de inclusiva ao trazer para o mundo do direito inúmeras pessoas até então marginalizadas.

O citado princípio se apresenta, no contexto brasileiro, como fruto de uma ordem democrática construída, conectada a uma realidade de país historicamente marcado pela presença de uma população que, na sua maioria, é pobre no sentido jurídico da palavra e, portanto,

1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1998. Disponível em: <www2.senado.gov.br/sf/legislacao/const/>. Acesso em: 23 maio 2017.

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194 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

necessita da garantia estatal para que seu direito fundamental de ação seja efetivado.

Logo após essa nova ordem democrática, formalmente perfeita, veio uma melhor regulamentação dos direitos das crianças e adoles-centes, bem como o Código do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para citar algumas entre várias outras leis.

Entretanto, continuamos um país pobre e com uma população pouco esclarecida em relação aos seus direitos. Assim, para que a Constituição Cidadã atinja a todos, sem distinção, necessário é que as pessoas que não podem contratar advogado para a realização de atos e negócios e também para que, havendo discussão, possam ajuizar a ação necessária, não basta garantir formalmente direitos, mas que tenham a devida e imediata atenção. Essencial, neste momento, a presença do Estado, por meio de suas instituições, com os esclarecimentos almejados e com advogados prontos para ajuizar a ação competente. Indispensável também que o Poder Judiciário não dificulte o acesso dos hipossuficientes economicamente falando, com a ação necessária, inclusive exigindo, indevidamente, com a inicial, a prova de que o requerente é pobre.

Segundo Espíndola,2 no direito, enquanto ordem jurídica, os princípios, universalmente reconhecidos como normas de direito, são providos de positividade e possuem eficácia positiva e negativa em relação a comportamentos público ou privado, bem assim sobre a interpretação e a aplicação de outras normas.

Dessa forma, neste trabalho pretende-se demonstrar que dificultar o acesso ao judiciário a pessoas pobres é descumprir a Constituição, negando-lhes o exercício da cidadania. É, por conseguinte, descumprir a garantia do direito de ação tanto do rico como do pobre.

A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica e a experiência jurisprudencial, que vem marcando o contexto nacional nos últimos tempos, com inúmeras decisões que dificultam o direito do acesso à justiça ao hipossuficiente.

Em primeiro lugar, o ensaio traça considerações sobre Estado e democracia. Em segundo, recorda o princípio da gratuidade de justiça, sob o olhar da jurisprudência no contexto do Código de Processo até 2015 e, em seguida, ocupa-se do mesmo princípio sob a égide do atual Código de Processo Civil, em vigor a partir de 2016. Em seguida, o texto apresenta as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário do Estado

2 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

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195MARIZA RIOS, NEWTON TEIXEIRA CARVALHO ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA COMO DIREITO DO NECESSITADO, E NÃO COMO FAVOR DO ESTADO NO CÓDIGO DE...

de Minas Gerais no deferimento da assistência judiciária e finaliza pontuando argumentos que, na ótica dos autores, são inválidos para o indeferimento da assistência judiciária.

9.2 Considerações sobre Estado e democracia

Para Cláudio De Cicco e Álvaro de Azevedo Gonzaga,3 Estado é uma instituição organizada política, social e juridicamente, ocupa um território definido e, na maioria das vezes, sua lei maior é uma constituição escrita. Sob o ponto de vista administrativo, é dirigido por um governo soberano reconhecido por todos e responsável pela organização e pelo controle social.

Sociologicamente falando, o ente estatal representa a consonância de todas as forças sociais existentes num dado espaço territorial, cuja finalidade consiste em dar segurança e promover o interesse comum da população. Por isso, o Estado é uma composição dos ideais de comunhão que ele traz dentro de si.

Sob o olhar político, pode-se dizer que o ente estatal se converteu em sede do poder político. A partir disso, o poder político passou a ter no Estado a sua expressão mais altiva, estando ambos (Estado e poder político) intrinsecamente conectados e, por essa mesma razão, o Estado transforma-se no poder institucionalizado, que deve sempre garantir a liberdade dos homens e, por conseguinte, a individualidade de cada pessoa, agindo no sentido de concretizar e garantir os direitos básicos de seu povo.

Darcy Azambuja, pensando o Estado em seu aspecto político, afirma que:

O Estado Moderno é uma sociedade à base territorial, dividida em governantes e governados, e que pretende, nos limites do território que lhe é reconhecido, a supremacia, sobre todas as demais instituições. De fato, é o supremo e legal depositário da vontade social e fixa a situação de todas as outras organizações.4

Na mesma linha, define Marcelo Figueiredo:

3 DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: RT, 2007, p. 43.

4 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: Globo, 1963, p.6.

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196 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

O Estado é uma organização jurídico-política, formada de povo, terri-tório e soberania. Todo Estado é um organismo político. Sob o ângulo jurídico, titular de direitos e obrigações na órbita internacional e interna, fruto de sua criação e de seu direito.5

O caráter político do Estado consiste na função de coordenar grupos e indivíduos a fim de abrangê-los com meios adequados; ao atingir essa pretensão, é preciso, logo de início, identificar as necessi-dades prevalecentes do povo, considerando seus mais amplos anseios.

Dalmo de Abreu Dallari evidencia que o Estado, no exercício do poder diretivo, deve buscar o máximo de eficácia em suas normas e aponta:

Aí está um dos grandes problemas do Estado contemporâneo: ele existe em função dos interesses de todos os indivíduos que o compõem, e para o atendimento desses interesses busca a consecução de fins gerais; visando atingir esses objetivos, ele exerce um poder que pretende al-cançar o máximo de eficácia, sobrepondo-se a todos os demais poderes e submetendo até aqueles que lhe dão existência; ao mesmo tempo, é a expressão suprema da ordem jurídica, assegurando a plena eficácia das normas jurídicas, mesmo contra si próprio.6

Assim, a força dominante do direito na formação do Estado lhe dá autoridade e obrigação. Autoridade para fazer cumprir os preceitos normativos na forma em que ele foi definido e obrigação de dar à norma a devida eficácia direcionada à garantia de direitos fundamentais da população. É nesse contexto que se insere o direito de acesso à justiça que contemple a todos; para tanto, aos que não possuem condições de chegar ao Judiciário em defesa de seus direitos, cabe ao Estado o dever de prover, pela gratuidade de justiça, o direito de acesso aos pobres e necessitados.

Democracia, palavra que se origina do grego demokratía, é composta por demos (que significa povo) e kratos (que significa poder). Neste sistema político, o poder é exercido pelo povo por meio do sufrágio universal. Democracia é um regime de governo em que todas as importantes decisões políticas estão com o povo, que elege seus representantes por meio do voto. Regime de possível existência tanto no sistema presidencialista, no qual o presidente é o maior representante do povo, como no sistema parlamentarista, em que existe o presidente

5 FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 42-43. 6 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48-49.

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(eleito pelo povo) e o primeiro ministro (que toma as principais decisões políticas). A democracia é marcada por princípios que protegem, que garantem a dignidade como coluna vertebral de sua existência, baseada no governo da maioria associado diretamente aos direitos fundamentais de toda a população de forma igual.

A democracia no Brasil tem início no século XX, após a Ditadura Militar, período de repressão e perseguição aos que lutavam por direitos, por dignidade e por respeito. Depois de 20 anos de Ditadura Militar, o país passava por uma crise econômica, social e política, que, por sua vez, pôde apontar um sistema democrático com a apresentação de uma nova Constituição em que a liberdade de direitos e a igualdade social ganharam centralidade na nova ordem nacional, precedida pelo processo de redemocratização, consolidado com a promulgação da Constituição da República de 1988.

Assim, o Estado Democrático de Direito, na precisa lição de José Afonso da Silva, configura-se como:

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leve em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supere na medida em que incorpora um componente revolucionário de transfor-mação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando.7

O mesmo autor, discorrendo sobre a diferenciação entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito, ensina que:

O Estado democrático de Direito concilia Estado democrático e Estado de Direito, mas não consiste apenas na reunião formal dos elementos desses dois tipos de Estado. Revela, em verdade, um conceito novo que incorpora os princípios daqueles dois conceitos, mas os supera na me-dida em que agrega um componente revolucionário de transformação do status quo. Para compreendê-lo, no entanto, teremos de passar em

7 SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro, 1988, p. 21. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso em: 25 maio 2017.

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revista a evolução e as características de seus componentes, para, no final, chegarmos ao conceito-síntese e seu real significado.8

O Estado Democrático de Direito, assentado nos pilares da democracia e dos direitos fundamentais, surge como uma forma de barrar a propagação de regimes totalitários que, adotando a forma de Estado Social, feriam as garantias individuais, maculando a efetiva participação popular. Nesse contexto do princípio democrático do acesso à justiça para todos, concretiza-se, para aqueles que não possuem meios suficientes, o direito à gratuidade de justiça.

9.3 O princípio da gratuidade de justiça na jurisprudência até o advento do Código de Processo Civil de 2015

Na jurisprudência construída sob o comando do Código de Processo Civil anterior e buscando uma melhor interpretação da Lei nº 1.060/50, recepcionada pela Constituição Republicana de 1988, destaca-se o entendimento, corretíssimo, do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que bastava a simples afirmação do interessado, pessoa física, na petição, no sentido de que é pobre, isto é, de que não está, no momento do ajuizamento da ação ou da contestação, em condições de arcar com a custa do processo e dos honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou da família, para concessão do benefício de gratuidade de justiça.

O princípio da justiça gratuita, portanto, tem por escopo permitir o acesso à ordem jurídica justa ou da proteção jurídica integral, de maneira que o interessado em ajuizar ação não seja prejudicado, por não ter condições para tanto, ou seja, pela insuficiência de recursos econômicos.

Ressalta-se a necessidade de se fazer, a partir da Constituição/88, a distinção entre assistência jurídica, instituto de direito administrativo e função-dever do Estado, do benefício da justiça gratuita, instituto de direito processual, que se concretiza pela dispensa de antecipação das custas processuais e, já na sentença, a suspensão da condenação nas custas e nos honorários advocatícios.

8 SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro, 1988, p. 2. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45920/44126>. Acesso em: 25 maio 2017.

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Por conseguinte, dificultar o acesso do hipossuficiente, finan-ceiramente falando, aos esclarecimentos jurídicos necessários, nos atos e negócios praticados no dia a dia e, se necessário, judicializar a questão, negar-lhe o direito a demandar, na ausência de impossi-bilidade econômica para tanto, é denegar-lhe a cidadania, efetivada pelo conhecimento dos direitos, pela segurança na prática dos atos da vida em sociedade.

Com relação à aplicação da Constituição e de entendê-la como expressão de desenvolvimento cultural e, por conseguinte, como conquista de um povo, a ser preservada por meio de sua aplicação, destacamos as colocações de Márcio Ricardo e Rafael Padilha:

A autêntica Constituição precisa ter o próprio texto constitucional cultivado. A Constituição de letra viva é aquela cujo resultado é fruto de todos os intérpretes de uma sociedade aberta. Por isso, o aspecto jurídico é apenas um dos elementos da Constituição como cultura. A aceitação de uma Constituição pressupõe normas jurídicas, mas isso não constitui, de per si, uma garantia daquilo que o Estado constitucional esteja de fato realizando, porque é preciso averiguar se há consenso em âmbito constitucional, se há correspondência entre texto constitucional e a cultura política do povo, se os cidadãos se sentem identificados os com a Constituição.9

Ora, para que os cidadãos possam ser incluídos no ordenamento jurídico, necessário é que, com relação a eles, seja observado o texto constitucional garantidor da assistência judiciária ao necessitado (art. 5º, inciso LXXIV, CF). Retirá-lo do direito de poder entender o ordenamento jurídico, através de esclarecimentos por parte do técnico no assunto ‒ o advogado, o defensor público ‒, bem como de poder, se necessário, ajuizar ação em defesa do direito, é uma maneira de afastá-lo do entendimento, da identificação, do texto normativo, eis que se sentirá sem proteção, desamparado.

9.3.1 O papel da Defensoria Pública na efetividade do direito ao acesso à justiça

O papel da Defensoria Pública, dando concretude ao mandato constitucional, torna-se de importância vital na prestação da assistência

9 STAFFEN, Márcio Ricardo; SANTOS, Rafael Padilha dos. O fundamento cultural da dignidade da pessoa humana e sua convergência para o paradigma da sustentabilidade. Veredas do Direito. Direito Ambiental e Desenvolvimento sustentável, Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara, v. 13, n. 26, maio/ago. 2016, p. 267.

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jurídica à população de baixa renda. Para tanto, necessário é que, em todas as comarcas de todos os Estados brasileiros, exista, junto ao juiz e ao Ministério Público, uma defensoria direcionada ao atendimento imediato dos necessitados, ou seja, a todos aqueles que não possam arcar com as custas do processo ou com os honorários de sucumbência, em caso de perder a demanda.

Nesse contexto da importância da Defensoria Pública em nossa incipiente democracia, calha, com perfeição, a compreensão de Moraes:

Desta forma, o papel das Defensorias Públicas é essencial para a reali-zação de um Estado Democrático de Direito, assentado em princípios igualitários que são a sua finalidade precípua, além de funcionar como um instrumento de viabilização do exercício de direitos fundamentais titularizados pelos hipossuficientes econômicos e suas respectivas ga-rantias, com vistas a alcançar a efetividade do Estado Democrático de Direito.10

Por fim, ressalta-se que o direito à informação sobre os direitos deve partir de pessoas qualificadas para tanto, ou seja, com relação aos pobres, a partir de uma Defensoria Pública atualizada e capacitada. Não é aceitável que pessoas fora da área jurídica prestem informações aos pobres, fazendo prévio juízo da necessidade ou não do ajuizamento da ação ou até mesmo redigindo petições aos necessitados, como acontece, geralmente, nos juizados especiais, onde sequer é exigida a formação jurídica para tanto.

9.4 O princípio da gratuidade de justiça no atual Código de Processo Civil

O atual Código de Processo Civil prevê a gratuidade da justiça nos arts. 98 a 102. O art. 98 melhorou o disposto no art. 2º da Lei nº 1.060/50 ao deixar expresso que a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

Da maneira como redigido o art. 98, necessário será a redação de uma nova lei ou a recepção da Lei nº 1.060/50 pelo atual Código, no que não for incompatível com ele. Entretanto, lendo o NCPC, verifica-se que poderia dispensar a expressão “na forma da lei” ou, então, entendê-la

10 MORAES, Guilherme Braga Pena de. Assistência Jurídica, Defensoria Pública e o Acesso à jurisdição no Estado Democrático de Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 42-43.

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como na forma deste Código, eis que este encampou praticamente toda a Lei nº 1.060/50.

O §1º do art. 98 do Código de Processo Civil define quais casos são compreendidos pela gratuidade da justiça, ou seja, as taxas ou as custas judiciais; os selos postais; as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; a indenização devida à testemunha, que, quando empregada, receberá do empre-gador salário integral, como se em serviço estivesse; as despesas com a realização de exame de código genético (DNA) e de outros exames considerados essenciais; os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

Portanto e com o novo Código, dúvida nenhuma mais persiste no sentido de que o deferimento da assistência judiciária em juízo abrange também todos os atos necessários à efetivação de decisão judicial nos cartórios extrajudiciais, como, por exemplo, o registro do divórcio decretado por quem se encontra sob o pálio da assistência judiciária.

O §2º do art. 98 afirma que a concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência. Porém e pelo §3º deste mesmo artigo, repetindo, com melhor redação e neces-sários acréscimos, o art. 12 da Lei nº 1.060/50, vencido o beneficiário, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

9.4.1 Decisão judicial Nota-se a necessidade de o juiz condenar na sentença ao

pagamento da verba honorária e das custas, mesmo estando a parte

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amparada pela assistência judiciária para, no caso de posterior possibi-lidade de pagamento, o credor já entrar com a ação de execução e não ser obrigado a propor, primeiro, ação de arbitramento de honorários. Portanto, não é correto afirmar, na sentença, que “deixa de condenar o réu nas custas e verba honorária, por estar o mesmo amparado pela assistência judiciária”.

Dessa maneira, mostra-se contraditório o disposto no §4º do art. 98 do Código de Processo Civil ao afirmar que a concessão de gratuidade não afasta o dever de o beneficiário pagar, ao final, as multas proces-suais que lhe sejam impostas. Nota-se que, pelo atual CPC, a pessoa é pobre para o pagamento das custas, mas não o é para o recolhimento de multas processuais.

O §5º do art. 98 permite que a gratuidade seja concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento. E, pelo §6º deste mesmo artigo, conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas proces-suais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

Em se tratando de emolumentos devidos a notários ou regis-tradores, o §7º permite o custeio com recursos alocados no orçamento do ente público. E, pelo §8º, o notário ou registrador, após praticar o ato, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, pode requerer ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar este requerimento.

Pelo art. 99, §2º, do mesmo diploma legal, o juiz somente poderá indeferir o pedido de gratuidade da justiça se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos. E, pelo §3º deste mesmo artigo, presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.

O §4º do art. 99 esclarece que a assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão da gratuidade da justiça. E, pelo §5º do art. 99, o recurso que verse exclusivamente sobre o valor de honorários de sucumbência fixados em favor do advogado de beneficiário estará sujeito a preparo, salvo se o próprio advogado demonstrar que tem direito à gratuidade.

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Ressalta-se que o indeferimento de assistência judiciária há de ser realizado com cuidado, considerando o princípio da proteção judiciária, também chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Depois, há uma praxe viciosa de o juiz exigir a comprovação da pobreza, de chofre, o que não é correto em face da presunção de veracidade da alegação de insuficiência, conforme se demonstrará abaixo.

Pelo §7º do art. 99, requerida a concessão de gratuidade da justiça em recurso, o recorrente estará dispensado de comprovar o recolhimento do preparo, incumbindo ao relator, neste caso, apreciar o requerimento e, se indeferi-lo, fixar prazo para realização do recolhimento.

Pelo art. 100, deferido o pedido, a parte contrária poderá oferecer impugnação na contestação (art. 337, inciso XIII), na réplica, nas contrar-razões do recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples, a ser apresentada no prazo de 15 (quinze) dias, nos autos do próprio processo, sem suspensão de seu curso. Portanto, a impugnação à assistência judiciária é formulada, doravante, por simples petição e no bojo dos próprios autos em que deferido tal benefício.

Pelo parágrafo único do art. 100, revogado o benefício, a parte arcará com as despesas processuais que tiver deixado de adiantar e pagará, em caso de má-fé, até o décuplo de seu valor a título de multa, que será revertida em benefício da Fazenda Pública estadual ou federal e poderá ser inscrita na dívida ativa.

Pelo art. 101, contra a decisão que indeferir a gratuidade ou a que acolher pedido de sua revogação, caberá agravo de instrumento, exceto quando a questão for resolvida na sentença, contra a qual caberá apelação.

Pelo §1º do art. 101, o recorrente estará dispensado do recolhi-mento de custas até decisão do relator sobre a questão preliminarmente ao julgamento do recurso e, pelo §2º deste mesmo artigo, confirmada a denegação ou a revogação da gratuidade, o relator ou o órgão colegiado determinará ao recorrente o recolhimento das custas processuais, no prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de não conhecimento do recurso.

O art. 102 afirma que, sobrevindo o trânsito em julgado de decisão que revoga a gratuidade, a parte deverá efetuar o recolhimento de todas as despesas de cujo adiantamento foi dispensada, inclusive as relativas ao recurso interposto, se houver, no prazo fixado pelo juiz, sem prejuízo de aplicação das sanções previstas em lei. E, pelo parágrafo único deste mesmo artigo, não efetuado o recolhimento, o processo será extinto sem resolução de mérito, tratando-se do autor, e, nos demais casos, não poderá ser deferida a realização de nenhum ato ou diligência requerida pela parte enquanto não efetuado o depósito.

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Verifica-se, da transcrição da legislação processual, que o legis-lador detalhou bem as hipóteses de assistência judiciária e, caso a pessoa não possa pagar as custas, no todo, poderá reduzi-la e até mesmo parcelá-la. Pode, por conseguinte, o juiz, também, deferir assistência judiciária até um momento processual, por exemplo, até que seja concretizada a venda de um bem.

A respeito da flexibilização do atual Código de Processo Civil no tocante ao deferimento da assistência judiciária, total ou parcial, assim deixou expresso o Desembargador João Moreno Pomar, do TJRS, no Agravo de Instrumento nº 04212238-44.2016.8.21.7000:

Admite que a gratuidade da justiça possa ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento; e conforme o caso, para parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedi-mento. Circunstância dos autos em que se impõe manter a decisão que concedeu o benefício para parcelamento das custas.

Diante da carência de recursos momentâneos, também é possível deferir assistência judiciária para recolhimento das custas ao final, conforme constou da ementa do acórdão de relatoria do Des. Edmilson Jatahy Fonseca Junior, da 2ª Câmara Cível, julgado em 31.01.2017, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA):

A gratuidade judiciária visa a oferecer certas garantias e direitos relacio-nados à defesa dos que necessitam de proteção judicial, estabelecendo igualdade de todos perante a Lei e que, por força do art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, deve ser ampla e integral. Forçoso concluir que, para o deferimento do benefício, não se exige o estado de miséria absoluta, mas pobreza na ação jurídica do termo. A nova sistemática prevista no Código de Processo Civil permite ao Juiz flexibilizar o pagamento das custas, autorizando o deferimento da gratuidade para atos específicos, a redução de percentual, bem como o parcelamento. Por tudo quanto visto nos autos, razoável a adoção analógica da solução prevista no NCPC, em seu art. 98, §6º, para autorizar aos agravantes que suportem as custas processuais ao final da demanda.

9.5 A dificuldade no deferimento da assistência judiciária por alguns juízes do Estado de Minas Gerais

Na contramão da história e dificultando o acesso ao Poder Judiciário, menciona-se a dificuldade imposta por alguns juízes mineiros

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no deferimento da assistência judiciária, olvidando que a “cidadania implica na possibilidade amparada legalmente de ingressar em redes dialógicas de discurso”.11 Ora, fechar as portas do Judiciário ao pobre é impedi-lo de dialogar no processo como procedimento em contra-ditório.12

Ao almejar a assistência judiciária gratuita, na inicial, alguns juízes de Minas Gerais estão proferindo a seguinte decisão: “Intime-se a parte autora, a fim de promover o preparo, no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de cancelamento da distribuição, conforme art. 290 do Código de Processo Civil”. Essa não é uma exceção, eis que há vários outros julgados, da 13ª Câmara Cível do TJMG, esclarecendo contra-riamente a esse entendimento, que:

De acordo com entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça e o disposto no artigo 99, §§3º 4º do atual Código de Processo Civil, tratando-se de pessoa natural, incide em seu favor a presunção de verdade acerca da alegação de insuficiência deduzida na petição inicial. Cabe ressaltar que, o texto legal é taxativo ao prescrever que o indeferimento do pedido da gratuidade da justiça está condicionado à existência de elementos nos autos que evidenciem a falta dos pressu-postos legais para a sua concessão, conforme dispõe o §2º, do art. 99 do Código de Processo Civil. (TJMG)

Entretanto e se realizada simples pesquisa no site do TJMG, verifi-ca-se que o entendimento antes transcrito não é unânime, infelizmente. Assim, algumas câmaras estão ratificando entendimento dos juízes de primeira instância, exigindo que, de chofre, a parte requerente faça prova de que carece de assistência judiciária, sob pena de extinção do feito, sem análise de mérito.

Nesse contexto, podemos visualizar, no Jornal Mensal da Associação dos Magistrados Mineiros, nº 184, de maio de 2017, o artigo de Adalberto José Rodrigues Filho, Juiz da 1ª Vara Cível da Comarca de Betim, Justiça gratuita com responsabilidade civil, do qual o próprio jornal destacou duas frases: “Aquele que postula com gratuidade não assume qualquer risco. Pode fazer o pedido mais improvável, seja com bons ou maus propósitos, se perder a demanda, apenas deixou

11 O’DONNELL, Guilhermo. Democracia, agência e estado: teoria com intenção comparativa. Tradução Vera Joscelyne. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 206.

12 Processo como procedimento em contraditório é o que permite aplicação do princípio da igualdade, da ampla defesa e do contraditório. Assim, não é correto negar ao pobre o direito de discutir suas desavenças em juízo, num debate amplo e, por conseguinte, influindo, a todo momento, na construção da sentença, aqui também considerado como ato participado.

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de ganhar. E o demandado fica no prejuízo”; e outra: “Essa opção legislativa tem incentivado a postulação aventureira. Os exemplos são gritantes e crescentes. Assim, seria muito razoável a retirada do crédito por honorários advocatícios sucumbenciais da esfera de abrangência da gratuidade de justiça”.

9.5.1 A jurisprudência e a realidade prática Tais colocações não coadunam com a proposta de permitir que os

necessitados possam ajuizar suas ações e, como acontece geralmente, na imperfeição das pessoas, pretende que um instituto de enorme alcance social seja desprezado. Primeiramente, a própria lei de assistência judiciária, conforme transcrevemos acima, permite que o juiz, no curso do processo, se provado que a parte requereu a assistência judiciária indevidamente, revogue a concessão e exija o pagamento, inclusive com aplicação de multa. Depois, a parte interessada também poderá fazer a prova de que outra parte requerente pode, sim, arcar com os ônus de sucumbência, hipótese que leva à cassação do benefício da assistência judiciária.

Depois e ainda contra-argumentando o articulista antes citado Adalberto José Rodrigues Filho, mesmo que deferida assistência judiciária, se comprovado que a pessoa não fazia jus a tal benefício ou que passou a não mais fazê-lo, o Estado, com relação às custas, e o advogado, credor dos honorários de sucumbência, ainda terão mais 5 (cinco) anos para cobrar tais ônus sucumbenciais. Nota-se que a lei exige que o juiz condene e, em seguida, suspenda a cobrança de tais verbas por cinco anos. Portanto, neste período, se realmente demons-trado que a pessoa tem condições de pagar tais verbas, basta a parte credora executá-la.

Por último, não há lógica nenhuma em permitir a cobrança de honorários advocatícios de pessoas pobres em razão da perda da demanda, supondo uma possível má-fé. Por mais razão que uma pessoa tenha, não significa que será vitoriosa em juízo, em virtude de inúmeros outros fatores, inclusive o de ser o processo uma técnica, a exigir cumprimento de prazos, ônus de provas etc.

Por todo o exposto, é preocupante a questão envolvendo o deferimento de assistência judiciária, cujas dificuldades de atendimento relatadas apenas em Minas Gerais certamente devem ocorrer em todos os Estados brasileiros, por exemplo, nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, principalmente se criado o Fundo Especial do Poder Judiciário, a exemplo de Minas Gerais, mediante a Lei nº 20.802/13.

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Com o Fundo Especial do Poder Judiciário (FEPJ), ficaram assegurados recursos necessários ao desenvolvimento das atividades específicas do Poder Judiciário, tais como, segundo art. 2º da Lei nº 20.802/13: construção, ampliação e reforma de prédios próprios e de imóveis utilizados pelo Poder Judiciário; ampliação e modernização dos serviços informatizados; aquisição de material permanente; aquisição de bens imóveis; realização de despesas de caráter indenizatório, classi-ficadas em outras despesas correntes; entre outras.

E, pelo art. 3º da Lei nº 20.802/13, constituem recursos do FEPJ, entre outros, receitas provenientes do pagamento das custas judiciais devidas ao Estado no âmbito da justiça estadual de primeiro e segundo graus.

Portanto, para o indeferimento da assistência judiciária, não se pode ter em mente a arrecadação das custas ao FEPJ, em hipótese alguma, mas, sim, se o requerente faz jus ou não a tal benefício, sendo certo que, para tanto, não é necessário ser miserável. Basta que, em razão da demanda, não possa cumprir com os compromissos anteriormente realizados.

9.6 Alguns argumentos inválidos para o indeferimento da assistência judiciária

Alguns entendem que, se a pessoa física conseguiu fazer finan-ciamento para a compra de um veículo, com prestação mensal de R$ 2.000,00, por exemplo, não é hipossuficiente e, por conseguinte, não faz jus ao benefício da assistência judiciária. Ledo engano! Na verdade, a pessoa fez o financiamento em razão de, na época, ter condições econô-micas para tanto. Entretanto, depois adveio piora na situação financeira, com redução salarial, com a perda de emprego etc. Há, neste caso, de se perquirir, para o deferimento da assistência judiciária, da situação da pessoa no momento da distribuição da ação ou da contestação se a parte fraca, financeiramente falando, for o réu.

Ainda no exemplo acima, que se encaixa em vários outros casos, não se pode desprezar, também, que a pessoa pode ter feito o financiamento, mesmo não podendo, diante da facilidade do crédito colocado à disposição dela pela própria instituição financeira, e acabou o mutuário não podendo honrar com o compromisso já na primeira prestação. Ora, não é correto o entendimento de que, se prestou infor-mações cadastrais inverídicas, deve arcar com as consequências de seus atos. Há que se levar em consideração a real capacidade da pessoa e

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também a irresponsabilidade das instituições financeiras em fornecer financiamentos, algumas sequer exigindo atualização cadastral.

Outro argumento de alguns juízes, para indeferir a assistência judiciária, é que, para tanto, ou seja, para os necessitados, existe o juizado especial. Também não coadunamos com tal colocação. O juizado especial não é justiça dos pobres, mas, sim, de demandas pequenas, que podem tê-las tanto o rico como o pobre. Porém, o argumento maior, para não direcionar obrigatoriamente os necessitados àquela justiça, é o de que, no juizado especial, não existem todas as garantidas processuais, tais como agravo, ação rescisória, perícia. Ora, entender que, para o pobre, basta ajuizar a ação no juizado especial, já que lá não há custas, é uma maneira de discriminá-lo, de não lhe dar todas as garantias processuais e, por conseguinte, de ferir, escandalosamente, o devido processo legal, eis que ausente a ampla defesa. É tal entendimento uma maneira fascista de criar uma justiça para os ricos, e outra aos pobres. É negação do direito à cidadania e princípio isonômico.

A respeito do princípio da igualdade, esclarece Silvana Maria Moreira que:

O princípio da igualdade ou isonomia é um princípio medular dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais, além de ser a essência do regime democrático. Ele determina a inadmissibilidade de privilégios ou distinções, de forma a assegurar uma equiparação de todos os homens no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição de deveres.13

Portanto, também não é correto o juiz estadual declinar, de ofício, da competência para o juizado especial. Ora, se naquela justiça sintética não há todas as garantias processuais, ditadas pelo Código de Processo Civil, não pode ser obrigatório o ajuizamento das ações pequenas naquela instância.

É por tal razão que se insiste sempre na inconstitucionalidade da legislação, que tornou a competência absoluta do juizado especial, nas ações ínfimas, em tramitação perante a justiça federal.

Também a existência de bens por si só não é causa de indefe-rimento de assistência judiciária, como, por exemplo, no inventário. Ora, enquanto tramita o inventário, os herdeiros não necessariamente

13 MOREIRA, Silvana Maria. O Acesso à Justiça como Direito Fundamental. In: CASTRO, João Antônio Lima; FREITAS, Sérgio Henriques Zandona (Coords.). Direito Processual – Estudo Democrático da Processualidade Jurídica Constitucionalizada. Belo Horizonte: PUC Minas – Instituto de Educação Continuada, 2012, p. 58.

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possuem condições de arcar com as despesas processuais. Ter bens não traduz, automaticamente, em capacidade financeira, o mesmo acontecendo com possível partilha de bens na Vara de Família, na ação de divórcio postulada pela mulher, estando todos os bens nas mãos do marido.

Destacando a importância do direito à assistência jurídica ao cidadão, o Des. Oswaldo Trigueiro do Valle Filho, na Apelação Cível nº 0000092-49.2010.815.2001, do Tribunal de Justiça da Paraíba, salienta, com fundamento na obra Acesso à Justiça, escrita por Mauro Cappelleti e Bryan Garth, traduzida pela Ministra Ellen Gracie, a importância da assistência judiciária como meio de aproximação da população à justiça.

Com efeito, seguindo a essência da gratuidade e o tratamento substancial igualitário entre os jurisdicionados, não se pode admitir como obstáculo ao acesso à justiça o pagamento de custas processuais, as quais, normalmente, possuem valores elevados. A fim de eliminar essa barreira, foi criado o instituto da gratuidade da justiça para os que dela necessitam.

Por fim, o direito à assistência jurídica ao cidadão alcançou status constitucional, na atual Carta Política, quando se estabeleceu como garantia fundamental, entre outras, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, inciso LXXIV, CF).

9.7 Conclusão

A construção do Estado Democrático tem sua centralidade na observância de princípios básicos que possam garantir direitos fundamentais a toda a população. Dentro desses princípios de cunho fundamental, elegemos o princípio do acesso à justiça de forma universal, em que a gratuidade de justiça, por excelência, se constitui em direito fundamental endereçado a todos que não possuem condições básicas para exercer o direito de ação em defesa de suas necessidades. Nesse contexto, buscou a pesquisa, com foco na atividade jurisdicional, analisar a eficácia dessa garantia constitucional traçando um paralelo entre o princípio a gratuidade de justiça e a jurisprudência sobre o tema, ou seja, a decisão judicial.

Por essa razão, para os autores, não é correto o juiz, já na inicial ou na contestação, exigir que o requerente da assistência judiciária comprove que é pobre, no sentido legal, salvo evidências fortes em sentido contrário, como, por exemplo, comprovação de ganhos altos,

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imóveis etc. e, mesmo antes de indeferi-la, o correto é o magistrado pedir esclarecimento ao requerente sobre os possíveis sinais de riqueza constante dos autos.

Aliás, o mais correto, em se tratando de assistência judiciária, é o juiz deferi-la se requerido na inicial ou na contestação; e se, no curso do processo, vier a ser comprovada a boa situação financeira do reque-rente, deverá cassar o deferimento e exigir o recolhimento imediato, aplicando-se a multa ditada pelo atual Código de Processo Civil.

Porém, os juízes estão agindo de forma equivocada. Já na inicial, conforme vimos, estão indeferindo a justiça gratuita, exigindo, por conseguinte, que a parte oferte agravo e que a decisão seja resolvida no Tribunal, desviando, por meses, o foco principal, que é o debate sobre o direito material posto na inicial.

Depois, ressaltamos que o atual Código de Processo Civil reafirmou a necessidade de deferir assistência judiciária ao neces-sitado, encampando integralmente a Lei nº 1.060/50. Portanto, toda a jurisprudência construída sob o império da Lei nº 1.060/50 há de ser encampada pelo atual Código de Processo Civil, ou seja, basta a simples afirmativa da parte no sentido de que é pobre para deferir a assistência judiciária, em se tratando de pessoa física. A pobreza é presumida, o que não é novidade em um país pobre como o nosso.

Exigir, como regra, a comprovação, da parte requerente, de que é pobre no sentido legal não é correto e acaba por dificultar o acesso ao Judiciário das pessoas que não têm condições de arcar com as custas processuais e com os honorários advocatícios. Assim, tal atitude não encontra amparo no atual Código de Processo Civil e muito menos na Constituição Republicana de 1988.

De nada adianta o legislador constituinte garantir o direito de ação a todos, e o próprio Judiciário, antagonicamente, dificultar o exercício deste direito, principalmente àqueles que mais necessitam do Poder Judiciário – os pobres – diante da necessidade deles de resolver suas desavenças e desencontros.

Ainda em cumprimento do direito de acesso das pessoas pobres ao Poder Judiciário e também à integral assistência jurídica, mister que os Estados instalem defensorias públicas em todas as comarcas para que o necessitado, financeiramente falando, não fique perambulando pelos escritórios de advogados no afã de achar uma boa alma para patrocinar a sua causa.

Também se espera que os juízes cumpram o Código de Processo Civil, deferindo assistência judiciária, de chofre, e não dificultando a sua concessão e, por conseguinte, desviando o foco da questão principal;

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depois – e se for caso – que o próprio advogado da parte adversa se insurja, como preliminar na contestação, contra tal deferimento ou então que, no curso do processo, a concessão seja revogada, se deferida indevi-damente, com a aplicação das penalidades previstas pelo próprio CPC.

Com relação ao recolhimento das custas diretamente aos cofres do Poder Judiciário, nos Estados que conseguiram o acima aludido Fundo Especial do Poder Judiciário, esperamos que tal conquista não seja obstáculo para o deferimento da assistência judiciária, eis que, antes de tudo, tem-se que preservar o direito de ação a todos constitucional-mente garantido, não podendo o pobre ser prejudicado e discriminado no exercício de direitos, principalmente quando considerados funda-mentais, como o é o direito à assistência jurídica e judiciária, com reflexo imediato no direito de ação.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CARVALHO, Newton Teixeira; RIOS, Mariza. Assistência judiciária como direito do necessitado, e não como favor do Estado no Código de Processo Civil. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 193-212. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 10

PROVA TESTEMUNHAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A BUSCA

AO RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE HIERARQUIA ENTRE AS PROVAS

Renato Campos Andrade

10.1 Introdução

A prova testemunhal é historicamente tratada como a menos importante dentre todas as outras. Tal fato se dá em virtude da falibi-lidade humana e na possibilidade da pessoa não se recordar precisamente dos fatos ou, até mesmo, mentir.

Nessa interpretação, parece absurdo proferir uma decisão judicial com base em um depoimento de testemunha, mesmo que seja consi-derado em conjunto às demais provas produzidas. Julgar com base puramente em um testemunho, então, seria absurdo.

O período histórico cultivou esse desprestígio desde os tempos da “prova legal” (valores pré-fixados para cada tipo de prova) e chegando ao período do “livre convencimento” (decisão livre do juiz mesmo diante do conjunto probatório confeccionado). Mesmo no processo atual, em que se busca prestigiar a persuasão racional, em que a análise probatória, junto com as alegações das partes e conjuntamente com o juiz, busca um provimento legítimo, subsiste o preconceito quanto ao depoimento de testemunhas.

No entanto, os princípios que regem o direito processual indicam que inexiste hierarquia entre as provas, pelo que todas possuem igual importância.

Ainda assim, é possível encontrar nas codificações brasileiras um tratamento diferenciado para a prova testemunhal, de maneira

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a inferiorizá-la e até excluí-la como meio probatório da existência de certos atos jurídicos.

O Código Civil, antes da entrada em vigor do NCPC, previa expressamente, por exemplo, que a prova testemunhal só era admitida em negócios jurídicos que não ultrapassassem dez vezes o valor do maior salário mínimo vigente no País. Sendo assim, um empréstimo verbal, na presença de testemunhas, precisaria de outras provas para ser considerado válido e eficaz.

O Estado Democrático de Direito, no sentido de igualdade em oportunidades e respeito ao devido processo legal, isonomia e ampla defesa, demanda um tratamento mais equânime quantos aos meios probatórios.

Óbvio que eventual aceitação da prova testemunhal deve ser realizada em respeito ao devido processo legal, com direito a ampla defesa, contraditório e utilização de todos os demais meios de prova admitidos em direito, inclusive com a ajuda das presunções legais e judiciais.

Neste sentido, a entrada em vigor, em março de 2016, do novo diploma processual, ao alterar mandamentos do Código Civil, incitou novas interpretações e atribuições ao depoimento de testemunhas.

O objetivo do presente trabalho é abordar os efeitos do novel Código de Processo Civil no Código Civil, especialmente quanto às alterações dos artigos 227, 229 e 230 deste último.

A nova lei processual, que entrou em vigor em março de 2017, revogou expressamente os artigos supracitados e impactou profunda-mente o diploma civil no que tange à prova testemunhal.

Sendo assim, abordar-se-ão as alterações, bem como seus possíveis impactos. Para tanto, expor-se-á primeiramente um breve introito sobre o tema: a questão probatória, prova em espécie, ônus da prova e, final-mente, a prova testemunhal, de maneira a deixar clara a importância do assunto.

Em seguida, adentraremos nas alterações, significados e possíveis efeitos a fim de vislumbrar se as mudanças serão positivas e se terão efetividade.

10.2 Implicações probatórias no direito civil e processual civil

Antes de se abordar o tema probatório nos diplomas indicados no título deste item, cumpre discorrer brevemente sobre o que se trata a prova.

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Diretamente ligada ao princípio do contraditório, a prova, conforme lembra Didier, “é também um direito fundamental”,1 que, conforme o mestre, abrange:

a) o direito à adequada oportunidade de requerer provas; b) o direito de produzir provas; c) o direito de participar da produção da prova; d) o direito de manifestar-se sobre a prova produzida; e) o direito ao exame, pelo órgão julgador, da prova produzida;2

No presente artigo, o aspecto da produção da prova e o direito de ser ela examinada pelo juiz se destacam especialmente porque, conforme se verá, a prova testemunhal possui muita resistência quanto à sua validade e força.

Finalisticamente, alguns autores indicam que o caminho para se descobrir a verdade ou a verossimilhança das alegações se faz por meio da prova, pelo que impedir a produção de determinada prova pode significar em uma consequência jurídica ilegítima e injusta.

Ramos, de forma didática, expõe a questão:

Assim, se a regra do art. 121 do CP afirma que quem matar alguém terá uma pena correspondente, será absolutamente injusto aplicar tal pena sem a ocorrência do fato previsto (matar alguém), da mesma forma como em um jogo de futebol será considerada injusta a decisão que considerar que houve marcação de gol quando, em verdade, a bola não tiver ingressado inteiramente na goleira.3

O autor, com citação de Michele Taruffo, indica que uma decisão será justa se atender a três critérios: correta interpretação da regra jurídica, apuração adequada dos fatos e emprego de procedimento válido para se chegar à decisão.

Veja-se a importância da prova para um processo justo na medida em que é ela que trará a verdade para que o julgador interprete a norma no caso concreto. Sendo assim, desprezar um meio probatório se revela temeridade capaz de resultar em uma decisão injusta.

1 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 41.

2 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 41.

3 RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 31.

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Não se quer aqui discutir aspectos epistemológicos e filosóficos de justiça, apenas enfatizar a importância da verdade e da prova para a confecção do provimento jurisdicional.

Mas há uma uniformidade na doutrina quanto à necessidade dos fatos verdadeiros para a formação da convicção do julgador:

Para o juiz sentenciar é indispensável o sentimento de verdade, no mí-nimo de certeza, pois sua decisão necessariamente deverá corresponder à verdade ou, ao menos, aproximar-se dela. É oportuno lembrar que a prova em juízo tem por objetivo reconstruir historicamente os fatos que interessam à causa, porém há sempre uma diferença possível entre os fatos, que ocorreram efetivamente fora do processo, e a reconstrução desses fatos dentro do processo.4

Marinoni5 sintetiza ao dizer que “não há dúvida de que a função dos fatos (e, portanto, da prova) no processo é absolutamente essencial”.

A prova é abordada tanto no Código Civil quanto no Código de Processo Civil.

Sabe-se que o Código Civil é o diploma mais importante do direito privado, em que pese que fazer a dicotomia entre público e privado hodiernamente é muito mais didático do que prático.

Contudo, é inquestionável a importância da codificação civilista que regula as relações privadas no campo material, de maneira a compor normas que ditam direitos subjetivos dos particulares.

Em que pese se tratar de codificação eminentemente material, o Código Civil, por vezes, contém normas que igualmente influem no campo procedimental. Ocorre claramente, por exemplo, no direito das obrigações, mais especificamente no pagamento em consignação, donde se extrai: “Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessando, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e os riscos, salvo se for julgado improcedente”.6

Ademais, em sua Parte Geral, no Título V, Da Prova, são editadas diversas normas quanto à prova dos fatos jurídicos. Estes se tratam de todo acontecimento no mundo fático que implica a incidência de uma norma jurídica. Um exemplo é a chuva. O simples fato de chover

4 MERGULHÃO, Rosana Teresa Curioni. Ativismo judicial e a produção da prova. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 34.

5 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 29.

6 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

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não é jurídico, mas se dela decorre uma enchente, que causa diversos prejuízos ao patrimônio, tratar-se-á de fato jurídico.

O Título V se propõe a editar certas prescrições quanto à prova do fato jurídico. Em linguagem simples, preocupa-se em estabelecer como se comprova a existência dos fatos jurídicos.

Consta, no rol do artigo 212, a possibilidade de haver provas por meio da confissão, documento, testemunha, presunção e perícia.

Não é despiciendo ao menos apontar a crítica dos civilistas e processualistas quanto à indicação da presunção como meio de prova, visto que, na verdade, se trata mais de forma de raciocínio para indicar a ocorrência de um fato.

Presunção é uma dedução que ocorre mediante um fato conhecido, do qual se extrai um desconhecido. Juridicamente, pode ser relativa (admite prova em contrário), absoluta (não admite prova em contrário), legal (decorrente da lei) ou judicial (indicada no exercício do procedi-mento judicial).

Indicar que o pagamento da última prestação de uma obrigação de trato continuado faz presumir que as anteriores foram quitadas não se trata de prova do ocorrido, mas de dedução do que provavelmente ocorreu.

Ultrapassada essa breve digressão quanto à presunção, cumpre abordar o diploma procedimental.

Não é o objetivo deste artigo polemizar quanto às diversas divergências existentes nos dois diplomas, mas é preciso indicar qual caminho é trilhado. Em que pese à intitulação como Código de Processo Civil, de maneira a entender o processo como garantia constitucional, na qual estão inseridos o procedimento, o contraditório, a ampla defesa, a isonomia e o direito à defesa técnica, em deferência ao professor Rosemiro Pereira Leal, melhor seria trocar o nome do diploma para Código de Procedimentos Civis.

Se o direito material contém os direitos subjetivos, sobre os quais os sujeitos têm a faculdade de transitar e de defendê-los, o procedimento serve para apontar o caminho formal que uma lide judicial deve tomar.

Neste sentido, o novel Código de Processo Civil traz o Capítulo XII – Das Provas, com sua Parte Geral (normas que abrangem toda a atividade probatória, bem como os meios de prova em espécie – ata notarial, pessoal, confissão, exibição de documento ou coisa, prova documental, prova testemunhal, prova pericial e inspeção judicial).

Pela nominação dos meios de prova, percebe-se a diferença das implicações das provas constantes no diploma civil e processual civil. Naquele, trata-se de comprovar um fato jurídico, especialmente quanto

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à sua existência e validade. Neste último, a ideia é a forma de produção de provas dentro de um procedimento judicial com o objetivo de se desincumbir do ônus probatório e sujeitar à outra parte a sucumbência em determinado ponto e, possivelmente, na prolação da sentença.

O que é comum aos dois diplomas, além da mesma nomeação dos meios de prova, é que ambos compõem um importantíssimo campo que proporciona ao sujeito fazer valer, de forma coercitiva, o direito subjetivo existente e comprovado.

Ressalte-se que a prova é vital para aquele que tem a obrigação de comprovar, isto é, para quem detém o ônus probatório.

10.3 Ônus da prova: importância e implicações jurídicas

Conforme já citado, a prova possui importância para aquele que deseja comprovar a existência de um fato jurídico, tanto para atestar seus efeitos quanto para ter um trunfo procedimental para poder ter um provimento judicial favorável.

Contudo, a importância da prova ganha relevo especial para aquele que tem interesse em produzi-la, especialmente diante de uma lide procedimental, em que a produção ou não pode implicar em procedência ou improcedência. É que o ônus probatório tem o aspecto subjetivo de produção – qual parte deve provar o quê –, mas, também e especialmente, a necessidade de se desincumbir de uma carga. Se uma parte possui tal ônus e não produz a prova, será sucumbente quanto ao fato específico, o que poderá implicar em decisão desfavorável.

Conforme ensina Didier:7

(...) o ônus da prova pode ser atribuído pelo legislador, pelo juiz ou por convenção das partes. O legislador distribui estática e abstratamente esse encargo (art.373). Segundo a distribuição legislativa, compete, em regra, a cada uma das partes o ônus de fornecer os elementos da prova das alegações de fato que fizer.

Farias e Rosenvald esclarecem a questão:

Embora reconhecida a necessidade de prova para o convencimento do julgador acerca da demonstração da verdade (...) sobre algum fato, sobreleva destacar que inexiste um dever jurídico de provar e tampouco

7 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 111.

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uma faculdade do interessado de provar o que alega. Na verdade, o que há é um ônus de provar o que se alega, de modo que o interessado assume o risco de, eventualmente, perder a causa se não demonstrar a verdade dos fatos em que sustenta sua pretensão.8

Esse também é o entendimento de Didier,9 ao indicar que “(...) vale observar que o sistema não determina quem deve produzir a prova, mas sim quem assume o risco caso ela não seja produzida”.

Ramos relembra:

Quanto ao aspecto objetivo do ônus da prova, o autor lembra que o julgador não pode fundamentar sua decisão quanto a existência de fatos que não foram demonstrados. Para tanto, trata-se de uma regra de julgamento.10

Não é outro o sentimento do professor Vinicius Thibau, ao indicar que “o instituto jurídico da Prova é que nos permitirá extrair a verossimilhança (verossimilitude dos fatos)”.11 O autor ainda lembra Karl Raimund Popper ao indicar que a prova serviria para identificar sua proximidade dos fatos.

O julgador precisa ser imparcial e analisar as questões de fato, o que só é possível por meio da atividade probatória.

Diante disto, o integrante do Poder Judiciário, sujeito imparcial, precisa analisar as questões de direito e de fato. Em relação às primeiras, o juiz, em regra após o contraditório, estaria em condições de respondê-las e proferir decisão; porém, para as questões de fato, há a necessidade do emprego dos meios de prova.12

Dessa forma, ambos os diplomas legais citados conferem aos sujeitos meios de prova capazes de facilitar seu trabalho e se livrar do pesado ônus probatório.

8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 773.

9 DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 111.

10 RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 48.

11 THIBAU, Vinicius Lott. Presunção e prova no direito processual democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011, p. 97.

12 FERREIRA, Willian Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 53.

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Nesse sentido, ganha especial importância a prova testemunhal, visto que, historicamente, exceto nas causas trabalhistas, se vislumbra um preconceito quanto à sua força.

10.4 Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito

O senso comum e, até mesmo, o mundo jurídico historicamente tratam a prova testemunhal como meio frágil e em patamar inferior aos demais. A palavra de uma pessoa, inserta na falibilidade humana, não pode valer a ponto de decidir quanto à verossimilhança de uma alegação.

O primeiro pensamento é que a pessoa que presta depoimento pode mentir ou deturpar os fatos.

Esquece-se, assim, que mentir em um depoimento testemunhal configura crime de falso testemunho.

Ademais, esse raciocínio apressado despreza a importância da prova testemunhal, que, muitas vezes, é a única forma de comprovar a existência de um fato. Relegar tal produção pode significar, como indicado no tópico anterior, a sucumbência em um procedimento judicial.

Imagine-se ser condenado no pagamento de uma vultuosa indenização mesmo diante de uma prova testemunhal clara e idônea, simplesmente porque se considerou a prova testemunhal menos impor-tante e incapaz de conferir uma certeza jurídica.

Não se pode olvidar que, ainda que a testemunha tenha sido levada por uma parte, seu depoimento passa a ser do processo, podendo, inclusive, ser prejudicial à própria parte que indicou a testemunha:

O princípio da comunhão da prova expressa que ao ser produzida uma prova, esta será apreciada, independentemente do responsável pela sua obtenção, podendo até mesmo prejudicar a parte que a produziu.13

O descarte da prova testemunhal impede que o sujeito desincumba de um pesado ônus, bem como viola o princípio processual que indica não haver hierarquia entre as provas.

Deve-se repetir que o direito à produção da prova é um direito constitucional, umbilicalmente ligado ao devido processo legal, pilar do procedimento democrático e expressamente constante na Carta Magna, em seu artigo 5º, LV: “LV – aos litigantes, em processo judicial

13 FERREIRA, Willian Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 129.

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ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contra-ditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Saliente-se que já existiu tal diferença quando as provas produ-zidas tinham valorações matemáticas distintas, de maneira que, por exemplo, a prova documental tivesse peso 3; a pericial, 4; a documental, 2; e a testemunhal, 1.

Esse tempo não mais existe e não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, que prima pela construção legítima e partici-pativa dos provimentos estatais.

10.5 Alterações causadas pelo Código de Processo Civil e possíveis efeitos

Adentrando no objetivo primordial deste trabalho, passa-se a analisar as específicas alterações efetuadas.

Extrai-se do artigo 1.072, II, do CPC que foram revogados os artigos 227, caput, 229 e 230 do Código Civil, entre outros.

Cada um desses artigos merece uma análise pormenorizada.

Art. 227. Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados. Parágrafo único. Qualquer que seja o valor do negócio jurídico, a prova testemunhal é admissível como subsidiária ou complementar da prova por escrito.14

A exclusão do caput do artigo 227 revela sintonia com o Estado Democrático de Direito e respeito à ausência da hierarquia entre as provas, na medida em que permite a prova exclusivamente (unicamente) testemunhal para negócios jurídicos de quaisquer valores.

A limitação econômica da prova testemunhal nos negócios jurídicos impedia sua utilização quando fosse o único meio de prova, por exemplo, e de maneira a utilizar os valores atuais, contratos cujo valor fosse superior R$9.370,00 (nove mil, trezentos e setenta reais). Claramente se limitava consideravelmente a utilização de testemunhas.

O Código de Processo consagra, em seu artigo 442, que “a prova testemunhal sempre é admissível, não dispondo a lei de modo diverso”.

O impacto é direto na medida em que amplia enormemente a utilização da prova testemunhal nos negócios jurídicos.

14 BRASIL, Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.

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Nas palavras de Farias e Rosenvald:

(...) em boa hora, o art.1.072, II, do Código Instrumental de 2.015 revo-gou, expressamente, o art. 227 do Código Civil que, indevidamente, estabelecia limitações à produção da prova testemunhal em sede contratual, quando o valor do negócio jurídico excedesse o décuplo do salário mínimo.15

Os autores não poupam críticas à revogada legislação, que, a se ver, se tratava de resquício de uma discriminação social e violava o princípio da igualdade substancial:

A restrição legal, realmente caracterizava indevido resquício de dis-criminação social em face da condição econômica da parte, retirando daquele que celebra negócios mais vultosos o direito (constitucional-mente assegurado no art. 5º, XXXV) de produzir amplamente a prova, inclusive testemunhal, vulnerando frontalmente o princípio da igual-dade substancial.16

Por tudo abordado até aqui, é pertinente rememorar que a prova se trata de verdadeira garantia constitucional e, ao se relegar a prova teste-munhal a um nível abaixo das demais e impedir sua ampla utilização em termos negociais, estar-se indo contra a própria Constituição da República.

Farias e Rosenvald, de maneira peremptória, concluem:

(...) Ademais, se a Constituição da República garantiu amplo e irrestrito acesso à Justiça – motivo pelo qual vislumbra-se, como visto alhures, um direito constitucional à prova-, não era possível restringir, em sede infraconstitucional, a produção da prova testemunhal, sob pena de absoluta incompatibilidade com a Carta Maior.17

Destaca-se que ainda existem limitações legais quanto à exclu-sividade em situações especiais, como nas hipóteses do artigo 44318 do diploma procedimental, que indica seu indeferimento sobre fatos “já provados por documento ou confissão da parte; que, só por documento ou por exame pericial, puderem ser provados”, bem como no artigo 444 do mesmo diploma:

15 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 820.

16 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 820.

17 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 820.

18 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.

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Nos casos em que a lei exigir prova escrita da obrigação, é admissível a prova testemunhal quando houver começo de prova por escrito, ema-nado da parte contra a qual se pretende produzir a prova.19

No entanto, a equiparação da prova testemunhal aos demais meios probatórios admitidos em direito para negócios jurídicos, sendo excluída somente em casos específicos, trata-se de uma correção histórica.

Outra alteração é quanto à revogação completa do artigo 229:20

Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato:I – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo; II – a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge, parente em grau sucessível, ou amigo íntimoIII – que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato.

Neste caso, várias são as mudanças. Quanto ao inciso primeiro, a revogação significou apenas uma mudança terminológica impor-tante: substituiu-se a palavra segredo para sigilo, conforme redação do diploma processual:

Art. 448. A testemunha não é obrigada a depor sobre fatos:(...)II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.21

No inciso II, a expressão desonra, palavra conservadora e bastante subjetiva, é trocada por “que lhe acarretem grave dano”, e o grau suces-sível agora não se limita ao cônjuge, mas vai até o terceiro grau: “ (...) que lhe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge ou companheiro e aos seus parentes consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau”.

Quanto ao amigo íntimo em que a testemunha não era obrigada a depor se seu depoimento causasse dano, desonra ou exposição, é excluído do rol, pelo que, de imediato, não é mais justificativa para não depor. Talvez esta seja uma mudança criticável, sob o ponto afetivo, mas que visa implicar objetividade à prerrogativa, visto que definir o que é amigo íntimo tem caráter inegavelmente subjetivo.

O inciso III não possui redação semelhante no diploma procedi-mental, visto que abarcado pela nova redação do inciso I, do art. 448, do CPC.

19 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.20 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.21 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.

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Quanto à revogação do artigo 229, especialmente em relação ao trecho “que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato”,22 Marinoni destaca:

Com a revogação, o preceito volta a ter dimensão mais adequada à extensão que se espera de uma regra de exclusão.(...) o excesso cometido pela regra do CC era evidente. Afinal, o perigo da demanda ou de dano patrimonial imediato poderia autorizar qualquer pessoa a se negar a respeito de qualquer fato.O dever de sigilo decorre da necessidade de se preservarem determina-das profissões e estados, bem como o interesse daquela que confessa.23

O que ocorreu foi uma adaptação legislativa às interpretações contemporâneas quanto a conceitos profissionais e ampliação do conceito de família.

Ademais, prestigia-se a busca da verdade dos fatos, já que todos devem colaborar com a justiça, mesmo diante de eventuais consequências às pessoas citadas: “Art. 378. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”.24

Não se pode esquecer que a escusa a depor será objeto de análise ponderada do magistrado, diante do caso concreto. Como bem lembram Farias e Rosenvald, “infere-se, com tranquilidade, a possibilidade de, em cada caso concreto, em atividade de ponderação, ser considerada lícita pelo magistrado a recusa da parte ou da testemunha de depor sobre determinados fatos”,25 mesmo as que não tiverem que guardar sigilo profissional.

A última alteração do CPC citada na introdução diz respeito à revogação do artigo 230: “Art. 230. As presunções, que não as legais, não se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal”.26

Nas palavras de Gonçalves: “Presunção é a ilação que se extrai de um fato conhecido, para se chegar a um desconhecido”.27

22 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2.015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.29.

23 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2.015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.29.

24 BRASIL, Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015.25 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e

LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 821.26 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.27 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo:

Saraiva, 2016, p. 554.

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O autor adverte para que não ocorra confusão com o indício:

Não se confunde com indício, que é meio de se chegar a uma presun-ção. Exemplo de presunção: como é conhecido o fato que o credor só entrega o título ao devedor por ocasião do pagamento, a sua posse pelo devedor conduz à presunção de haver sido pago (CC, art. 324). Pode ser mencionada, ainda, a morte presumida (art. 6º), a gratuidade do mandato (art. 658), a boa-fé (art. 1.203), dentre outras.28

Novamente se trata de respeito à importância da prova teste-munhal. Antes da alteração, não existia presunção quando a lei excluía a prova testemunhal, isto é, não pode haver presunção quando para sua exclusão não se permita a comprovação por testemunha. Trata-se de equilíbrio quanto às presunções judiciais.

Como, nos termos do art. 442, “a prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso”, a amplitude deste meio de prova permite a dedução da presunção.

Não é o objeto deste artigo, mas não se podem olvidar as alterações causadas na prova testemunhal pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou o artigo 228,29 que considerava incapazes para depor:

II – aqueles que, por enfermidade ou retardamento mental, não tiverem discernimento para a prática dos atos da vida civil;III – os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quer provar dependa dos sentidos que lhes faltam;

A alteração diz respeito à mudança legislativa quanto à capacidade das pessoas, que insere a pessoa capaz como regra e permite um maior rol de pessoas aptas aos atos da vida civil e de também serem testemunhas.

Cumpre destacar que, mesmo com essas alterações, ainda existem diversas hipóteses no ordenamento jurídico pátrio que a prova exclu-sivamente testemunhal não é permitida. Servirá, assim, como início de prova ou como prova auxiliar.

10.6 Considerações finais

A edição de um novo Código de Processo Civil, indubitavelmente necessária, mas que realizada com várias questões controversas, no que tange à prova testemunhal, parece merecer aplausos.

28 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 555.

29 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

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O novel diploma processual se preocupou em equilibrar a teste-munha à mesma importância das demais provas, de maneira a impactar diretamente nos procedimentos judiciais, na medida em que, o que antes era utilizado apenas para complementar outras provas pode ser produzido de forma exclusiva e com plena eficácia.

Ainda que remanesçam algumas limitações legais à utilização exclusiva da prova testemunhal, trata-se de avanço importante na legis-lação pátria. As mudanças se coadunam melhor com a Constituição da República, bem como com os princípios processuais.

Ademais, quanto às alterações realizadas, cita-se a adaptação de algumas nomenclaturas e institutos que buscaram objetivar a prerro-gativa daqueles que não podem ser obrigados a depor, em contrapartida com importância de se chegar à verdade fática, com toda colaboração possível.

Uma decisão só pode ser considerada legítima e se aproximar do senso de justiça, se for baseada na construção colaborativa, estabe-lecida entre as partes e o juiz, sobre o arcabouço probatório, de maneira a reconstruir da maneira mais fiel possível os fatos que demandam proteção jurídica.

Nesse sentido, a revisão da prova testemunhal vem em boa hora.A conclusão é que tais mudanças foram positivas, e resta agora

aguardar que a jurisprudência e doutrina encampem as alterações e façam bom uso das mudanças.

ReferênciasBRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 26 maio 2016.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 25 maio 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 26 maio 2016.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em 25 maio 2016.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil – v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

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FERREIRA, Willian Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

MERGULHÃO, Rosana Teresa Curioni. Ativismo judicial e a produção da prova. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

THIBAU, Vinicius Lott. Presunção e prova no direito processual democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

ANDRADE, Renato Campos. Prova testemunhal e Estado Democrático de Direito: a busca ao respeito da inexistência de hierarquia entre as provas. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 213-227. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 11

CONTA-SE EM DIAS ÚTEIS OU DIAS CORRIDOS O PRAZO PARA PAGAMENTO

NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE SENTENÇA POR QUANTIA CERTA?

Marcos Boechat Lopes Filho

11.1 Introdução

Inaugurada uma nova era do direito processual civil brasileiro com a entrada em vigor da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, emergiram inúmeras questões com implicações de ordem prática no cenário jurídico doméstico, dentre as quais se destaca a nova sistemática de contagem de prazo, tomando-se em conta apenas os dias úteis.

Isso porque assim determina o artigo 219 do Código de Processo Civil, que, na contagem de prazo em dias, estabelecida por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis, sendo certo que o parágrafo único de tal dispositivo limita seu âmbito de incidência somente e precisamente aos prazos processuais.

Em proêmio e sem muitas controvérsias, infere-se que o novo diploma legal trouxe regra até então inexistente no cenário jurídico nacional, pois que tradicionalmente os prazos processuais civis seguiam basicamente idêntica regra de contagem dos prazos de natureza material (direito civil), isto é, contavam-se em dias corridos, excluindo-se o dia de início e incluindo-se o dia de término, computando-se aqueles em que não houvesse expediente forense, tais como sábados, domingos e feriados, inclusive.1

1 Art. 184, CPC/1973: Salvo disposição em contrário, computar-se-ão os prazos, excluindo o dia do começo e incluindo o do vencimento. §1º Considera-se prorrogado o prazo até o

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A par da correção ou não de tal inovação legislativa, fato é que o descompasso doravante existente entre as regras de contagem de prazos materiais (em dias corridos) e processuais (em dias úteis) pode causar a perda da oportunidade da prática de determinado ato ou fato, inclusive com aplicação de eventuais sanções jurídicas, a depender da exigência ou não da contagem restrita aos dias úteis.

Isso porque é cediço que não se pode apontar a natureza de determinado prazo pela mera constatação de que este se encontra previsto em determinada lei. Vale dizer, não basta ser citado no texto do Código de Processo Civil para que se afirme que determinado prazo tem natureza processual, pois que, por vezes, lá se encontram previstos prazos de natureza meramente material ou, ainda, de natureza mista.

É, pois, nesse ponto que reside o presente trabalho, o qual almeja, conquanto sem pretensão de esgotamento do tema, investigar se o prazo para pagamento previsto no artigo 523, caput, do CPC/2015 tem natureza processual, material ou mista, concluindo-se pela incidência ou não da regra disposta no artigo 219 do CPC/2015, qual seja, a contagem do tempo restrita somente aos dias úteis.

11.2 Normas processuais e normas materiais

Na concisa, porém precisa, lição de Araken de Assis, “o direito processual civil é o ramo jurídico que traça as regras da jurisdição estatal em matéria civil”.2 Em complementação, o renomado autor esclarece:

Em termos gerais, as normas processuais civis distinguem-se das nor-mas materiais pela função: aquelas disciplinam a atividade do órgão judiciário e do juiz, na relação processual, estas, disciplinam as relações

primeiro dia útil se o vencimento cair em feriado ou em dia em que: I – for determinado o fechamento do fórum; II – o expediente forense for encerrado antes da hora normal. §2º Os prazos somente começam a correr do primeiro dia útil após a intimação (art. 240 e parágrafo único).Art. 132, CC: Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. §1º Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil. §2º Meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. §3º Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência. §4º Os prazos fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto.

2 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 185.

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das pessoas na vida em sociedade e fornecem os subsídios que o juiz utilizará para resolver a lide expressa no objeto litigioso.3

E sobre o objeto das normas de direito processual civil, Araken de Assis sustenta que os atos praticados pelos diversos atores proces-suais correspondem a duas perspectivas complementares, sendo, de um lado, a relação entre os sujeitos do processo; e, de outro, a relação entre os atos. E assevera:

O objeto das normas processuais civis compreende essas duas pers-pectivas interligadas. Esse objeto específico da norma processual civil permite distingui-la, no que interessa ao escopo do processo civil, de normas de natureza distinta, e que contrastam com a norma processual, teoricamente, no que tange aos limites temporais e especiais. É preciso ter em mente que não importa a localização formal da norma, mas o seu conteúdo e finalidade.4

Ainda segundo o festejado autor, a função da norma processual difere da norma material quando se observa que aquela se destina à aplicação do direito material na resolução da lide em atividade justa e constitucionalmente equilibrada, concluindo que “as normas processuais emprestam efetividade ao direito material”, razão por que se “revelam eminentemente instrumentais ou secundárias”.5

Relevante destacar nessa imbricada simbiose existente entre as normas processuais e materiais que as primeiras, como dito alhures, têm por escopo efetivar ou assegurar as segundas, máxime quando estas forem violadas ou se encontrarem em iminente risco de violação. Cuida-se, pois, do caráter instrumental do processo civil, muito bem explicado por Fredie Didier Júnior:

Não há processo oco: todo processo traz a afirmação de ao menos uma situação jurídica carecedora de tutela jurisdicional. Essa situação jurí-dica afirmada pode ser chamada de direito material processualizado ou simplesmente direito material. Se em todo processo há uma situação substancial afirmada (‘direito material’, na linguagem mais frequente), a relação entre eles é bastante íntima, como se supõe. A separação que se faz entre ‘direito’ e ‘processo’, importante do ponto de vista

3 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 186.

4 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 197.

5 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 199.

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didático e científico, não pode implicar um processo neutro em relação ao direito material que corresponde ao seu objeto. O processo deve ser compreendido, estudado e estruturado tendo em vista a situação jurídica material para a qual serve de instrumento de tutela. A essa abordagem metodológica do processo pode dar-se o nome de instrumentalismo, cuja principal virtude é estabelecer a ponte entre o direito processual e o direito material.6

E, após citar Calmon de Passos, com inigualável lucidez, conclui o renomado professor:

O Direito só é após ser produzido. E o Direito se produz processual-mente. Quando se fala em instrumentalidade do processo, não se quer minimizar o papel do processo na construção do direito, visto que é ab-solutamente indispensável, porquanto método de controle do exercício do poder. Trata-se, em verdade, de dar-lhe a sua exata função, que é a de coprotagonista. Forçar o operador jurídico a perceber que as regras processuais hão de ser interpretadas e aplicadas de acordo com a sua função, que é a de emprestar efetividade às normas materiais.7

Não se olvide que, a par dessa constatação, a prática dos atos processuais não se restringe aos limites intrínsecos do caderno processual, mesmo porque, em algumas oportunidades, caberá à própria parte (e não ao seu advogado) praticar determinada conduta prevista na lei processual, a qual, por vezes, se realiza em plano exterior ao processo. Nesse sentido, colhe-se a lição de José Miguel Garcia Medina ao distinguir fatos de atos processuais:

São fatos processuais aqueles que criam, modificam ou extinguem relações ou situações jurídicas processuais, isso é, produzem efeitos processuais. São atos processuais, realizados no processo, a contestação, a sentença etc.; atos processuais realizados fora do processo, mas que nele produzem efeitos, a cláusula de eleição de foro, a cessão do crédito etc. Como exemplo de fato processual que não se enquadra no rol de atos processuais, pode ser citada a morte de uma das partes, dentre outros, que seriam fatos jurídicos processuais stricto sensu.8

Sobre o conceito de ato processual, pela objetividade e clareza, menciona-se o ensinamento de Elpídio Donizetti ao dispor que:

6 DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 38.7 DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 38.8 MEDINA, J. M. G. Direito Processual Civil Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2016, p. 325.

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Ato processual é espécie do gênero ato jurídico. Este tem por fim ime-diato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, ou seja, tem efeito sobre a relação jurídica de direito material. Aquele tem por fim instaurar, desenvolver, modificar ou extinguir a relação jurídico-processual. Em outras palavras, ato processual é toda ação hu-mana que produz efeito-jurídico em relação ao processo. Ato processual é modalidade de fato processual. Fato processual é todo acontecimento com influência sobre o processo. O ato processual também tem influ-ência sobre o processo, com uma diferença: decorre da manifestação da pessoa humana.9

Lado outro, explica Fredie Didier Júnior que o conceito de fato jurídico processual ainda é bastante polêmico e aponta, sinteticamente, quatro correntes doutrinárias sobre o ponto:

a) alguns entendem que é suficiente o produzir efeitos no processo para que o fato seja havido como processual; b) há quem o vincule aos sujeitos da relação processual: apenas o ato por eles praticado poderia ter o qualificativo de processual; c) há os que exigem tenha sido o ato praticado no processo, atribuindo à sede do ato especial relevo; d) há quem entenda que ato processual é o praticado no procedimento e pelos sujeitos processuais.10

Todavia, no mesmo sentido que Donizetti, Didier defende a ideia de que:

Todo ato humano que uma norma processual tenha como apto a produzir efeitos jurídicos em uma relação jurídica processual pode ser considerado como um ato processual. Esse ato pode ser praticado durante o itinerário do procedimento ou fora do processo. (...). Assim, ato processual é todo aquele comportamento humano volitivo que é apto a produzir efeitos jurídicos num processo, atual ou futuro.11

11.3 Prazos processuais, prazos materiais e prazos mistos

Em que pese à nomenclatura tradicional e comumente utilizada pela qual se qualificam e classificam os prazos em processuais, materiais ou mistos, de rigor se mostra alertar que o prazo em si mesmo não pode

9 DONIZETTI, E. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 411-412.

10 DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 373.11 DIDIER JR., F. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 374.

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ser enquadrado como ato ou fato processual, nos termos das lições doutri-nárias revistas em linhas pretéritas. O transcurso do tempo, sim, pode gerar reflexos processuais e, como tal, ser visto como fato processual. O prazo, abstratamente previsto em lei ou comando judicial, não.

Nesse compasso, em verdade denota-se que o prazo é simples-mente um intervalo de tempo previsto em lei, manifestação judicial ou convenção entre as partes para que alguém pratique determinado fato (em sentido amplo), o qual, cumprido ou não, poderá produzir diversos efeitos de natureza processual, material ou mesmo mista. Nesse sentido, socorre-se das lições de Teresa Arruda Alvim Wambier e Arthur Mendes Lobo:

Em um primeiro momento se poderia pensar que prazos processuais são aqueles lapsos temporais concedidos aos sujeitos dos processuais (juiz, partes, perito, assistente técnico, assistente litisconsorcial, custos legis, escrivão, oficial de justiça, enfim, atores do processo), para que atuem no processo, impulsionando-o, para obter a prestação jurisdicional almejada. Sob outro prisma, seria possível afirmar que prazos proces-suais são todos aqueles previstos em leis processuais. Mas e quando a lei contém prazos não processuais? Uma interpretação mais razoável e condizente com a segurança jurídica seria, a nosso ver, a seguinte: prazos processuais são os prazos fixados em lei ou em decisão judicial que determinam ‘quando’ e ‘como’ devem ocorrer situações jurídicas que geram efeitos processuais. São atos que marcam as fases do processo e impulsionam o feito para a fase seguinte.12

No mesmo estudo, Wambier e Lobo exemplificam e concluem:

Há situações em que não se têm dúvidas a respeito de certo prazo ser material, e portanto deverá ser contado em dias corridos. É o caso, por exemplo, de prazo prescricional, prazo decadencial ou um prazo para pagar o preço de uma mercadoria em um contrato de compra e venda. Sim, nestes casos não há dúvida de que se refere à pretensão ou a direito material, porque sua contagem, a obrigação a ser cumprida ou o ônus obrigacional, independem da existência de um processo. Porém, se um prazo é previsto em uma norma processual, ainda que não integrante do novo CPC, este deve ser contado, sim e sempre, em dias úteis, ain-da que se possa eventualmente dizer, com bons argumentos, que, no

12 WAMBIER, T. A. A.; LOBO, A. M. Prazos processuais devem ser contados em dias úteis com novo CPC. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-07/prazos-processuais-contados-dias-uteis-cpc>. Acesso em: 29 maio 2017.

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fundo, se trataria de um prazo material, de modo a evitar confusão e insegurança jurídica.13

Visto isso, possível se mostra a ilação de que os atos ou fatos a serem praticados durante o decurso de determinado prazo legal ou judicial podem gerar três efeitos distintos, a saber: i) efeitos exclusi-vamente processuais; ii) efeitos exclusivamente materiais; iii) efeitos processuais e materiais (natureza mista).

Sobre tal classificação, ao analisar o stay period previsto na Lei de Recuperação Judicial e Falência, explica Manoel Justino Bezerra Filho, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que:

Assim, determinar se um prazo é processual ou material não parece ser critério suficiente para encontrar a melhor aplicação da lei. O que se propõe então, para trazer segurança jurídica, é classificar os prazos em: (i) prazo processual, (ii) prazo material absoluto e (iii) prazo material relativo. O prazo processual seguiria estritamente o CPC, como, por exemplo, o prazo para contestação (art. 98), para impugnação (art. 8), para objeção (art. 55) etc. O prazo material absoluto seria contado em dias corridos, sem aplicação do CPC, como, por exemplo, o prazo da letra “a” do inc. II do art. 27; o prazo do art. 36; o prazo de 90 dias do parágrafo 1º do art. 117 etc. Já o prazo material relativo será contado de acordo com o CPC, computando-se somente os dias úteis, tais como o prazo de 180 dias do parágrafo 4º do art. 6º. E qual seria o critério recomendável para distinguir prazo material absoluto do prazo material relativo (ou que outro qualificativo se queira dar). O material absoluto é aquele que corre de forma contínua porque não sofre interferência de outros atos ou prazos processuais em seu decurso. Isto ocorre, por exemplo, no prazo de 30 dias previsto na letra “a” do inciso II do art. 27. Já o prazo previsto no parágrafo 4º do art. 6º, embora prazo material (ou misto), depende, sem dúvida, da contagem de outros prazos de na-tureza processual e, por isto, este seria o típico prazo material relativo, pois será completado a partir de uma série de atos processuais, para os quais o prazo será contado em dias úteis. Enfim, ao que parece, a simples determinação de tratar-se de prazo de direito processual ou de direito material não seria suficiente para que se determinasse o tipo de contagem, se em dias úteis ou corridos.14

13 WAMBIER, T. A. A.; LOBO, A. M. Prazos processuais devem ser contados em dias úteis com novo CPC. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-07/prazos-processuais-contados-dias-uteis-cpc>. Acesso em: 29 maio 2017.

14 BEZERRA FILHO, M. J. A recuperação judicial e o novo CPC. 2016. Disponível em: <http://www.valor.com.br/legislacao/4581655/recuperacao-judicial-e-o-novo-cpc>. Acesso em: 30 maio 2017.

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Em apertada síntese, perpassados os conceitos de normas proces-suais e normas materiais, infere-se que os prazos processuais são aqueles que se referem à prática de ato processual, consistente este em “comportamento humano volitivo que é apto a produzir efeitos jurídicos num processo, atual ou futuro”, segundo Didier.

Noutro prisma, os prazos materiais vinculam-se à prática de fatos ou atos jurídicos regulados pelo direito material, sendo certo que, para parcela da doutrina, daqueles podem-se visualizar duas espécies: i) prazos materiais absolutos (efeitos exclusivamente materiais); ii) prazos materiais relativos ou mistos (efeitos processuais e materiais). O fator de discrímen reside na constatação de que um ato ou fato regulado pelo direito material eventualmente produz ou não efeitos processuais.

Dessarte, é possível asseverar que atos e fatos de natureza material podem gerar concomitantemente efeitos regulados pelo direito substancial e pelo direito processual, conduzindo o intérprete à necessidade de averiguar caso a caso qual é o aspecto preponderante, notadamente ante o comando normativo do artigo 219 do CPC/2015, pois que de rigor saber de antemão de que forma se dará a contagem do prazo (legal ou judicial) estabelecido para a prática de tais condutas ‒ em dias úteis ou em dias corridos.

11.4 Natureza do prazo para pagamento

Precisamente, dispõe o artigo 523 do CPC/2015 que:

Art. 523. No caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liqui-dação, e no caso de decisão sobre parcela incontroversa, o cumprimento definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o executado intimado para pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias, acrescido de custas, se houver. §1º Não ocorrendo pagamento voluntário no prazo do caput, o débito será acrescido de multa de dez por cento e, também, de honorários de advogado de dez por cento. §2º Efetuado o pagamento parcial no prazo previsto no caput, a multa e os honorários previstos no §1º incidirão sobre o restante. §3º Não efetuado tempesti-vamente o pagamento voluntário, será expedido, desde logo, mandado de penhora e avaliação, seguindo-se os atos de expropriação.

Vê-se, pois, que o comando legal é o de que o devedor (então executado) deve ser intimado para efetuar o pagamento da dívida e das custas (se houver) no prazo de 15 (quinze) dias, não esclarecendo o texto legal se tal contagem segue a regra do artigo 219 do CPC/2015 ou do artigo 132 do Código Civil. Noutros termos, significa dizer que há

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dúvidas se a contagem do prazo quinzenal deverá observar apenas os dias úteis ou, ao revés, seguir os dias corridos, computando-se aqueles em que não houver expediente forense.

Sobre a fluência e contagem dos prazos, ensina Araken de Assis que:

De acordo com entendimento bastante difundido na doutrina, mas despercebido na prática, cumpre distinguir entre a fluência do prazo, ou seja, o início do prazo, e a regras [sic] atinentes à sua contagem, em particular o início da contagem do prazo. Os verbos correr e contar expressam conceito juridicamente diferentes. O prazo flui, ou corre, de um ponto temporal a outro. Traz a ideia de movimento. A sua contagem considera a unidade de tempo usada no prazo. Desse modo, a contagem do prazo inicia após completar-se a primeira unidade, e, não, no termo a quo. Por exemplo, no prazo em dias, sendo o termo inicial segunda-feira, a fluência começa na terça-feira, sendo dia útil.15

Mais especificamente em relação à regra contida no artigo 219 do CPC/2015, Araken de Assis é certeiro ao sustentar que:

A contagem do prazo processual só leva em conta dias úteis (art. 219, caput). Era assim quando o termo inicial ou o termo final recaiam em dia não útil, protraindo-se, em casos tais, para o primeiro dia útil seguinte. Entenda-se, mais uma vez, que ‘dia útil’, na contagem do prazo em dias, é o dia em que há expediente forense (de segunda a sexta-feira) completo. (...) O art. 219, caput, modificou a regra básica num ponto fundamental: os feriados forenses (sábados, domingos e dias sem expediente forense) descontam-se da contagem.16

Por certo, a intenção do legislador foi a de excluir os dias sem expediente forense da contagem dos prazos (legais ou judiciais) fixados em dias porque, a princípio, encontrando-se fechado o fórum, não poderia a parte (por si ou por seu advogado) praticar determinado ato processual. Ao menos não em relação aos processos físicos, pois os atos processuais em processos eletrônicos podem ser praticados validamente fora do horário de expediente forense.17 Não por outra razão, a regra anterior, como bem lembrado por Araken de Assis, prorrogava o prazo

15 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.431.

16 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.450.

17 Art. 212, CPC/2015: Os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas.

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encerrado em dia sem expediente forense (ou em que este, por qualquer motivo, se encerrou mais cedo) para o primeiro dia útil subsequente.

Há quem explique, como Elpídio Donizetti, que a contagem de prazos apenas em dias úteis revela por objetivo permitir que os advogados não sejam obrigados a trabalhar nos fins de semana e feriados. Confira-se:

Quando dos trabalhos da Comissão de Juristas, tive a oportunidade de alertar para a complicação, mas regra da contagem dos prazos somente em dias úteis acabou prevalecendo. Diziam os advogados da Comissão que a contagem em dias úteis permitia que os advogados pudessem descansar no final de semana.18

Ocorre que, como visto, o prazo em análise refere-se ao pagamento da dívida pelo devedor (executado), ato jurídico regulado pelo direito material, conquanto com reflexos processuais. Portanto, não se trata de ato processual a ser praticado pelo advogado do executado, mas por este, pessoalmente.19 Daí, há de se questionar se a mens legis no caso implicaria na necessidade de contagem do referido prazo tomando-se em consideração tão somente os dias úteis, pois, afinal, a novel regra assim foi criada em benefício dos advogados, não das partes.

Quanto ao pagamento em si, ensinam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald o seguinte:

O adimplemento (ou cumprimento, pagamento) possui três requisitos: a) voluntário – pois será efetuado espontaneamente pelo devedor. Caso exista coerção praticada pelo credor, estaremos diante de hipótese de

Art. 213, CPC/2015: A prática eletrônica de ato processual pode ocorrer em qualquer horário até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia do prazo. Parágrafo único. O horário vigente no juízo perante o qual o ato deve ser praticado será considerado para fins de atendimento do prazo.Art. 3º, Lei nº 11.419/2006: Consideram-se realizados os atos processuais por meio eletrônico no dia e hora do seu envio ao sistema do Poder Judiciário, do que deverá ser fornecido protocolo eletrônico. Parágrafo único. Quando a petição eletrônica for enviada para atender prazo processual, serão consideradas tempestivas as transmitidas até as 24 (vinte e quatro) horas do seu último dia.

18 DONIZETTI, E. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 435.

19 Enfim, não se cogite de adimplemento de uma obrigação quando, ao invés do devedor, terceira pessoa efetuar o pagamento, ou quando a prestação for obtida coativamente, mediante o exercício de pretensão do credor. Trata-se de casos em que o devedor é desonerado da obrigação, com a satisfação do credor, sem, contudo, que propriamente tenha ela sido adimplida (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 267).

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inadimplemento (art. 580 do CPC);20 b) exato – a prestação será satisfeita no tempo, local e forma ajustados (art. 394 do CC), sob pena de perda de sua utilidade e constituição do inadimplemento; c) lícito – não é suficiente cumprir a obrigação principal – prestação –, mas também os deveres anexos resultantes da boa-fé objetiva perante o parceiro (art. 422 do CC), com atenção à função social da relação jurídica (art. 421 do CC), caso contrário, haverá abuso do direito, considerado objetivamente como ato ilícito, pelo art. 187 do Código Civil. (...). Em suma, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.21

Nesse ponto, é imperioso notar que, se há processo em fase de cumprimento definitivo de sentença, presume-se que o executado foi condenado ao pagamento de quantia certa por ato judicial sob o pálio da coisa julgada. Assim é que, regularmente intimado, cabe a este promover o pagamento da dívida (e das custas, se houver) no prazo de 15 (quinze) dias. Cuida-se, pois, de prazo para cumprimento de obrigação de pagar quantia certa, líquida e exigível materializada em título executivo judicial definitivo.22

Evidentemente, podem-se vislumbrar três condutas possíveis do executado no interstício em questão: i) pagar integralmente a dívida; ii) pagar parcialmente a dívida; iii) não pagar a dívida. A par dos efeitos típicos do pagamento previsto na lei civil, para cada uma dessas condutas o CPC/2015 também prevê efeitos processuais diversos. Em caso de pagamento integral, extingue-se a execução em razão de a obrigação ter sido satisfeita.23 Lado outro, o não pagamento permite sobre o débito o acréscimo de multa de 10% (dez por cento) e de honorários advocatícios também de 10% (dez por cento), expedin-do-se, desde logo, mandado de penhora e avaliação, seguindo-se os atos de expropriação. O mesmo ocorre no caso de pagamento parcial

20 O dispositivo legal mencionado refere-se ao CPC/1973.21 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 3. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 268.22 Nesse ponto há de se atentar para o fato de que a obrigação de pagar quantia certa, líquida e

exigível não decorre do título executivo em si mesmo, senão de uma relação jurídica subjacente com origem no direito material, a qual, por evidente, restou reconhecida judicialmente em caráter definitivo. O título executivo judicial (normalmente sentença ou decisão interlocutória) apenas se constitui processualmente como instrumento hábil para inauguração da fase de cumprimento de sentença, identificando em seu conteúdo a obrigação em todos os seus pormenores (quem deve, a quem se deve, o que se deve, quanto se deve e quando se deve).

23 Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código.Art. 924. Extingue-se a execução quando: (...); II – a obrigação for satisfeita;

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em relação ao saldo devedor residual. É o que dispõem os §§1º ao 3º do artigo 523 do CPC/2015 mencionados alhures.

Infere-se, pois, que o pagamento é conduta que gera efeitos materiais e, por acaso, também processuais. É, portanto, ato de natureza mista quando, sobre o direito material envolvido, pender processo judicial. Inexistindo processo judicial, evidentemente, o pagamento produz tão somente efeitos materiais, notadamente o de extinção da respectiva obrigação.

Não se olvide ainda que o pagamento é ato jurídico regulado pelo Código Civil,24 cujos efeitos (sejam materiais ou processuais) independem da manifestação de vontade do devedor que o realiza. Em verdade, trata-se de ato-fato jurídico,25 cujos efeitos, ao que foi visto, são inexoráveis e independem da vontade do executado, travestindo-se, simultaneamente, em ato-fato processual,26 desde que ocorra, repita-se, na pendência do respectivo processo judicial.

Bem explica Araken de Assis que:

Os atos processuais constituem espécie de atos jurídicos em sentido estri-to. Destacam-se da classe porque seus elementos de existência, requisitos de validade e fatores de eficácia encontram-se previstos unicamente na lei processual civil. Os atos que adquirem existência fora do processo,

24 Vide artigos 304 e seguintes do Código Civil.25 Enfim, ato-fato jurídico é aquele em que a hipótese de incidência pressupõe um ato humano,

porém os seus efeitos decorrem por conta da norma, pouco interessando se houve, ou não, vontade em sua prática (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 506).

26 Ao tratar das espécies de fatos processuais, Araken de Assis ensina que: “Provindo o ato da conduta, em algumas situações abstrai-se a relevância da vontade humana, considerando apenas o fato daí gerado, criando, assim, a subespécie do ato-fato jurídico” (ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo I. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.270). Também Medina leciona que: “Há, ainda, fatos processuais de que alguém participa, em sua configuração, sendo irrelevante a vontade, contudo. É o que ocorre com aquilo que Pontes de Miranda chamou de ato-fato. Como exemplo de ato-fato processual podem ser citados a não realização de um ato processual (que tem como efeito a preclusão), o preparo etc.” (MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 325). Na mesma trilha, Didier: “Há os atos-fatos processuais – atos reconhecidos pelo Direito como fatos, sendo, portanto, absolutamente irrelevante a discussão sobre a existência de vontade e sobre o seu conteúdo. Há diversos exemplos: a) atos-fatos reais: adiantamento de custas e do preparo (art. 1.007, CPC); b) atos-fatos caducificantes: a revelia (art. 344, CPC) e a admissão (art. 374, III, CPC) – em regra, a perda do prazo é exemplo de ato-fato processual caducificante; c) atos-fatos indenizativos, como, por exemplo, a execução provisória que causou prejuízo ao executado, com superveniente reforma/ou anulação do título judicial (art. 520, I, CPC). É claro que a revelia, o preparo etc. podem ser condutas praticadas voluntariamente pelas partes. Mas não é isso o que as caracteriza. Para o Direito Processual, é irrelevante a averiguação da existência de vontade em tais atos” (DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 375-376).

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incluindo os negócios jurídicos, ingressam no processo por meio das manifestações ou das declarações das partes (e dos demais figurantes do processo), e só então, alterada a respectiva natureza, passam a atos processuais.27

Nesse palco, percebe-se que o ato de pagar por parte do executado, após regularmente intimado para tanto, inicialmente adquire existência fora do processo28 e neste ingressa somente por meio da manifestação de seu advogado informando e comprovando o pagamento ao juízo. Afinal, a prova do pagamento cabe, de regra, ao devedor.29

Veja-se, assim, que o pagamento é um ato-fato jurídico material praticado fora do processo, embora produza também alguns efeitos processuais a partir do momento em que, comprovado pela quitação juntada aos autos, o juiz extingue a execução por sentença. Nota-se que há de ser considerado como preponderante o aspecto material da conduta de pagar quando o devedor (por acaso, executado) cumpre a prestação a que se obrigou e que foi judicialmente reconhecida com definitividade.

Igualmente, tem-se como de maior relevância o aspecto material da conduta omissiva do devedor (então executado) que deixa transcorrer o prazo quinzenal sem efetuar o pagamento da dívida, conquanto sua inércia possa gerar os efeitos processuais previstos nos §§1º e 3º do artigo 523 do CPC/2015. Cuida-se propriamente de ato-fato caducifi-cante, conforme lição de Fredie Didier Júnior já revista neste trabalho.

Não por demais é rememorar que o caráter instrumental do processo civil em relação ao direito material ao qual se vincula demonstra que o escopo do legislador é utilizar daquele para se efetivar este. O processo é o meio legalmente previsto para efetivação do direito material. Não o contrário.

Isso quer significar que a fase do cumprimento de sentença, como a própria nomenclatura está a indicar, visa promover a efetivação do comando contido no ato judicial ‒ no caso em estudo, o pagamento de uma prestação de dar dinheiro (quantia certa). A prioridade é fazer

27 ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo I. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.277.

28 É verdade que o devedor pode promover o depósito judicial da dívida para fins de impedir a incidência dos consectários da mora (juros e correção monetária, por exemplo), ato que não poderia ser considerado externo ao processo. Mas tal conduta não se revela propriamente como pagamento, mesmo porque, nesse caso, procura o executado assim agir para que possa discutir judicialmente a dívida sem o risco de esta ser agravada pela mora.

29 Art. 319, CC: O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada.

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com que o credor (então exequente) receba exatamente aquilo que lhe é conferido pelo direito material (crédito). Inegavelmente, o que interessa é a entrega do objeto da prestação ao credor para se atingir a pacificação social, encerrando-se o conflito de interesses qualificado, até então, pela pretensão resistida.

Vale dizer, do pagamento, mais relevante é o aspecto material (adimplemento da obrigação) do que o processual (extinção da fase de cumprimento de sentença e arquivamento do processo). Ou, por outro lado, mais importa o inadimplemento em si do que seus reflexos processuais (multa, honorários advocatícios, penhora, avaliação e atos de expropriação), pois o primeiro é causa; os demais, consequência.

Do contrário, seria priorizar o meio ao fim; a consequência, à causa; o processo, ao direito material.

11.5 Considerações finais

Hodiernamente, pouco se extrai da jurisprudência acerca do tema posto, mesmo porque ainda recente é a entrada em vigor do CPC/2015.30 Da doutrina, denota-se que poucos autores se dedicaram à questão em suas obras ou ensaios já publicados, conquanto se possa observar que estes, em sua maioria, têm manifestado o entendimento de que o prazo previsto no caput do artigo 523 do CPC/2015 é de natureza processual e, como tal, deve seguir a regra de contagem inovadora prevista no artigo 219 daquele diploma legal. Confira-se:

O pagamento, realizado em atenção ao art. 523 do CPC/2015, é ato processual, sendo de igual natureza o prazo respectivo; logo, deve-se lhe aplicar o disposto no art. 219 do CPC/2015, contando-se o prazo em dias úteis.31

O prazo fixado no texto ora comentado tem como destinatário a parte, que é quem deve praticar ato para cumprimento da sentença (pagamen-to) em quinze dias. Trata-se de prazo fixado em lei, como exige o CPC 219 caput para que a contagem se dê em dias úteis. O segundo requisito legal para a aplicação do critério de contagem somente em dias úteis é a destinação da intimação: prática de ato processual, que é o que deve ser praticado no, em razão do ou para o processo. Cumprimento da

30 O presente artigo foi redigido em maio de 2017, portanto, pouco mais de um ano após a entrada em vigor do CPC/2015, que se deu em 18 de março de 2016.

31 MEDINA, J. M. G. Direito Processual Civil Moderno. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 935.

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sentença, portanto, é ato processual que deve ser praticado pela parte. Incide a regra da contagem de prazo prevista no CPC 219 caput e par. ún., de que os prazos previstos em lei ou designados pelo juiz fixados em dias, correm apenas em dias úteis.32

Impõe-se, por fim, indagar a respeito da contagem do prazo de quinze dias, notadamente diante da regra contida no art. 219 pelo qual ‘a conta-gem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os úteis’, com a ressalva contida no seu parágrafo único de que tal regra ‘aplica-se somente aos prazos processuais’. Conquanto o ato de pagar seja voltado à parte, o comando exarado pelo juiz, instando o executado a pagar em determinado prazo, como já dissemos, é ato executivo, de natureza mandamental (coercitiva), daí porque se trata de um prazo processual e, como tal, deve observar o comando do art. 219. Assim, o prazo de quinze dias deve ser contado em dias úteis.33

Nesse sentido, o prazo para pagamento voluntário previsto no art. 523 do novo CPC – quinze dias contados da intimação para pagamento, rea-lizada na forma do art. 513, §2º – é de natureza processual ou material? Certamente haverá margem para discussão, mas considerando que esse ato (pagamento) também se destina (ainda que não exclusivamente) a produzir efeitos no processo, inibindo a deflagração das próximas etapas do cumprimento de sentença, com a realização de atos constritivos sobre o patrimônio do executado, parece que o prazo deve ser qualificado como processual, computando-se apenas nos dias úteis.34

Na linha do exposto no tópico anterior, creio ser um prazo processual [7], considerando (i) estar previsto na legislação processual, para a realização de um ato processual e (ii) trazer consequências processuais, as quais serão abaixo expostas. Ainda que haja, por óbvio, reflexos para fora do processo, como a não fluência de juros e o recebimento de valores pelo exequente, decorrente do pagamento.35

32 NERY JUNIOR, N.; NERY, R. M. A. Código de Processo Civil Comentado. 16. ed., rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.392.

33 WAMBIER, T. A. A. (Coord.). Primeiros Comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 955.

34 ROQUE, A. V. As armadilhas dos prazos no novo CPC. 2015. Disponível em: <https://jota.info/colunas/novo-cpc/as-armadilhas-dos-prazos-no-novo-cpc-07092015>. Acesso em: 30 maio 2017.

35 DELLORE, L. O prazo para pagamento é em dias úteis ou corridos no cumprimento de sentença e execução? 2016. Disponível em: <https://jota.info/colunas/novo-cpc/no-cumprimento-de-sentenca-e-execucao-no-novo-cpc-o-prazo-para-pagamento-e-em-dias-uteis-ou-corridos-02052016>. Acesso em: 30 maio 2017.

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Por prisma diverso, no entanto, há autores que defendem a contagem do prazo para pagamento pela regra dos dias corridos (computando-se sábados, domingos, feriados, enfim, dias sem expediente forense). Veja-se:

Ressalte-se, por fim, que a regra de contagem de prazos apenas em dias úteis aplica-se tão somente a prazos processuais. Isso significa que os prazos concedidos às partes para o cumprimento de sentença ou deci-sões interlocutórias que lhes imponham obrigações não contarão com o beneplácito do art. 219, contando-se de forma corrida igualmente em dias não úteis.36

Apesar de existir corrente doutrinária que defende tratar-se de um prazo processual (apud, Scarpinella Bueno, Manual, p. 402), em meu entendimento o prazo é material, porque o pagamento é ato a ser pra-ticado pela parte e não pelo advogado, não se tratando, portanto, de ato postulatório.37

Do exposto ao longo deste breve estudo sobre tema de relevância prática ímpar, em que pesem aos argumentos citados pelos consagrados autores que sustentam a conjugação do disposto nos artigos 219 e 523, caput, do CPC/2015, infere-se que o prazo quinzenal para pagamento da quantia certa sob cumprimento definitivo de sentença revela natureza mista, pois que se trata de ato-fato material, que, se praticado na pendência de processo judicial, por obra do acaso, também provocará efeitos processuais.

Por isso há de preponderar a natureza material da conduta de pagar praticada pelo devedor (executado), pois que mais relevante é a entrega do objeto da prestação obrigacional (direito material) do que a extinção do processo (direito processual), já que este último é o meio para se atingir determinada finalidade, qual seja, a efetivação do direito material, no caso, o crédito do credor (ora exequente) em desfavor do devedor (ora executado).

Em assim sendo, há de se afastar a regra de contagem do prazo em dias úteis, prevista no caput do artigo 219 do CPC/2015, porque, segundo o parágrafo único desse dispositivo legal, tal se aplica somente aos prazos processuais. Significa dizer que o pagamento, como ato-fato regulado pelo Código Civil (direito material) permite adjetivar como

36 AMARAL, G. R. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 310.

37 NEVES, D. A. A. Manual de Direito Processual Civil: Volume Único. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1.124.

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misto o prazo quinzenal em apreço, preponderando, no entanto, o caráter material da conduta do devedor.

Prevalecendo a natureza material do pagamento, deve-se contar o prazo para pagar, portanto, em dias corridos, afastando-se a regra do artigo 219, caput, do CPC/2015, em observância ao disposto em seu parágrafo único.

Não se olvide, por derradeiro, que, em obediência ao processo civil constitucionalizado, sobretudo ao princípio da cooperação, positivado pelo CPC/2015 no ordenamento jurídico doméstico, assim como para que se evite a indesejável insegurança jurídica, o magistrado diligente deve esclarecer e alertar previamente o devedor (então executado) de que está sendo intimado a pagar a dívida em execução no prazo de 15 (quinze) dias corridos a fim de evitar que se possa seguir equivo-cadamente a contagem em dias úteis e, eventualmente, concretize a prestação intempestivamente, submetendo-se aos rigores das sanções processuais cabíveis.38

ReferênciasAMARAL, G. R. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Vol. II, Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ASSIS, A. Processo Civil Brasileiro. Volume I. Parte Geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

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DELLORE, L. O prazo para pagamento é em dias úteis ou corridos no cumprimento de sentença e execução? 2016. Disponível em: <https://jota.info/colunas/novo-cpc/no-cumprimento-de-sentenca-e-execucao-no-novo-cpc-o-prazo-para-pagamento-e--em-dias-uteis-ou-corridos-02052016>. Acesso em: 30 maio 2017.

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DONIZETTI, E. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

38 Vide §§1º e 3º do artigo 523 do CPC/2015.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

LOPES FILHO, Marcos Boechat. Conta-se em dias úteis ou dias corridos o prazo para pagamento no cumprimento definitivo de sentença por quantia certa?. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 229-246. ISBN 978-85-450-0456-1.

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PARTE II

O DIREITO DO CONSUMIDOR E ONOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

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CAPÍTULO 1

O DIÁLOGO ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A SUBSTANCIAL

AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

DO CONSUMIDOR EM JUÍZO

Claudia Lima MarquesLuis Alberto Reichelt

1.1 Introdução

Di-a-logos; duas lógicas e só uma aplicação conjunta e coerente de várias fontes e suas “lógicas” e espécies a um mesmo caso. Com esta expressão semiótica e poética, o Professor Erik Jayme consolidou, na teoria geral, a solução dos antigos conflitos de leis no tempo, a indicar que, no pluralismo contemporâneo de fontes, elas não mais se excluem ou se derrogam, até mesmo porque seus campos de aplicação material e substancial não são mais perfeitamente coincidentes, mas co-habitam e di-a-logam, sob os mandamentos constitucionais de proteção.1

O novo Código de Processo Civil não trata diretamente dos direitos processuais (coletivos) do consumidor, mas naturalmente o advento de um novo Código de Processo Civil coloca o intérprete diante do desafio de reconstruir o sistema de defesa do consumidor,

1 Veja mais sobre o diálogo das fontes em JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internationale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, Kluwer, Doordrecht, 1995, e na obra MARQUES, Claudia Lima (Org.). Diálogo das fontes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 9 e seg.

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em especial em sua parte processual.2 A pretensão de veiculação de um novo paradigma através da edição da nova codificação constitui-se em importante ponto de reflexão no que se refere à necessidade de preser-vação e ampliação do âmbito de proteção do consumidor até então existente. A preocupação com a compatibilização entre os comandos construídos a partir das leis que ditam parâmetros em sede de direito processual civil e de direito do consumidor é, antes de tudo, a conside-ração de tais normas dentro de um marco civilizatório no qual não se admite retrocesso, forte no mandamento do art. 5º, XXXII, da CF/1988.

Partindo dessas premissas, o presente estudo pretende lançar luzes, em primeiro lugar, sobre a reflexão em torno da forma como se dá a construção do sistema processual civil consumerista a partir do encontro e harmonia das normas inseridas no novo Código de Processo Civil com aquelas já constantes do Código de Defesa do Consumidor. Cumprida tal etapa, passar-se-á à apresentação de um panorama que confirma a existência de um sistema na presença de direitos funda-mentais a serem assegurados ao consumidor no âmbito processual, mostrando como esse sistema resta densificado pelo legislador infra-constitucional. Vejamos.

1.2 A formação de um sistema de caráter protetivo a partir da harmônica combinação entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil

Sendo o sistema jurídico um conjunto de normas dotado de ordenação e de unidade,3 impõe-se refletir a respeito do significado presente na pretensão de reconhecer a existência de um sistema processual civil formatado em favor da defesa do consumidor em juízo.

Nesse sentido, a primeira preocupação a ser considerada diz respeito à identificação do traço comum a todas as normas jurídicas que funciona como referencial de unidade a justificar sejam elas inter-pretadas e aplicadas a partir de uma mesma padronização. A esse respeito, tem-se como inquestionável que o compromisso expresso do

2 Veja sobre o tema FIGUEIRA, Joel Dias Júnior. Projeto Legislativo de Novo código de Processo Civil e a crise da jurisdição. Revista dos Tribunais, n. 926, dez. 2012, p. 455 e seg.

3 Sobre essa perspectiva a respeito do conceito de sistema, ver CANNARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Trad. Antonio Menezes Cordeiro. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1996.

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texto constitucional em assegurar a defesa do consumidor em juízo, na forma do constante do art. 5º, XXXII, serve como elemento que exerce força atrativa em relação aos demais comandos editados pelo legislador. É na circunstância de todas as normas cotejadas serem efetiva densi-ficação do direito fundamental à tutela dos direitos do consumidor que se encontra o fio condutor que impõe sejam determinadas normas agrupadas entre si de modo a serem vistas como uma teia protetiva.4

Essa unidade de sentido identificada no cotejo das diversas normas que densificam o direito fundamental à tutela dos direitos do consumidor traz consigo a aplicabilidade de uma hermenêutica igual-mente engajada. É nesse sentido que o art. 5º, XXXII, impõe que sejam os comandos veiculados tratados como componentes de uma pauta mínima de proteção em uma realidade político-cultural, a qual deve ser defendida de maneira intransigente, não se admitindo a possibi-lidade de qualquer forma de retrocesso em relação ao seu âmbito de proteção.5 A essa pauta mínima deve ser assegurada aplicabilidade da forma imediata, sendo o seu alcance inegavelmente passível de ampliação pelo legislador e pelo intérprete, a quem compete zelar pelo respeito às soluções que espelhem a existência de um âmbito de proteção pautado pela máxima extensão possível no contraste com outros direitos fundamentais.

Essa leitura crítica do trabalho desenvolvido pelo legislador gera resultados muito interessantes em se considerando a forma como o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil se entrelaçam na formação de um sistema de caráter protetivo. A própria ordenação do sistema assume feições especiais, dado que a lógica da hierarquia das fontes do direito e o critério da especialidade cedem espaço diante da necessidade de sempre assegurar a primazia da norma mais protetiva. Assim, o espaço assegurado ao novo Código de Processo Civil para introduzir comandos aplicáveis em favor da defesa do consumidor será aquele no qual o novel diploma se revele capaz de ofertar um âmbito de proteção mais robusto do que aquele anteriormente previsto nas normas consumeristas.

4 A esse respeito, comentando sobre o efeito útil e pro homine do status constitucional da proteção do consumidor, ver o capítulo introdutório de Claudia Lima Marques em MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. e. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 70.

5 Sobre o influxo da proibição de retrocesso na construção da hermenêutica própria dos direitos fundamentais, ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 448.

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A forma como se desenvolve a hermenêutica acima apontada ganha cores especiais em se examinando o que se passa, quando um mesmo tema é regulado tanto pelo Código de Processo Civil quanto pelo Código de Defesa do Consumidor. A consideração de tais parâmetros faz com que certos comandos constantes do novo Código de Processo Civil ‒ que são abertamente orientados a partir de um viés liberal na forma de tratamento das partes, baseados na suficiência da igualdade formal como forma de proteção ‒ não possam ser considerados como normas de aplicabilidade preferencial em se tratando de demandas consumeristas. O Estado-Juiz deve, na forma da lei protetiva, realizar a defesa do consumidor. Exemplificativamente, pode-se pensar nas regras sobre ônus da prova: se, de um lado, é certo que a incidência da fórmula constante do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor afasta, por especialidade, a da regra geral prevista no caput do art. 373 do Código de Processo Civil, é certo, de outro lado, que a dinamização do ônus da prova prevista no §1º do mesmo art. 373 pode se revelar como uma regra capaz de ampliar a proteção do consumidor para além das hipóteses expressamente contempladas pelo legislador.6

O reforço do âmbito de proteção já previsto no Código de Defesa do Consumidor pode ser visto, de outro lado, na análise das regras sobre desconsideração da personalidade jurídica. À consagração da teoria menor no plano do direito material, necessária à viabilização de proteção mais efetiva em favor do consumidor, soma-se agora a providência processual constante do art. 792, §3º, do Código de Processo Civil, segundo a qual a fraude à execução, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, se verifica a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.7 Vê-se, aqui, a necessidade de conjugação de normas que se complementam com o intuito de combater expedientes outrora empregados com o intuito de dificultar a satisfação dos seus interesses.

6 Sobre os critérios envolvidos na aplicação de regras sobre inversão do ônus da prova e de dinamização do ônus da prova, ver REICHELT, Luis Alberto. A Prova no Direito Processual Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 344 e seguintes.

7 Sobre a desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC, ver XAVIER, José Tadeu Neves. Primeiras reflexões sobre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jurídica, v. 458, 2015, p. 31-59; XAVIER, José Tadeu Neves. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito do consumidor (Jurisprudência comentada). Revista de Direito do Consumidor, v. 105, 2016, p. 452-464; SOUZA, Gelson Amaro de. Desconsideração da personalidade jurídica no CPC-2015. Revista de Processo, v. 255, 2016, p. 91-113; e REICHELT, Luis Alberto. A desconsideração da personalidade jurídica no projeto de novo Código de Processo Civil e a efetividade da tutela jurisdicional do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 98, 2015, p. 245-259.

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1.3 As inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 e sua compatibilização com o regime instituído pelo Código de Defesa do Consumidor

A presença de uma série de inovações no Código de Processo Civil de 2015 traz consigo a necessidade do debate em torno da compa-tibilidade com o programa de defesa do consumidor até então existente não só nos pontos em que já havia regulação expressa em relação a determinado tema, mas também naqueles em que inexistia qualquer previsão específica a seu respeito. Segue-se a trilha do disposto no art. 7º do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legis-lação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.

Um primeiro caso a ser considerado envolve o fenômeno dos negócios jurídicos processuais. O art. 190 do Código de Processo Civil dispõe que, versando o processo sobre direitos que admitam autocom-posição, tem-se como lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. A possibilidade veiculada na cláusula geral em comento, contudo, é absolutamente incompatível com a exigência de modelo de processo comprometido com proteção de defesa do consumidor. Não por acaso, há previsão legal que expressa-mente impõe ao juiz o dever de, de ofício ou a requerimento, controlar a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulne-rabilidade.8 E mesmo que não houvesse o legislador assim disposto de maneira expressa, o limite em questão seria imperioso por força da necessidade de assegurar máxima eficácia e efetividade ao disposto no art. 5º, XXXII e XXXV, do texto constitucional em favor do consumidor.

Da mesma forma, inova o legislador do Código de Processo Civil ao prever a presença de um sistema de decisões dotadas de caráter

8 Ligando tal limite à necessidade de preservação da autonomia da vontade, ver as palavras de Fernando Gajardoni em GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte. Teoria Geral do Processo. Comentários ao CPC de 2015. Parte Geral. São Paulo: Método, 2015, p. 617-618.

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vinculante no seu art. 927. Preocupado abertamente com a oferta de tutela jurisdicional pautada por isonomia e por respeito à exigência de segurança jurídica, tem-se na estratégia adotada pelo legislador uma providência inegavelmente sintonizada com as exigências próprias de uma sociedade na qual a litigiosidade judicial guarda íntima relação com a massificação das relações sociais, no que é digna de elogios.

Há que se registrar, contudo, que a aplicabilidade da fórmula lá inscrita reclama adequação às peculiaridades da realidade das partes, principalmente no que se refere ao emprego de critérios de hermenêutica que assegurem a prevalência do precedente mais favorável à tutela do consumidor como forma de impedir que o distinguishing ou o overruling, consumados na forma do previsto no art. 489, §1º, V e VI, do CPC, deem azo ao surgimento de inaceitável retrocesso social.9

O influxo do sistema de precedentes vinculantes em favor do consumidor pode ser sentido, entre outras formas, em se considerando a influência por ele exercida no regime da tutela de evidência, regulada no art. 311 do novo Código de Processo Civil.10 Presentes as circuns-tâncias elencadas pelo legislador, é possível a concessão de medidas liminares em favor do consumidor independentemente da presença de perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. Havendo tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante em favor do consumidor (e a probabilidade do surgimento dessas

9 Para aplicação prática a esse respeito em matéria consumerista, ver as considerações feitas em REICHELT, Luis Alberto. O sistema de direitos fundamentais processuais densificado pelo novo CPC e a necessária superação da Súmula 381 do STJ. Revista de Direito do Consumidor, v. 110, 2017, p. 459-472. Sobre o tema em geral à luz do novo CPC, ver, exemplificativamente, FENSTERSEIFER, Wagner Arnold. Distinguishing e overruling na aplicação do art. 489, §1º, VI do CPC/2015. Revista de Processo, v. 252, 2016, p. 371-385; MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2016; MITIDIERO, Daniel Francisco. Precedentes, jurisprudência e súmulas no novo código de processo civil brasileiro. Revista de Processo, v. 245, 2015, p. 333-349; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. O sistema de precedentes desenvolvido pelo CPC/2015: uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing) e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de Processo, v. 248, 2015, p. 331-355.

10 Para um panorama geral a respeito da tutela de evidência, ver FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela da evidência: fundamentos da tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 1996; SILVA, Jaqueline Mielke. A tutela provisória no novo Código de Processo Civil. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016; GRECO, Leonardo. A tutela da urgência e a tutela da evidência no Código de Processo Civil de 2015. In: RIBEIRO, Darci Guimarães; JOBIM, Marco Félix (Org.). Desvendando o novo CPC. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 111-137; GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Apontamentos para a tutela provisória (urgência e evidência) no novo Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo, v. 254, 2016, p. 195-223; TESHEINER, José Maria Rosa; THAMAY, Rennan Faria Krüger. Aspectos da tutela provisória: da tutela de urgência e tutela da evidência. Revista de Processo, v. 257, 2016, p. 179-214; CARDOSO, Oscar Valente. A tutela provisória no novo código de processual civil: urgência e evidência. Revista Dialética de Direito Processual, v. 148, 2015, p. 86-98.

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orientações padronizadas em matéria consumerista é considerável, já que o consumidor é o personagem mais emblemático a ilustrar o típico sujeito da sociedade de massas pós-moderna), tem-se que a ele pode ser estendida a tutela de evidência.

Nesse sentido, impõe-se destacar, ainda, que a conjugação da inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor com o previsto no art. 311, em especial nos incisos II e IV, revela interessantes possibilidades em favor da ampliação da tutela do consumidor. Assim ocorre na medida em que a correta conjugação dos comandos legais em questão permitiria que fossem concedidas liminares em sede de tutela de evidência mediante a consideração de um standard de prova ainda mais reduzido do que aquele previsto pelo Código de Processo Civil.11

Um ponto positivo a ser destacado dentre as inovações traba-lhadas pelo legislador no novo Código de Processo Civil é a sofisticação do sistema multiportas de acesso à justiça. A confiança da lei no bom funcionamento de ferramentas como a mediação e a conciliação, com o delineamento do campo de atuação de cada um dos profissionais (é o que se observa da distinção dos personagens listados nos parágrafos do art. 165), bem como a compreensão da utilização de tais meios adequados de solução de litígios tanto para o contexto judicial quanto extrajudicial, contribui substancialmente para a oferta de um maior leque de alternativas a serem consideradas pelo consumidor com vistas à tutela dos seus interesses. Trata-se de concretização do previsto no art. 5º, XXXV, do texto constitucional, a qual vem sintonizada com o disposto no art. 3º, §§2º e 3º, da mesma codificação processual civil.12

11 A respeito da noção de standard de prova, ver KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: Paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense, v. 353, 2001, p. 15-52; REICHELT, Luis Alberto. A Prova no Direito Processual Civil. Op. cit., p. 212; ALI, Anwar Mohamad. Meios para superação da prova diabólica: da distribuição dinâmica do ônus da prova aos standards probatórios. Revista Forense, v. 424, 2016, p. 459-478; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Standards probatórios. In: KNIJNIK, Danilo (Coord.). Prova judiciária: estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 153-170.

12 Sobre a relação entre o art. 5º, XXXV, e o sistema de justiça multiportas, ver REICHELT, Luis Alberto. O direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional e sua densificação no novo CPC. Revista de Processo, v. 258, 2016, p. 41-58; TAKAHASHI, Bruno. Entre a liberdade e a autoridade: os meios consensuais no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 264, 2017, p. 497-522; MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; HARTMANN, Guilherme Kronemberg. A audiência de conciliação ou de mediação no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 253, 2016, p. 163-184. Especificamente em relação à situação consumerista, ver: MARQUES, Claudia Lima. Nota sobre a proteção do consumidor no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). Revista de Direito do Consumidor, v. 104, 2016, p .555-564; FROTA, Renata Marques da. Mediação e conciliação de conflitos de

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Esse ponto merece atenção especial tendo em vista múltiplas vantagens a serem consideradas. Para além dos ganhos decorrentes da introdução de uma audiência de conciliação ou mediação anterior ao estabelecimento do contencioso judicial (art. 334 do CPC), merece ser destacada a possibilidade de formação de título executivo extra-judicial quando da realização de acordos firmados com a chancela de um mediador ou conciliador devidamente credenciado pelo Poder Judiciário. Essa fórmula potencializa, se bem utilizada, a atuação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, já que possibilita que a ação integrada entre os órgãos do Poder Judiciário e o Programa Estadual de Defesa dos Consumidores (PROCON) possa ensejar a produção de documentos capazes de aparelhar a propositura direta de ação executiva, dispensando a necessidade de prévia sentença em atividade processual de conhecimento. Essa exegese guarda sintonia, inclusive, com a fórmula inscrita no art. 4º do novo Código de Processo Civil, segundo o qual as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa, que, por sua vez, densifica o constante do art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

Outros comandos do novo Código de Processo Civil que precisam ser destacados como ferramentas capazes de viabilizar a oferta de tutela jurisdicional adequada e efetiva em favor do consumidor são aqueles que constam dos incisos do seu art. 139. As múltiplas faces da atividade de direção material do processo,13 reguladas pelo legislador no comando legal comentado, evidenciam a existência de balizas seguras a serem seguidas pelo juiz com vistas a conformar o procedimento mediante a adoção de providências de cunho prático que tomam em conta aspectos inegavelmente importantes para a defesa do consumidor. O compromisso com a oferta de igualdade de tratamento às partes (inciso I), com a duração razoável do processo (inciso II), com a promoção da autocomposição (inciso V) e com o diálogo com os entes legitimados à propositura de ação civil pública destinada à tutela de direitos

consumo: uma análise luso-brasileira. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. 22, 2016, p. 161-185; REICHELT, Luis Alberto. Considerações sobre a mediação e conciliação no Projeto de Novo Código de Processo Civil. Revista de Direito do Consumidor, v. 97, 2015, p. 123-143; LIMA, Jean Carlos. Possibilidade de aplicação da mediação ou arbitragem como meios consensuais extrajudiciais de resolução de conflitos no direito do consumidor. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. 22, 2016, p. 259-284. RAMOS, Fabiana D’Andrea. Métodos autocompositivos e respeito à vulnerabilidade do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 109, 2017, p. 333-348.

13 Sobre a noção de direção do processo, ver MILLAR, Robert Wyness. The Formative Principles of Civil Procedure. In: ENGELMANN, Arthur (Org.) A History of Continental Civil Procedure. New York: Augustus M. Kelley Publishers, 1969, p. 23.

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individuais homogêneos (inciso X) é, em verdade, o compromisso com uma agenda que também é a agenda perseguida pelo consumidor em juízo. Vale lembrar, neste último ponto, a remissão expressa do legis-lador ao disposto no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, em postura consciente quanto à importância do diálogo das fontes como forma de construção de soluções eficientes com vistas à construção de um sistema de natureza protetiva.

Para além do antes consignado, impõe-se lançar luzes em especial sobre dois incisos do art. 139 do Código de Processo Civil. Em primeiro lugar, refira-se o art. 139, IV, segundo o qual caberá ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. Trata-se de poderoso instrumento que viabiliza a adoção de providências em sede de execução indireta, induzindo a parte à adoção de comportamentos desejados pelo ordenamento jurídico que venham a ser tutelados mediante decisão judicial.14 Permite-se ao julgador assumir um papel eminentemente criativo no que se refere às escolhas a serem por ele efetuadas com vistas à aplicação do constante da citada cláusula geral, respeitados, por certo, os limites de congruência entre meios e fins inerentes ao postulado da razoabilidade.15

De outro lado, a previsão inscrita no art. 139, VI, do Código de Processo Civil, pela qual o juiz poderá dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito, também é uma ferramenta que pode e deve ser lida como moldada às exigências próprias da tutela do consumidor.16 A adminis-tração do tempo do debate pelo juiz deve levar em conta a presença de

14 A respeito da exegese do comando em questão, ver as ponderações de Fernando Gajardoni em GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte. Teoria Geral do Processo. Comentários ao CPC de 2015. Parte Geral. Op. cit., p. 458; ALMEIDA, Roberto Sampaio Contreiras de in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (Org.). Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 451-453; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de pagar quantia certa – art. 139, IV, do novo CPC. Revista de Processo, v. 265, 2017, p. 107-150; SANTOS, Edilton Meireles de Oliveira. Medidas sub-rogatórias, coercitivas, mandamentais e indutivas no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo, v. 247, 2015, p. 231-246.

15 Veja sobre o tema o interessante HANAU, Hans. Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit als Schranke privater Gestaltungsmacht. Tübingen: Mohr, 2004.

16 Relativamente à possibilidade de adequação do procedimento na forma do art. 139, VI do CPC, ver ALMEIDA, Roberto Sampaio Contreiras de in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim;

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condições adequadas para a apresentação de manifestação, em especial no que diz respeito à atividade de instrução. Não raro, a inadequação das condições de participação decorrente da exiguidade dos prazos acaba por servir como barreira a calar a voz do consumidor, a quem se impõe assegurar efetivas condições para que a defesa técnica seja exercida a contento.

1.4 O diálogo das fontes entre o novo Código de Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor e o incremento em termos de cidadania processual do consumidor

O mandamento constitucional é claro no sentido da proteção do consumidor (art. 5, XXXII, da CF/1988); sendo assim, a luz constitucional ilumina a aplicação conjunta e harmônica do CDC e do CPC em casos de consumo judicializados. Dos inúmeros frutos que se pode colher da combinação entre os comandos do Código de Defesa do Consumidor e do novo Código de Processo Civil com vistas à construção de um sistema consumerista mais robusto, exsurge de maneira especial a figura de um personagem qualificado, qual seja, o consumidor que, no exercício de sua cidadania, encontra em seu favor um sistema que se propõe a fazer com que sua voz seja mais bem representada quando da tomada de decisão pelo órgão jurisdicional.

Para além da necessidade de garantir tratamento adequado capaz de reduzir as assimetrias verificadas entre consumidores e fornecedores no âmbito do direito material, o que se observa é que o anseio por uma maior horizontalidade na relação entre o consumidor-parte e o Estado-Juiz, que já podia ser sentido no Código de Defesa do Consumidor, encontra eco também em diversas fórmulas previstas no novo Código de Processo Civil. O diálogo entre parte e juiz na nova codificação processual é pautado pelo respeito ao direito fundamental ao contraditório, o qual atua de maneira transversal na conformação do sistema jurídico de modo a exigir que os sujeitos do processo sejam considerados em uma dinâmica de cooperação com vistas à construção da decisão judicial. Com vistas à construção de tal cenário, impõe-se que sejam assegurados às partes o direito a falar nos autos, o direito a serem

DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (Org.). Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Op. cit., p. 454-456.

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ouvidas pelo órgão jurisdicional e o direito a não serem surpreendidas pelo conteúdo da decisão judicial.17

A consagração constitucional do direito fundamental ao contra-ditório no art. 5º, LV, combinada com a previsão do dever fundamental de fundamentação das decisões judiciais, inscrito no art. 93, IX, da Lei Maior, foi o ponto de partida considerado pelo legislador ao especificar e reforçar a pauta mínima até então estabelecida. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o art. 11 do Código de Processo Civil repete a fórmula prevista no art. 93, IX, o art. 489, §1º, da codificação processual brasileira acaba por especificar casos nos quais se considera que a decisão judicial deve ser considerada como não fundamentada, ensejando a aplicação da sanção de nulidade. Da mesma forma, enquanto o art. 7º do Código de Processo Civil impõe ao juiz o dever de zelar pelo efetivo contraditório, dever que já era determinado pelo texto consti-tucional, o art. 6º aprofunda esse dever inserindo o juiz como parte de uma mecânica de colaboração com as partes com vistas à construção da decisão de mérito justa e efetiva. A preocupação em especificar o conteúdo do direito fundamental ao contraditório vem explícita, ainda, no art. 9º, que estabelece o dever do juiz de ouvir as partes antes de proferir decisões, e no art. 10, segundo o qual o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

A densificação de direitos fundamentais processuais não era providência desconhecida do legislador responsável pelo Código de Defesa do Consumidor. Basta ver, nesse sentido, que o art. 6º, VII, previa como um dos direitos básicos do consumidor o acesso aos órgãos judiciários com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos. Essa fórmula vem reforçada, mais adiante, pelo constante do art. 83, segundo o qual, para a defesa dos direitos e interesses protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Ambos os comandos expressam a ideia do direito à tutela jurisdicional adequada e efetiva, que é conteúdo do direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional.

17 Sobre essa perspectiva, ver ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A garantia do contraditório. Revista da AJURIS, v. 74, 1998, p. 103-120; REICHELT, Luis Alberto. O conteúdo da garantia do contraditório no direito processual civil. Revista de Processo, v. 162, 2008, p. 330-351.

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A compreensão da forma como se entrelaçam os comandos em questão reclama atenção, ainda, para a topologia dos comandos legais supracitados. Observa-se, no Código de Processo Civil, a existência de um quadro de normas fundamentais processuais cuja aplicação é transversal ao longo de todo o sistema. Essa também é a orientação do Código de Defesa do Consumidor, ao tratar da tutela citada no contexto dos direitos básicos do consumidor. E, nos dois casos, as normas que se colocam nos alicerces dos dois microssistemas acabam por ecoar em outros pontos em função da forma como o legislador regula situações mais específicas.

É comum a ambas as codificações a preocupação em tornar expressa a ideia de que o trabalho do legislador é sintonizado com parâmetros constitucionais. No caso do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor, há a expressa remissão ao disposto nos arts. 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição Federal, bem como ao art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Finais e Transitórias. O novo Código de Processo Civil, por sua vez, utiliza uma fórmula mais vaga, anotando, em seu art. 1º, que o processo civil será ordenado, disciplinado e inter-pretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste código. O emprego de tal técnica legislativa, ainda que não indispensável à implementação de uma leitura crítica dos diplomas infraconstitucionais à luz da pauta de direitos fundamentais, serve como interessante auxílio ao intérprete, que, diante de opções hermenêuticas, acaba por dispor de uma guia segura para efetuar as escolhas corretas.

1.5 Reflexões finais

Esperamos que o diálogo entre o novo Código de Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor enseje o surgimento de um sistema protetivo ainda mais robusto que o anterior. Essa construção, contudo, passa pela necessidade de um olhar crítico que leve em conta a perspectiva de densificação de direitos fundamentais do consumidor, vendo no art. 5º, XXXII, da Constituição Federal o esteio para a construção de uma teia de comandos de direito material e de natureza processual, um mandamento, um Gebot de proteção.

Se é cedo para que se possa afirmar que esse diálogo no cenário da jurisprudência pode ser considerado efetivamente bem-sucedido, parece-nos que cabe à doutrina o papel de, desde logo, indicar o norte a ser seguido pelos tribunais. Com o advento de entendimentos mais

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consolidados formados em termos de orientações forenses, assumirá a mesma doutrina outro papel igualmente relevante, que é o de fiscal do fiel cumprimento da orientação ora defendida, que nada mais é do que a tradução da leitura mais sintonizada com a pauta protetiva constitu-cional do consumidor. Se o diálogo das fontes é, desde sua utilização pelo e. STF na decisão da ADIN nº 2.591,18 um instrumento sofisticado da teoria geral atual, sua utilização permite olhar mais longe e aplicar duas ou mais fontes orientadas pelos valores constitucionais, o que, no caso dos consumidores, é mandamento que não pode ser esquecido.

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18 Veja o parecer de Claudia Lima Marques em Revista de Direito do Consumidor, n. 68, p. 9-39.

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CAPÍTULO 2

A DINÂMICA DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO NOVO

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Bruno de Almeida Lewer AmorimCésar Fiuza

2.1 Introdução

A forma pela qual ocorre a distribuição do ônus da prova no processo é um dos temas mais relevantes em direito. Por meio dela é que se estabelecerão as bases da relação jurídico-processual destinada à satisfação do direito material invocado pela parte. Vale dizer, a obtenção da tutela jurisdicional estará condicionada à satisfação adequada do ônus probatório pela parte à qual este incumba. Por essa razão, é essencial que a distribuição desse ônus entre as partes seja clara e leal. Nesse sentido, tanto a clareza quanto a lealdade na distribuição do ônus probatório são condicionantes que exsurgem da boa-fé objetiva, a qual, segundo já se referiu em outra oportunidade,1 possui efeitos não só sobre o direito material, mas também sobre o direito processual. O destinatário desse dever é o magistrado.

De igual modo, além da clareza na distribuição do ônus proba-tório, é indispensável a razoabilidade nessa distribuição. Nesse ponto, exige-se do magistrado sensibilidade para não permitir a imposição a uma das partes de ônus processual impossível ou excessivamente difícil.

1 AMORIM, Bruno de Almeida Lewer; FIUZA, César. Princípio da boa-fé processual. In: MAZIERO, Franco Giovanni Mattedi (Org.) O direito empresarial sob o enfoque do novo código de processo civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

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Assim, embora a lei estabeleça a priori a forma pela qual se distribuirá a carga probatória, deve o juiz ponderar sobre o caso concreto, redistri-buindo tal ônus quando sobre uma das partes recair prova impossível. Paralelamente, deve o magistrado estar atento à capacidade probatória de cada uma das partes, redistribuindo o ônus probatório conforme a aptidão de cada uma delas. Pode-se citar o caso de um consumidor que tenha contratado determinado serviço pelo telefone sem que o forne-cedor lhe tenha remetido cópia do contrato. Em caso de discussão acerca da abusividade de determinada cobrança, será muito mais razoável impor a ele o ônus de apresentar o contrato e comprovar a existência de cláusula autorizando a referida cobrança do que ao consumidor.

A distribuição do ônus da prova é, portanto, tema que une o direito material ao direito processual, merecendo detida análise, a qual será objeto do presente artigo. Para tanto, serão traçados paralelos entre o Código de Processo Civil de 1973 e o Código de Processo Civil de 2015, bem como entre a aplicação do instituto nas relações consumeristas, em que há expressa previsão da possibilidade de inversão judicial do ônus probatório, desde 1990, data do advento do Código de Defesa do Consumidor, e a sua aplicação nas relações cíveis não consumeristas. Com isso, espera-se fornecer ao intérprete e ao aplicador do direito uma compreensão mais ampla do tema e permitir um intercâmbio de experiências na aplicação do instituto da redistribuição do ônus probatório, que goza de franca aplicação na seara consumerista, em que relevantes discussões vêm sendo travadas nos últimos anos.

2.2 Distribuição e redistribuição do ônus probatório no novo Código de Processo Civil

Classicamente, a distribuição do ônus processual no direito brasileiro segue a seguinte fórmula: ao autor incumbe a prova do fato constitutivo do seu direito; ao réu incumbe a prova do fato modifi-cativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor. Assim, tratando-se de defesa direta de mérito – simples negativa dos fatos alegados pelo autor –, o ônus probatório permanecerá com o requerente. Ao revés, havendo reconhecimento dos fatos alegados pelo autor, com a oposição de circunstâncias que modifiquem, impeçam ou extingam o seu direito, passará ao réu o ônus da prova das referidas circunstâncias. Essa regra, originalmente insculpida no art. 333 do Código de Processo Civil de 1973, foi reproduzida ipsis literis pelo art. 373 do novo Código de Processo de 2015. Todavia, o novo Diploma Processual inovou no tema, com regras

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que, embora já aplicadas jurisprudencialmente, não eram contempladas expressamente pelo Texto Processual anterior.

O novo CPC inova ao conter, de forma expressa, autorização para que o magistrado, atento às peculiaridades do caso, redistribua o ônus da prova, atribuindo-o a cada uma das partes de modo diverso ao estabelecido no caput do art. 373. Tal regra encontra-se no §1º do art. 373 do Diploma Processual. Outrossim, atento à necessidade de clareza e razoabilidade na distribuição da carga probatória, o Diploma Processual ressalva que a decisão que redistribuir o ônus probatório “não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil” – vide art. 373, §2º, do CPC de 2015. Desse modo, ressalva o Diploma Processual que a redistribuição do ônus probatório não pode simplesmente transferir dificuldades entre as partes. A redistribuição visa retirar ônus desarrazoado de uma parte quando à outra seja factível ou mais razoável realizá-lo. Assim, não será possível a redistribuição quando “gerar situação em que a desin-cumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil”. Por outros termos, o novo CPC permite ao magistrado analisar a aptidão de cada uma das partes para a produção das provas e, se for o caso, redistribuir o ônus que caiba a cada uma delas. Se a uma delas for mais factível a produção de determinada prova, pode o magistrado superar a regra estabelecida no caput do art. 373, atribuindo-lhe a prova de determinado fato que, originariamente, incumbiria à outra parte. Resta clara a visão do processo como instrumento de realização do direito material, afastando-o da ideia de fim em si mesmo.

A questão da redistribuição do ônus probatório é tratada com tanta importância pelo legislador que este prevê no inciso XI do art. 1.015 do novo CPC o cabimento de agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versem sobre “redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, §1º”. A possibilidade de redistribuição do ônus da prova, porém, não é exclusividade do novo CPC, apesar de com ele ganhar maior amplitude. Tal possibilidade já era prevista pelo CPC de 1973, embora o Diploma Processual a restringisse à convenção das partes, não fazendo menção à redistribuição ope judicis, como faz o novo Diploma. Assim, no parágrafo único do art. 333, o antigo CPC dispunha: “É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando: I) recair sobre direito indisponível da parte; II) tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.

Tradicionalmente, todavia, foi o Código de Defesa do Consumi- dor – Lei nº 8.078/90 – que primeiro positivou a possibilidade de inversão ope judicis do ônus probatório no direito brasileiro. Segundo

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dispõe o Diploma Consumerista, em seu art. 6º, inciso VIII, constitui direito básico do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente”. A regra insculpida no referido dispositivo se amolda às peculiaridades da relação de consumo, na qual a vulnerabi-lidade inerente ao consumidor pode, em muitos casos, conduzir a sua hipossuficiência, entendida como fraqueza de natureza processual, decorrente da indisponibilidade de elementos probatórios por parte do consumidor. Explica-se. É comum em serviços de telefonia, por exemplo, que tudo o que o consumidor possua para comprovar suas alegações seja um número de protocolo, gerado após uma reclamação por intermédio do serviço de atendimento ao cliente (SAC) do forne-cedor. Este, por sua vez, possui sob sua guarda – ou deveria possuir – o contrato assinado pelo cliente, as gravações de suas reclamações junto ao SAC, cópias das faturas de cobrança remetidas a ele, histórico de reclamações, além de setores jurídico e contábil que sistematizam e registram todas as suas transações comerciais, conforme as regras impostas pela regulação própria do setor.

Nesse sentido, a vulnerabilidade não se confunde com a hipossu-ficiência, sendo este último elemento acidental da relação de consumo revelador de uma fraqueza processual – relacionada à capacidade probatória do consumidor. É comum que se trate vulnerabilidade e hipossuficiência como expressões sinônimas. Na seara do direito do consumidor, porém, referem-se a fraquezas distintas. A vulnera-bilidade é elemento necessário e intrínseco à relação consumerista, denotando fraqueza de natureza material, ínsita à posição das partes na relação jurídica material por elas estabelecida. Constitui princípio basilar do direito do consumidor, insculpido no inciso I do art. 4º da Lei Consumerista. Sem vulnerabilidade, não há relação de consumo. Já a hipossuficiência, como dito, revela fraqueza de cunho processual, nem sempre presente. A hipossuficiência constitui elemento acidental da relação de consumo, podendo ou não estar presente. A consequência da vulnerabilidade é a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação, já que não se poderia conceber a aplicação de uma lei parcial e protetiva a uma relação igualitária. Já a consequência da hipossufi-ciência é a inversão do ônus da prova pelo juiz. Esta, também, a lição de Bruno Miragem:

Não se deve confundir os significados de hipossuficiência e vulnerabi-lidade. Todos os consumidores são vulneráveis, em face do que dispõe

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o artigo 4º, I, do CDC, constituindo-se a vulnerabilidade em princípio basilar do direito do consumidor. Já a hipossuficiência é uma circuns-tância concreta, não presumida a priori, de desigualdade com relação a contraparte, e que no processo se traduz pela falta de condições materiais de instruir adequadamente a defesa de sua pretensão, inclusive com a produção das provas necessárias para demonstração de suas razões no litígio. Em geral aponta-se a hipossuficiência como falta de condições econômicas para arcar com os custos do processo. Na maior parte dos casos é coreto identificar na ausência de condições econômicas a causa da impossibilidade fática de realizar a prova e sustentar sua pretensão. Mas não é, certamente, a única causa, Considerando o modo como se desenvolvem as relações de consumo, a impossibilidade de o consu-midor demonstrar suas razões pode se dar, simplesmente, pelo fato de que as provas a serem produzidas não se encontram em seu poder, mas sim com o fornecedor, a quem se resguarda o direito de não produzir provas contra seus próprios interesses. Nesta situação, não se trata de causa econômica que impeça a produção da prova, mas impossibilidade fática decorrente da ausência de condições – inclusive técnicas – de sua realização, em razão da dinâmica das relações de consumo, cujo poder de direção e o conhecimento especializado pertencem, como regra, ao fornecedor.2

Observando a dinâmica própria das relações de consumo, José Rogério Cruz e Tucci assevera que a clássica regra da distribuição do ônus da prova, no âmbito das relações de consumo, poderia tornar-se injusta em razão das dificuldades da prova de culpa do fornecedor, por causa da disparidade de armas com que conta o consumidor para enfrentar a parte mais bem informada da relação.3 A jurisprudência reconhece a possibilidade de a hipossuficiência defluir de circunstâncias não econômicas, mas de natureza fática ou técnica do consumidor, na maioria das vezes inserido como leigo em uma relação com um profis-sional. Nesse sentido:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. HIPOSSU- FICIÊNCIA TÉCNICA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSI-BILIDADE. DANOS MORAIS. VALOR. REVISÃO PELO STJ. POS-SIBILIDADE, DESDE QUE IRRISÓRIO OU EXORBITANTE. 1. Ação indenizatória fundada na alegação de que, após submeter-se a trata-mento bucal na clínica ré, o autor ficou sem os dois dentes superiores

2 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 210-211.

3 TUCCI, José Rogério Cruz e. Código do consumidor e processo civil. Aspectos polêmicos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 671, set. 1991, p. 33.

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frontais e impossibilitado de utilizar prótese dentária. Evidencia-se a hipossuficiência técnica do autor frente à ré, na medida em que a relação de consumo deriva da prestação de serviços em odontologia, o desconhecimento do paciente acerca das minúcias dos procedimentos a serem realizados. A clínica, por sua vez, detém amplo domínio das técnicas ligadas à confecção de próteses, tanto que se dispôs a prestar serviços nessa área. 2. A hipossuficiência exigida pelo art. 6º, VIII, do CDC abrange aquela de natureza técnica. Dessa forma, questões atinentes à má utilização da prótese deveriam ter sido oportunamente suscitadas pela clínica. A despeito da sua expertise, não atuou, porém, de modo a evitar lacunas na perícia realizada, as quais tornaram o laudo inconcludente em relação à origem do defeito apresentado pela prótese dentária (STJ, REsp 1.178.105/SP, 3ª T., j. 07.04.2011, rel. Min. Massami Uyeda, rel. p/acórdão Min. Nancy Andrighi, DJe 25.04.2011).

Também nesse sentido, a lição de Felipe Peixoto Braga Netto:

É importante esclarecer que a hipossuficiência a que faz menção o CDC nem sempre é econômica. Embora pouco frequente, não é impossível que o consumidor seja economicamente mais forte que o fornecedor, e ainda assim seja hipossuficiente. A hipossuficiência pode ser técnica, por exemplo (paciente submetido a cirurgia em clínica médica, oca-sião em que ocorre um erro médico que o deixa cego). O consumidor, nesse caso, será hipossuficiente, não tendo o conhecimento técnico da especialidade médica, e a inversão do ônus da prova, por isso mesmo, poderá ter lugar.4

Assim, embora todo consumidor seja vulnerável – esta carac-terística está em seu DNA –, nem todo consumidor é hipossuficiente, devendo esta circunstância ser averiguada pelo magistrado no caso concreto.5 A inversão do ônus da prova, portanto, constitui relevante prerrogativa assegurada ao consumidor, servindo como instrumento

4 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 471-472.

5 Recomenda-se também a lição de Felipe Peixoto Braga Netto: “É importante distinguir vulnerabilidade de hipossuficiência. A hipossuficiência deve ser aferida pelo juiz no caso concreto e, se existente, poderá fundamentar a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII). É possível, por exemplo, que em demanda relativa a cobranças indevidas realizadas por operadora de telefonia celular, o juiz determine a inversão do ônus da prova tendo em vista a hipossuficiência do cliente (não é razoável exigir do consumidor a prova de que não fez determinadas ligações. É razoável, por outro lado, exigir da operadora semelhante prova. É preciso, para deferir a inversão, analisar a natureza do serviço prestado, o grau de instrução do consumidor etc.). A hipossuficiência diz respeito, nessa perspectiva, ao direito processual, ao passo que a vulnerabilidade diz respeito ao direito material. Já a presunção de vulnerabilidade do consumidor é absoluta. Todo consumidor é vulnerável, por conceito legal. A vulnerabilidade não depende da condição econômica, ou de quaisquer

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de facilitação da defesa de seus interesses em juízo. Essa facilitação será necessária em determinados casos, tendo em vista as peculiaridades da relação de consumo. Nesse sentido, deixa-se claro, desde logo, que nem sempre o consumidor poderá utilizar esta prerrogativa, sendo necessária a observância de certos requisitos legais, que serão tratados adiante.

Antes, porém, ressalta-se que a inversão do ônus probatório é dividida pela doutrina e pela jurisprudência em três espécies: (i) convencional; (ii) ope legis; e (iii) ope judicis. A inversão convencional é aquela estabelecida pelas próprias partes. Não se trata propriamente de uma inversão do ônus probatório, mas, sim, de uma distribuição diversa da estabelecida em lei – pelo art. 373 do novo CPC – por meio de convenção entre as partes. Essa hipótese é expressamente autorizada pelo §3º do art. 373 do novo CPC6 – como ocorria também no parágrafo único do art. 333 do CPC de 1973 –, sendo, porém, vedada quando recair sobre direito indisponível de uma das partes ou tornar excessivamente difícil a uma delas o exercício do direito. Nas relações de consumo, a redistribuição convencional do ônus da prova é bastante restrita, já que, por força do imperativo insculpido no art. 1º do Diploma Consumerista, as garantias estatuídas em favor do consumidor são de ordem pública e interesse social, não admitindo transação. É o caso, por exemplo, da garantia legal de produtos e serviços, da qual não pode o fornecedor exonerar-se nem mesmo mediante cláusula contratual – art. 51, I, do CDC. Outrossim, estabelece o art. 51, em seu inciso VI, que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que “estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor”.

A inversão ope legis, também chamada de inversão legal do ônus da prova, é aquela que se opera por força de lei, independentemente de determinação judicial. Também não se trata, propriamente, de uma inversão do ônus da prova, mas, sim, de uma distribuição diversa da prevista no art. 373 do novo CPC. Nesses casos, a própria lei estabelece presunção de veracidade em prol de uma das partes, cabendo à parte contrária afastar tal presunção. São exemplos: a) a regra contida no art. 232 do Código Civil, que trata da presunção da veracidade dos fatos quando a parte contrária se recusa a se submeter à perícia médica; b) a regra do parágrafo único do 2º-A da Lei nº 8.560/92, a qual estabelece

contextos outros” (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 471-472).

6 Art. 373 (...) §3º: A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I – recair sobre direito indisponível da parte; II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

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que “a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”. Nas relações de consumo, a inversão ope legis pode ser encontrada nos arts. 12, §3º, e 14, §3º, do Código de Defesa do Consumidor, que tratam da responsabilidade do fornecedor por fato do produto e do serviço, bem como no art. 38 do mesmo diploma, que imputa ao fornecedor o ônus da prova da veracidade e correção da informação publicitária por ele veiculada ou patrocinada. No caso dos arts. 12, §3º, e 14, §3º, do CDC, note-se que, comprovado pelo consumidor o dano decorrente de fato do produto ou do serviço, presume-se a responsabilidade do fornecedor – que é objetiva –, a qual somente será afastada se o fornecedor provar a ocorrência de uma das hipóteses previstas nos incisos enumerados nos referidos artigos. Em tais casos, ocorre a distribuição diversa do ônus da prova mediante presunção relativa em favor de uma das partes, admitindo-se prova em contrário pela outra. No entanto, há casos de presunção que não implicam inversão do ônus da prova, pois são absolutas, como, por exemplo, a norma contida no art. 844 do novo Código de Processo Civil, segundo a qual o terceiro não poderá alegar desconhecimento do fato de o imóvel adquirido estar penhorado em razão de sua anterior averbação no ofício imobiliário.

Por fim, a presunção ope judicis é aquela promovida pelo juiz quando verificados os requisitos legais autorizadores da medida, previstos no art. 6º, VIII, do CDC. Essa modalidade é a que mais suscita discussões na doutrina e na jurisprudência, que serão adiante abordadas.

2.3 A redistribuição do ônus probatório antes do novo Código de Processo Civil

Como dito, antes do novo CPC, muito se discutia sobre a possi-bilidade de inversão do ônus probatório pelo juiz, nas relações cíveis, diante da ausência de disposição expressa no CPC de 1973. Nas relações de consumo, essa hipótese já era contemplada, desde 1990, pelo CDC, que contém tanto normas de direito material quanto normas de direito processual.

Sensível, porém, às necessidades da praxis, o Judiciário não quedou inerte diante da omissão legislativa, passando a reconhecer a possibilidade de redistribuição ou inversão do ônus probatório ope judicis não só nas causas cíveis, mas até mesmo em causas de natureza tributária. Para tanto, muitos julgados amparavam-se na denominada

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teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, também conhecida como teoria da carga probatória dinâmica, desenvolvida pelo jurista argentino Jorge W. Peyrano, em sua obra Cargas probatórias dinâmicas.7 De modo simplificado, tal teoria consiste em atribuir o ônus probatório à parte que possui melhores condições de produzir a prova, independente-mente de quem alegue os fatos. O intuito precípuo seria o de repelir a prova impossível ou perversa. O amparo do ordenamento pátrio à teoria de Peyrano pode ser encontrado no art. 5º, XXXV, da Carta Magna, que estatui não só a inafastabilidade do Poder Judiciário, mas também a instrumentalidade das formas com vistas à consecução concreta do acesso à justiça. Sobre o tema, antes do advento do novo CPC, obser-vavam Tereza Arruda Alvim e José Miguel Medina:

A sociedade e o direito material, consoante se observou, encontram-se em intensa transformação, razão pela qual a regra disposta no art. 333 do CPC, concebida para a realidade existente na década de 1970, não pode ser aplicada de modo inflexível, a qualquer hipótese, como se os sujeitos da relação jurídica se encontrassem, sempre, em condições de igualdade.8

Também os tribunais já vinham se posicionando nesse sentido. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, possui vasta juris-prudência reconhecendo a aplicação da teoria desenvolvida por Jorge Peyrano.9 No julgamento do Agravo Regimental nº 0068563-66.2011.8.26.0000, constou do acórdão: “A produção da prova deve ser carreada à parte que apresente melhores condições de produzi-la, à luz da chamada Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas”. O relator ainda ressalta em seu voto que a teoria é aplicável a qualquer caso, e não somente às relações de consumo:

Caracterizando, aqui, relação de consumo, pois o agravado deve ser tido como destinatário final, tem plena incidência a norma do código

7 PEYRANO, Jorge W. (Director); WHITE, Inês Lépori (Coordinadora). Cargas probatórias dinâmicas. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008.

8 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Processo civil moderno – Parte geral e processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 248.

9 Nesse sentido: Apelação nº 9064684-68.2006.8.26.0000, 8ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Luiz Ambra, j. 04/05/2011, v.u.; Apelação nº 0003535-38.2004.8.26.0408, 26ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 27/04/2011, v.u.; Apelação nº 9203036-40.2005.8.26.0000, 27ª Câm. Dir. Priv., rel. designado Des. Gilberto Leme, j. 05.04.2011, m.v.; Apelação nº 0000467-40.2009.8.26.0397, 26ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 01.03.2011, v.u.; Agravo de Instrumento nº 0405015-36.2010.8.26.0000, 21ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Itamar Gaino, j. 02.02.2011, m.v.

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274 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

consumerista que determina a inversão do ônus da prova (Inciso VIII, do artigo 6º do CDC).Ainda que assim não fosse, há necessidade de flexibilização das regras, para que possa ser encontrada a verdade real e para que questões formais não superem as de fundo.Por isso, à luz de moderna orientação doutrinária, a produção da prova deve ser carreada à parte que apresente melhores condições de produzi-la, à luz da chamada Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas. (TJSP – ARG 0068563-66.2011.8.26.0000, Rel. Beretta da Silveira, data de julgamento: 24.05.2011, 3ª Câmara de Direito Privado).

Mesmo nas causas tributárias já era possível verificar o fenômeno da redistribuição do ônus da prova conforme a aptidão das partes para a sua consecução, segundo mostra o julgado abaixo, datado de setembro de 1999:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL – ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO DO CONTRIBUINTE POR OCASIÃO DA LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – NULIDADE DA SENTENÇA – I – Tendo os embargos se fundamentado na inexistên-cia de notificação do contribuinte por ocasião da lavratura do auto de infração, inverteu-se, nesse ponto, o ônus da prova, ficando a Fazenda Nacional com o encargo da prova de ter realizado a notificação. Precedentes deste Tribunal: ausência de notificação alegada pela embargante e não desmentida pela Fazenda, através da prova – afastamento da presunção juris tantum de certeza e liquidez do título executório’’ (Apelação Cível 96.01.15745-0 /AP, Relatora Juíza Eliana Calmon) (grifo nosso). (TRF 1ª R. – AC 95.01.11165-2 – PA – 3ª T. – Rel. Juiz Jamil Rosa de Jesus – Unânime – DJU 17.09.1999, p. 29).

Ressaltamos, porém, mais uma vez por questão de rigor técnico, que nem sempre haverá propriamente a inversão do ônus probatório, mas, sim, uma redistribuição deste, distinta da prevista no CPC, tendo por norte a aptidão para a prova de cada uma das partes. Essa redis-tribuição poderá ser pontual, atingindo apenas determinados fatos ou provas.

Assim, fato é que a redistribuição do ônus da prova já era realidade também nos processos de natureza não consumerista antes mesmo do advento do novo CPC. Entretanto, diante do permissivo legal, agora impresso de forma explícita no §1º do art. 373 do novo Diploma Processual, a possibilidade de inversão ope judicis nos processos cíveis torna-se incontroversa, o que poderá conduzir à ampliação da aplicação do instituto. Essa ampliação poderá atingir até mesmo outros ramos

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do direito. Nesse sentido, destacamos o Enunciado nº 302, editado pelo Fórum Permanente dos Processualistas Civis, o qual dispõe sobre a aplicabilidade dos §§1º e 2º do art. 373 ao processo do trabalho:

Aplica-se o art. 373, §§1º e 2º, ao processo do trabalho, autorizando a distribuição dinâmica do ônus da prova diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade da parte de cumprir o seu encargo probatório, ou, ainda, à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário. O juiz poderá, assim, atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que de forma fundamentada, preferencialmente antes da instrução e necessariamente antes da sen-tença, permitindo à parte se desincumbir do ônus que lhe atribuído.

Outrossim, como visto, decisões judiciais anteriores ao novo CPC já contemplavam a possibilidade de redistribuição do ônus da prova até mesmo em processos de natureza tributária.

No entanto, inúmeras dúvidas e questionamentos poderão surgir sobre a redistribuição do ônus probatório, muitos deles já enfrentados e até mesmo pacificados no âmbito da doutrina e da jurisprudência consumeristas, já que o CDC consagra a possibilidade de inversão ope judicis desde 1990. Por essa razão, faz-se indispensável o diálogo com o direito do consumidor, aproveitando-se parte da experiência consumerista. A análise da experiência consumerista em muito poderá contribuir para o aperfeiçoamento do instituto da inversão ope judicis no direito civil, com a devida observância às peculiaridades de cada ramo, realizando-se os ajustes e ponderações necessários. Assim, no tópico seguinte analisar-se-ão as principais controvérsias e dúvidas atinentes à inversão ope judicis no direito do consumidor, bem como as soluções que vêm sendo dadas pela doutrina e pela jurisprudência, de modo a oferecer referencial para a aplicação do instituto em todo o direito privado.

2.4 Inversão ope judicis do ônus da prova nas relações de consumo ‒ principais controvérsias e soluções

No que diz respeito à inversão pelo juiz do ônus probatório na seara das relações de consumo, algumas questões suscitam dúvidas e acaloradas discussões na doutrina e na jurisprudência. A primeira delas concerne aos requisitos exigidos para a referida inversão. Segundo dispõe o CDC, em seu art. 6º, pode o ônus probatório ser invertido em favor do consumidor quando “for verossímil a alegação ou quando for

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ele hipossuficiente”. A leitura do permissivo legal conduz à conclusão de que os requisitos legais seriam alternativos. Vale notar que a norma utiliza a conjunção alternativa “ou”, sugerindo a autossuficiência de qualquer um dos requisitos. A verossimilhança é entendida como a plausibilidade forte ou a razoabilidade dos fatos e do direito invocados pelo consumidor, capazes de permitir a convicção do juiz em um nível de cognição ainda sumária. Já a hipossuficiência denota a fraqueza probatória do consumidor, capaz de, em última análise, conduzir à não satisfação de seu direito. Nenhum dos dois elementos decorre automa-ticamente da vulnerabilidade material do consumidor, constituindo elementos acidentais, que necessitam ser demonstrados e comprovados no processo.

A questão central, porém, é a seguinte: caso caracterizado apenas um dos requisitos, estaria o juiz autorizado a promover a inversão? Como dito, a literalidade do dispositivo legal conduz a uma resposta afirmativa. Todavia, há respeitáveis vozes na doutrina que sustentam a cumulatividade dos requisitos legais, defendendo uma interpretação teleológica e sistêmica do inciso VIII do art. 6º do Diploma Consumerista. A pergunta a ser respondida é: seriam os requisitos para a inversão do ônus da prova no CDC cumulativos ou alternativos?

Filia-se à corrente que defende a cumulatividade dos requisitos Antônio Gidi, para quem a inversão do ônus da prova exige sempre a verossimilhança:

Afigurase-nos que verossímil a alegação sempre tem que ser. A hipossu-ficiência do consumidor per se não respaldaria uma atitude tão drástica como a inversão do ônus da prova, se o fato afirmado é destituído de um mínimo de racionalidade. A ser assim, qualquer mendigo do centro da cidade poderia acionar um shopping center luxuoso, requerendo preliminarmente, em face de sua incontestável extrema hipossuficiên-cia, a inversão do ônus da prova para que o réu prove que seu carro (do mendigo) não estava estacionado nas dependências do shopping e que, nele, não estavam guardadas todas as suas compras de Natal.10

À corrente que defende a alternatividade dos requisitos filiam-se André Gustavo de Andrade e Mirella D’Angelo Caldeira.11 Segundo André Gustavo, “a interpretação mais consentânea com a letra e com o

10 GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995, p. 34.

11 CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 38, p. 166-180, abr./jun. 2001, p. 173.

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espírito do texto legal é a que enxerga os requisitos da hipossuficiência e da verossimilhança como alternativos”.12 E prossegue:

A alternatividade é indicada pela interpretação literal ou gramatical do dispositivo, que utiliza a conjunção disjuntiva ou alternativa “ou” (em lugar da aditiva ou copulativa “e”) a separar os dois requisitos.Para que se pudesse interpretar a conjunção alternativa (“ou”) como aditiva (“e”), caberia demonstrar que a inclusão da primeira no texto legal foi de todo equivocada. A conclusão pela necessária cumulativi-dade dos requisitos teria de ser precedida da demonstração de que a interpretação literal (que é, francamente, a mais favorável ao consumi-dor), seria ilógica, desarrazoada ou extravagante.13

Nesse ponto, recorde-se a importante lição de Francesco Ferrara, segundo a qual: “Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto”.14

Kazuo Watanabe, por sua vez, considera, no que diz respeito à verossimilhança, que não haveria propriamente uma inversão do ônus da prova, mas simplesmente a aplicação do disposto no art. 335 do CPC de 1973 – regra atualmente prevista no art. 375 do novo CPC –, que autoriza o emprego das regras de experiência comum pelo magistrado, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece:

O que ocorre, como bem observa Leo Rosenberg, é que o magistrado, com a ajuda das máximas de experiência e das regras de vida, considera produzida a prova que incumbe a uma das partes. Examinando as con-dições de fato com base em máximas de experiência, o magistrado parte do curso normal dos acontecimentos e, porque o fato é ordinariamente a consequência ou o pressuposto de um outro fato, em caso de existência deste, admite também aquele como existente, a menos que a outra parte

12 ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em: <https://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb61-8eafadf225c2&groupId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.

13 ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em: <https://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb61-8eafadf225c2&groupId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.

14 FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra: Armênio Amado, 1963, p. 140.

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demonstre o contrário. Assim, não se trata de uma autêntica hipótese de inversão do ônus da prova.15

Segundo Watanabe, a lei, ao fazer referência à verossimilhança, buscou apenas explicitar uma regra já existente, com propósitos didáticos. E nesse ponto não se pode descurar da constatação de que a verdade, para os céticos, é algo inalcançável pela razão humana. Para os relativistas, não é possível falar na verdade, mas em uma verdade.16 Essa concepção, aliás, é muito bem sintetizada por Georges Santayana:

A posse da verdade absoluta não se encontra apenas por acaso além das mentes particulares; é incompatível com o estar vivo, porque exclui toda situação, órgão, interesse ou data de investigação particulares: a verdade absoluta não se pode descobrir, justamente porque é uma perspectiva.17

Parece melhor a segunda corrente, integrada por André Gustavo de Andrade e Mirella D’Angelo Caldeira, por ser mais consentânea com o desequilíbrio ínsito às relações consumeristas e à tutela do consu-midor. Parece desarrazoada e injustificada a exigência cumulativa dos requisitos, mormente quando a própria legislação utiliza a conjunção disjuntiva “ou” em lugar da aditiva. Interpretação diversa dificultaria a defesa dos interesses do consumidor em juízo, indo na direção contrária da pretendida pelo legislador. Nesse sentido, chama-se a atenção para o fato de que o termo “hipossuficiência” não foi originariamente utilizado pelos autores do anteprojeto em sua versão original entregue ao Ministério da Justiça e publicado no Diário Oficial da União do dia 04.01.1989. O texto original dispunha que, dentre os direitos básicos dos consumidores, estaria a “facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, quando verossímil a alegação do consumidor, segundo as regras ordinárias de experiência”. Assim, o termo “hipossuficiência” não constava da versão original do Diploma Consumerista, elaborada pela Comissão Especial, tendo sido incluída depois, quando da tramitação do projeto no Congresso Nacional.18

15 WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 618.

16 ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. Disponível em: <https://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f879d446-6140-464d-bb618eafadf225c2&groupId=10136>. Acesso em: 14 maio 2017.

17 SANTAYANA, Georges Apud SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 40.

18 GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 164.

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José Geraldo Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto, observa que “hipossuficiência, como se sabe, é terminologia do chamado Direito Social, ou Direito do Trabalho [...] de cunho eminentemente econômico”, concluindo, portanto, que a inversão do ônus da prova deve ser feita amparada “pela verossimilhança da alegação do autor, porque é vulnerável, ou, então, alternativamente, porque é hipossuficiente não podendo arcar com as custas do processo e, sobretudo, com o pagamento de honorários de um perito”.19 Embora não se concorde com a concepção meramente econômica de hipossuficiência, mister se faz apontar para a avalizada posição de Filomeno, externada na condição de um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, capaz de auxiliar na busca pela “essência” ou “razão de ser” do dispositivo legal inserto no inciso VIII do art. 6º da Lei Consumerista. Assim, não parece haver justificativa plausível para que se considerem cumulativos os requisitos legais previstos no inciso VIII do art. 6º, separados pela conjunção alternativa “ou”. São, em verdade, requisitos alternativos, cuja identificação, ainda que isolada, de qualquer um deles já autoriza o magistrado à inversão do ônus probatório, como máxima de efetivação da defesa judicial dos interesses do consumidor.

Outra questão que suscita dúvidas é a relativa à obrigatoriedade de inversão do ônus probatório quando evidenciados seus requisitos. E nesse ponto chamamos a atenção para as diferentes modalidades de inversão. A inversão ope legis, entendida como aquela realizada pelo próprio legislador, é, sem dúvida alguma, obrigatória para o juiz, que não pode simplesmente inobservar o comando legal. Nessa hipótese, aliás, defendemos que sequer há inversão propriamente dita, mas tão somente um modo diverso de distribuição do ônus probatório pelo legislador para casos específicos. Exemplo claro de inversão legal do ônus probatório – ou distribuição distinta da prevista no art. 373 do novo CPC, como preferimos – é a inserta no §3º do art. 14 do Código Consumerista, aplicável aos acidentes de consumo. Também a redistri-buição do ônus probatório por convenção das partes deve ser respeitada pelo juiz, ressalvado o disposto no inciso VI do art. 51 do CDC.

A dúvida surge, porém, quando se trata da inversão promovida pelo juiz quando constatada a ocorrência de algum dos requisitos previstos no inciso VIII do art. 6º do CDC. Nesse sentido, constatado algum dos requisitos legais – verossimilhança das alegações ou

19 GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 165.

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hipossuficiência –, estaria o juiz obrigado à inversão do ônus proba-tório? A resposta a essa questão também parece estar na literalidade do dispositivo legal. Vale notar que o inciso VIII do art. 6º traz a expressão “a critério do juiz”, deixando ao seu alvedrio a constatação dos requi-sitos legais, bem como a inversão do onus probandi. Assim, ainda que o consumidor entenda caracterizada a verossimilhança de suas alegações ou a sua hipossuficiência, pode o magistrado entender de modo diverso, valendo-se, para tanto, das regras ordinárias de experiências. De igual modo, pode entender incabível a inversão por acarretar a atribuição de ônus impossível ou excessivo à outra parte, no caso concreto. Mais uma vez trazemos a lição de Bruno Miragem:

A rigor, do que se depreende de largo entendimento doutrinário e ju-risprudencial, a decisão de inversão decorre de uma faculdade judicial de, presentes os pressupostos estabelecidos na norma do artigo 6º, VIII, examinar a adequação ou não da medida.20

A resposta a esta questão aproveita também ao questionamento sobre o caráter automático ou não da inversão ope judicis quando evidenciados os requisitos legais. Nesse sentido, muitos questionam se a inversão ope judicis ocorreria de forma automática caso presentes os requisitos legais, e a resposta, obviamente, há de ser negativa. A ideia de inversão automática iria patentemente contra a lógica de uma inversão judicial do ônus da prova. A inversão ope judicis é justamente aquela que é promovida pelo juiz, conforme as circunstâncias do caso concreto. A determinação judicial, portanto, é indispensável. Ao contrário da inversão legal – ope legis –, esta sim automática, porque determinada pelo próprio legislador. A este respeito, vale mencionar o entendimento do STJ de que a possibilidade de inversão não significa atribuir ao fornecedor o ônus de provar fato que lhe é impossível demonstrar, diante das condições do consumidor de fazê-lo.21 Diz-se,

20 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 213.

21 RECURSO ESPECIAL REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC) – AÇÃO DE COBRANÇA – EXPURGOS INFLACIONÁRIOS EM CADERNETA DE POUPANÇA – PLANOS BRESSER E VERÃO – EXIBIÇÃO DOS EXTRATOS BANCÁRIOS – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA EM FAVOR DA CORRENTISTA – POSSIBILIDADE – OBRIGAÇÃO DECORRENTE DE LEI – CONDICIONAMENTO OU RECUSA – INADMISSIBILIDADE – RESSALVA – DEMONSTRAÇÃO DE INDÍCIOS MÍNIMOS DA EXISTÊNCIA DA CONTRATAÇÃO – INCUMBÊNCIA DO AUTOR (ART. 333, I, DO CPC) – ART. 6º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL – AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO – INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 211/STJ – NO CASO CONCRETO, RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. (...) A obrigação da instituição financeira de exibir os extratos bancários necessários à

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neste caso, que a decisão seria ope judicis, ou seja, dependente de um convencimento judicial sobre a adequação da medida. Oportunidade de convencimento judicial esta que, segundo Bruno Miragem, “terá lugar apenas quando presentes um dos requisitos estabelecidos pela norma (hipossuficiência ou verossimilhança)”.22 Por essa razão, defen-demos a natureza não automática da inversão ope judicis, primeiro por ser algo compatível com a essência do instituto, segundo por outorgar ao juiz a possibilidade de averiguar o cabimento da medida em cada caso, evitando-a quando importe a imposição de ônus demasiado ao fornecedor. Por consequência, filia-se a Filomeno quando defende que a inversão ope judicis do ônus da prova, de que trata o art. 6º, VIII, “é uma mera faculdade do juiz da causa”.23 Apenas a inversão ope legis pode ser vista como impositiva ao juiz, por ser determinada pela lei.24 Nesse sentido, vale notar que o legislador utiliza a expressão “quando, a critério do juiz” no dispositivo legal inserto no inciso VIII do art. 6º do CDC.25

comprovação das alegações do correntista decorre de lei, já que se trata de relação jurídica tutelada pelas normas do Código do Consumidor, de integração contratual compulsória, não podendo ser objeto de recusa nem de condicionantes, em face do princípio da boa-fé objetiva; (...) IV – Para fins do disposto no art. 543-C, do Código de Processo Civil, é cabível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor para o fim de determinar às instituições financeiras a exibição de extratos bancários, enquanto não estiver prescrita a eventual ação sobre eles, tratando-se de obrigação decorrente de lei e de integração contratual compulsória, não sujeita à recusa ou condicionantes, tais como o adiantamento dos custos da operação pelo correntista e a prévia recusa administrativa da instituição financeira em exibir os documentos, com a ressalva de que ao correntista, autor da ação, incumbe a demonstração da plausibilidade da relação jurídica alegada, com indícios mínimos capazes de comprovar a existência da contratação, devendo, ainda, especificar, de modo preciso, os períodos em que pretenda ver exibidos os extratos (STJ, REsp 1.133.872/PB, 2ª Seção., j. 12.12.2011, rel. Min. Massami Uyeda, DJe 28.03.2012).

22 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 213-214.

23 GRINOVER, Ada Pellegrini; FILOMENO, José Geraldo Brito; e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 159.

24 Nesse sentido, vide arts. 14, §3º, e 38 do Código de Defesa do Consumidor. Nesses casos, é a lei que distribui o ônus probatório de forma diversa prevista no art. 373 do novo CPC, e não o magistrado. Enquanto no art. 6º, VIII, do CDC a inversão é posta como uma possibilidade do juiz, nos arts. 14, §3º, e 38 do mesmo Diploma, a inversão – ou distribuição diversa do ônus, como preferido – é determinada a ele, que não tem opção a não ser observá-la, quando da análise dos fatos e das provas.

25 Esse também o entendimento jurisprudencial: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO REVISIONAL. CDC. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. A inversão do ônus da prova prevista no inc. VIII do art. 6º do CDC não ocorre de modo automático, mas ope judicis. O dispositivo autoriza o julgador a invertê-lo quando convencido da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência da parte que a postula. – Circunstância dos autos em que se impõe manter a decisão recorrida. NEGADO SEGUIMENTO AO RECURSO” (grifo nosso). (TJRS – AI: 70063625602 RS, Relator: João

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Não sendo a inversão ope judicis automática, surge o questiona-mento se poderia ser determinada de ofício pelo juiz ou se demandaria pedido expresso do consumidor. Nesse ponto, defende-se que, por se tratar de norma de ordem pública, a inversão prevista no art. 6º, VIII, do CDC poderia ser determinada de ofício pelo magistrado.26 Tal entendi-mento demonstra-se mais consentâneo com as peculiaridades da relação de consumo, notadamente com a vulnerabilidade do consumidor.27

Por fim, uma das controvérsias mais relevantes é a concernente ao momento de inversão do ônus da prova pelo juiz no processo. Nesse ponto, lembre-se que a inversão do ônus probatório pelo juiz deve se dar de forma clara e leal perante as partes, já que são destinatários da prova não só o magistrado, mas também as partes, às quais incumbe a sua produção. Por conseguinte, é preciso que reste absolutamente claro e evidente às partes qual o ônus probatório que incumbe a cada uma delas no processo. Se a regra disposta no art. 373 do Diploma Processual for alterada pelo juiz, devem as partes ser cientificadas antes do momento de especificação e produção das provas, sob pena de violação aos princípios constitucionais da ampla defesa e da não surpresa. Tanto a clareza quanto a lealdade na distribuição do ônus probatório são condicionantes que exsurgem do dever de boa-fé objetiva, o qual, segundo já se referiu em outra oportunidade, possui efeitos não só sobre o direito material, mas também sobre o direito processual. Nesse sentido, pondera-se:

[...] no novo Código o dever de respeito à boa-fé foi erigido à condição de norma fundamental do Processo Civil, sendo uma das grandes pre-missas do processo cooperativo/coparticipativo.Considerando que o juiz queira dar vazão à sua pesada carga de traba-lho, reduzindo numericamente os processos sob sua responsabilidade,

Moreno Pomar, Data de Julgamento: 23.02.2015, Décima Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 25.02.2015).

26 AGRAVO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO. POSSIBILIDADE. NORMA DE ORDEM PÚBLICA. VULNERABILIDADE TÉCNICA DO CONSUMIDOR. POSSIBILIDADE DE INVERSÃO. Desproveram o agravo. Unânime. (TJRS – AI: 70044985497, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 29.03.2012).

27 Nesse sentido, lembre-se que a Lei nº 9.099/95, em seu art. 9º, dispensa a assistência por advogado em causas de até vinte salários mínimos, podendo o consumidor comparecer pessoalmente e realizar a atermação de sua reclamação. Nessas situações, prerrogativas como a inversão do ônus da prova restariam prejudicadas se o magistrado não pudesse avaliar a presença dos requisitos legais ex officio, uma vez que o consumidor, como regra, desconhece aspectos técnico-jurídicos da demanda e não os arguirá se não estiver assistido por advogado.

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e que as partes queiram lograr êxito no litígio, por isso agindo estrate-gicamente para alcançar esse objetivo, estabelecer um processo coope-rativo/coparticipativo implica induzir comportamentos contrafáticos aos atores processuais.‘Nestes termos, não é possível mais ler, sob a égide do Novo CPC, a cooperação como singela colaboração’, ela importa assumir o contradi-tório como garantia de influência e não surpresa, além de inibir os atos praticados em má-fé processual, com o objetivo exclusivo de retardar a prestação jurisdicional.Para atender a essas premissas surgem para o magistrado deveres, quais sejam os de prevenção, de esclarecimento, de assistência e de consulta das partes sobre os pontos fáticos e jurídicos que cerquem a demanda.[...] O dever de assistência às partes configura-se na obrigação de o juiz remover os obstáculos que, justificadamente, dificultem a obtenção de documento ou informação que condicione o eficaz exercício de uma faculdade ou o cumprimento de um ônus processual ou dever jurídico pelas partes.Assim, tem-se que a boa-fé processual alcança não apenas as partes, mas também os juízes e tribunais.28

O dever de boa-fé objetiva impõe aos seus destinatários, dentre eles o juiz, a adoção de comportamento probo, leal, cooperativo, claro e informado. Assim, ao fixar os pontos controvertidos da lide e estabelecer o ônus probatório, caberá ao magistrado ser o mais claro e cooperativo possível com as partes, permitindo-lhes identificar com clareza qual o ônus que lhes compete na busca pela prestação jurisdicional. Nesse sentido, pode a parte ter negada a tutela pretendida por não desin-cumbência de seu ônus probatório – por impossibilidade ou por pura negligência; mas nunca por dúvida ou incerteza quanto aos fatos que lhe competia demonstrar.

Pode parecer uma constatação óbvia, mas, até 2011, as turmas da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça ainda divergiam sobre a natureza jurídica da inversão do ônus da prova, entendendo-a ora como regra de instrução, ora como regra de julgamento. Foi somente em 21 de setembro de 2011, no REsp nº 802.832/MG, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que a jurisprudência da 2ª Seção da Corte Superior se consolidou no sentido de que a inversão do ônus da prova constitui regra de instrução, não de julgamento.

28 AMORIM, Bruno de Almeida Lewer; FIUZA, César. Princípio da boa-fé processual. In: MAZIERO, Franco Giovanni Mattedi (Org.) O direito empresarial sob o enfoque do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 6-7.

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Segundo a corrente que defende a inversão como regra de julgamento, poderia o juiz decidir pela inversão do ônus probatório na sentença, uma vez que a prova destinar-se-ia apenas ao magistrado. Esse entendimento, porém, viola princípios de envergadura constitu-cional, como o princípio da não surpresa e o da ampla defesa, na exata medida em que permite ao magistrado determinar a inversão depois de já produzidas as provas pelas partes, que se orientaram pelo ônus que lhes competia, segundo a regra disposta no art. 373 do Diploma Processual. Com isso, as partes só vêm a descobrir que ônus efetiva-mente lhes competiam no processo depois de prolatada a sentença e ultrapassada a fase de especificação e produção de provas.

Por outro viés, a corrente que concebe a inversão como regra de instrução defende que deve o juiz se manifestar sobre eventual inversão, antes do momento de especificação de provas, para que as partes saibam previamente de que ônus deverão se desincumbir. Outrossim, caso a inversão seja determinada após a produção das provas, deve ser reaberta oportunidade de especificação e produção probatória, resguardando-se o direito à ampla defesa das partes.29 Como dito, a 2ª Seção do STJ consolidou seu entendimento no sentido de que a inversão do ônus probatório deve ser feita antes da especificação das provas pelas partes, constituindo a inversão regra de instrução, não de julgamento. Esse parece o entendimento mais consentâneo com as normas processuais e constitucionais, bem como com a exigência de lealdade e cooperação no processo judicial. O novo CPC, por sua vez,

29 Nesse sentido posicionou-se o STJ, entendendo a inversão ope judicis do ônus probatório como regra de instrução, conforme evidencia o julgamento do REsp nº 1.395.254/SC, de relatoria da Min. Nancy Andrighi: “DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. CIRURGIA ESTÉTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REGRA DE INSTRUÇÃO. ARTIGOS ANALISADOS: 6º, VIII, E 14, CAPUT E §4º, DO CDC. 1. Ação de indenização por danos materiais e compensação por danos morais, ajuizada em 14.09.2005. Dessa ação foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 25.06.2013. 2. Controvérsia acerca da responsabilidade do médico na cirurgia estética e da possibilidade de inversão do ônus da prova. 3. A cirurgia estética é uma obrigação de resultado, pois o contratado se compromete a alcançar um resultado específico, que constitui o cerne da própria obrigação, sem o que haverá a inexecução desta. 4. Nessas hipóteses, há a presunção de culpa, com inversão do ônus da prova. 5. O uso da técnica adequada na cirurgia estética não é suficiente para isentar o médico da culpa pelo não cumprimento de sua obrigação. 6. A jurisprudência da 2ª Seção, após o julgamento do Resp 802.832⁄MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 21.09.2011, consolidou-se no sentido de que a inversão do ônus da prova constitui regra de instrução, e não de julgamento. 7. Recurso especial conhecido e provido” (grifos nossos) (STJ, REsp nº 1.395.254/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJE 29.11.2013).

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pacifica a questão, positivando o posicionamento consolidado pelo STJ em seu art. 357, inciso III:

Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: [...] III – definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373.

Assim, o novo diploma processual assevera a natureza jurídica da distribuição do ônus da prova como regra de instrução, devendo qualquer alteração à regra do art. 373 ser definida em decisão de sanea-mento e organização do processo, sem surpresa futura às partes. Além disso, o §1º do art. 373 é categórico ao dispor que, havendo a atribuição do ônus da prova de modo diverso ao previsto no art. 373, o magistrado “deverá dar à outra parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”. Sem dúvida, o legislador valeu-se da experiência já travada na seara das relações de consumo, observando o longo iter até a pacificação do tema pelo STJ. Outrossim, o CPC de 2015 utiliza expressão mais adequada quando se refere à possibilidade de o juiz “definir a distribuição do ônus da prova” de modo diverso do estabe-lecido no art. 373 em vez da expressão “inversão do ônus da prova”, prevista no CDC. A expressão utilizada pelo novo CPC remete a uma possibilidade mais ampla e até mesmo pontual ou parcial de alteração do ônus probatório no processo.

Acredita-se, portanto, que todas essas discussões já travadas na seara do direito do consumidor podem auxiliar na aplicação da novel regra positivada pelo CPC de 2015, no §1º do art. 373.30

2.5 Conclusão

A partir da análise realizada neste capítulo, algumas constatações são evidentes. Quanto às principais inovações contidas no novo Código de Processo Civil, tangentes ao tema da distribuição do ônus da prova, destacam-se a previsão expressa da possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova pelo juiz, a exigência de fundamentação específica da decisão judicial que tratar do tema, estando inclusive sujeita a recurso, e a positivação do entendimento pacificado pelo STJ

30 Dizemos novel regra apenas quanto à previsão expressa acerca da inversão ope judicis pelo novo CPC, pois, como demonstrado, o instituto já era aplicado na seara cível e até mesmo tributária mesmo sem previsão expressa no CPC de 1973.

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de que o momento adequado para a redistribuição do ônus da prova é o do saneamento do processo – ex vi do art. 357, inciso III, do novo CPC.

Por outro lado, o estudo da evolução e aprimoramento do instituto da inversão do ônus da prova na seara das relações de consumo pode auxiliar na aplicação e no desenvolvimento do instituto em outros ramos do direito, pois, afinal de contas, já se passaram mais de 26 anos desde sua inauguração na seara consumerista pela Lei nº 8.078/90. Foram abordadas discussões como a natureza jurídica da inversão do ônus probatório, as espécies de inversão – ope legis, ope judicis e convencional –, o momento mais adequado para a inversão ope judicis, a possibilidade de inversão ex officio, a automaticidade ou não do instituto e a sua aplicação em outros ramos do direito, antes e após o advento do novo CPC.

Com essa leitura, espera-se auxiliar os intérpretes e aplicadores do direito na compreensão do tema, tão relevante, por unir direito material e direito processual, na busca da justa pacificação dos conflitos e da harmonização das relações processuais, com a possibilidade de investigação e reconhecimento concreto da aptidão para a prova manifestada por cada uma das partes, pautando-se o processo pela justa e adequada distribuição do ônus probatório. Foge-se assim a um paradigma rígido, engessado e por vezes injusto de distribuição do ônus probatório, passando-se ao reconhecimento de um sistema mais dinâmico e particularista, capaz de melhor auxiliar na busca pela solução justa dos conflitos e pela realização do direito.

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CAPÍTULO 3

OS IMPACTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 NA DISTRIBUIÇÃO JUDICIAL

DO ÔNUS DE PROVAR RELATIVA AO DIREITO DO CONSUMIDOR

André Cordeiro LealVinícius Lott Thibau

3.1 Introdução

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC), instituído pela Lei nº 8.078, entrou em vigor em 11 de setembro de 1990. Pela codificação, passaram a integrar o ordenamento brasileiro, de modo expresso, regras e princípios regentes da relação de consumo, que receberam, do próprio legislador, a taxionomia de “normas de ordem pública e interesse social” (art. 1º).

Versando sobre matéria procedimental, o CDC indicou as diretrizes por via das quais a proteção do consumidor passou a alcançar não só aspectos contratuais das relações consumeristas, mas, também, sua atuação em juízo, fazendo-o mediante determinação expressa da “facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências” (art. 6º, VIII).

Instituiu o CDC, portanto, a possibilidade de, no âmbito de sua incidência, realizar-se a distribuição ope judicis do ônus de provar. Embora sob o equivocado rótulo de “inversão do ônus da prova”,1 restou

1 Nesse sentido, confira a lição de Vinícius Lott Thibau, para quem: “Ao dispor sobre a possibilidade da inversão do ônus da prova, portanto, o Código de Defesa do Consumidor

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autorizada, em certas circunstâncias, a dispensa (ou supressão) do ônus de provar em prol do consumidor, com a simultânea atribuição, ao fornecedor de produtos ou serviços, de encargos probatórios dos quais não teria este de se desvencilhar, se consideradas as normas gerais do ônus de provar que se encontravam previstas no Código de Processo Civil de 1973, ainda vigente quando do ingresso em vigor do CDC.

Assim, para viabilizar a prometida facilitação da defesa do consumidor em juízo, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor estabeleceu a possibilidade de que, por decisão judicial, fosse atribuído ao fornecedor o ônus de provar a não ocorrência de fatos alegados pelo consumidor, fossem esses classificados, a depender da condição de autor ou de réu do consumidor no procedimento, como constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos de direitos.

Permitiu o CDC, a partir de então e nos casos que envolvessem discussão de direitos do consumidor, a flexibilização da regra geral do ônus de provar disposta no art. 333 do Código de Processo Civil de 1973, pela qual incumbiria ao autor, salvo na hipótese de uma incomum convenção das partes sobre o ônus de provar, a fixação do fato consti-tutivo de seu direito e, ao réu, a do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Essa foi uma importante novidade que o Código de Processo Civil de 2015 assimilou e ampliou, ao prever outras possibilidades de distribuição diversa do ônus da prova no Brasil. Se, até o ano de 2015, a distribuição ope judicis do ônus de provar destacava-se no âmbito do direito do consumidor, com o advento da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, a distribuição judicial do ônus da prova ganhou relevância, igualmente, nas chamadas relações paritárias de direito privado.

Com a superveniência do CPC de 2015, portanto, a previsão normativa do Código de Proteção e Defesa do Consumidor passou a integrar um rol muito mais amplo de possibilidades dadas ao juiz para realizar a distribuição do ônus de provar. Além disso, pela nova codifi-cação procedimental, foi indicado, de modo inequívoco, o momento

incorre em uma atecnia, uma vez que, em momento algum, atribui ao fornecedor o ônus de provar o fato constitutivo do direito do consumidor autor do procedimento e, muito menos, o ônus de provar o fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do consumidor réu do procedimento. Para a facilitação da defesa do consumidor em juízo, o Código de Defesa do Consumidor estabelece apenas a possibilidade de que, por determinação judicial, atribua-se ao fornecedor o ônus de provar a inocorrência do fato alegado pelo consumidor, seja ele constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo, conforme o consumidor ocupe a posição de autor ou de réu no procedimento” (THIBAU, Vinícius Lott. A distribuição judicial do ônus da prova e o direito do consumidor. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, n. 27, p. 77-85, set./dez. 2015, p. 78).

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adequado para que se defina a respeito da ocorrência da distribuição ope judicis do ônus de provar – aspecto sobre o qual o CDC permaneceu absolutamente silente.

Em outros termos, o CPC de 2015 parece ter resolvido o problema acerca de quando, no iter procedimental, deverá ocorrer a frequente-mente intitulada inversão do ônus da prova nas causas que envolvam discussão sobre o direito privado, dentre as quais aquelas em que se debatam direitos assegurados ao consumidor pelo CDC. De outra face, porém, o novo Código de Processo Civil criou nova fonte de controvérsia a respeito da distribuição judicial do ônus de provar quando tratou da temática da recorribilidade relativa à decisão que define a distribuição do ônus da prova, mantendo ou alterando os encargos estabelecidos pela regra geral.

Conforme explicitam os tópicos seguintes, com efeito, de um lado, o CPC de 2015 teria afastado, expressamente, a possibilidade de que a distribuição ope judicis do ônus de provar dê-se apenas no momento da prolatação da sentença. De outro, contudo, estaria a gerar uma nova discussão relacionada à distribuição judicial do ônus de prova, desta feita afeta à recorribilidade imediata, ou não, da decisão que não excepciona a regra geral do ônus da prova, por inacolher o pleito de distribuição diversa formulado no âmbito procedimental.

3.2 Os requisitos legais autorizativos da distribuição judicial do ônus da prova no Código de Proteção e Defesa do Consumidor

Nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a distribuição judicial do ônus da prova encontra-se condi-cionada à demonstração de dois requisitos a serem aferidos com base em regras ordinárias de experiência: a verossimilhança das alegações do consumidor e a sua hipossuficiência.

3.2.1 A verossimilhança das alegações do consumidor e a imprestabilidade do raciocínio indutivo

A dogmática jurídico-consumerista costuma conceituar a veros-similhança como a aparência de verdade.2 Assim sendo e pelo emprego

2 Sobre o assunto, veja, em especial, as obras de: PEDRASSI, Cláudio Augusto. O ônus da prova e o art. 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90). Revista Paulista da Magistratura, São Paulo, v.

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de um raciocínio apontado como lógico, a apuração judiciária desse requisito encontrar-se-ia a depender, necessariamente, da realização de um “juízo comparativo entre o fato alegado e o que ‘ordinariamente acontece’, de maneira que a análise do primeiro permita ao observador extrair, mesmo sem provas e por simples raciocínio dedutivo”,3 a existência aparente de um fato desconhecido.4

Vê-se, logo, que a perquirição acerca da verossimilhança das alegações do consumidor está vinculada, como já se colhe da doutrina processual tradicional, a um estado mental5 do juiz na realização de uma inferência pela qual se pode afirmar, a partir de um fato similar experi-mentado, outro fato a que não tiveram acesso os sentidos do julgador. Tradicionalmente, por conseguinte, e no âmbito de incidência do CDC, diante de alegações indemonstradas do consumidor, o magistrado vale-se das máximas de experiência para, a partir dos seus conteúdos,

2, jul./dez. 2001, p. 69; CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Ainda a inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 807, p. 56-81, jan. 2003, p. 68; ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 48, p. 89-114, out./dez. 2003, p. 91-92; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões velhas e novas sobre a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII). Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 146, p. 49-68, abr. 2007, p. 54.

3 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões velhas e novas sobre a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII). Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 146, p. 49-68, abr. 2007, p. 55.

4 Embora haja alusão a que se trataria de um raciocínio “dedutivo”, trata-se, de acordo com a epistemologia tradicional, de um raciocínio indutivo. Segundo afirma David Hume, o filósofo do indutivismo: “É apenas pela EXPERIÊNCIA, portanto, que podemos inferir a existência de um objeto da existência de outro. A natureza da experiência é a seguinte. Lembramo-nos de ter tido exemplos freqüentes da existência de objetos de uma certa espécie; e também nos lembramos que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre acompanharam os primeiros, existindo em uma ordem regular de contigüidade e sucessão em relação a eles. Assim, lembramo-nos de ter visto aquela espécie de objetos que denominamos chama, e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor. Recordamo-nos, igualmente, de sua conjunção constante em todos os casos passados. Sem mais cerimônias, chamamos à primeira de causa e à segunda de efeito, e inferimos a existência de uma da existência da outra. Em todos os casos com base nos quais constatamos a conjunção entre causas e efeitos particulares, tanto a causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos, e foram recordados. Mas em todos os casos em que raciocinamos a seu respeito, apenas um é percebido ou lembrado, enquanto o outro é suprido em conformidade com nossa experiência passada” (HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Débora Danowski. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: UNESP, 2009, p. 116).

5 POPPER, Karl R. O conhecimento e o problema corpo-mente. Trad. Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 2002.

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apurar e certificar se os fatos a que fazem referência as alegações do consumidor teriam ou não a aparência de verdade.6

Daí, independentemente dos inúmeros questionamentos episte-mológicos que possam ser suscitados por essa perspectiva, o que se extrai da dogmática jurídico-consumerista é que a verossimilhança consiste em uma medida (grau) do conhecimento da verdade, apurável exclusivamente por estados mentais do magistrado – nada de novo havendo, portanto, em relação a esse aspecto, quanto à compreensão do termo pelos processualistas tradicionais.7

Embora sobre essa concepção de apuração da verossimilhança já se tenham apresentado críticas incisivas,8 insta salientar, por ora, que, de acordo com a dogmática jurídico-consumerista, a verossimilhança não é “o que se pode ver (inferir) pela similitude (conjectura sobre base

6 Sobre o conceito de máximas de experiência, destaca-se o magistério de Friedrich Stein, aludindo igualmente à indução: “São definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, desvencilhados dos fatos concretos que se julgam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram induzidos e que, além desses casos, pretendem ter validade para outros novos”. No original: “Son definiciones o juicios hipotéticos de contenido general, desligados de los hechos concretos que se juzgan en el processo, procedentes de la experiencia, pero independientes de los casos particulares de cuya observación se han inducido y que, por encima de esos casos, pretenden tener validez para otros nuevos” (STEIN, Friedrich. El conocimiento privado del juez – investigaciones sobre el derecho probatorio en ambos procesos. 2. ed. Traducción y notas de Andrés de la Oliva Santos. Bogotá: TEMIS, 1988, p. 27). Sobre o tema, no Brasil, confira, sobretudo, a lição de Moacyr Amaral Santos: “O juiz, como homem culto e vivendo em sociedade, no encaminhar das provas, no avaliá-las, no interpretar e aplicar o direito, no decidir, enfim, necessariamente usa de uma porção de noções extrajudiciais, fruto de sua cultura, colhida de seus conhecimentos sociais, científicos, artísticos ou práticos, dos mais aperfeiçoados aos mais rudimentares. São as noções a que se costumou, por iniciativa do processualista STEIN, denominar de máximas da experiência, ou regras da experiência, isto é, juízos formados na observação do que comumente acontece e que, como tais, podem ser formados em abstrato por qualquer pessoa de cultura média” (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 24. ed. v. II. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 351).

7 É o que se lê, por amostragem, da lição de Piero Calamandrei, segundo o qual “[...] o juízo de verossimilhança não aguarda as representações probatórias do fato a provar: baseia-se, mas que na indagação em concreto, em uma máxima de experiência que corresponde à frequência com que na realidade se produzem os fatos do tipo alegado. É um juízo ‘típico’, que não surge da comparação entre diferentes representações do mesmo fato (entre a representação que dá a parte e, por exemplo, as que lhe dão as testemunhas), e sim da confrontação entre uma representação dele dada pela parte e um juízo de ordem geral, já adquirido anteriormente, que tem por objeto a categoria típica sob a qual se pode incluir abstratamente no fato representado” (CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. Trad. Douglas Dias Ferreira. 2. ed. v. III. Campinas: Bookseller, 2003, p. 285).

8 THIBAU, Vinícius Lott. A distribuição judicial do ônus da prova e o direito do consumidor. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, n. 27, p. 77-85, set./dez. 2015, p. 79; LEAL, André Cordeiro. A teoria do processo de conhecimento e a inconstitucionalidade do sistema de provas dos juizados especiais cíveis (Lei n. 9.099/95). Revista do Unicentro Izabela Hendrix, Nova Lima, v. 2, p. 11-19, 2003, p. 15-16.

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físico-corroborativa-verossimilitude) das alegações condutoras dos conteúdos de materialidade da prova instrumentalizados e vistos (já existentes) nos autos do procedimento”,9 mas o resultado de um juízo solitário do magistrado sobre aquilo de que se tenha experiência em situações semelhantes àquela que se põe a seu exame.

3.2.2 A hipossuficiência do consumidor e a assimetria de informações

Quanto à hipossuficiência do consumidor, que é o segundo requisito legalmente exigido à intitulada inversão do ônus de provar no CDC, impõe-se distingui-la, de logo, da vulnerabilidade, porque, enquanto esta é atributo da condição de consumidor, conforme reconhece a norma haurida do art. 4º, I, do CDC, e esclarecem Felipe Peixoto Braga Netto, Cíntia Rosa Pereira de Lima, Ernane Fidélis dos Santos e Claudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem,10 aquela se revela na “diminuição da capacidade do consumidor, não apenas no aspecto econômico, mas a social, de informações, de educação, de participação, de associação, entre outros”.11 Daí ser igualmente rotulada de hipossuficiência técnica, relacionando-se, no entanto, tanto à ausência de conhecimentos técnicos do consumidor a respeito da atividade que é desempenhada pelo fornecedor quanto à falta de conhecimentos científicos.12

9 LEAL, Rosemiro Pereira. Verossimilhança e inequivocidade na tutela antecipada em processo civil. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 68.

10 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 48-49; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 215; SANTOS, Ernane Fidélis dos. O ônus da prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 269-279, jul./set. 2003, p. 273; e MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 184.

11 MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 166.

12 Consoante a dogmática jurídico-consumerista, se comparado com o consumidor, em regra, o fornecedor tem um maior acesso às informações relativas aos bens e serviços que oferta – impondo-se-lhe a produção de provas que digam respeito a esses bens e serviços. É o que se lê nos escritos de MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 166-167; CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 38, p. 166-180, abr./jun. 2001, p. 166; GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar.

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É essa afirmada discrepância que justifica, segundo a dogmática jurídico-consumerista, a realização da distribuição judicial do ônus de provar, inclusive nas hipóteses em que “esta prova é difícil mesmo para o fornecedor, parte mais forte e expert na relação, pois o espírito do CDC é justamente de facilitar a defesa dos direitos dos consumidores e não o contrário, impondo provar o que é em verdade o ‘risco profissional’ ao – vulnerável e leigo – consumidor”.13

É de se esclarecer, não obstante, que, como ensina Luiz Eduardo Boaventura Pacífico, com base nas lições de Antonio Gidi, Milton Paulo de Carvalho Filho e Rodrigo Xavier Leonardo, a distribuição ope judicis do ônus de provar está a depender, sempre, da verificação prévia de uma assimetria de informação entre o consumidor e o fornecedor:

A natureza predominante técnica que conota a inversão do ônus da prova conduz a uma importante constatação: a inversão deve se operar sobre o fato (ou fatos) a respeito do que se verifique a assimetria de informação entre o consumidor e o fornecedor.Com efeito, se a inversão tem lugar na hipótese em que o fornecedor possui o monopólio de uma determinada informação – até mesmo em razão das vicissitudes de seu processo produtivo ou graças ao seu superior poder probatório, por lhe ser mais acessível a fonte de prova, entremostra-se evidente seja ela implementada pelo juiz exclusivamente sobre o fato a respeito do qual ocorre o déficit informativo do consumidor. Em relação aos demais fatos, por mais que o autor possa encontrar di-ficuldades para a prova [...], não há razão porque se opere a inversão, sendo irreparável a conclusão segundo a qual “a decisão que inverte genericamente o ônus da prova, causando ao fornecedor uma efetiva impossibilidade de produção probatória, é eivada de nulidade, em razão da violação material das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório”.14

1995, p. 35; MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 86, p. 295-309, abr./jun. 1997, p. 303-304; NOGUEIRA, Tânia Lis Tizzoni. A prova no direito do consumidor – o ônus da prova no direito das relações de consumo. Curitiba: Juruá, 1998, p. 57; PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 917, p. 175-202, mar. 2012, p. 182; e MORAES, Voltaire de Lima. Anotações sobre o ônus da prova no código de processo civil e no código de defesa do consumidor. Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 20, n. 21, p. 309-319, 1999, p. 316.

13 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 183-184.

14 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 917, p. 175-202, mar. 2012, p. 183.

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O que se deduz dessas afirmações, por consectário, é que a hipossuficiência autorizativa da distribuição judicial do ônus da prova no CDC pode se verificar em relação a todos os fatos ou somente a um ou a alguns deles, porque a distribuição ope judicis do ônus da prova, embora seja destinada à facilitação do exercício do direito de defesa pelo consumidor, não pode ser utilizada como técnica que imponha prejuízo ao fornecedor quanto ao exercício de seus direitos fundamentais em juízo.

Isso não conduz, entretanto, à admissão da tese no sentido de que o acolhimento da alternatividade dos requisitos legalmente exigidos à distribuição ope judicis do ônus da prova possa gerar uma situação de abusividade em desfavor do fornecedor, uma vez que, por via da distribuição diversa, um novo ônus de provar lhe seria judicialmente determinado, mesmo quando as alegações do consumidor sequer se apresentarem como verossímeis,15 ou, ainda, quando, apesar de se qualificarem verossímeis, o consumidor não se apresentar como hipossuficiente.16

15 De acordo com Rodrigo Xavier Leonardo, se não for acolhida a cumulatividade dos requisitos legalmente previstos à distribuição judicial do ônus da prova, será possível que um “[...] determinado fornecedor de alimentos (um sofisticado e caríssimo restaurante) seja demandado por uma pessoa humilde que alega ter sofrido danos físicos e emocionais provenientes da ingestão de uma refeição estragada no jantar da noite passada. A despeito de não ser verossímil o consumo de alimentos, por uma pessoa humilde, naquele restaurante, não se pode duvidar de eventual hipossuficiência do consumidor em relação àquele fornecedor” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 272). Em sentido semelhante, confira, ainda, a lição de Antonio Gidi: “Afigura-se-nos que verossímil a alegação tem que ser. A hipossuficiência do consumidor per se não respaldaria uma atitude tão drástica como a inversão do ônus da prova, se o fato afirmado é destituído de um mínimo de racionalidade. A ser assim, qualquer mendigo do centro da cidade poderia acionar um shopping center luxuoso, requerendo preliminarmente, em face de sua incontestável extrema hipossuficiência, a inversão do ônus da prova para que o réu prove que o seu carro (do mendigo) não estava estacionado nas dependências do shopping e que, nele, não estavam guardadas todas as suas compras de Natal” (GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995, p. 34). Também asseverando a necessidade de preenchimento conjunto dos requisitos da verossimilhança das alegações do consumidor e da sua hipossuficiência para possibilitar a distribuição judicial do ônus da prova, confira, principalmente, as obras de NICHELE, Rafael. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor – restrições quanto à sua aplicação. Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 18, n. 21, p. 209-225, 1997, p. 214; PEDRASSI, Cláudio Augusto. O ônus da prova e o art. 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90). Revista Paulista da Magistratura, São Paulo, v. 2, jul./dez. 2001, p. 70; e LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 222.

16 Nesse sentido, confira, sobretudo, a lição de Cândido Rangel Dinamarco que, ao se referir à hipossuficiência como carência econômica, aduz que “[...] favorecer o consumidor abastado transgrediria a garantia da igualdade, ainda quando verossímil o que alega, porque sem o

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Por uma análise gramatical e finalística da norma prevista no art. 6º, VIII, do CDC, extrai-se que os requisitos da verossimilhança das alegações do consumidor e da sua hipossuficiência apresentam-se como alternativos, bastando que um deles esteja presente para que ocorra a distribuição ope judicis do ônus de provar.17

3.3 O CPC de 2015 e o debate dogmático-consumerista sobre o momento procedimental da distribuição ope judicis do ônus de provar

Diante do silêncio do Código de Proteção e Defesa do Consumidor acerca do momento procedimental adequado a que se realizasse a chamada inversão do ônus da prova, debate acalorado na doutrina do direito do consumidor desenvolveu-se. Por um lado, autores defendiam a perspectiva segundo a qual a distribuição judicial do ônus de provar deveria ocorrer na sentença; por outro, havia aqueles que sustentavam, considerado o CPC de 1973, que a distribuição diversa do ônus da prova deveria se verificar na fase saneadora.

A solução divergia, fundamentalmente, quanto à melhor interpre-tação a ser dada ao art. 6º, VIII, do CDC, para alcançar os níveis máximos de proteção que a distribuição ope judicis do ônus da prova poderia proporcionar ao consumidor. Enquanto alguns autores consideravam que o complexo normativo da atribuição judiciária do ônus de provar interpretava-se como um conjunto de regras de julgamento, devendo a inversão ocorrer na sentença, outros afirmavam que se retiraria do fornecedor, se assim fosse, a possibilidade de se desincumbir do ônus de

requisito da pobreza não há desigualdades a compensar” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 2. ed. v. III. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 80).

17 No mesmo sentido, confira as lições de CAMBI, Eduardo. A prova civil – admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 413; NERY JUNIOR, Nelson. Aspectos do processo civil no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 1, p. 200-221, 1992, p. 221; MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 86, p. 295-309, abr./jun. 1997, p. 301; ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 48, p. 89-114, out./dez. 2003, p. 93-95; CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 38, p. 166-180, abr./jun. 2001, p. 173; NOGUEIRA, Tânia Lis Tizzoni. A prova no direito do consumidor – o ônus da prova no direito das relações de consumo. Curitiba: Juruá, 1998, p. 58; e NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 122-123.

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provar, motivo pelo qual a sua distribuição deveria se dar no momento do saneamento procedimental.

Conforme o primeiro dos entendimentos divergentes, as normas fixadas sobre o ônus de provar consistiriam em regras de julgamento, as quais deveriam ser compreendidas como orientadoras e auxiliares do juiz para evitar a decretação do non liquet em matéria fática – uma possibilidade que só seria aferível após o término da instrução.18 Como ensinava José Carlos Barbosa Moreira, o julgamento com base no ônus da prova, por si só, “é uma tragédia psicológica para qualquer juiz de sensibilidade apurada. Esse julgamento, segundo o ônus da prova, só deve sobrevir depois que se esgotarem todos os meios”.19

Nesse sentido, Cecília Matos ressaltava, ao se pronunciar sobre o réu-fornecedor, que, se “o demandado, fiando-se na suposição de que o juiz não inverterá o ônus da prova em favor do demandante, é surpreendido com uma sentença desfavorável, deve creditar seu insucesso mais a um excesso de otimismo, do que à hipotética desobe-diência ao princípio da ampla defesa”.20 Cíntia Rosa Pereira de Lima, por sua vez, afirmava, que o fornecedor “não pode alegar ignorância de lei que prevê como direito do consumidor a possibilidade da inversão do ônus da prova”.21

De outra face, para os que compreendiam as normas do ônus da prova como regras de procedimento, e não de julgamento, a distribuição ope judicis no ato sentencial não se apresentaria recepcionável, porque, se as normas do ônus de provar são determinativas de uma atividade (ônus) a ser acatada pela parte, a distribuição diversa daquela fixada pelo art. 333 do CPC de 1973 deveria ocorrer em momento procedimental

18 Nesse sentido, veja, em especial, as obras de MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 167; NERY JUNIOR, Nelson. Aspectos do processo civil no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 1, p. 200-221, 1992, p. 217-218; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 277-278; e ANDRADE, André Gustavo C. de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 48, p. 89-114, out./dez. 2003, p. 97.

19 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O juiz e a prova. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 35, p. 177-184, 1984, p. 181-182.

20 MATOS, Cecília. O ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 11, p. 161-169, jul./set. 1994, p. 167.

21 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 47, p. 201-231, jul./set. 2003, p. 227.

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que possibilitasse que essa se desincumbisse do encargo de que, por lei e prima facie, não teria, originalmente, de se desincumbir.22

Com a entrada em vigor da Lei nº 13.105/15, a divergência foi solucionada. Pelo novo CPC, não apenas foi introduzida, no ordena-mento brasileiro, a chamada distribuição dinâmica do ônus de provar para as relações não consumeristas,23 pela qual o juiz, mesmo em causas não alcançadas pela proteção do CDC, está autorizado a realizar a distribuição diversa do encargo probatório, como também se fixou, de modo expresso, o momento para que referida distribuição possa ser concretizada.

É que, embora o art. 373 do CPC 2015 reproduza, em seu caput e incisos, o texto do art. 333 do CPC de 1973, toma a norma haurível desse texto como regra geral passível de modificação e, portanto, excepcio-nável, ao contrário do que ocorria com o CPC anterior:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

22 Nesse sentido, pronunciavam-se BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A prova no processo civil democrático. Curitiba: Juruá, 2013, p. 197-198; MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 86, p. 295-309, abr./jun. 1997, p. 306; CAMBI, Eduardo. A prova civil – admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 418-420; MORAES, Voltaire de Lima. Anotações sobre o ônus da prova no código de processo civil e no código de defesa do consumidor. Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 20, n. 21, p. 309-319, 1999, p. 317-318; GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no código do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 13, p. 33-41, jan./mar. 1995, p. 38-39; NICHELE, Rafael. A inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor – restrições quanto à sua aplicação. Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 18, n. 21, p. 209-225, 1997, p. 221-222; PEDRASSI, Cláudio Augusto. O ônus da prova e o art. 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90). Revista Paulista da Magistratura, São Paulo, v. 2, jul./dez. 2001, p. 71; e CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Ainda a inversão do ônus da prova no código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 807, p. 56-81, jan. 2003, p. 77.

23 Esse é o rótulo da nova técnica de distribuição do ônus de provar, segundo Elpídio Donizete Nunes, que integrou a comissão de juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, autor que, ademais, procura justificar essa escolha mediante afirmativa de que “trata-se da distribuição dinâmica do ônus da prova, que se contrapõe à concepção estática prevista na legislação anterior (art. 333 do CPC/73). De acordo com o novo CPC, o encargo probatório deve ser atribuído, casuisticamente, de modo dinâmico, concedendo-se ao juiz, como gestor das provas, poderes pra avaliar qual das partes terá maiores facilidades na sua produção. Evidentemente, a decisão deverá ser fundamentada, justificando as razões que convenceram o juiz da impossibilidade de produção da prova por uma das partes” (NUNES, Elpídio Donizete. Curso didático de direito processual civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 566).

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§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.§2º A decisão prevista no §1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou exces-sivamente difícil.

Assim, o que se tem, a partir da entrada em vigor do CPC de 2015, é a ampliação das hipóteses em que a regra geral de distribuição do ônus de provar, de acordo com a qual o encargo incumbe a quem alega um fato, pode ser alterada para que, ope judicis, seja atribuída de maneira diferente às partes. A proteção ao consumidor permaneceu intocada, embora o CPC de 2015 tenha impactado diretamente a contro-vérsia sobre a taxionomia do complexo normativo relativo à intitulada inversão do ônus de provar.

É de se notar, sobre esse aspecto, que o CPC de 2015 foi explícito em determinar, no §2º do art. 373, que, à parte, a quem se houver, excep-cionalmente, atribuído encargo probatório que originariamente não lhe incumbiria, deve-se oportunizar a possibilidade de se desincumbir desse encargo. Com isso, resta excluída, a partir dos termos expressos do CPC de 2015, a possibilidade da interpretação do conjunto de normas que, no CDC, dispõe sobre distribuição do ônus de provar, sob taxionomia de regra de julgamento.

Grife-se, ainda, que, não obstante o art. 373 do CPC de 2015 não indicar, de maneira inequívoca, o momento, no iter procedimental, em que o juiz está autorizado a empreender a chamada distribuição dinâmica do ônus da prova, tal se identifica pelo exame de disposição normativa integrante da Seção IV, do Capítulo X, do Título I, do Livro I, da Parte Especial, do novo CPC, que é intitulada “Do saneamento e da Organização do Processo”.

Pelo CPC de 2015, não sendo o caso de julgamento conforme o estado do processo pela extinção deste (art. 354) ou de julgamento antecipado parcial (art. 356) ou integral do mérito (art. 355), deverá o juiz adotar providências que visem, em última análise, preparar o adentramento da fase instrutória, fazendo-o mediante resolução de questões que possam embaraçar a precisa escolha dos meios de prova utilizáveis no procedimento.

Assim, segundo a nova codificação a que se faz alusão, por expressa remissão do inciso III do art. 357 ao art. 373, erige-se legalmente

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acertado que o momento procedimental no qual o juiz deve decidir sobre a distribuição do ônus de provar, mantendo, ou não, a regra geral prevista no art. 373, caput e incisos, é exatamente o saneamento.

Frise-se, inclusive, que, a depender da complexidade da causa, essa decisão deve ser produzida no recinto de audiência designada para essa finalidade (§3º do art. 357), conferindo-se às partes, ademais, quando a audiência não seja necessária, o prazo de cinco dias para que se pronunciem e solicitem ajustes ou correções na distribuição solita-riamente realizada pelo juiz (§1º do mesmo artigo).

Por consectário, após a entrada em vigor do CPC de 2015, mesmo sendo, de acordo com o art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, a distribuição ope judicis do ônus da prova uma técnica aplicável em favor da facilitação do exercício do direito de defesa do consumidor em juízo, a decisão que versar sobre essa distribuição deve ser tomada na fase de saneamento, e de forma fundamentada (art. 373, §1º), afastando-se, assim, a possibilidade de a denominada inversão do ônus de provar realizar-se tão somente na sentença.

3.4 A controversa (ir)recorribilidade da decisão judicial sobre o ônus de provar

Embora o momento procedimental de fixação judicial do ônus de provar esteja estabelecido com a superveniência do CPC de 2015, há questão relevante que foi introduzida exatamente pela entrada em vigor da nova lei.

É que a recente legislação procedimental, abandonando o modelo de recorribilidade ampla das decisões interlocutórias que se havia adotado no CPC de 1973, parece retornar à técnica assimilada pelo Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939 (Código de Processo Civil), no qual se estampava, nos arts. 841 e 842, uma lista taxativa das decisões interlocutórias passíveis de recurso imediato.

O Código de Processo Civil de 2015, como o CPC de 1939, apresenta, em seu art. 1.015, rol expresso de decisões interlocutórias passíveis de enfrentamento pela via recursal do agravo de instrumento e, apesar de a taxatividade dessas hipóteses estar sendo objeto de importante discussão na literatura especializada,24 fato é que o aludido

24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.038; BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado. São Paulo: Saraiva: 2015, p. 653; ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 615 e 622; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil. 16. ed. reform. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 537-538; e

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dispositivo legal foi inequívoco, em seu inciso XI, em considerar agravável a decisão pela qual se realiza a “redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, §1º” – o que somente se deu por uma inserção que se verificou na última etapa do procedimento legislativo, conforme acentua Cassio Scarpinella Bueno.25

Em outros termos, a decisão determinativa da distribuição ope judicis do ônus de provar pode ser objeto de imediato pleito recursal, embora se omita o CPC de 2015 em prever idêntica possibilidade em relação à decisão que, indeferindo pleito de “redistribuição” eventual-mente formulado pela parte, mantenha a incidência, no procedimento, da regra geral da distribuição do encargo probatório.

De conseguinte, e não obstante preveja, expressamente, que as decisões proferidas no curso do procedimento que não sejam imedia-tamente impugnáveis por agravo de instrumento não se sujeitam à preclusão (§1º do art. 1.009), podendo, portanto, ser objeto de revisi-bilidade tribunalícia através de apelação ou de contrarrazões, é de se indagar os motivos pelos quais tal se admitiria, já que, se, como explica Elpídio Donizete Nunes, o que se pretendeu através da oferta de um rol taxativo foi “reunir as principais situações nas quais a decisão interlocutória é capaz de gerar prejuízo para uma das partes”,26 não se imagina como o indeferimento do pleito de “redistribuição” formulado pela parte não seria apto a gerar prejuízos ao requerente, a despeito do seu deferimento impor tais prejuízos à parte contrária.

Consideradas especificamente as disposições do CDC, vê-se que a pretendida proteção procedimental ao consumidor foi fragilizada pelo CPC de 2015, já que, embora o novo Código ratifique a possibilidade de distribuição judicial do ônus da prova em favor do consumidor, parece prever, ainda, diante da omissão relatada, que, quando esse mesmo consumidor tiver seu pleito de distribuição diversa do ônus da prova indeferido pelo juízo, será obstado de recorrer imediatamente, ao contrário do que poderá fazer o fornecedor que tiver, contra si, uma decisão determinativa da “redistribuição”.

MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 1.259-1.260.

25 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo código de processo civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 653.

26 NUNES, Elpídio Donizete. Curso didático de direito processual civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1.482.

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Admitida essa inusitada hipótese, como se já não bastasse a ocorrência de violação ao princípio da isonomia (art. 1º da CB), seria possível se exigir do consumidor um esforço probatório inútil, já que um eventual acolhimento do pleito que formule no recurso de apelação ou mesmo nas suas contrarrazões, mediante decisão que reconhecesse o seu direito à distribuição ope judicis do ônus da prova, implicaria a reinauguração da fase probatória, com a dilação injustificável do curso procedimental – o que poderia ser evitado, contudo, pela opção do consumidor em prol da controversa impetração de mandado de segurança à impugnação do ato decisório, vendo-se, obrigado, nesse caso, a arcar com as despesas e riscos de um novo procedimento judicial.

3.5 Conclusão

O Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu o momento adequado para a prolatação da decisão relativa à distribuição ope judicis do ônus da prova. Ao determinar o saneamento como o instante procedimental para que o juiz realize a distribuição diversa do ônus de provar, o novo CPC põe fim ao debate instalado na tradicional dogmática jurídico-consumerista, fazendo-o pelo afastamento expresso da perspectiva segundo a qual as normas relativas ao ônus da prova deveriam ser compreendidas como regras de julgamento.

Por outro lado, o CPC de 2015 pode impactar negativamente a defesa do consumidor em juízo, já que não encampa, no rol das hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento, a decisão interlo-cutória que indefere o pleito de distribuição diversa do ônus de provar formulado pelo consumidor, apesar de, paradoxalmente, assegurar a possibilidade de recorribilidade imediata da decisão interlocutória à contraparte, caso essa se entenda prejudicada pelo deferimento desse mesmo requerimento.

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306 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

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CAPÍTULO 4

NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL E AS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DO

INSTITUTO À LUZ DA VULNERABILIDADE PRESUMIDA DO CONSUMIDOR

Lucas Magalhães de Oliveira CarvalhoMichael César Silva

Samuel Vinícius da Silva

4.1 Introdução

O princípio da participação efetiva das partes no processo civil assumiu contornos diferenciados com o passar do tempo. Sob a perspectiva do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), a parti-cipação dos litigantes no processo encontrava-se restrita à defesa dos interesses particulares de cada um, pouco se explorando as convenções processuais para amoldar o processo. A rigidez e imutabilidade das regras processuais era o marco do direito processual anterior, ressalvadas as hipóteses de alterações pontuais, como a prorrogação de foro por não arguição por exceção de incompetência relativa. Não se poderia esperar algo diverso, visto que o CPC de 1973 fora criado durante o Período Militar, pautado nos ideais de restrição de direitos fundamentais. Dessa forma, o império das regras processuais refletia o poder dominante e autoritário imposto ao indivíduo, em que respeitar o procedimento era mais importante do que permitir o contraditório efetivo, a ampla defesa e o devido processo legal.

A revolução copernicana do processo civil no Brasil ocorrera com o advento do novo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), em que se percebe nitidamente a mudança de paradigma, não se conce-dendo primazia ao império da lei processual, mas, sim, aos princípios constitucionais, capazes de remodelar o processo, a depender das peculiaridades do caso concreto. A releitura é nítida e mereceu capítulo

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308 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

próprio inaugural do Código de Processo Civil: das normas funda-mentais do processo civil. A obsolescência do regime militar abriu espaço para a discussão democrática, não apenas do direito material, mas em especial do direito processual.

O princípio da participação democrática trouxe ao processo civil brasileiro uma cláusula geral de negociação processual, inserta no artigo 190 do CPC de 2015, ampliando consideravelmente o papel das partes no procedimento judicial, tornando-as, assim, protagonistas do próprio trâmite processual. A faculdade estendida aos litigantes de modificar regras de processo tem como ponto nevrálgico a prevalência da celeridade, isonomia, bem como o atendimento das peculiari-dades do caso concreto. Entretanto, a preocupação com o regramento processual no novo CPC antecede ao processo em si, vislumbrando, inclusive, a possibilidade de pactos processuais em sede contratual, mormente, nos contratos de adesão na seara consumerista. Destarte, é preciso compreender as nuances desse novo instituto, com fulcro nas negociações processuais havidas em contrato de consumo, a fim de buscar analisar seus contornos, parâmetros e sua própria viabilidade à luz dos preceitos norteadores da Constituição da República de 1988 e do ordenamento jurídico brasileiro.

Nesta senda, elenca-se como problema de pesquisa a viabilidade das negociações processuais, especialmente no âmbito das relações de consumo, em vista da patente condição de vulnerabilidade do consu-midor, da posição de desigualdade do consumidor diante do fornecedor, e das repercussões jurídicas havidas em um contrato de adesão.

O questionamento é pertinente, pois, à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC/1990), quaisquer consumidores são vulneráveis presumidamente, e negócios dessa natureza seriam realizados sem qualquer assistência à parte mais fraca da relação de consumo. A ausência de assistência técnico-jurídica na conclusão desses contratos, aliada à imutabilidade contratual, poderá ensejar arbitrariedades e despojamento de prerrogativas processuais antecipadamente, colocando o consumidor vulnerável à mercê do convencimento motivado do juiz para avaliar eventual nulidade de cláusulas contratuais no caso concreto. O mesmo poderia ser dito em relação às contratações coletivas, em que o número de contraentes não modificaria a dificuldade de dar concretude ao instituto.

Objetiva-se por meio deste estudo compreender os limites e aplicabilidade das negociações processuais atípicas, baseadas no artigo 190 do CPC de 2015, bem como traçar os contornos desse instituto em período pré-processual, por meio do estabelecimento de contratos. O questionamento tem como base a recente vigência do Código de Processo

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Civil de 2015 e a existência de dúvidas em relação à aplicação do novo instituto, bem como a ausência de referências doutrinárias sobre a questão dos contratos de adesão nas negociações processuais. A eficácia dessas negociações encontra-se, atualmente, restrita por aspectos prepon-derantemente culturais em razão da dificuldade de se manter diálogos diante de interesses antagônicos. O estudo da negociação processual permeará essa realidade existente e buscará aproximar contratantes e partes no processo pela primazia do princípio da participação.

O método adotado neste artigo será o analítico dedutivo, por meio de pesquisas bibliográficas, tendo por fundamento a incidência dos princípios da boa-fé objetiva, informação, transparência e vulne-rabilidade no exercício da autonomia privada dos contratantes na celebração de negócios processuais.

Primordialmente, os deveres anexos da boa-fé objetiva serão utilizados como alicerce do pensamento das negociações processuais na medida em que terão condão de traçar parâmetros de entendimento e controle judicial do instituto em análise, demonstrando como se compatibilizar o exercício da autonomia privada, notadamente, no campo da liberdade contratual, com a vulnerabilidade do consumidor no âmbito das relações jurídicas de consumo.

A hipótese trazida pelo artigo aponta para o caráter sui generis das disposições processuais presentes nos contratos de adesão, sejam eles coletivos ou individuais, de forma que as cautelas tomadas na renúncia de prerrogativas processuais durante o trâmite do processo deverão ser diferentes das existentes nos pactos firmados entre contratantes.

Em síntese, a realização de negócios de cunho processual necessita de um componente complementar para ter validade, como forma de suprimento da vulnerabilidade do consumidor no contrato de adesão, primordialmente por meio de procurador habilitado pela OAB ou pela própria assistência da Defensoria Pública. A respeito das contratações coletivas, o Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, poderia se valer de controle preventivo dessas contratações. Em âmbito processual, é dever do advogado, bem como do juiz, zelar pela idoneidade das negociações processuais, de forma que a paridade entre litigantes seja observada e não haja abusividade nas pactuações para fins de se alcançar o equilíbrio desejado nas relações jurídicas de consumo, dentro do contexto de modelo constitucional de processo.

4.2 Negociações processuais típicas e atípicas

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe importantes modificações em relação ao antigo CPC de 1973, dentre as quais, a

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possibilidade de as partes realizarem negociações processuais atípicas (art. 190, CPC/2015)1 2 ou típicas (art. 191, CPC/2015), independentemente da vontade do magistrado, ao qual caberá tão somente proceder a análise do regramento legal do negócio jurídico e ao controle de validade das convenções processuais firmadas pelas partes.3

Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Nogueira conceituam o negócio processual como “o ato jurídico voluntário em cujo suporte fático esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais”.4 5

A outro giro, Antônio do Passo Cabral preleciona que o negócio jurídico processual pode ser definido como sendo “a convenção (ou acordo) processual”, que “é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade da interme-diação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento”.6

Nessa linha de intelecção, por meio do princípio da cooperação, as partes podem, entre si, por meio do autorregramento da vontade e sem necessidade, em regra, de homologação judicial, estabelecer flexibilizações procedimentais, nos ônus, poderes, faculdades e deveres

1 O artigo 190 do CPC de 2015 consagrou a denominada Cláusula Geral de Negociação Processual. A referida cláusula permite às partes plenamente capazes estipular alterações no procedimento para adequá-lo às especificidades do caso concreto, nas hipóteses em que o processo versar sobre direitos suscetíveis de autocomposição, bem como convencionar sobre seus ônus poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

2 Segundo Alexandre Freitas Câmara, a cláusula geral de negócios processuais trata-se “da genérica afirmação da possibilidade de que as partes, dentro de certos limites estabelecidos pela própria lei, celebrem negócios através dos quais dispõem de suas posições processuais” (CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 126). Nesse sentido ver: FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 77-83.

3 Antônio do Passo Cabral expõe que a flexibilização do procedimento pelo acordo de vontade das partes remonta aos primórdios do direito processual no direito romano, preconizando que “a litis contestatio podia ser visualizada como instrumento de tipo arbitral que representou o formato mais primitivo – e o mais difundido – de acordo processual” (CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 32).

4 DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Teoria dos fatos jurídicos processuais. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 59.

5 Nesse mesmo sentido, Guilherme Henrique Lage Faria conceitua o negócio jurídico processual como sendo “fato jurídico processual cujo suporte fático tem como elemento nuclear a exteriorização de vontade do sujeito, mediante o exercício de autorregramento da vontade, dentro dos limites estabelecidos pelo sistema, para escolher entre categorias jurídicas processuais e, em alguns casos, eleger o conteúdo e estruturação das relações jurídicas processuais” (FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 225).

6 CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 68.

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processuais não previstos no dispositivo processual supracitado para que as idiossincrasias das partes sejam atendidas e, assim, possibilitem a construção de uma decisão mais democrática por meio do princípio da participação efetiva no processo.

O Modelo Constitucional caminha no sentido de maior partici-pação das partes na condução do processo, com incentivo ao contraditório substancial (como influência e não surpresa), tido como elemento normativo estruturador da comparticipatividade democrática, culmi-nando na introdução (definitiva) da técnica de negociação processual no sistema brasileiro.7

Nesse sentido, as partes deixam de ser meras coadjuvantes e se tornam protagonistas do trâmite processual. Logo, reafirma-se o preceito constitucional da autonomia privada em face de um antigo processo inflexivo, arbitrário e centralizado no magistrado, marcado pelo apego excessivo ao publicismo.8 Chega-se à conclusão que, diante das novas possibilidades e dos novos paradigmas do Código de Processo Civil de 2015, as partem podem carrear não somente os fatos, mas também as delimitações processuais contratuais referentes ao direito, tal como a possibilidade de se limitar a matéria que o juiz averiguará em caso de conflito entre os litigantes.9

Ademais, houve outra importante inovação no CPC de 2015, que é a possibilidade de as partes em consonância com o juiz estabelecerem negócios jurídicos sobre atos exclusivos do juiz, tal como o calendário processual para a prática de atos, previsto no artigo 191 do CPC de 2015 (negociação típica). Portanto, a celeridade e a marcha processual serão definidas pelos integrantes da relação jurídica a fim de se atender

7 FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 221.

8 Nesse sentido, ao se referir ao antigo Código, Trícia Navarro Xavier Cabral destaca que “fortaleceram-se, assim, os dogmas de que as partes bastariam narrar os fatos, sendo o direito de conhecimento privativo do juiz, passando este a ser o protagonista do processo” (CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Avanços e desafios das convenções processuais no CPC/15. In: JAYME, Fernando Gonzaga et al. (Coords.). Inovações e modificações do Código de Processo Civil: avanços, desafios e perspectivas. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p. 87).

9 Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Francisco Mitidiero explicitam ao discorrer sobre o artigo 8º do CPC de 2015, que “a dignidade da pessoa humana conecta-se com o direito à liberdade e à autonomia privada, o que explica a necessidade de respeito, dentro dos limites constitucionais e legais, aos negócios processuais realizados entre as partes (art. 190, CPC) e constitui estímulo à realização de calendários processuais entre o juiz e as partes como instrumento para a eficiente gestão do tempo no processo civil (art. 191, CPC)” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 105).

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as peculiaridades in casu e para extinguir lapsos temporais ociosos do procedimento.10

O antigo Código de Processo Civil já previa a possibilidade do procedimento ser flexibilizado, mas essa alteração perpassava, obriga-toriamente, por um ato do juiz ou por determinação legal, como, por exemplo, a desistência e a transação, excetuando-se algumas flexibili-zações que independiam do magistrado, como, por exemplo, o acordo para prorrogação de foro e para adiamento de audiência de instrução de julgamento.

Não obstante, a flexibilidade do antigo procedimento prevista no CPC de 1973, que parte da doutrina entendia que não se tratava de uma negociação processual, mas, na verdade, de meros atos processuais, pois a vontade dos contratantes não tinha aptidão para influenciar os efeitos dos atos processuais.11 Nessa linha de raciocínio, era inadmissível a existência de negócios processuais,12 pois os efeitos jurídicos eram previamente determinados pela lei processual, e não pela vontade das partes.13 14 15

10 Para mais informações sobre a calendarização processual, ver: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Calendarização processual. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coords.). Negócios Processuais. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 353-369 (Coleção Grandes Temas do Novo CPC, Coord. Geral Fredie Didier Jr.).

11 Nesse sentido se posicionava Daniel Mitidiero (em relação ao antigo CPC) citado por Pedro Henrique Nogueira (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 143).

12 Elio Fazzalari posiciona-se no sentido de admitir a existência de negócios processuais, indicando que a melhor nomenclatura para o modelo jurídico seria a de “atos processuais negociais” (FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Trad. Eliane Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, p. 416).

13 No mesmo sentido, ver: REDONDO, Bruno Garcia. Negócios jurídicos processuais. In: WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Temas Essenciais do Novo CPC: Análise das principais alterações do sistema processual civil brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 229.

14 Rodrigo Mazzei e Bárbara Seccato Ruis Chagas destacam que um relevante argumento contrário ao reconhecimento da existência dos negócios jurídicos processuais no Brasil se fundamenta na “interpretação da segurança jurídica e do devido processo legal sob a ótica de que o processo deve ser regulamentado por lei, e apenas por ela”, enquanto garantia conferida aos atores processuais de “pleno conhecimento das ferramentas à disposição para o exercício da jurisdição” (MAZZEI, Rodrigo; CHAGAS, Barbara Seccato Ruis. Os negócios jurídicos processuais e a arbitragem In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coords.). Negócios Processuais. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 524 (Coleção Grandes Temas do Novo CPC, Coord. Geral Fredie Didier Jr.).

15 Segundo Pedro Henrique Nogueira, as “negativas ao conceito de negócio processual podem ser agrupadas em quatro vertentes: i) a incorporação da figura tipicamente privatística ao processo poderia ser fonte de equívocos e poderia atingir a própria autonomia do Direito Processual quanto à disciplina das formas processuais; ii) Os atos negociais celebrados fora do processo não teriam propriamente efeitos processuais ligados à vontade do agente (os efeitos desses atos para o processo sempre seriam sempre ex lege); iii) as declarações

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Superada a atuação centralizada no magistrado,16 o CPC de 2015 veio possibilitar em maior grau a democratização do processo, pautado pelo fortalecimento do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, paridade de tratamento, promoção da dignidade da pessoa humana na aplicação da norma processual e da participação cooperativa e efetiva das partes no processo. Verifica-se, portanto, que os atores processuais, inclusive o magistrado, passam a figurar em uma relação horizontal, e a condução do processo será realizada por todos os agentes da relação jurídica, consagrando-se a plena possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais.17

O controle sobre os requisitos de validade do negócio processual caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, recusando-lhe a aplicabilidade apenas no caso de nulidade, inserção abusiva em contrato de adesão ou na hipótese em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade (artigo 190, parágrafo único, CPC/2015).

Nesta senda, é imperioso salientar que o magistrado exercerá, tão somente, o papel de controle dos negócios processuais, e não de parte, pois o CPC de 2015 estabelece que as declarações unilaterais ou bilaterais produzirão efeitos imediatos em relação à Constituição, modificação ou extinção de direitos processuais (artigo 200, CPC/2015), sem a necessidade de manifestação de outros sujeitos,18 não sendo requisito de eficácia dos negócios processuais a homologação judicial, salvo quando a própria lei assim o exigir, como, por exemplo, na hipótese de transação.

O juiz tem o dever de controlar a validade dos acordos processuais, seja quando indevidamente incidem sobre os seus poderes (porque os

negociais não produziriam efeitos imediatamente, mas somente após a intervenção ou intermediação judicial; iv) os negócios jurídicos com relevância processual (v.g. alienação da coisa litigiosa) seriam para o processo meros fatos” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais: análise dos provimentos judiciais como atos negociais, 2011, p. 138. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em: <http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/10743/1/Pedro%20Henrique.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2017). Nesse sentido ver: FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 44-49.

16 Leonardo Carneiro da Cunha expõe que “fortaleceu-se a imagem do Estado Democrático de Direito, que exige a participação dos sujeitos que estão submetidos a decisões a serem tomadas sobre situações que lhes digam respeito” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios Jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coords.). Negócios Processuais. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 45 (Coleção Grandes Temas do Novo CPC, Coord. Geral Fredie Didier Jr.).

17 Nesse sentido ver: FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 49-69.

18 Nesse sentido ver: CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 62-63.

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acordos não podem incidir sobre os seus poderes), seja quando incidem sobre os poderes das partes indevidamente (porque sua incidência não pode violar a boa-fé e a simetria das partes). Em sendo o caso, tem o dever de decretar a respectiva nulidade. A validade dos acordos processuais está condicionada à inexistência de violação às normas estruturantes do direito ao processo justo no que tange à necessidade de simetria das partes. Quando o art. 190, parágrafo único, CPC, fala em “nulidade”, “inserção abusiva em contrato de adesão” ou “manifesta situação de vulnerabilidade”, ele está manifestamente preocupado em tutelar a boa-fé (art. 5º, CPC) e a necessidade de paridade de tratamento no processo civil (art. 7º, CPC).19

Para a realização de negócios processuais, o Código de Processo Civil de 2015 demanda o respeito a algumas limitações. A primeira é a necessidade de versar sobre direito que admita autocomposição, em relação tanto a direito material quanto processual; todavia, faz-se necessário explanar que o direito poderá ser indisponível e admitir autocomposição.20 Porém, não se deve confundir o “núcleo duro” de determinados direitos que não comportam transação com o método de resolução de conflitos que, na maioria das vezes, possibilita tangenciar parte da parcela de um direito não disponível a fim de se chegar a um consenso.21

É necessário, ainda, que as partes sejam plenamente capazes, conforme se extrai do artigo 190 do CPC de 2015. Todavia, o legislador não especificou a qual capacidade se referiu ‒ a processual ou a civil. Em relação à fase endoprocessual, é indubitável que se requeira a capacidade processual e, também, a postulatória. A dúvida é maior em relação aos negócios anteriores ao processo. Nesse sentido, Fredie Didier Jr. preleciona que o legislador se referiu à capacidade processual ‒ e não à material ‒ em relação aos negócios pré-processuais, pois, como

19 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 245.

20 Enunciado nº 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual” (NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil: Lei 13.105/2015: Lei de Mediação: Lei 13.140/2015: referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com os artigos da Constituição Federal e da Legislação. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 126).

21 Pedro Henrique Nogueira exemplifica que “mesmos direitos teoricamente indisponíveis, posto que irrenunciáveis (por exemplo, direito subjetivo a alimentos) comportam transação quanto ao valor, vencimento e forma de satisfação” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 233).

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visam à produção de efeitos a posteriori em eventual processo litigioso, é incabível a flexibilização procedimental por quem não possui capacidade processual plena para tal ato.22

Ademais, Fredie Didier Jr., ainda, qualifica o requisito exigindo uma capacidade processual negocial,23 ou seja, não deve haver vulnerabi-lidade, pois é causa de invalidade do negócio jurídico, pois vulneráveis não estão aptos a celebrar tais formas de flexibilizações procedimentais. Isso ocorre devido ao fato de que não é possível estabelecer-se a negociação por pessoa(s) em condições de vulnerabilidade; todavia, desde que a cláusula seja evidentemente benéfica ou não traga prejuízos à parte vulnerável, o magistrado poderá considerar a validade da negociação.

Outrossim, a leitura da validade dos negócios jurídicos proces-suais deve ser feita em consonância com o princípio da pas de nullité sans grief, ou seja, não há nulidade se não houver prejuízo para quem alega.24 Com isso, não se pode decretar a invalidade de plano de um negócio jurídico processual pelo simples fato de existir um vulnerável.25

Ademais, a interpretação da cláusula contratual deve se dar pela interpretação teleológica da norma, qual seja, a proteção do vulnerável. Não se concebe, portanto, que o legislador quis impossibilitar absolu-tamente os negócios processuais em âmbito em que há incidência da vulnerabilidade, mas que forneceu uma maior propugnação jurídica tendo em vista a condição de desigualdade material entre os contratantes. Verifica-se que tais métodos de flexibilização possibilitam o reforço do conteúdo normativo previsto pelo próprio Código de Processo Civil de 2015 pautado pela celeridade e economia processual.

22 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 389.

23 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 389.

24 Enunciado nº 16 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “O controle dos requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo” (NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil: Lei 13.105/2015: Lei de Mediação: Lei 13.140/2015: referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com os artigos da Constituição Federal e da Legislação. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 127).

25 Na mesma linha, Roque Komatsu, citado por Vinícius Mattos Felício, considera que “requer-se que quem invoca o vício formal alegue e demonstre que tal vício lhe produziu um prejuízo certo e irreparável, que não pode sanar-se com o acolhimento da alegação de nulidade” (KOMATSU, Roque. Da Invalidade do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 241 apud FELÍCIO, Vinícius Mattos. As nulidades no Novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 41).

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Por fim, destaca-se que o negócio jurídico processual não poderá afastar os deveres inerentes à boa-fé processual e à cooperação (Enunciado nº 6 do Fórum Permanente de Processualistas Civis ‒ FPPC) para fins de controle da validade das convenções firmadas pelas partes.26

4.3 Contratos de adesão

No contexto do Estado Liberal, o incremento do processo de industrialização, a influência do liberalismo econômico e a desper-sonalização das relações contratuais motivada pela massificação dos contratos27 influenciaram o surgimento de uma nova técnica de formação do contrato, os chamados contratos de adesão, previstos no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor (1990)28 e, posteriormente, nos artigos 423 e 424 do Código Civil (2002).

Ana Prata preleciona que o contrato de adesão pode ser concei-tuado:

[...] como aquele cujo conteúdo clausular é unilateralmente definido por um dos contraentes que o apresenta à contraparte, não podendo esta discutir qualquer das suas cláusulas: ou aceita em bloco a proposta con-tratual que lhe é feita, ou a rejeita e prescinde da celebração do contrato.29

No âmbito das relações jurídicas de consumo, o contrato de consumo se apresenta como sendo um contrato tipicamente de adesão30

26 Segundo Dierle Nunes, “para o processo democrático, a teoria da confiança apresenta-se como peça normativa do princípio da boa-fé, cuja observância é de um imperativo contrafático normativo, não dependendo, pois, de cláusula ou convenção negocial para se legitimar e obrigar. No âmbito dessa teoria insere-se a possibilidade de criação, modificação e até mesmo de extinção de obrigações diante de negócios jurídicos” (THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 200).

27 César Fiuza destaca que a “massificação dos contratos é, portanto, consequência da concentração industrial e comercial, que reduziu o número de empresas, aumentando-as em tamanho. Apesar disso, a massificação das comunicações e a crescente globalização acirraram a concorrência e o consumo, o que obrigou às empresas a racionalizar para reduzir custos e acelerar os negócios: daí as cláusulas contratuais gerais e os contratos de adesão” (FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 460). Nesse sentido ver: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 25, n. 97, p. 163-180, jan./mar. 1988, p. 178-179.

28 Art. 54, CDC: Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

29 PRATA, Ana. Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais: anotação ao Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro. Coimbra: Almedina, 2010, p. 17.

30 Segundo Claudia Lima Marques, o contrato de adesão é “aquele cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte

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devido ao fato do aderente (consumidor) contratá-lo de acordo com cláusulas previamente definidas unilateralmente pelo proponente (fornecedor) ou regulamentadas e aprovadas pela autoridade compe-tente, aceitando ou não, em bloco, as condições impostas na proposta formalizada.

Entretanto, em inúmeros contratos de consumo, verificam-se cláusulas contratuais que impedem a compreensão adequada do consu-midor em relação aos termos do contrato, por não prestarem informações suficientes e adequadas, ou mesmo por não serem transparentes, trazendo inúmeros prejuízos ao aderente, notadamente, em razão de sua incon-testável condição de vulnerabilidade31 “presumida e alçada a princípio de proteção dos consumidores”32 no mercado de consumo.

Logo, nos contratos de adesão, não há mais lugar para negociações e discussões acerca de cláusulas contratuais, pois a massificação dos contratos, imposta através de cláusulas adesivas e predeterminadas em formulários impressos, modificou toda a realidade das contratações,

(fornecedor), ne varietur, isto é, sem que outro o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito. [...] Desta maneira, limita-se o consumidor a aceitar em bloco (muitas vezes sem sequer ler completamente) as cláusulas que foram unilateral e uniformemente pré-elaboradas pela empresa, assumindo, assim, um papel de simples aderente à vontade manifestada pela empresa no instrumento contratual massificado. O elemento essencial do contrato de adesão, portanto, é a ausência de uma fase pré-negocial decisiva, a falta de um debate prévio das cláusulas contratuais e, assim, a sua predisposição unilateral, restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não podendo modifica-lo de maneira relevante. O consentimento do consumidor manifesta-se por ‘simples’ adesão ao conteúdo preestabelecido pelo fornecedor de bens ou serviços. [...] Realmente, no contrato de adesão não há liberdade contratual de definir conjuntamente os termos do contrato, podendo o consumidor somente aceitá-lo ou recusá-lo. É o que os doutrinadores anglo-americanos denominam contrato em uma take-it-or-leave-it basis” (MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 78-79; 81). Nesse mesmo sentido, ver: FIUZA, César; ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Contratos de adesão. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 68; GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 128; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 4: direito dos contratos. 7. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 103.

31 Claudia Lima Marques leciona que a “vulnerabilidade é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção” (BENJAMIN, Antonio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 108). Nesse sentido ver: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 322; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 12. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 59.

32 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 321.

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permitindo aos conglomerados econômicos reduzir custos e otimizar o processo produtivo para permitir contratações mais céleres.33

Nessa esteira, os consumidores aderem a contratos pré-redigidos, padronizados, sem que possam ter conhecimento prévio, claro e preciso do conteúdo contratual, pois não têm a oportunidade de ler e ponderar, com precaução, sobre as cláusulas que lhes são impostas na contratação.

Na maioria dos casos, o consumidor somente recebe o contrato após concluí-lo, e soma-se a isso a falta de conhecimento para entender os termos técnicos do contrato, acrescidos a conteúdos extensos, impressos em letras de tamanho reduzido, que visam desestimular a leitura e análise do conteúdo contratual pelo aderente.34 Ademais, há a imposição de várias cláusulas limitativas da contratação, as quais não são explícitas e, ao contrário, por vezes se encontram inseridas sem qualquer destaque, o que impede a verificação das mesmas no instrumento contratual.

Desse modo, a interpretação dessas situações adquire grande importância na contemporaneidade com a inserção, nas relações de consumo, do princípio da boa-fé objetiva e, em decorrência deste, do princípio da informação, transparência e da confiança sobre o conteúdo do contrato, bem como a observância à função social dos contratos e à justiça contratual. É o sentido que direcionou os artigos 46 e 47 do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 423 do Código Civil, que preveem a interpretação dos contratos de forma mais favorável ao aderente/consumidor no intuito de resguardá-lo em caso de eventual arbitrariedade praticada pelo proponente.35

Nessa linha de intelecção, Claudia Lima Marques ensina que o “fenômeno dos contratos de adesão é cada vez mais comum na experiência contemporânea, produzindo-se em múltiplos domínios, como, por exemplo, o dos seguros, o dos planos de saúde, o das operações bancárias, o da venda e aluguel de bens”.36

O contrato de seguro apresenta-se como um dos exemplos mais comuns de contratos de adesão em face do dinamismo da atividade

33 FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 460; RIZZARDO, Arnaldo. Código de Defesa do Consumidor nos Contratos de Seguro-Saúde e Previdência Privada. Ajuris, v. 22, n. 64, p. 78-102, jul. 1995, p. 85.

34 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 162.

35 Nesse sentido ver: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 12. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 61-67; 80-85.

36 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 80.

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securitária, da massificação dos contratos e da necessidade de rapidez na conclusão das relações contratuais securitárias. Todavia, inúmeras críticas são delineadas em relação à formação do referido contrato de consumo, principalmente quanto à falta de liberdade contratual no tocante à estipulação do conteúdo contratual, que impõe aos segurados condições, por vezes, excessivamente onerosas. Destaca-se que, geralmente, os segurados aderem aos contratos sem que possam ter informações necessárias e suficientes acerca do conteúdo contratual de seus direitos e obrigações, conjugado ao fato de o contrato trazer em seu bojo exacerbado tecnicismo, dificultando, assim, a compreensão dos termos do instrumento contratual.37

Essa é situação que permeia a maioria dos contratos de consumo no Brasil, onde se verifica haver patente desequilíbrio na relação contratual e, por conseguinte, posição de inferioridade do consumidor (vulnerabilidade) em face do fornecedor de produtos/serviços, especial-mente em relação à fixação do conteúdo do contrato.

Urge destacar que o consumidor, via de regra, é leigo, sendo que não possui conhecimentos a fim de compreender o conteúdo contratual (vulnerabilidade técnica, jurídica ou científica), possuindo pouco ou quase nenhum acesso a informações claras, precisas e transparentes sobre o contrato (vulnerabilidade informativa) e, ainda, avença com fornecedores que representam grandes conglomerados econômicos (vulnerabilidade econômica), o que lhe impõe posição de evidente inferioridade perante aos mesmos na contratação dos mais variados contratos de consumo.38

E tal situação é de ocorrência cotidiana nas contratações que envolvem contratos de consumo, pois os consumidores assinam as propostas de contratação sem que possuam prévio e completo conhe-cimento das condições gerais do contrato.

37 Para mais informações acerca do contrato de seguro, recomenda-se a leitura de: ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999; TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro: de acordo com o novo código civil brasileiro. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003; MARENSI, Voltaire Giavarina. O seguro no direito brasileiro. 8. ed. São Paulo: IOB Thomson, 2007; SILVA, Michael César. Contrato de seguro de automóveis: releitura à luz da nova principiologia do Direito Contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

38 Sobre as várias espécies de vulnerabilidade, remete-se à leitura de: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 322-342; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 108-119; GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código de Defesa do Consumidor Comentado: artigo por artigo. 13. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 31-33.

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Clarividente que a obrigação do fornecedor é informar ao consumidor sobre todo o conteúdo contratual no ato da contratação e, sobretudo, entregar-lhe o contrato e sanar toda e qualquer dúvida, inclusive técnica, acerca das condições gerais da contratação.

Contudo, não é o que ocorre na prática dessas contratações, que impõem aos consumidores condições precárias para firmarem os contratos e, por conseguinte, demandando um maior controle estatal acerca da imposição de cláusulas abusivas e do próprio processo de formação dos contratos de adesão a partir da interpretação do contrato de forma mais favorável ao consumidor (art. 47, CDC), bem como pela consagração da situação de vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CDC), no sentido de se buscar garantir as premissas basilares do Código de Defesa do Consumidor, quais sejam a proteção do consumidor e o (re)equilíbrio da relação jurídica de consumo.

4.4 A principiologia contratual e a negociações processuais em sede de relações de consumo: reflexos nos contratos coletivos e atuação do Ministério Público

A negociação processual, mesmo que em diminuta proporção, comumente é vista em contratos, mormente empresariais. Ao tempo do CPC de 1973, a rigidez do processo apenas permitiria algumas dispo-sições atinentes a procedimentos, pois não se concebia de negociações atípicas. Nesta seara, a cláusula processual mais comum era a eleição de foro, relacionada à competência relativa.

Em sede de contratos de consumo, em sua maioria na modalidade de adesão, há entendimento restritivo quanto à referida cláusula na medida em que o consumidor possui a faculdade de ajuizamento de ações em seu próprio domicílio, conforme dispõe o artigo 100, I, CDC, sendo, portanto, muitas negociações consideradas abusivas por repre-sentar negativa de acesso à justiça.

A vulnerabilidade presumida do consumidor impede que seja ele posto em condição de desvantagem manifesta. Portanto, os contratos nesse ramo são realizados sobre a premissa do desequilíbrio entre contratantes, e a nulidade das disposições processuais recebe tratamento mais rígido.

Bruno Miragem, acerca da cláusula de eleição de foro, preleciona que:

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Não se cogita, nas relações de consumo ‒ ao contrário do que se possa eventualmente discutir em outras relações jurídicas, sobre as condições pelas quais se caracteriza a abusividade ‒ de convalidação da cláusula por inação ou preservação de sua eficácia em vista da preclusão pro-cessual. Tampouco, que se demonstre hipossuficiência da parte a quem prejudique o foro escolhido, a justificar inclusive a oportunidade de alegar o caráter abusivo da cláusula em contestação.39

O CPC de 2015 instituiu negociações atípicas nos contratos de adesão, o que, em primeira análise, induz a cogitar da paridade entre os negociantes. O preceito normativo, contudo, carece de explanações sobre os requisitos da negociação. Entretanto, mesmo diante da omissão legislativa, o direito processual não é fim em si mesmo, devendo respeitar os limites do direito material que veicula e, portanto, seus princípios. Nessa linha de intelecção, com fulcro nas disposições normativas do Código de Defesa do Consumidor, a “vontade das partes manifestada livremente no contrato não é mais fator decisivo para o direito, pois as normas do Código instituem valores superiores, como o equilíbrio e a boa-fé nas relações de consumo”.40

Esvaziar o conteúdo de um novo instituto pela sua obscuridade e complexidade é negar ao direito o próprio progresso. Uma vez inovada a legislação, prevendo um novo conteúdo ao contrato de adesão, é certo que sua viabilidade existirá; porém, seus contornos irão além dos existentes em um mero contrato.

Nesse contexto, a autonomia privada dos contratantes ‒ exterio-rizada por meio de sua liberdade contratual ‒ sofre no âmbito das relações jurídicas de consumo profundas conformações, notadamente em razão da incidência da principiologia contratual contemporânea aos negócios jurídicos firmados entre consumidor e fornecedor.

Em síntese, a consequência lógica do exposto perpassa pela compreensão de que a autonomia privada, enquanto encontro de vontades desembaraçadas e livres que fazem nascer o consentimento, pedra elementar do negócio jurídico,41 se une aos requisitos de validade

39 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito Do Consumidor. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 710.

40 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 950.

41 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: volume 4: tomo I. 12. ed. ver., ampl. e atual. de acordo com o novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016. Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald explicitam que a autonomia privada pode ser compreendida como “o poder concedido ao sujeito para criar a norma individual nos limites deferidos pelo ordenamento jurídico.” (FARIAS, Cristiano Chaves

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do negócio jurídico (art. 104, CC), formando um negócio perfeito, desde que respeitados os preceitos norteadores da legislação consumerista, dentre os quais se destacam a boa-fé objetiva, a informação, a transpa-rência e a vulnerabilidade do consumidor.

Destarte, na hipótese de o conteúdo contratual da avença firmada não ser efetivamente compreendido pelos consumidores, que celebram contratos de consumo por meio de adesão em razão da falta de conhe-cimento prévio de seu conteúdo ou por possuir termos redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance, os referidos instrumentos contratuais não obrigarão os consumidores, com esteio na previsão legal do artigo 46 do CDC.

Nesse mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor impõe, ainda, em seu artigo 54, que as cláusulas de um contrato de adesão devem ser redigidas em termos claros, ostensivos e legíveis, bem como as cláusulas restritivas de direito devem vir em destaque, viabilizando sua imediata e fácil compreensão. Assevera-se que a jurisprudência hodierna é sensível a abusos contratuais e não vem aplicando disposições que dificultem o conhecimento e entendimento do consumidor.42

O princípio da boa-fé objetiva nas negociações havidas em contratos de consumo não pode ser atingido pela atuação solitária das partes interessadas (fornecedor e consumidor). A vulnerabilidade do consumidor, que desconhece o direito, impediria a validade do negócio firmado. A boa-fé objetiva gera a lealdade que inspira confiança, que deve ser preservada a fim de evitar comportamentos que violem direitos,43 principalmente no âmbito das garantias processuais trazidas à lume com o CPC de 2015.

Em 2016, a boa-fé objetiva ingressa explicitamente no Novo Código de Processo Civil. De acordo com o art. 5º da Lei n. 13.105/15, “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. Em complemento, preceitua o art. 6º: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

O CPC/15 introduz um modelo cooperativo, pautado no princípio da colaboração. Em princípio, muitos poderiam supor que se trataria de

de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 4: direito dos contratos. 7. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p.150).

42 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código de Defesa do Consumidor Comentado: artigo por artigo. 13. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017.

43 CRAMER, Ronaldo. O Princípio da Boa-fé Objetiva no Novo CPC. In: DIDIER JR., Freddie et al. (Coord). Normas Fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2016.

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um “simulacro” da boa-fé objetiva do direito privado. Ledo engano: a boa-fé do Código Civil pressupõe os interesses convergentes das partes no sentido do cumprimento, pela exata forma com que se estabeleceu o “projeto obrigacional.” Enquanto o credor almeja a satisfação da prestação, o devedor aspira recobrar a liberdade que cedeu ao se vincular. No processo civil, todavia, os interesses das partes são divergentes, eis que já se manifestou a crise do inadimplemento. Assim, não há uma finalidade comum que irmane os litigantes, pois a sentença e a execução apenas prestigiarão uma das partes.

Destarte, a boa-fé processual terá magistrado como destinatário. Ela complementará a boa-fé civil, ao convidar ao diálogo aquele que até então se mantinha em clausura. Sendo o processo um instrumento idôneo para a concreção da tutela de direito material, o princípio colabo-rativo demandará um compartilhamento de responsabilidades entre as partes e o juiz, a fim de que se alcance uma decisão justa e efetiva. A par da natural assimetria na fase decisória – naturalmente o ato de sentenciar dispensa a dialética – , todo o comando do processo se dará em bases cooperativas, com destaque para os deveres judiciais anexos perante as partes, de auxílio, diálogo, esclarecimento e prevenção, todos destinados à preservação do equilíbrio de forças no desenrolar da lide. Do ponto de vista ético, o processo pautado pela colaboração é um processo orientado pela busca tanto quanto possível da verdade e que, para além de emprestar relevo à boa-fé subjetiva, também exige de todos os seus participantes a observância da boa-fé objetiva (art. 5º CPC/15).

A exaltação da boa-fé pelo CPC/15 demonstra que o processo não é um conjunto abstrato de equações concebidas em um laboratório, mas uma técnica a serviço de uma ética de direito material.44

Nesse mesmo giro, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Francisco Mitidiero prelecionam que se comporta com boa-fé “aquele que não abusa de suas posições jurídicas” e, portanto, atua para garantir a proteção da boa-fé objetiva no processo. Lado outro, a inobservância da boa-fé processual ensejaria, conforme o caso,

44 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 4: direito dos contratos. 7. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 220-221. Nesse sentido, ver: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 99-103.

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“à ineficácia do ato processual contrário à boa-fé, à responsabilização por dano processual e inclusive à sanção pecuniária”.45

Logo, a função de controle da boa-fé objetiva (art. 187, CC) assume um papel de destaque em relação aos negócios jurídicos processuais celebrados pelas partes, atuando como um instrumento capaz de coibir o exercício abusivo de posições jurídicas que venham a frustrar a legítima expectativa (tutela da confiança) despertada no âmbito das convenções processuais firmadas.

Por conseguinte, cogita-se das negociações processuais válidas, desde que a parte vulnerável esteja assistida por advogado ou mesmo defensor público, que funcionarão como um plus aos requisitos do artigo 104 do Código Civil.

A conclusão é singela, porém, demasiadamente lógica. Assevera Gladston Mamede que, “em verdade, é o advogado um instrumen-talizador privilegiado do Estado Democrático de Direito, a quem se confia a defesa da ordem jurídica, da soberania, nacional, a cidadania, a dignidade da pessoa humana [...]”.46 Como defensor da ordem jurídica e conhecedor do direito processual, cabe ao advogado suprir a ausência de conhecimento do consumidor e conferir validade à negociação processual atípica, o que permite ao último pactuar amplamente acerca do direito processual, moldando o processo ao seu próprio interesse, suprindo a vulnerabilidade presumida do consumidor.47 48 Tal situação facilita o controle da validade das negociações processuais durante o curso de uma ação judicial, visto que a mesma estaria mais propensa a ser considerada válida, justa e efetiva, em consonância com os preceitos norteadores da Constituição da República de 1988 e do Código de Processo Civil de 2015, notadamente relacionados ao modelo constitucional de processo,

45 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel Francisco. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 99.

46 MAMEDE, Gladston. A advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 7.

47 O Enunciado nº 18 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) dispõe que: “Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem a assistência técnico-jurídica” (NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil: Lei 13.105/2015: Lei de Mediação: Lei 13.140/2015: referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com os artigos da Constituição Federal e da Legislação. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 127).

48 Sobre a questão relativa ao acompanhamento técnico-jurídico, remete-se à leitura de: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 126; FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios processuais no modelo constitucional de processo. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 91-93.

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com vistas à garantia dos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal na esfera processual.

A atribuição de fiscalização e orientação por parte do advogado já é prevista no próprio Estatuto da OAB, o que não deturpa o propósito do advogado elencado na própria lei. Da mesma forma, a própria lei da Defensoria Pública:

Lei nº 8.906/94:Art. 1º São atividades privativas de advocacia: II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicasLei Complementar nº 80/94:Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.

As contratações coletivas, a exemplo dos contratos de seguro em grupo, recebem tratamento análogo. Nesse sentido, Felipe Peixoto Braga Netto dispõe com propriedade que “a presunção de vulnerabi-lidade do consumidor é absoluta. Todo consumidor é vulnerável, por conceito legal. A vulnerabilidade não depende de condição econômica, ou de quaisquer contextos outros”.49 Por consequência, infere-se que a existência de mais de um consumidor em um dos polos da contratação não supre a vulnerabilidade existente, razão pela qual a tratativa dos negócios processuais atípicos em contratação coletiva não se difere da análise dos contratos individuais.

A assistência jurídica nos contratos coletivos, para suprir a vulne-rabilidade, todavia, recebe contornos próprios. Poder-se-ia conceber a possibilidade de intervenção do Ministério Público como custus iuris, dispensando a intervenção de advogado ou Defensor Público, pois se trata de direitos individuais homogêneos.

Preleciona Uadi Lammêgo Bulos:

[...] na sistemática da Constituição de 1988, o Ministério Público galgou ao posto de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do

49 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 12. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 59.

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Estado, encarregado de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.50

Afigura-se possível inferir que o conceito de “interesse social”, trazido por Uadi Lammêgo Bulos, abarca contratos coletivos. Logo, seria possível o controle das negociações processuais atípicas pelo Ministério Público. A intervenção do Parquet em casos de interesse social ou público consta do próprio Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 178, I, não requerendo qualquer ampliação de competência para abarcar a fiscalização das negociações processuais, apenas se exige interpretação ampliativa dos significados das expressões interesse social e público.

A própria Constituição Federal permite interpretação ampliativa das funções do Parquet, pois se vislumbra de seu teor o seguinte dispo-sitivo:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que com-patíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

O Ministério Público, devido às funções a ele atribuídas pelo constituinte originário, assume responsabilidade de zelar por todo o ordenamento jurídico. Com tal mister, e competência não taxativa, é seu dever zelar pela idoneidade das negociações processuais atípicas em sede de contratos coletivos de consumo como forma de preencher os requisitos de validade contratual.

O instituto da negociação processual é compatível com os contratos de adesão, desde que respeitados os princípios da boa-fé objetiva, informação, transparência e vulnerabilidade, através da inter-venção de terceiros atores no negócio, sejam advogados, promotores ou defensores públicos, o que viabiliza uma contratação paritária e confere validade a ela. Essa intervenção funcionará como requisito de validade específico do contrato que contiver cláusulas processuais atípicas, seja ele coletivo ou individual, permitindo a ampla pactuação sobre regras processuais.

4.5 ConclusãoAs negociações processuais, principalmente as atípicas, são

instrumentos importantes para a efetivação da tutela jurisdicional de

50 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 1.402.

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maneira mais célere, econômica e democrática, ao possibilitar que as partes optem por flexibilizar o procedimento a fim de que as especifi-cidades das mesmas sejam atendidas, trazendo decisões mais justas e eficazes, fortalecendo-se, assim, o princípio da adequação processual.

Ademais, a inclusão dos negócios processuais trouxe uma nova roupagem ao Processo Civil brasileiro ao superar, em grande parte, o publicismo processual marcado por atos procedimentais contínuos, inflexíveis e cogentes. Portanto, a reforma processual trouxe um novo paradigma, qual seja a possibilidade de ser mitigar normas antes ditas “absolutas”.

Houve ainda um fortalecimento do princípio processual funda-mental da cooperação, em que as partes, conjuntamente com o juiz, devem atuar de forma que os objetivos e expectativas privadas e públicas sejam alcançados, ou seja, que o desenvolvimento procedimental se dê pela construção de uma decisão judicial efetiva com a participação plena dos atores do trâmite processual.

Os protagonistas processuais devem buscar a efetivação dessa importante novidade trazida pelo CPC de 2015 para que as dispo-sições legais não se tornem inutilizadas ou subutilizadas, pois se trata de importante avanço legislativo em consonância com os objetivos fundamentais constitucionais da autonomia privada, da liberdade e da duração razoável do processo.

Nesse diapasão, entende-se que tais inovações possibilitarão a redução da quantidade excessiva de processos judiciais no Brasil, tendo em vista que se vislumbra um menor grau de litigiosidade acerca de aspectos materiais e, também, processuais pela utilização de técnicas de limitação probatória, acordo de instância única, dispensa de assistente técnico, prévia necessidade de uma audiência de conciliação ou mediação, limitação da matéria fática a ser conhecida pelo juiz, entre outros.

Todavia, em que pese à importância das negociações processuais para a construção de decisões mais justas, céleres e econômicas, é de grande valia ressaltar que essas flexibilizações devem ser efetivadas com cautela em âmbito consumerista, sobretudo quando realizados em sede de contratos de adesão. Isso porque os princípios basilares do liberalismo foram sendo substituídos por uma concepção estatal mais protetiva em relação as camadas sociais mais vulneráveis. Nesta senda, o Estado, na imagem do magistrado, deve exercer papel para a efetivação de uma igualdade material entre os contraentes, considerando inválidas as cláusulas quando submetidas em uma relação permeada pela desigualdade, tal como as verificadas nas relações jurídicas de consumo.

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Aferiu-se como viável a realização de negociações processuais atípicas em sede de contrato de adesão, independentemente da vulnera-bilidade presumida do consumidor. A existência de um novo instituto, tal como o art. 190 do CPC de 2015, não deve ser encarada como letra morta na medida em que as inovações processuais são a essência da modernização do próprio procedimento, e caberá ao operador do direito adequar as novidades processuais aos outros ramos do direito, mormente no caso em estudo, o direito do consumidor.

Trabalharam-se as negociações processuais em contrato de adesão conferindo a elas outro requisito de validade. Nessa linha de raciocínio, sob a perspectiva do princípio da boa-fé objetiva e da vulnerabilidade presumida, constatou-se que negócios processuais contratuais não devem receber o mesmo tratamento de quaisquer contratos na medida em que as disposições contratuais processuais não são conhecidas pelo consumidor. O desconhecimento do processo impede a paridade da negociação, que deixa de ser pautada pelo princípio da informação e da transparência, gerando, por consequência, a assimetria de informações. É, portanto, imprescindível a atuação de terceiros nas contratações, sejam elas coletivas ou individuais, a fim de suprir as limitações impostas pela vulnerabilidade presumida, o que só pode ser feito pela via da fiscalização de advogados, promotores ou defensores públicos, conhecedores do direito e que auxiliarão na formação do contrato válido. Essa intervenção deve ser adicionada aos requisitos do art. 104 do Código Civil.

Pelo método analítico-dedutivo, percebeu-se que, mediante a atuação de terceiro (advogado, promotor ou defensor público), as negociações processuais atípicas podem tomar maior amplitude, abarcando quaisquer disposições processuais, ressalvadas as que forem consideradas de ordem pública. Nos eventuais litígios futuros, decor-rentes do contrato, deverá o juiz interferir minimamente no conteúdo da negociação, visto que houve a participação de terceiros. Trata-se de uma conclusão que facilitará o trabalho do magistrado no controle das cláusulas processuais, bem como impedirá que as partes do processo se sujeitem ao arbítrio judicial.

Pelo princípio da participação, também alicerce deste artigo, conclui-se que as negociações processuais atípicas contribuem para a realização de um processo democrático, constituindo norma essencial do Código de Processo Civil de 2015, permitindo às partes moldar o processo à sua maneira e necessidade. Os contratos de adesão, marcados pela vulnerabilidade presumida do consumidor e pelo caráter unilateral da imposição contratual, não são incompatíveis com as negociações

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processuais, desde que observadas as cautelas necessárias devido ao desconhecimento do consumidor acerca das normas processuais.

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CAPÍTULO 5

REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO

DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS MECANISMOS DE AMPARO

Elcio Nacur RezendeGabriella de Castro Vieira

5.1 Introdução

Sabidamente, a entrada em vigor de uma nova legislação processual civil implica em alterações significativas em todo o ordena-mento jurídico e, em especial, em algumas áreas do direito, como a consumerista. Isto porque uma das atribuições do processo é viabilizar a efetivação do direito material, por isso a grande proximidade existente entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e as normas processuais.

Cita-se como exemplo da importância de tal relação o fato de que a concretização de alguns direitos subjetivos materiais, tutelados pela Lei nº 8.078/1990 (CDC), em decorrência da vulnerabilidade jurídica reconhecida pelo legislador infraconstitucional, somente se instru-mentaliza diante da sistemática processual, como: a determinação da competência pelo foro do domicílio do consumidor e decisões de ofício do magistrado na condução das demandas processuais.

Em face da conexão entre os dois ramos do universo jurídico, as questões pertinentes à legislação processual, mormente quando digam respeito à modificação da respectiva regulamentação, impactam sensivelmente nas tratativas que envolvam o direito do consumidor, tanto na visão acadêmica quanto na atuação jurisdicional, assim como na prática advocatícia.

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Nesse sentido, o presente capítulo tratará das inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 no que concerne à área consu-merista. Cumpre destacar, desde o limiar deste estudo, que não há a pretensão de se aprofundar no conceito, na historicidade ou em outros aspectos doutrinários da temática. Objetiva-se analisar a mudança da legislação processual civil no tocante à sua serventia para o direito do consumidor, sob o viés da tutela protetiva, conforme preconizado pela Lei nº 8.078/1990.

5.2 A jurisdição internacional e o foro do domicílio do consumidor

O comportamento do consumidor brasileiro após a redemo-cratização, iniciada no final da década de 1980, sofreu expressiva transformação, o que decorreu da conjugação de vários fatores, como: estabilidade monetária, controle inflacionário, técnicas aprimoradas e sedutoras do mercado publicitário, concessão facilitada de diversos produtos e serviços creditícios, surgimento e vertiginoso desenvolvi-mento do comércio eletrônico.

O novo modo de consumir do indivíduo tornou-se desafiante para o ordenamento jurídico e, consequentemente, para o exercício das atividades do poder judiciário e da advocacia. Nesse tocante, uma das questões que se destaca na contemporaneidade é a relação consu-merista constituída para além das fronteiras nacionais, seja a efetivada de forma presencial em outros países, em face do turismo de negócios ou de lazer, seja aquela realizada pelo acesso da internet, vez que não existe distância geográfica para essa ferramenta tecnológica.

Tal expansão do consumo provocou um desafio a respeito da definição de a qual foro pertence a competência do julgamento das demandas que envolvam as transações de direito do consumidor quando forem concebidas no cenário internacional. Em grande parte das relações consumeristas firmadas, o contrato é elaborado unilateralmente pelo fornecedor, caracterizado como de adesão, contemplando a cláusula de eleição de foro, estipulada em consonância com os interesses de quem produziu o instrumento jurídico.

David Carvalho discorre:

A cláusula de eleição de foro, também conhecida por pactum de foro prorrogando, é firmada entre as partes envolvidas em uma relação ju-rídica negocial e tem por objetivo a escolha de uma jurisdição, seja ela

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335ELCIO NACUR REZENDE, GABRIELLA DE CASTRO VIEIRA REFLEXOS DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: A AMPLIAÇÃO DOS...

nacional ou estrangeira, para resolver controvérsias decorrentes de litígios ou que possam surgir de uma relação jurídica, em especial a contratual.[...] A necessidade da inclusão de uma cláusula de eleição de foro de-corre da possibilidade de diversos Estados ampliarem a extensão de sua jurisdição e deterem, simultaneamente, a competência para processar e julgar uma relação jurídica com elementos de estraneidade.1

A escolha do foro para dirimir os conflitos surgidos nos negócios instituídos é uma prática necessária e usual no ambiente contratual. Contudo, quando se refere ao universo do direito do consumidor na ordem jurídica pátria, existem regras específicas que devem ser observadas para que não ocorra afrontamento à regulação especial, representada pela Lei nº 8.078/1990.

Relativamente a esse aspecto, o Código de Processo Civil de 20152 inovou ao estipular: “Art. 22. Compete, ainda, à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações: [...] II – decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil” (BRASIL, 2015). O dispositivo em comento encontra-se em consonância com os preceitos de amparo encampados pelo Código de Defesa do Consumidor em face da condição jurídica de vulnerabilidade, conforme se verifica pelo art. 101 do referido diploma legal: “Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas: I – a ação pode ser proposta no domicílio do autor” (BRASIL, 1990).3

Percebe-se pela análise dos preceitos acima, extraídos do CPC e do CDC, respectivamente, que o foro competente para julgar as demandas oriundas das relações consumeristas será determinado em face do domicílio do consumidor brasileiro, mesmo quando a transação negocial tenha sido concebida em solo estrangeiro ou, ainda, em ambiente virtual que possua seu domínio registrado em outro país.

1 CARVALHO, David França Ribeiro de. A cláusula de eleição de foro estrangeiro nos contratos internacionais: avanço no CPC de 2015. In: PERRUCI, Felipe Falcone; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no direito empresarial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 605-605.

2 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

3 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

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336 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

5.2.1 O foro do domicílio/residência do consumidor: um mecanismo de tutela da parte mais vulnerável

A designação pela jurisdição nacional estabelecida pelas norma-tivas supramencionadas, NCPC e CDC, quando presente o requisito da pertinência do domicílio ou residência, alinha-se com o que prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no Título II “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, ao estipular no inciso XXXII do artigo 5º que: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (BRASIL, 1988).4

A intervenção do Estado nas transações comerciais promovidas entre consumidor e fornecedor decorre da sua função social, mormente em face da presunção de que o primeiro é pessoa frágil no negócio constituído, conforme preconizado pelo CDC. Assim, o princípio da autonomia da vontade, inerente ao direito contratual, sofre mitigação pela referida regulamentação especial, em consonância com o princípio da vulnerabilidade, considerado um dos basilares da Lei nº 8.078/1990. Para Claudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem:

A vulnerabilidade é mais um estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificados no mercado (assim Ripert, Le regele morale, p. 153), é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva (Fiechter-Boulvard, Rapport, p. 324), que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequi-librando a relação.5

Maria Fernanda Soares Macedo aduz: “Essa vulnerabilidade marcou a posição dos consumidores frente ao novo quadro social. Significa dizer que o consumidor possuiu e ainda possui fragilidade frente à estrutura das empresas”. 6

Acerca da adoção de medidas protetivas, cumpre ressaltar que uma das formas do poder público assegurar a tutela, estabelecida pelo legislador constituinte, é viabilizar ao consumidor a facilitação do acesso à justiça, o que fora acautelado pela definição da competência do foro em face da atração do seu domicílio ou residência.

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015.

5 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 120.

6 MACEDO, Maria Fernanda Soares. A importância da escolha do consumidor na proteção ambiental. Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 7. n. 13-14, jan./dez. 2010, p. 132.

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Nesse sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça,7 vez que reconhece a importância do foro em favor do domicílio do consumidor como meio de proporcionar a este o exercício do seu direito, em observância aos preceitos constitucional e infraconstitucional, como demonstra a decisão proferida no agravo de instrumento, emitida no Conflito de Competência nº 127626-DF, abaixo colacionado:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DIREITO DO CON- SUMIDOR. RELAÇÃO DE CONSUMO. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO AUTOMOTIVO. COMPETÊNCIA ABSOLUTA. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. – Em se tratando de relação de consumo, a competência é absoluta, razão pela qual pode ser conhecida até mesmo de ofício e deve ser fixada no domicílio do consumidor. – Agravo não provido.VOTOA EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):A decisão agravada foi assim fundamentada:A 2ª Seção do STJ, ao analisar caso semelhante ao dos autos, manifestou o entendimento de que a possibilidade de escolha do foro, do domicí-lio do autor ou do réu, é uma faculdade pertencente somente àquela pessoa física ou jurídica destinatária final do bem ou serviço na relação de consumo. Nesse contexto, é inadmissível que o advogado ajuize a ação em foro diverso, que não corresponde ao do autor, nem ao do réu. [...]

A jurisprudência do STJ já está pacificada no sentido de reconhecer que, em se tratando de relação de consumo, a competência é absoluta, razão pela qual pode ser conhecida até mesmo de ofício e deve ser fixada no domicílio do consumidor.

Tal posicionamento também é adotado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais,8 conforme pode ser vislumbrado pelo julgado recente referente à Apelação Cível nº 1.0024.14.244549-3/001, que decidiu pela competência territorial absoluta, tendo como um dos fundamentos o princípio da facilitação da defesa do consumidor:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO COM PEDIDO DE DANOS MORAIS. RELAÇÃO DE CONSUMO. COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA. PRINCÍPIO

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ>. Acesso em: 20 abr. 2017.

8 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisa>. Acesso em: 20 abr. 2017.

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DA FACILITAÇÃO DA DEFESA DO CONSUMIDOR I. O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que o critério determinativo da com-petência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem públi-ca, caracterizando-se como regra de competência absoluta, afastando, dessa forma, a aplicação da súmula 33 do STJ. II. O CDC não confere o direito ao consumidor de escolher aleatoriamente o local onde irá propor sua ação, independentemente de conexão com seu domicílio ou de cláusula de eleição de foro. III. No caso das instituições financeiras, permitir a fixação ou atração da competência em razão da existência de filial da ré no local seria o mesmo que permitir a escolha aleatória do foro a demandar pelo consumidor, na medida em que essas instituições possuem unidades em inúmeras comarcas, o que violaria o princípio do juiz natural. IV. Inadmissível a eleição de foro para ajuizamento da ação com base no domicilio dos procuradores que atuam no interesse da parte por retratar violação ao principio do juiz natural, consagrado no artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal.

Pelas decisões apresentadas acima, emanadas pelo STJ e TJMG, percebe-se que o novo CPC encampou o preceito da igualdade material no tocante às relações consumeristas em face da necessidade de guarida da parte mais fraca na relação negocial, conforme determina o diploma constitucional pátrio, vez que essa normativa estabelece que o poder público deve proteger o consumidor. Nas palavras de Nelson Nery Júnior:9

Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades [...] o que o princípio constitucional quer significar é a proteção da igualdade substancial, e não a isonomia meramente formal.

A facilitação do ingresso no poder judiciário como uma das formas de resguardar o exercício do direito do consumidor, propor-cionada pelo novo Código de Processo Civil, segundo dispõe o inciso II, do artigo 22, encontra-se em harmonia com o Regulamento da União Europeia nº 1.215, de 12 de dezembro de 2012,10 do Parlamento Europeu e do Conselho. O documento refere-se à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Tal regramento intenciona facilitar mais a livre circulação de decisões e continuar a reforçar o acesso à justiça.

9 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 40-41.

10 EUR – Lex. UNIÃO EUROPÉIA. Regulamento Bruxelas I (Reformulado). Disponível em: <https://e-justice.europa.eu/content_brussels_i_regulation_recast-350-pt.do>. Acesso em: 20 maio 2017.

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Quanto às questões que envolvam a temática consumerista, estabelece o artigo 18 do referido regulamento europeu: “No respei-tante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral”.11

Viabilizar a entrada nos órgãos do poder judiciário, com vistas a permitir que o indivíduo efetive as suas garantias legais, é uma tendência contemporânea nos países que adotam o regime democrático de governo, conforme se observa nas mais recentes legislações brasileiras, surgidas após a promulgação da atual Constituição da República Federativa.

É válido destacar ainda que, além de favorecer o efetivo acesso à justiça, a norma processual que regulamentou a jurisdição nacional, desde que envolva consumidor residente ou domiciliado no país, também possui uma importante funcionalidade para o amparo daquele que é mais vulnerável: ser instrumento de coibição da prática abusiva de eleição de foro, realizada unilateralmente pelo fornecedor, por força de disposição contemplada em contrato de adesão internacional.

5.2.2 A jurisdição do domicílio/residência do consumidor: um instrumento processual de combate à abusividade

Com o crescimento vertiginoso do mercado consumidor, o contrato paritário restou impraticável em várias atividades. Consequentemente, a forma contratual de adesão tornou-se a modalidade mais adotada em tal seara, pois propicia a contratação em massa em decorrência da agilidade e facilidade, uma vez que o instrumento jurídico já se encontra previamente elaborado por uma das partes, qual seja, o fornecedor.

O legislador infraconstitucional cuidou de prescrever o conceito: “Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.12

11 EUR – Lex. UNIÃO EUROPÉIA. Regulamento Bruxelas I (Reformulado). Disponível em: <https://e-justice.europa.eu/content_brussels_i_regulation_recast-350-pt.do>. Acesso em: 20 maio 2017.

12 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

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Paulo Khouri13 entende que a massificação das relações consume-ristas gera uma singularidade para as contratações, vez que tem uma característica própria: “[...] a relação contratual estabelecida através de um termo-padrão tem uma adesão não de 100, 200 ou 1.000 consumi-dores de uma única vez, mas de dezenas de milhares de aderentes que periodicamente aderem à contratação contínua”.

Ocorre que, além de ser caracterizado pela agilidade e praticidade, o contrato de adesão pode contemplar cláusulas abusivas em desfavor do consumidor. Isto porque a elaboração das disposições contratuais é realizada pela parte mais forte do pacto comercial ‒ o fornecedor ‒, o que inviabiliza a discussão das condições estabelecidas, cabendo ao indivíduo contratante, mais vulnerável, apenas a decisão de aderir ou não ao negócio.

Dentre as várias abusividades que podem ser impostas no instru-mento jurídico de massa, está a condição que determina o foro, eleito em conformidade com os interesses do fornecedor, que será a jurisdição apta para julgar os eventuais conflitos surgidos entre as partes. Sob a ótica das relações constituídas em solo estrangeiro ou pela internet, a estipulação unilateral do juízo competente configura prática abusiva, que compromete a eficácia dos direitos do consumidor.

Caso tal cláusula prevaleça, apontam-se alguns obstáculos que podem ser enfrentados pela pessoa consumidora: a dificuldade para ter conhecimento do direito alienígena, o custo com o deslocamento para o foro eleito, bem como com as traduções dos documentos necessários ao processo, entre outros, o que resulta na violação do direito ao pleno e livre acesso à justiça.

Para represar a prática abusiva, como o comprometimento do exercício de direito fundamental de ingresso no poder judiciário, quando identificar-se necessário, a Lei nº 8.078/1990 criou mecanismos de proteção, com vistas a vedar e coibir práticas que coloquem em desvan-tagem exagerada o consumidor. A reprimenda dos preceitos arbitrários e prejudiciais fora adotada pelo legislador infraconstitucional com o objetivo de gerar relações consumeristas harmônicas e equilibradas, alicerçadas na transparência, respeito à dignidade, saúde e segurança das partes, princípios da Política Nacional das Relações de Consumo.14

13 KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 104.

14 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

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Uma das disposições protetivas estabelecidas pelo CDC fora prevista na Seção II, que regulamenta as cláusulas abusivas. O artigo 51 desse diploma legal possui um rol extensivo, meramente exempli-ficativo, das condições contratuais que podem ser declaradas nulas de pleno direito.

No que concerne à estipulação unilateral do foro, definida em favor do fornecedor, poderá tal cláusula ser decretada inválida com fundamento no CDC:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que colo-quem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;§1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, consideran-do-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.§2º A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o con-trato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.15

A legislação visa coibir abusos praticados contra o consumidor. Dessa forma, uma condição contratual que tenha determinado a juris-dição estrangeira como a competente para dirimir os conflitos oriundos de um negócio de consumo poderá ser declarada nula por prejudicar a parte mais fraca da avença, conforme motivos já expostos.

Merece destacar que o legislador pátrio considerou o Código de Defesa do Consumidor como uma normativa de ordem pública e de interesse social. E uma das prerrogativas adotadas pela referida legislação é a possibilidade de proferir o magistrado decisão de ofício, como previsto no artigo 51 supramencionado, pertinente às cláusulas eivadas de abusividades. É o que destaca Paulo Khouri:

Indubitável que o CDC, como uma das revelações do movimento do dirigismo contratual, só poderia atingir o seu objetivo de proteger o

15 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

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vulnerável da relação contratual, se estabelece leis cogentes, de ordem pública, que reduzissem o campo da autonomia da vontade na cele-bração dos contratos.

O princípio básico do direito privado revela-se na máxima: tudo o que não é proibido é permitido. A primeira parte do art. 122 do novo CC deixa claro este princípio: “São lícitas em geral todas as condições que a lei não vedar expressamente. E dentro do direito privado, o dirigismo contratual, para atuar de forma eficaz, precisa estabelecer vedações, nulidades, leis de ordem pública, que ocupem o espaço antes reservado à autonomia da vontade, a fim de evitar o desequilíbrio contratual.16

Nessa perspectiva, o NCPC brasileiro estabeleceu ao juiz uma condução processual mais ativa no sentido de garantir a efetividade dos direitos e interesses discutidos nos litígios.

5.3 A atuação dos magistrados: o dever de cooperação na resolução dos conflitos

Por se tratar de uma norma de ordem pública, o direito do consumidor necessita de algumas ferramentas para executar a tutela da parte mais fragilizada da relação comercial. Um dos instrumentos estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor é a atuação de ofício dos julgadores, como a prevista no artigo 51. Cristiano Schmitt entende que a previsão constante na legislação consumerista viabiliza ao juiz sancionar as disposições contratuais que identifique como abusivas “[...] mediante a decretação de sua nulidade, o que pode ocorrer ex officio pelo juiz, independentemente de ação específica. Isso não significa, no entanto, a dispensa de uma dilação probatória, voltada para a análise da efetiva abusividade da cláusula reputada abusiva”.17

Tal forma de condução do processo pelo magistrado também fora preconizada pela nova legislação processual. O ato de proferir uma decisão de ofício decorre do dever de colaborar com a tramitação da demanda, vez que o NCPC determinou, a todos os sujeitos partícipes do litígio, o dever da cooperação como um dos seus princípios: “Art.

16 KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 108.

17 SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 148.

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6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.18

Percebe-se que não só o magistrado deve cooperar, mas também as partes litigantes. Contudo, a autoridade estatal, representada pela figura do juiz, possui prerrogativas específicas e próprias para que a relação jurídica se desenvolva em observância aos preceitos e garantias fundamentais. No tocante às lides de direito do consumidor, os vetores constitucionais são incontroversos, já que a CRF/88,19 no capítulo que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, determina que cabe ao Estado a promoção da defesa do consumidor, o que robustece o dever de colaboração do julgador, como na operacionalização das decisões de ofício.

O princípio da cooperação positivado pelo novo Código de Processo Civil torna-se uma importante ferramenta para a tutela consu-merista implementar a harmonização entre as partes, em atendimento ao preceito da função social do contrato. A respeito discorre Humberto Theodoro Júnior:

A função social continua sendo desempenhada pelo contrato de con-sumo nos reflexos que produz no meio social, ou seja, naquilo que ultrapassa o relativismo do relacionamento entre credor e devedor e se projeta no âmbito de toda a comunidade. A lei de consumo protege, é verdade, o lado ético das relações entre fornecedor e consumidor. Mas não é propriamente nesse terreno, que a verdadeira função social se desenvolve, mas no expurgo do mercado de praxes inconvenientes que podem inviabilizar o desenvolvimento harmonioso e profícuo, tornando-o instrumento de dominação e prepotência. Protege-se, enfim, o consumidor para que a economia de mercado seja a mais sadia e mais desenvolvimentista, dentro do ideal econômico da livre concorrência, e do ideal social do desenvolvimento global da comunidade.20

O papel do juiz na condução do processo é de suma relevância para que se impere a função social do contrato. É nesse contexto que se insere a atuação de ofício do magistrado, o que se coaduna com o princípio da duração razoável do processo, conforme prescreve a norma

18 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

19 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.>. Acesso em: 30 mar. 2015.

20 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 84-85.

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processual em análise: “Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.21

A figura do julgador passivo e integralmente inerte não mais se sustenta no direito contemporâneo. Ao contrário, espera-se que o juiz seja proativo e participe de forma efetiva no comando das demandas processuais, com vistas a concretizar a tutela estatal, estabelecida nos diplomas legais.

5.3.1 Poder diretivo do juizCom o advento do novo regramento das normas processuais

brasileiras, o juiz fora contemplado com um maior poder de direção no sentido de propiciar uma demanda mais colaborativa e dinâmica. É o que se infere do Título IV, Capítulo I:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:I – assegurar às partes igualdade de tratamento;II – velar pela duração razoável do processo;III – prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias;IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;V – promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;VI – dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito;VII – exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais;VIII – determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso;IX – determinar o suprimento de pressupostos processuais e o sanea-mento de outros vícios processuais;X – quando se deparar com diversas demandas individuais repetiti-vas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5o da Lei no 7.347,

21 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

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de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.Parágrafo único. A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode ser determinada antes de encerrado o prazo regular.22

Percebe-se pela análise dos dispositivos acima que o poder de gestão da autoridade estatal, condutora do processo judicial, foi ampliado. Nessa perspectiva, encontram-se as tratativas positivadas no Capítulo IX, que tratam das “Providências Preliminares e do Saneamento”:

Art. 352. Verificando a existência de irregularidades ou de vícios sanáveis, o juiz determinará sua correção em prazo nunca superior a 30 (trinta) dias.Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as dili-gências inúteis ou meramente protelatórias.Art. 373. O ônus da prova incumbe:[...]§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.23

Para efeitos da aplicação do direito do consumidor, merece destaque o supramencionado §1º do artigo 373, uma vez que permite ao juiz a gestão material do processo. Tal norma tem uma importância singular para os conflitos oriundos das relações consumeristas em face da peculiaridade de ser o consumidor a parte mais vulnerável, o que importa muitas vezes na dificuldade de produzir o conjunto probatório, seja pela deficiência técnica, financeira ou jurídica.

Cita-se, ainda, como exemplo da atuação do juiz as decisões de ofício, que interessam particularmente ao direito do consumidor, como a estabelecida no artigo 370, acima transcrito, relativamente ao ônus

22 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

23 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

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probatório. Assim como prevê o §2º do artigo 464: “Art. 464. [...] §2º De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade”.24

Ao identificar a situação de fragilidade processual no tocante à produção de provas, poderá o magistrado exercer seu poder diretivo, utilizando-se da regra descrita, o que conferirá uma demanda mais dinâmica e justa. Esse dinamismo é exequível especialmente nas ações que tramitam nos juizados especiais cíveis, vez que pedidos de prova pericial, recorrentemente pleiteados pela parte fornecedora como medida protelatória, poderão ser substituídos pelo juiz quando não forem necessários, conforme permitido pelo artigo 464 do NCPC.

Essa prerrogativa da atuação por ofício também está prevista quando restar detectada cláusula abusiva de eleição de foro, comum nos contratos de adesão, unilateralmente elaborados pelos fornece-dores: “Art. 63. [...] §3º Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu”.25

Cumpre frisar que a autoridade estatal que dirige o processo deverá respeitar o princípio constitucional do contraditório, de acordo com o que estipula o artigo 10 da referida legislação: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.26

Além das normas evidenciadas, é salutar ressaltar que os institutos da mediação e conciliação receberam destaque do legislador infracons-titucional. Para tanto, sua aplicação prática implica no imprescindível papel exercido pelo juiz, quando da condução de tais instrumentos. Prescreve o Código de Processo Civil:

Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de

24 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

25 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

26 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

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conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.[...] §1º O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na audiência de conciliação ou de mediação, observando o disposto neste Código, bem como as disposições da lei de organização judiciária.§2º Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à me-diação, não podendo exceder a 2 (dois) meses da data de realização da primeira sessão, desde que necessárias à composição das partes.[...]§11. A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada por sentença.§12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será orga-nizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos entre o início de uma e o início da seguinte.27

Dulce Maria Nascimento elucida:

De forma sumária, podemos concluir que a mediação judicial e extra-judicial no Brasil passou a dispor de uma regulamentação, contendo regras, princípios, fases e etapas comuns, bem como especificidades de procedimento diferenciadas de acordo com a atuação judicial ou extrajudicial.A mediação corresponde a um processo consensual de resolução de conflitos, confidencial e voluntário, no qual um terceiro imparcial e independente facilita a negociação entre duas ou mais pessoas e as au-xilia a encontrarem e construírem um acordo mutuamente satisfatório.28

Hodiernamente, as ferramentas que propiciam a autocompo-sição têm auferido notoriedade em diversos ordenamentos jurídicos, mormente em face da importância para a resolução dos conflitos, mesmo que tais técnicas sejam executadas no poder judiciário, pois o que se vislumbra é o alcance da paz social, e essa se ascende através de mecanismos que proporcionem a celeridade e a equidade. Contudo, no Brasil os institutos da mediação e conciliação ainda se encontram na fase inicial de implementação, o que implica que todos os operadores do direito identifiquem a pertinência dos seus princípios e a importância da respectiva adoção.

27 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

28 NASCIMENTO, Dulce Maria Marins. Mediação Empresarial. In: PERRUCI, Felipe Falcone; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no direito empresarial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 393.

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Diante de tais preceitos, preconizados na nova normativa processual, espera-se que o magistrado coopere de forma eficaz no processo, mediante uma atuação participativa, sem viés autoritário, utilizando-se dos instrumentos estabelecidos pela regulamentação e com respeito às garantias e direitos processuais das partes.

5.4 Considerações finais

Por todo o exposto, resta evidente que o novo Código de Processo Civil trouxe implicações para as normativas de direito do consumidor. Em que pese se tratarem de diplomas legais autônomos, as regras prescritas pela Lei nº 13.105/2015 propiciam uma maior efetividade da tutela protetiva, encampada pela Lei nº 8.078/1990, vez que se coaduna com o interesse social dessa regulamentação.

Não se pode olvidar que o momento da promulgação do NCPC coincide com as transformações da sociedade de consumo, caracte-rizada pelo dinamismo e aumento das relações negociais, praticadas, inclusive, além das fronteiras nacionais, o que gera a majoração do volume de conflitos. Tais aspectos exigem um sistema processual mais condizente com a evolução social, mormente quanto à maior eficiência das normas que estabelecem as diretrizes de condução das demandas judiciais.

Na seara do direito do consumidor, as novas normas da legis-lação processual civil alcançaram uma importância diferenciada, pois proporcionam que o direito material contemplado pelo CDC se concretize, evitando que práticas abusivas se convalidem, como as cláusulas de eleição de foro, unilateralmente criadas pelos fornecedores nos contratos de adesão.

Além da definição da jurisdição em favor da parte mais vulne-rável, o NCPC introduziu ferramentas que podem resultar numa maior efetividade das decisões judiciais ao determinar o princípio da cooperação, que deve ser adotado por todos os sujeitos do processo, principalmente pelo juiz, que teve o seu poder diretivo expressivamente ampliado, bem como ao proferir as decisões de ofício e na instauração de técnicas de autocomposição.

Certamente, são inegáveis os impactos trazidos pela novel legis-lação processual civil brasileira sobre a regulamentação consumerista. Resta a expectativa de que, com a evolução do tempo, o sistema que regulamenta a temática das regras processuais vá se remodelando em face das contribuições doutrinárias e jurisprudenciais que surgirão diante

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da sua aplicabilidade prática, com vistas a atender uma das funções mais relevantes do direito: pacificar e estabilizar as relações sociais.

ReferênciasBRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 30 mar. 2015.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Regulamenta sobre a proteção do consu-midor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 abr. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ>. Acesso em: 20 abr. 2017.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisa>. Acesso em: 20 abr. 2017.

CARVALHO, David França Ribeiro de. A cláusula de eleição de foro estrangeiro nos contratos internacionais: avanço no CPC de 2015. In: PERRUCI, Felipe Falcone; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no direito empresarial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 605-621.

EUR – Lex. UNIÃO EUROPÉIA. Regulamento Bruxelas I (Reformulado). Disponível em: <https://e-justice.europa.eu/content_brussels_i_regulation_recast-350-pt.do>. Acesso em: 20 maio 2017.

KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do Consumidor: contratos, responsabi-lidade civil e defesa do consumidor em juízo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MACEDO, Maria Fernanda Soares. A importância da escolha do consumidor na proteção ambiental. Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 7, n. 13-14, jan./dez. 2010, p. 125-139.

MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

NASCIMENTO, Dulce Maria Marins. Mediação Empresarial. In: PERRUCI, Felipe Falcone; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no direito empresarial. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 387-404.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

VIEIRA, Gabriella de Castro; REZENDE, Elcio Nacur. Reflexos da nova legislação processual civil no direito do consumidor: a ampliação dos mecanismos de amparo. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 333-350. ISBN 978-85-450-0456-1.

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PARTE III

O DIREITO EMPRESARIAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

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CAPÍTULO 1

OS PROBLEMAS NA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA E AS PERSPECTIVAS DECORRENTES DA ENTRADA EM VIGOR DO CPC/2015

Fernando Solá SoaresGiovani Ribeiro Rodrigues Alves

Marcia Carla Pereira Ribeiro

1.1 Introdução

O presente capítulo tem como objetivo analisar as controvérsias na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e também os entraves processuais que decorrem de sua aplicação prática.

O debate da matéria ainda se mostra necessário em razão da constante relativização do princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, que torna a atividade empresarial, na prática, mais arriscada e menos atrativa.

Além disso, recentemente foram introduzidas novas regras para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, de modo que se buscará levantar diferentes perspectivas de análise e problemas que o novo regramento trará para o bom entendimento da questão ora em debate.

Primeiramente, serão abordadas questões gerais sobre a perso-nalidade jurídica e o princípio da autonomia patrimonial. Ato contínuo, será analisada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, abordando-se algumas de suas aplicações na legislação brasileira e

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enfrentando-se um comparativo entre as determinações normativas e a teoria original.

Por fim, serão apontados alguns entraves processuais na aplicação da desconsideração, principalmente no que diz respeito aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, apresentando-se o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da questão e as perspectivas trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015.

1.2 A personalidade jurídica e o princípio da autonomia patrimonial

É conceito basilar ao direito societário que a pessoa jurídica e seus sócios não se confundem, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio atribui à pessoa jurídica personalidade própria.1 Tal entendi-mento decorre da previsão dos arts. 45, 985 e 1.150, todos do Código Civil de 2002.

A partir do registro do ato constitutivo da sociedade no órgão competente, a pessoa jurídica passa a ser sujeito de direitos, pode contrair e exigir obrigações, e o seu patrimônio deve ser considerado de forma dissociada ao patrimônio dos sócios que o compõem. Trata-se do princípio da autonomia patrimonial, que tem como objetivo dar maior segurança para a prática da atividade econômica2 no resguardo patrimonial da sociedade em relação às dividas dos sócios e destes em relação à sociedade.

A exploração da atividade econômica por intermédio de socie-dades empresárias, por outro lado, é uma manifestação do direito de propriedade. Isso quer dizer que as pessoas físicas ou jurídicas que pretendem explorar uma atividade econômica de maior complexidade e, por conta disso, precisam organizar os bens de produção têm a possibilidade de serem titulares de quotas ou ações de uma sociedade empresária.

A personificação societária possibilita que os interesses indivi-duais dos sócios sejam buscados a partir de uma estrutura autônoma e normalmente associada à limitação de responsabilidade, ou seja, tal situação concede aos sócios as garantias para o exercício da atividade

1 GONÇALVES, Oksandro. A Relativização da Responsabilidade Limitada dos Sócios. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, p. 28.

2 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 13.

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econômica de forma segura, principalmente por conta da separação patrimonial e pela limitação da responsabilidade, características das organizações societárias mais usuais no Brasil, as sociedades limitada e anônima.

O princípio da autonomia patrimonial é fundamental para que os empresários possam desempenhar a atividade econômica com segurança e previsibilidade das possíveis perdas associadas aos riscos inerentes à atividade, já que os prejuízos serão tidos como limitados ao investimento que é feito para o desempenho da atividade econômica, investimento consubstanciado na titularidade de participação nas ações ou nas quotas em que é dividido o capital social.

Marcia Carla Pereira Ribeiro explica que a limitação de responsa-bilidade do sócio existe para que “se estimule a prática de investimentos na atividade produtiva e para que esta não seja preterida por outras formas de investimento que tragam menores riscos (...), mas que não fomentam de forma direta a atividade produtiva”.3 Não fosse pela limitação de responsabilidade, os custos de monitoramento do investidor, em relação às atividades da empresa na qual não exerce diretamente a administração, superariam em muito a potencialidade de lucratividade ou, ainda, ficaria inviabilizada qualquer opção pela diversificação dos investimentos, já que estaria associada a novos custos de monitoramento por força do porte do risco.

Diante disso, é comum aos diversos ordenamentos jurídicos dos Estados contemporâneos identificar regras gerais pelas quais não se pode responsabilizar os sócios por dívidas de uma sociedade (ou o instituidor da EIRELI pelas dívidas da pessoa jurídica), eis que a pessoa jurídica possui patrimônio próprio para fazer frente às obrigações por ela contraídas.

Como visto, ao mesmo tempo em que a distinção patrimonial pode ser considerada uma exceção ao princípio geral da responsabili-zação pessoal pelas dívidas contraídas, é também um mecanismo de estímulo ao exercício da atividade produtiva e fator primordial para que os agentes econômicos assumam o risco inerente à atividade econômica. O sistema descrito é compatível com a vocação privada ao exercício da atividade econômica, assim como essencial para que, no exercício da empresa, se possam oferecer ao mercado os bens e produtos de que

3 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A responsabilidade limitada nas sociedades empresárias. In: RIBEIRO, Marcia Carla; DOMINGUES, Victor Hugo; KLEIN, Vinicius (Coords.). Análise econômica do direito: justiça e desenvolvimento. Curitiba: CRV, 2016.

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necessita, possibilitando ainda a circulação de riqueza e, em última análise, fomentando o desenvolvimento econômico e social.

1.3 A teoria da desconsideração da personalidade jurídica: distorções na sua aplicação

Todavia, existem situações nas quais os sócios se utilizam de seu direito de constituir pessoas jurídicas para praticar atos fraudulentos ou dissimulados, distorcendo desta forma a função econômica que justifica a própria aceitação do regime de personificação e sua principal consequência: a limitação de responsabilidade do sócio/investidor.

Diante da potencialidade de mau uso do tratamento especial trazido pelo ordenamento jurídico, a doutrina adiantou-se às leis na concepção de uma teoria a justificar a desconsideração da persona-lidade jurídica, a disregard doctrine ou piercing the veil. Desconsiderar a personalidade jurídica consiste em ignorar, em situações pontuais e específicas, a separação dos patrimônios dos sócios e da sociedade, podendo-se exigir o pagamento de débitos por intermédio do patrimônio dos sócios que a compõem4 ou de seus administradores.

O primeiro autor normalmente associado à sistematização da proposta expressa pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi Rolf Serick, ao defendê-la em sua tese de doutorado na Universidade de Tubigen, em 1953. No Brasil, o primeiro doutrinador a discorrer de forma importante sobre o tema, precursor à importação da teoria então já bem sistematizada no exterior, foi Rubens Requião.5

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica consiste na verificação concreta, por intermédio de provas, de que há abuso na forma de utilização da pessoa jurídica, com a prática de atos fraudu-lentos. Sobre isso, importante citar as palavras de Requião:

Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como conces-são do Estado à realização de um fim, nada mais procedente do que se reconhecer no Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo,

4 JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: RT, 1987, p. 55-57. No mesmo sentido, a desconsideração inversa da personalidade jurídica permite que a pessoa jurídica seja responsabilizada por dívida dos sócios, em caso fraude, abuso ou desvio de finalidade.

5 GONÇALVES, Oksandro. A Relativização da Responsabilidade Limitada dos Sócios. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, p. 175.

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permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude através do seu uso. 6

A disregard doctrine volta-se à coibição da prática de atos fraudu-lentos, mitigando, em situações específicas, o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. A desconsideração da personalidade jurídica não visa acabar com a autonomia do patrimônio das pessoas jurídicas para todas as relações, mas, sim, preservar o sujeito de direito constituído para que as sociedades não sejam utilizadas de forma desvirtuada.

Diante da possibilidade de aplicação da referida teoria, surgem questionamentos acerca do embasamento legal e dos requisitos para sua aplicação.

Primeiramente, deve-se ressaltar que a disregard doctrine, na condição de teoria, não necessita de prescrição legal específica para ser aplicada. Os efeitos pretendidos pela criação teórica pautam-se em situação de fraude e abuso de direito, que são institutos jurídicos presentes em qualquer ordenamento jurídico, pelo fato de estarem associados a desvios de comportamentos indesejáveis para a coletividade, de forma geral, e para a segurança da relação negocial, relativamente à atividade empresarial.

Nada obstante, a teoria de desconsideração da personalidade jurídica inspirou a ordem jurídica formal em vários diplomas legais brasileiros, com ênfase, em razão de sua extensão, no art. 28 da Lei Federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC):

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.(...) §5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Analisando-se a prescrição do artigo, pode-se observar que houve acentuado desvirtuamento da teoria original da desconsideração da

6 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 1969, n. 410, p. 15.

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personalidade jurídica ao contemplar a aplicação de seus efeitos de afastamento da delimitação patrimonial, nas lides que versem sobre relação de consumo, quando houver: (i) abuso de direito; (ii) excesso de poder; (iii) infração da lei; (iv) fato ou ato ilícito ou violação de estatutos ou contrato social; (v) falência ou estado de insolvência, encerramento ou inatividade de pessoa jurídica provocados por má administração; e (vi) sempre que a personalidade jurídica for obstáculo para ressarci-mento de prejuízos causados aos consumidores.

Especialmente a sexta hipótese acima amplia o âmbito de incidência da desconsideração da personalidade jurídica ao admitir que, em caso de qualquer dívida oriunda de relação consumerista, em que a pessoa jurídica não tenha condições de arcar com o débito, os sócios e administradores poderão ser atingidos em seus patrimônios pessoais.

Prescrições legais dessa natureza permitem que a desconside-ração da personalidade jurídica deixe de ser aplicada apenas quando há abuso de forma ou fraude na utilização das sociedades, cerne da teoria original. Com base no referido dispositivo legal, o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a mera dificuldade no recebimento de indenizações por parte de consumidores já enseja a desconsideração da personalidade:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO – INSCRIÇÃO INDEVIDA – DANO MORAL – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – INSOLVÊNCIA DA PESSOA JURÍDICA – DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – ART. 28, §5º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES DO STJ – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. INSURGÊNCIA DA RÉ. 1. É possível a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária – acolhida em nosso ordenamento jurídico, excepcionalmente, no Direito do Consumidor – bastando, para tanto, a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obriga-ções, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, é o suficiente para se “levantar o véu” da personalidade jurídica da sociedade empresária.Precedentes do STJ: REsp 737.000/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 12.9.2011; (Resp 279.273, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ acórdão Ministra Nancy Andrighi, 29.3.2004; REsp 1111153/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 04.02.2013; REsp 63981/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Rel. p/acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJe de 20.11.2000. 2. “No contexto das relações de consumo, em atenção ao art. 28, §5º, do CDC, os credores não negociais da pessoa jurídica podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação da disregard

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doctrine, bastando a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos em face da insolvência da sociedade empresária” (REsp 737.000/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 12.9.2011). 3. Agravo regimental desprovido.7 (Destaque nosso)

A despeito de reconhecer as particularidades do microssistema incidente sobre as relações de consumo, bem como de ser o entendi-mento consolidado da jurisprudência, não se pode ter como adequada, do ponto de vista científico, a ampliação demasiada da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que o CDC criou hipóteses que não estão associadas a qualquer fraude ou abuso de forma jurídica, prejudicando demasiadamente a segurança das relações jurídicas e dos investimentos feitos pelos empresários nas atividades econômicas.

Acredita-se que o adequado seria interpretar o §5º do art. 28 do CDC, de forma alinhada com a teoria original da desconsideração, no sentido de permitir o comprometimento do patrimônio dos sócios e administradores quando houvesse dificuldade para o recebimento de ressarcimentos por danos ao consumidor nos casos nos quais se verifi-casse fraude ou abuso de forma, o que, como visto, não é considerado pela jurisprudência pátria.

Neste sentido, cita-se Fábio Ulhoa Coelho:

No tocante ao §5º do art. 28 do CDC, note-se que uma primeira e rápida leitura pode sugerir que a simples existência de prejuízo patrimonial su-portado pelo consumidor seria suficiente para autorizar a desconsidera-ção da pessoa jurídica. Essa interpretação meramente literal, no entanto, não pode prevalecer por três razões. Em primeiro lugar porque contraria os fundamentos teóricos da desconsideração. Como mencionado, a disregard doctrine representa um aperfeiçoamento do instituto da pessoa jurídica, e não a sua negação. Assim, ela só pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para a coibição de fraudes ou abuso de direito. A simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a desconsideração (...) Em segundo lugar, porque tal exegese literal tornaria letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses autorizadoras do superamento da personalidade jurídica. Em terceiro lugar, porque essa interpretação equivaleria à eliminação do instituto da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor e, se tivesse sido esta a intenção da lei, a norma para operacionaliza-la poderia ser direta, sem apelo à teoria da desconsideração.8

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1106072/MS, da Quarta Turma. Ministro Relator Marco Buzzi. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 18 de setembro de 2014.

8 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53-54.

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Consoante acima referido, o CDC trata de hipóteses nas quais se podem responsabilizar diretamente os sócios ou administradores de determinada sociedade pela prática de atos ilegais, como nos casos de abuso de poder e infração da lei, bem como pela prática de ato ou fato ilícito ou violação ao estatuto ou contrato social, mas igualmente acrescenta qualquer outra hipótese que tenha interferido na satisfação do direito do consumidor e também a dissolução por má-gestão, situações essas que não se confundem com a teoria da desconsideração ora estudada. Destarte, merece revisão a aplicação no campo consumerista.

A ampliação do âmbito de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica não ocorre apenas nas relações abrangidas pelo CDC. O art. 34 da Lei nº 12.529/2011 (Lei Antitruste) e o art. 4º da Lei nº 9.605/98 (que versa sobre a responsabilidade sobre lesões ao meio ambiente) também são exemplos de dispositivos legais que ignoram a doutrina original, relativizando a autonomia patrimonial, mesmo quando inexistente abuso ou fraude.

Os mencionados dispositivos enquadram-se numa concepção bastante disseminada da chamada teoria menor da desconsideração da personalidade, que, de certa forma, não respeita o conceito da teoria original, que, repita-se, somente autoriza a quebra da autonomia patri-monial da pessoa jurídica nos casos de abuso e fraude perpetrados.

Com o advento do Código Civil de 2002 (CC/02), também a codificação civil positivou no ordenamento jurídico brasileiro a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nos moldes da teoria clássica, chamada de teoria maior, como expresso no art. 50, que dispõe:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

A disciplina do referido artigo é clara no sentido de que somente quando houver abuso de personalidade jurídica, por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, é que ela pode ser desconsiderada, atingin-do-se o patrimônio dos sócios ou administradores da pessoa jurídica.

Tendo em vista o exposto, não se pode falar em desconsideração da personalidade jurídica, com fundamento no art. 50 do CC/02, caso haja dissolução irregular da sociedade ou qualquer outra causa que não se encaixe como abuso de direito, fraude a credores ou confusão patrimonial, situações estas que sempre devem ser comprovadas.

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Nesse sentido é a jurisprudência pátria, dentre outros julgados:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INVIABILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 50 DO CC/2002. APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DESVIO DE FINALIDADE OU DE CONFUSÃO PATRIMONIAL. PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Na hipótese em exame, aplica-se o Enunciado 2 do Plenário do STJ: “Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.” 2. A Corte de origem dirimiu a matéria submetida à sua apreciação, manifestando-se expressamente acerca dos temas necessários à integral solução da lide. Dessa forma, não havendo omissão, contradição ou obscuridade no aresto recorrido, não se verifica a ofensa ao artigo 535 do Código de Processo Civil de 1973. 3. No caso, em que se trata de relações jurídicas de natureza civil-empresarial, o legislador pátrio, no art. 50 do CC de 2002, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige a demonstração da ocorrência de elemento objetivo relativo a qualquer um dos requisitos previstos na norma, caracterizadores de abuso da personalidade jurídica, como excesso de mandato, demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas). 4. A mera demonstração de inexistência de patrimônio da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes. 5. O Tribunal de origem, com base nos elementos fático-probatórios constantes nos autos, concluiu que não foi demonstrada a ocorrência de fraude, abuso de poder ou confusão patrimonial entre a pessoa jurídica e seu sócio, afastando a desconsideração da personalidade jurídica requerida nos autos. 6. Desta feita, a convicção formada pelo Tribunal de origem acerca da ausência dos requisitos necessários para ensejar a desconsideração da personalidade jurídica da empresa recorrida decorreu dos elementos existentes nos autos, de forma que rever o acórdão objurgado, nesse aspecto, importaria necessariamente o reexame de provas, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7 do STJ. 7. Agravo interno não provido.9

9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 347.476/DF, da Quarta Turma. Ministro Relator Raul Araújo. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 17 de maio de 2016.

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AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PLEITO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ALEGAÇÃO DE DISSOLUÇÃO IRREGULAR E CONFUSÃO PATRIMO-NIAL. DISSOLUÇÃO IRREGULAR QUE, POR SI SÓ, NÃO É CAPAZ DE ENSEJAR A APLICAÇÃO DA TEORIA DA “DISREGARD OF LEGAL ENTITY”. PRECEDENTES DO STJ. CONFUSÃO PATRIMONIAL NÃO DEMONSTRADA. RECURSO DESPROVIDO.10

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJU-DICIAL. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DEFERIMENTO. MEDIDA EXCEPCIONAL. NECESSIDA-DE DE DEMONSTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE ABUSO E GESTÃO DANOSA DA PESSOA JURÍDICA. CONSTATAÇÕES INOCORREN-TES. AUSÊNCIA DE PROVAS. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO.11

Esses são alguns dos contornos gerais da teoria da desconside-ração da personalidade jurídica.

Com efeito, existe uma série de requisitos para a aplicação prática da desconsideração com base no art. 50 do Código Civil, já que os elementos que a ensejam necessitam de produção de provas, o que nem sempre está ao alcance do credor. Nada obstante, cabe ao operador do direito invocar os mecanismos processuais adequados, inclusive a teoria dinâmica do ônus da prova, visando convencer o julgador acerca de quem deve ser o responsável por se desincumbir do ônus.

Ao mesmo tempo em que se destaca a importância da preocu-pação com as provas e eventual dificuldade por parte do credor, não se pode jamais desrespeitar os princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, devendo-se prezar pelas garantias essenciais de defesa.

Muitas vezes esses postulados constitucionais e princípios básicos de processo civil eram desrespeitados sob a égide do CPC/1973, sob a justificativa de uma necessidade de rápida aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. O Código de Processo Civil de 2015 trouxe inovações quanto à matéria, com potencial de, por um

10 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 1184986-8, da Sexta Câmara Cível. Desembargador Relator Clayton de Albuquerque Maranhão. Publicado no Diário de Justiça de 26 de agosto de 2014.

11 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Agravo de Instrumento nº 1056796-1, da Décima Quarta Câmara Cível. Desembargador Relator Edson Vidal Pinto. Publicado no Diário de Justiça de 06 de novembro de 2013.

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lado, reduzir a insegurança do procedimento, mas, de outro, de tornar ainda morosa a busca pela satisfação do crédito.

1.4 Devido processo legal, contraditório e ampla defesa na desconsideração da personalidade jurídica pelo NCPC

Antes do advento do Código de Processo Civil de 2015 (Lei Federal nº 13.105/2015 – NCPC), muito se discutia sobre como se deveriam aplicar, no caso concreto, os procedimentos que ensejam a desconsideração da personalidade jurídica.

O primeiro problema residia na necessidade de os sócios ou administradores, que pudessem ter seu patrimônio atingido pela desconsideração, serem previamente citados na ação respectiva, oportunizando-se a esses sujeitos de direito a possibilidade de exercer o contraditório e a ampla defesa. Afinal, conforme prevê o art. 5º, inciso LIV, da Constituição da República, ninguém será privado de seus bens ou de sua liberdade sem o devido processo legal.

Também é garantido aos litigantes em processo administrativo ou judicial o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, inciso LV, da CR/88). Isso significa que, em tese, deve-se oportunizar obrigatoria-mente àquele sujeito que poderá ter seu patrimônio pessoal atingido a apresentação de defesa e a produção de provas, antes que haja uma efetiva constrição patrimonial. Sobre o contraditório, citam-se Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini:

Esse o princípio, guindado à condição de garantia constitucional, signifi-ca que é preciso dar ao réu possibilidade de saber da existência do pedi-do, em juízo, contra si, dar ciência dos atos processuais subsequentes, às partes (autor e réu) e demais sujeitos que participam do processo (p. ex., ministério público, assistentes etc.), e garantir a possível reação contra decisões sempre que desfavoráveis. Esse princípio está visceralmente ligado a outros, que são o da ampla defesa e do duplo grau de jurisdi-ção, em respeito ao qual se deve evitar a hipótese de falta de controle das decisões judiciais, pela parte (por meio dos recursos) e pelo próprio Poder Judiciário (pelo provimento ou desprovimento de recursos).12

12 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 15. ed. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 81.

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A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inicialmente oscilou quanto à (des)necessidade de garantia de defesa prévia, mas prevaleceu o entendimento de que poderia ser diferido o contradi-tório em casos de desconsideração, operando-se de forma incidental no próprio processo no qual foi requerido pela parte teoricamente prejudicada.

Vejam-se os seguintes precedentes da Corte Superior:

(...) 5. No âmbito civil, cabe ao magistrado, a teor de diretriz jurispru-dencial desta Corte, desconsiderar a personalidade jurídica da empresa por simples decisão interlocutória nos próprios autos da falência, sendo, pois, desnecessário o ajuizamento de ação autônoma para esse fim. 6. Decretada a desconsideração da personalidade jurídica da falida, com a conseqüente propagação dos seus efeitos aos bens patrimoniais dos sócios, não ocorre desrespeito aos postulados do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, nem maltrato a direito líquido e certo de terceiros prejudicados, quando patente sua legitimidade para defesa dos seus direitos, mediante a interposição perante o juízo falimentar dos recursos cabíveis. Precedentes: REsp n. 228.357-SP, Terceira Turma, relator Ministro Castro Filho, DJ de 2.2.2004; REsp n. 418.385-SP, Quarta Turma, relator Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJ de 3.9.2007 (...).13

AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. FALÊN-CIA. FRAUDE E CONFUSÃO PATRIMONIAL ENTRE A EMPRESA FALIDA E A AGRAVANTE VERIFICADAS PELAS INSTÂNCIAS ORI-GINÁRIAS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: DESNECESSIDADE DE PROCEDIMENTO AUTÔNOMO PARA SUA DECRETAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Tendo as instâncias ordinárias detectado a fraude e a confusão patrimonial entre a empresa falida e a empresa desconsiderada, ora agravante (cujas sócias são filhas do ex-controlador da primeira), pode ser desconsiderada a personalidade jurídica como medida incidental, independentemente de ação autônoma (revocatória). Precedentes. 2. Impossibilidade de revisão dos aspectos fáticos-probatórios que levaram à conclusão da fraude, ante o óbice da Súmula nº 7 do Superior Tribunal de Justiça. 3. Não há falar em ofensa ao devido processo legal, pois a agravante interpôs a tempo e modo devidos o recurso cabível perante o Tribunal de origem, o qual, todavia, não foi acolhido. 4. Agravo regimental não provido. 14

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 881.330/SP, da Quarta Turma. Ministro Relator João Otávio de Noronha. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 10 de novembro de 2008.

14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 418.385/SP, da Segunda Seção. Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 16 de março de 2012.

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Com efeito, pode-se verificar que o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o contraditório diferido não gerava ofensa ao devido processo legal e que a parte que eventualmente fosse atingida pela desconsideração teria o direito de se defender mediante a interposição de recursos.

A desconsideração poderia ocorrer em processo de conhecimento ou em processo de execução de título judicial (cumprimento de sentença) ou extrajudicial. O sistema trazido pelo Código de Processo Civil de 2015 mantém esta mesma orientação.

No primeiro caso, há a possibilidade de constituição de um litisconsórcio passivo eventual, no qual o autor da demanda insere no polo passivo da ação tanto a sociedade quanto os seus sócios, que serão citados para responder à demanda de forma conjunta, hipótese na qual não há dúvidas sobre o respeito ao contraditório e à ampla defesa. Sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973, Didier Júnior explicava:

O CPC autoriza que se formulem mais de um pedido, em ordem suces-siva, a fim de que o segundo seja acolhido, em não sendo o primeiro. É a chamada cumulação eventual ou subsidiária, concretizada o artigo 289 deste diploma legal. Em assim sendo, repita-se a pergunta de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO: será lícito colocar em juízo, cumulativamente, duas demandas dirigidas a pessoas diferentes, invocando o art. 289, do Código de Processo Civil? A resposta é positiva. O litisconsórcio eventual, aplicado à hipótese em comento, permite atacar o patrimônio pessoal dos sócios, apenas e tão-somente, se for impossível liquidar o débito por intermédio do capital social da pessoa jurídica. (...) nada mais razoável, assim, que sejam citados, ab ovo, os sócios, ou outra sociedade do mesmo grupo, já que, com a desconsideração, poderão ser tomadas medidas que acarretem a excussão dos seus patrimônios para a satisfação das pretensões de direito material postas em juízo.15

Assim, em ações de conhecimento nas quais houvesse o litiscon-sórcio eventual, não se verificava ofensa aos postulados constitucionais ora debatidos. Porém, a grande dificuldade se encontrava na descon-sideração que ocorria em cumprimento de sentença ou em execução de título extrajudicial, já que geralmente os magistrados concediam a desconsideração por meio de decisão interlocutória, sem que houvesse a prévia citação do sócio para apresentar defesa.

15 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. p. 11-12. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/02/aspectos-processuais-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica.pdf>. Acesso em: 13 jul. 2016.

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Conforme se observa na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já mencionada, vinha se admitindo a desconsideração sem prévia intimação e possibilidade de defesa à pessoa penalizada, diferindo-se o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Ocorre que muito frequentemente as pessoas atingidas pela desconsideração interpunham o recurso cabível (em que eram expressas as matérias de defesa) e apresentavam, simultaneamente, defesa sob a forma de embargos à execução ou exceção de pré-executividade, causando um imbróglio processual.

Dentro desse contexto, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe inovações que produzem efeitos no âmbito da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Os artigos 133 e seguintes do código processual trazem regras que devem ser seguidas no processo de conhecimento, cumprimento de sentença ou execução de título extrajudicial.

O primeiro problema resolvido foi quanto à necessidade, ou não, de instauração de incidente processual para processar a desconsideração. Como se pode observar na prescrição legal dos artigos 133 e 134 do Código, as regras processuais aplicáveis são as seguintes:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.§1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.§2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.16

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.§1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.§2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.§3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do §2º.§4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupos-tos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

16 BRASIL. Lei Federal nº 13.105/2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 14 jul. 2016.

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É nítido que a nova legislação veio para dar maior segurança jurídica para as situações de desconsideração da personalidade jurídica, privilegiando os princípios do contraditório e da ampla defesa. Os sócios ou a pessoa jurídica serão citados para se manifestar e requerer as provas cabíveis dentro do prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 135 do Código, o que evita que a desconsideração ocorra sem prévia oportunidade de defesa e dilação probatória, situações essas que eram dispensadas anteriormente em algumas situações.

Por outro lado, como se pode observar na disciplina legal, o incidente de desconsideração suspende o processo principal, salvo nos casos de litisconsórcio passivo eventual (art. 134, §§2º e 3º). Logo, ao se privilegiar o contraditório e a ampla defesa, provavelmente estar-se-á produzindo como efeito colateral a suspensão do processo principal, com impactos no tempo de julgamento da demanda.

Trata-se da inesgotável problemática do legislador mensurar os diferentes interesses em debate e qual deles privilegiar.

1.5 Conclusão

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi incor-porada pela legislação brasileira de forma não uniforme. Em alguns casos, compatibiliza-se com a teoria menor (art. 28, caput e §5º, do CDC; art. 34 da Lei Antitruste; e art. 4º da Lei Federal nº 9.605/98), que, como visto, está dissociada em parte da teoria original da desconsideração, já que permite o rompimento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica em situações que não envolvem fraude a credores ou abuso na utilização da pessoa jurídica.

Apenas na aplicação da teoria maior (art. 50 do CC/02) é que as bases da teoria da desconsideração são plenamente respeitadas, privilegiando-se a autonomia das pessoas jurídicas, com o intuito de coibir apenas aqueles atos tidos como fraudulentos ou dissimulados.

Quanto à aplicação das regras processuais para a desconsideração da personalidade jurídica, houve avanços com as novas disposições sobre a matéria no Código de Processo Civil de 2015 (art. 133 e seguintes), que trarão maior segurança e previsibilidade para a atividade empresária, tornando menos banalizada a possibilidade de invocação da descon-sideração da personalidade.

Porém, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode trazer problemas quanto à celeridade processual, eis que ele suspenderá o processo principal até que a questão seja efetivamente resolvida.

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Somente a prática demonstrará se a opção pelo incidente processual de desconsideração foi corretamente criada ou se precisará de adaptações. Com as novas regras processuais, cabe aos operadores do direito exercer as faculdades processuais com inteligência e equilíbrio para que a segurança jurídica não atrapalhe a celeridade processual e vice-versa.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 418.385/SP, da Segunda Seção. Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 16 de março de 2012.

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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: RT, 1987.

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REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 1969, n. 410.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; ALVES, Giovani Ribeiro Rodrigues; SOARES, Fernando Solá. Os problemas na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e as perspectivas decorrentes da entrada em vigor do CPC/2015. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 353-369. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 2

INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Vinícius Jose Marques Gontijo

2.1 Introdução

A entrada em vigor de um novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – NCPC) implicou alterações substan-ciais na operacionalização e efetivação do direito como um todo e, em especial, no que concerne à desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que nosso legislador cuidou, pela primeira vez, da instituição e regulamentação de um incidente processual em que se postula a desconsideração da personalidade jurídica. Tratam-se dos artigos 133 a 137 do NCPC.

Inicialmente, é sumamente importante registrar que, no que se refere à imputação de responsabilidades da pessoa jurídica a terceiros, o direito societário apresenta três hipóteses, conforme já tivemos a oportunidade de demonstrar:

De fato, ao se examinar a responsabilização de terceiro por obrigações contraídas em nome da sociedade, pouco interessando se este terceiro seja sócio, administrador ou membro de conselho ou outro órgão social, faz-se necessário compreender que ela poderá se dar, como decorrência da relação societária, de três maneiras diversas:Primeira, a responsabilização do terceiro por obrigações da pessoa jurídica poderá decorrer do tipo societário pelo qual se optou. Assim, os sócios podem, voluntariamente, optar por um tipo de sociedade em que todos eles respondam de maneira subsidiária, porém solidária e ilimitada pelas obrigações da entidade, ou, ainda quem nem todos os sócios da

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sociedade respondam pelas obrigações da pessoa jurídica, haverá um sócio ou um grupo deles que desta maneira responderá.Segunda, a responsabilidade do terceiro decorre de ações ou omissões ilícitas praticadas em órgão da sociedade. Trata-se de responsabilização civil por dano.

E, finalmente, em terceira, no caso de desconsideração da perso-nalidade jurídica, com isso atingindo terceiros em relação à sociedade.1

Na primeira hipótese, tem-se uma situação de responsabilidade exclusivamente patrimonial do terceiro (sócio), sem que, no entanto, ele se torne réu no processo; ele é parte ilegítima passiva na medida em que a obrigação foi assumida pela pessoa jurídica, e não por ele mesmo.

A despeito de o sócio não ser parte no processo, seus bens parti-culares sofrerão execução por obrigações da sociedade, uma vez que ele escolheu participar de uma sociedade em que há sócio de responsa-bilidade ilimitada – tais como sociedade em nome coletivo e sociedade em comandita simples –, tendo ainda optado por pertencer à classe dos sócios de responsabilidade ilimitada.

Assim, ficam sujeitos à execução os bens do sócio de responsabi-lidade ilimitada, nos exatos termos prescritos pelo inciso II do art. 790 do NCPC, mas o sócio não é aprisionado no polo passivo da demanda, no qual, reitere-se, figurará apenas a devedora, qual seja, a sociedade.

Por outro lado, na segunda hipótese dissertada, trata-se de ação de responsabilidade civil imposta ao terceiro (sócio, administrador, etc.) por sua atuação ilícita nos órgãos que compõem a pessoa jurídica.

Para realizar a finalidade primordial de restituição do prejudicado à situação anterior, desfazendo, tanto quanto possível, os efeitos do dano sofrido, tem-se o direito empenhado extremamente em todos os tempos. A responsabilidade civil é reflexo da própria evolução do direito, é um dos seus mais acentuados característicos. É preocupação, no direito civil, só comparável à que inspira o instituto da pena, outro sinal distintivo do pregresso jurídico.2

Com efeito, como regra geral aplicável às sociedades, o Código Civil (Lei nº 10.404, de 10 de janeiro de 2002 – CC) e, como regra específica, a Lei de Sociedade por Ações (Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 – LSA) prescrevem a responsabilização não apenas do administrador

1 GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Responsabilização no Direito Societário por terceiro por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 854, p. 39.

2 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 12. ed., 2. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 18.

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373VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJOINCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

por ações ou omissões ilícitas (art. 1.016 do CC e art. 158 da LSA), mas também dos conselheiros fiscais (art. 1.070 do CC e art. 165 da LSA) e dos sócios (art. 1.080 do CC),3 desde que, obviamente, presentes todos os elementos necessários para a responsabilização civil, quais sejam: ação ou omissão voluntária, dano (mesmo que estritamente moral) e nexo de causalidade.

Nas hipóteses de responsabilização civil do terceiro infrator pelas obrigações da sociedade,4 exceto se operada uma das excludentes do parágrafo único do art. 1.015 do CC, a pessoa jurídica responderá solidariamente com o agente infrator, até por culpa in eligendo. Isso, processualmente falando, poderá se operar por litisconsórcio passivo entre a sociedade e o agente infrator.

Evidentemente, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que será objeto de nossa análise, somente se aplica a terceira e última hipótese apresentada.

Neste capítulo, examinaremos e dissertaremos acerca do aspecto processual da desconsideração da personalidade jurídica como disposto no Código de Processo Civil de 2015, mesmo porque, naturalmente, os pressupostos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica continuam sendo regidos pela legislação não processual, conforme determinou expressamente o §1º do art. 133 do NCPC.

2.2 Incidente de desconsideração da personalidade jurídica inversa

Nos idos de 1969, Rubens Requião trouxe para o direito brasi-leiro o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, quando afirmou que o:

Mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro dos seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É o caso de declaração de ineficácia especial da

3 A responsabilização dos acionistas se dá por abuso de direito de voto e conflito de interesses (art. 115 da LSA) como regra geral e, especificamente, para o acionista controlador por violação de seus deveres na forma do art. 117 da LSA.

4 GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Responsabilização no Direito Societário por terceiro por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 854, p. 41-46.

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personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos.5

Assim, já se tinha clareza técnica que não há como se confundir a despersonificação da pessoa jurídica (ação anulatória de sua consti-tuição – art. 1.034, I, do CC e art. 206, II, a, da LSA) com a desconsideração da personalidade jurídica (cuja regra geral está prescrita no art. 50 do CC), que é caso de ineficácia da personalidade em um caso concreto e nos seus limites.

Desde a publicação do mencionado artigo doutrinário por Rubens Requião, o instituto passou a ser utilizado de maneira crescente na juris-prudência,6 tendo ainda sido desenvolvida a chamada “desconsideração da personalidade jurídica inversa”, à qual também se aplica o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133, §2º, do NCPC).

Karin Kempkes7 esclarece que a desconsideração da personalidade jurídica inversa seria imputar à pessoa jurídica a responsabilidade por obrigação de um de seus sócios. Para tanto, o pressuposto seria ter havido desvio de bens de uma pessoa física para uma pessoa jurídica, sobre a qual aquela tivesse o controle. Afirma, ainda, que o desvio se daria por abuso de direito ou fraude.

Legem habemus (art. 133, §2º, do NCPC) agora a dispor acerca da invenção brasileira: desconsideração da personalidade jurídica inversa. Todavia, não podemos deixar de anotar que isso é uma impropriedade técnica, sendo que, no nosso ponto de vista, não andou bem o legislador processual civil ao introduzir no Brasil a positivação da desconsideração da personalidade jurídica inversa, instituto que, pelo menos com este nome e formatação, não é albergado pelo direito material nacional.

Com efeito, atingir a pessoa jurídica por obrigações do sócio jamais deveria demandar uma desconsideração da personalidade jurídica (ainda que “inversa”) na medida em que o próprio Código Civil (art. 1.026) já prescreve a possibilidade de o credor particular de um sócio fazer recair a execução de seu crédito sobre o lucro que couber a este sócio na sociedade e, ainda, promover a dissolução parcial da sociedade e fazer

5 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais, v. 410, p.14.

6 A questão tomou contornos críticos, a ponto de parte da doutrina se dedicar a investigar o abuso na aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Neste sentido: CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

7 KEMPKES, Karin Apud NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed., São Paulo: Editora RT, 2016, p. 624.

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375VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJOINCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

recair a execução de seu crédito sobre os haveres que o sócio-executado tenha na liquidação da pessoa jurídica.

O dispositivo [art. 1.026, CC] regula a hipótese de o credor particular do sócio, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer o crédito recair sobre os lucros da sociedade, o que significa que a execução não recairá sobre a quota do sócio, mas sobre os lucros à sua disposição na sociedade (lucros líquidos ou lucros retidos e não os fundos líquidos). Na liquidação da sociedade caberá ao credor a parcela à disposição do sócio, depois de pagos os credores sociais (resíduo líquido).Conforme Parágrafo único, não estando ainda liquidada a sociedade, o credor promoverá a liquidação da quota pelo valor efetivamente reali-zado, valor patrimonial da sociedade, ou seja, pelo patrimônio líquido na data da resolução; para tanto, será levantado balanço a essa época.8

Portanto, pensamos que não há sentido técnico na desconsideração da personalidade jurídica inversa; trata-se de uma atecnia, talvez por fragilidade no conhecimento do direito empresarial. Porém, agora, há lei processual a dar guarida à pretensão, aplicando-se as regras proce-dimentais do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

2.3 Incidente de desconsideração da personalidade jurídica

Lamentavelmente, muitas vezes temos observado que o estudo do processo no Brasil está atrelado exclusivamente aos procedimentos, sem observância do Modelo Constitucional do Processo como vetor herme-nêutico de validade da legislação infraconstitucional. Evidentemente, toda a legislação deve ser investigada e aplicada com a mais estrita observância dos preceitos constitucionais aplicáveis à espécie, sendo que, no direito processual, não pode ser e não é diferente. Na precisa lição de Ítalo Andolina:

Na nova perspectiva pós-constitucional, por isso, o problema do pro-cesso não leva em consideração apenas o seu ser (isto é: a sua organi-zação concreta segundo as leis ordinárias vigentes), mas também o seu dever-ser (isto é: a conformidade de sua ordem positiva à normativa constitucional sobre o exercício da atividade jurisdicional).

8 PENALVA SANTOS, J. A.; LUCCA, Newton de et al. Comentários ao Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 9, p. 202-203.

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O problema da jurisdição, por sua vez, não é mais uma mera questão de tipo (essencialmente) definitório interessante, sobretudo, a teoria geral do direito e do Estado, constituindo, ao contrário, um tema de implicações práticas bastante marcadas, uma vez que somente diante de um procedimento (positivo) instrumental para o exercício da fun-ção jurisdicional ocorre controlar se ele efetivamente é como deveria (segundo a Constituição) ser.9

A despeito do uso recorrente na jurisprudência do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, vínhamos observando, com perplexidade, muitas vezes o atropelamento dos mais comezinhos princípios constitucionais, inclusive da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV, da Constituição da República), principalmente quando a aplicação do instituto era deferida nos próprios autos de uma ação de execução, conforme no exemplo abaixo:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – INEXISTÊNCIA DE CITAÇÃO DOS SÓCIOS – ALEGAÇÃO DE NULIDADE – AUSÊNCIA DE COMPRO-VAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. IRRESIGNAÇÃO DO SÓCIO.1 – Tribunal de origem que adotou entendimento em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior que “a superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um pro-cesso incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação do sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade” (REsp. 1.096.604/DF, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 02/08/2012, DJe 16/10/2012). Aplicação da Súmula 83/STJ.2 – Agravo regimental desprovido.10

9 Tradução do autor: “Nella nuova prospettiva post-costituzionale, quindi, il problema del processo non riguarda soltanto il suo essere (idest: la sua concreta organizzazione secondo le leggi ordinarie vigenti), mas anche il suo dover essere (idest: la conformità del suo assetto positivo alla normativa costituzionale sull’exercizio della’attività giurisdizionale).Il problema della giurisdizione, a sua volta, non è più una mera questione di tipo (essenzialmente) definitorio interessante soprattutto la teoria generale del diritto e dello Stato, costituendo invece un tema dalle implicazioni pratiche assai marcate, poiché soltanto della funzione giurisdizionale occorre controllare se lo stesso effettivamente é como dovrebbe (secondo la Costituzione) essere”. (ANDOLINA, Ítalo. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli, 1990, p. 11.)

10 STJ, AgRg no REsp. 1.125.501/PR, 4a T., j. 16.04.2015, v.u., rel. Min. Marco Buzzi, DJe de 24.04.2015.

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377VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJOINCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Assim, não há como deixar de aplaudir a iniciativa do legislador brasileiro em, finalmente, regulamentar o aspecto processual para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, criando o incidente processual respectivo.

Registre-se que:

Segundo o art. 1.062 do Novo CPC o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais.Nos termos do art. 795, §4º do Novo CPC para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código. A norma torna o incidente obrigatório, em especial na aplicação de suas regras procedimentais, mas o art. 134, §2º do Novo CPC consagra hipótese de dispensa do incidente.11

Naturalmente, o §2º do art. 134 do NCPC prescreveu que fica dispensada a instauração do incidente processual quando o pedido de desconsideração da personalidade jurídica se fizer na petição inicial. No entanto – neste caso, é claro –, serão citados os sócios ou, quando se tratar de desconsideração inversa, a pessoa jurídica, assegurando-se, destarte, a ampla defesa e o contraditório, aplicando-se o devido processo legal.

O direito fundamental processual ao contraditório assegura às partes participação e controle da produção da prova. O contraditório permeia os meios de prova típicos e atípicos, emprestando-lhes legitimidade constitucional. A relevância do contraditório se mede pelo fato de o art. 415 do NCPC português de 2013, proclamá-lo, expressis verbis, não olvidando a posição do revel. O juiz não proferirá decisão contra uma das partes, no processo civil brasileiro, sem antes ouvi-la, salvo em caso de urgência e de evidência (art. 9º, caput, e parágrafo único). E não conhecerá diretamente das questões, ex officio, sem promover prévido debate (art. 10). Aqui, no procedimento probatório, interessa evidenciar a influência intrínseca do contraditório.12

O caput do art. 133 do Código de Processo Civil de 2015 prescreve que têm legitimidade para instaurar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica a parte ou o Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

11 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 236.

12 ASSIS, Araken de. Processo Civil brasileiro. 2. ed. v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 469.

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De fato, o art. 50 do Código Civil já prescrevia que a disregard of legal entity é ato privativo do juiz, que, por sua vez, não pode se dar ex officio, dependendo, portanto, de requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.13

Nesse sentido, a “desconsideração da personalidade jurídica é ato privativo do juiz, que, também, não agirá de ofício, dependendo da iniciativa da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo”. 14

Com acerto, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) editou enunciado dispondo acerca da desnecessidade de intervenção obrigatória do Ministério Público nos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que, ordinariamente, a questão é estritamente patrimonial e de interesse exclusivo das partes envolvidas:

Enunciado n. 123 do FPPC. É desnecessária a intervenção do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva intervir obriga-toriamente, previstos no art. 178 [nCPC].

O Código de Processo Civil prescreveu que o incidente poderá ser instaurado em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial (art. 134, caput, NCPC), que deverá ser imediatamente comunicada ao distribuidor para fins das anotações devidas.

A mera instauração do incidente processual de desconsideração da personalidade jurídica implicará a suspensão do processo, salvo se o pedido houver sido formulado na petição inicial do próprio processo principal.

Também em atenção à boa lógica, não se pode fazer com que o processo siga enquanto o incidente está sendo instaurado. Isto porque o polo passivo da relação jurídica será modificado para dele fazer constar os sócios e administradores. E, evidentemente, é desnecessário cogitar de suspensão do processo se o pedido é feito já na petição inicial.15

O Código de Processo Civil de 2015 prescreveu que o requeri-mento de desconsideração da personalidade jurídica deve demonstrar

13 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 321.

14 DUARTE, Nestor; PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado. 3. ed. Barueri: Manole, 2009, p. 60.

15 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 626.

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379VINÍCIUS JOSE MARQUES GONTIJOINCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

o preenchimento dos pressupostos legais específicos para aplicação da Teoria da Disregard of Corporate Entity. Naturalmente, para a instauração do incidente, não se faz necessária a prova pré-constituída, como se pode imaginar da leitura do dispositivo legal. Ao revés, a lei faculta a instrução necessária à formação do convencimento do juiz. Portanto:

Na realidade o requerente não deve demonstrar, mas apenas alegar o preenchimento dos requisitos legais para a desconsideração da perso-nalidade jurídica, tendo o direito a produção da prova para convencer o juízo de suas alegações, inclusive conforme expressamente previsto nos arts. 135 e 136 do Novo CPC ao preverem expressamente a possibilidade de instrução probatória no incidente ora analisado.16

Com efeito, instaurado o incidente de desconsideração da perso-nalidade jurídica, o sócio será citado para se manifestar e requerer as provas cabíveis no prazo de quinze dias; claro que, em se tratando de incidente de desconsideração inverso, a pessoa jurídica é quem será citada e terá o direito de se manifestar e requerer as provas com que pretende comprovar suas alegações (art. 136 do NCPC).

Daniel Amorim Assumpção Neves investiga a legitimidade dos sócios após a desconsideração da personalidade jurídica, afirmando que:

O Novo Código de Processo Civil perdeu uma excelente oportunidade de colocar fim a polêmica a respeito da forma processual de defesa dos sócios na execução após a desconsideração da personalidade jurídica.O sócio (ou a sociedade na desconsideração inversa) passa a partir da desconsideração da personalidade jurídica a ser responsável patrimonial secundário pela dívida da sociedade empresarial. Será o sócio legitimado a formar um litisconsórcio passivo ulterior, transformando-se em exe-cutado junto à sociedade empresarial ou continuará com um terceiro no processo? A resposta a esse questionamento é resultante da definição da qualidade processual do responsável patrimonial secundário.O responsável patrimonial secundário, com hipóteses previstas pelo art. 592 do CPC/1973 e art. 790 do Novo CPC, mesmo não sendo devedor, responde com seus bens pela satisfação da obrigação em juízo. É pre-ciso atentar que, no tocante a algumas hipóteses de responsabilidade secundária, a questão da legitimidade passiva era totalmente superada pelo art. 568 do CPC/1973 e continua a ser pelo art. 779 do Novo CPC. A questão, entretanto, remanesce relativamente aos demais responsáveis secundários, em especial àquele indicado pelo art. 790, II do Novo CPC.Omissis.

16 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 238.

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A importância prática de se definir a qualidade processual do sócio após a desconsideração da personalidade jurídica é a defesa adequa-da a apresentar na execução: sendo terceiro, a defesa parece ser mais adequadamente apresentada por meio de embargos de terceiro; sendo parte, a defesa será elaborada por meio de embargos à execução (ou mesmo impugnação, no caso de cumprimento de sentença).O Superior Tribunal de Justiça adota o segundo entendimento, ao apon-tar a citação do sócio (STJ, 4a Turma, REsp. 1.096.604/DF, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 02/08/2012, DJe 16/10/2012) e sua integração à relação jurídica processual executiva, bem como a inadmissão dos embargos de terceiro, apontando para os embargos à execução como via adequada dos sócios diante da desconsideração da personalidade jurídica (STJ, 4a Turma, AgRg no Ag 1.378.143/SP, rel. Min. Raul Araújo, j. 13/05/2014, DJe 06/06/2014).Entendo que está correto o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, até porque considero que todos os responsáveis patrimoniais secundários, ao terem bem de seu patrimônio constrito em processo alheio, automaticamente passam a ter legitimidade passiva, e, uma vez sendo citados ou integrando-se voluntariamente ao processo, formarão um litisconsórcio passivo ulterior com o devedor. E que mesmo sem previsão legal nesse sentido nada mudará.Omissis.Concluo afirmando que, nos embargos à execução, caberá ao sócio alegar em sede de preliminar de ilegitimidade passiva a eventual incorreção da desconsideração da personalidade jurídica, até porque se não foi devida não existe responsabilidade patrimonial secundária e, por consequência, o sócio é parte ilegítima. O acolhimento dessa defesa, além de excluir o sócio da execução por ilegitimidade de parte, ainda resultará na imediata liberação da constrição judicial sobre o seu bem. Além da alegação de ilegitimidade de parte, o sócio poderá alegar todas as outras defesas típicas do devedor, firme no princípio da eventualidade.Registre-se que essa alegação de ilegitimidade vinculada à inadequação da desconsideração da personalidade jurídica é a única forma de se preservar o princípio do contraditório, ainda que diferido. Como nessa forma de contraditório a informação e a reação são posteriores à decisão judicial, não será legítimo exigir da parte a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que determina a desconsideração, sob pena de preclusão. Naturalmente, o sócio poderá se valer de tal recurso, conforme já exposto no item anterior, mas se preferir poderá aguardar os embargos à execução para se defender. Condicionar a defesa do sócio ao agravo de instrumento seria suprimir um grau de jurisdição no exercício de seu contraditório.17

17 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 241-243.

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Ousamos dissentir de tão abalizada doutrina. Com efeito, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica visa à ineficácia da personalidade jurídica; sendo ineficácia, a personalidade é afastada em um caso concreto, nos limites do próprio caso concreto.

Assim, não há como se falar em litisconsórcio entre a sociedade e aqueles que estavam protegidos pelo “manto” da personalidade jurídica. De fato, sendo a pessoa jurídica ineficaz, ela não tem como ser considerada nem mesmo para fins processuais; pensar diverso seria reconhecer que não se desconsiderou a pessoa jurídica, tanto que ela foi aprisionada no polo passivo da demanda.

Conforme já tivemos a oportunidade de esclarecer neste nosso capítulo, a responsabilidade patrimonial (= responsabilidade secundária) do sócio, prescrita no inciso II do art. 740 do NCPC, aplica-se “nos termos da lei”, ou seja, quando a lei empresarial prescreve a responsabilidade do sócio por obrigações da sociedade (= escolha do tipo societário, necessidade de integralização do capital social, etc.) e não na hipótese de ilícitos que atraiam a desconsideração da personalidade jurídica.

Desconsiderada a personalidade jurídica, sua eficácia é afastada no caso concreto e, diante disso, transcende-se para aqueles que estavam protegidos pela personalidade (tais como sócios e administradores) as obrigações da sociedade. Via de consequência, haverá uma substituição processual:

Espécie do gênero legitimação extraordinária (Arruda Alvim. Tratado DPC, I, 516), substituição processual é o fenômeno pela qual alguém, autorizado por lei, atua em juízo como parte, em nome próprio e no seu interesse, na defesa de pretensão alheia (Garbagnati. Sostituzione, 212). Como se trata de hipótese excepcional de legitimação para a causa, somente quando expressa na lei ou decorrer do sistema é que se admite a substituição processual. O titular do direito de ação (como autor ou réu) recebe a denominação de substituto processual e, àquele que se afirma titular do direito material defendido pelo substituto em juízo, dá-se o nome de substituído.18

Portanto, a defesa será assumida pelos terceiros incluídos em razão da desconsideração da personalidade jurídica em nome próprio, não havendo que se falar em litisconsórcio ou embargos de terceiro.

Da mesma maneira, tendo os terceiros sido citados para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ali eles exercerão

18 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 290.

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a ampla defesa e o contraditório a fim de afastarem a pretensão de desconsideração postulada e, somente após o trânsito em julgado da decisão que aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, haverá a substituição processual; durante a tramitação do incidente, a ação principal ficará suspensa na forma da lei (art. 134, §3º, do NCPC).

Diante disso, no incidente processual se entabulará e se cumprirá o Modelo Constitucional do Processo, naturalmente com os recursos assegurados em lei, sendo que caberá à parte prejudicada interpor os recursos, sob pena de preclusão e não poder, posteriormente, rediscutir os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica quando da apresentação da defesa ou dos embargos do devedor.

Essa afirmação somente poderia ser mitigada se o incidente for instaurado diretamente no tribunal; aí se poderia dizer de subtração de grau de jurisdição. Nesse caso, a despeito do parágrafo único do art. 136 do NCPC, entendemos que o incidente deverá ser volvido à primeira instância para que ali se faça a instrução e se profira a decisão de primeiro grau, evitando, assim, a subtração de grau jurisdicional e, via de consequência, a inconstitucionalidade da decisão.

Encerrada a instrução do incidente processual, o juiz proferirá decisão interlocutória em que resolverá o incidente. Na forma do inciso IV do art. 1.015 do NCPC, admite-se agravo de instrumento contra esta decisão; sendo, porém, a decisão proferida da lavra de um relator no tribunal, caberá agravo interno contra a decisão, observando-se, neste caso, o direito ao duplo grau de jurisdição, sob pena de nulidade.

Acolhido o pedido incidental de desconsideração da persona-lidade jurídica, transitado em julgado, há que se abrir novamente a fase de defesa (seja ela contestação, embargos do devedor ou impugnação ao cumprimento de sentença) para que estes terceiros incluídos em definitivo no processo principal exerçam suas faculdades processuais e materiais quanto aos fatos e fundamentos constantes da ação principal.

O art. 137 do NCPC prescreve que, se for acolhido o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, a alienação ou a oneração de bens havida em fraude de execução será ineficaz em relação ao requerente do incidente processual. Neste contexto, Henrique Cunha Barbosa escreve com propriedade:

Como mencionado, o art. 137 [nCPC] prescreve que, acolhida a des-consideração da personalidade jurídica, serão considerados ineficazes os atos de alienação ou oneração de bens por parte dos codevedores. O problema, entretanto, é a ressalva de que essa ineficácia abrange apenas as transações havidas “em fraude de execução”, o que remete via de

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consequência às condicionantes burocráticas ou procedimentais do art. 792 [nCPC], se bem que facilitadas pela previsão do §3º ao estatuir que, nos casos de desconsideração, a fraude à execução se verifica a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.19

E o autor, então, arremata:

Em suma, a depender da demora na instauração do incidente e da mo-rosidade em seu desenrolar, mormente quanto a citação dos pretensos corresponsáveis, a norma do art. 137 pode representar uma garantia incompleta, quando não uma pseudo-garantia ao credor. Isso, repise-se, além da provável necessidade de se precisar aguardar a decisão dos Embargos de Terceiro para que se integralize a ineficácia.Lado outro, aos que negociarem bens privados a prudência recomenda desde logo um cuidado redobrado em suas futuras aquisições, soman-do-se às certidões negativas ou de ônus de praxe a de inexistência de incidente de desconsideração movido em desfavor do vendedor, para que não se surpreenda depois com uma evicção indefensável do bem.20

Portanto, é sumamente importante a diligência do credor para que a eventual decisão favorável no incidente de desconsideração da personalidade jurídica tenha a eficácia pretendida. A citação será o ato processual divisor de águas para a aferição da ineficácia das transações patrimoniais.

2.4 Conclusões

Evidentemente, a instituição legal do incidente de desconside-ração da personalidade jurídica pelo Código de Processo Civil de 2015 implicou ganho insofismável na consolidação dos preceitos processuais constitucionais, em especial a ampla defesa e o contraditório.

O incidente certamente suscitará grandes discussões tanto em nível doutrinário quanto em nível jurisprudencial, mormente em razão do fato de que muitos operadores do direito ainda têm muita dificuldade de visualizar a distinção entre as três hipóteses de terceiros responderem

19 BARBOSA, Henrique Cunha. Usos e desusos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. In: PERRUCI, Felipe Falconi; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no Direito Empresarial. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 81.

20 BARBOSA, Henrique Cunha. Usos e desusos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. In: PERRUCI, Felipe Falconi; MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro; LEROY, Guilherme Costa (Orgs.). Os impactos do novo CPC no Direito Empresarial. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 81.

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por obrigações da pessoa jurídica. Isso se dá principalmente no que concerne à confusão entre responsabilização dos sócios, administradores e conselheiros e a desconsideração da personalidade jurídica.

Esperamos que, com o passar do tempo e a consolidação do instituto tanto em nível doutrinário quanto em nível jurisprudencial, a segurança jurídica almejada – não apenas pela Constituição da República, mas também pelos cidadãos – possa se materializar de maneira eficiente.

Naturalmente, ninguém se disporá a investir no país, expondo a risco o patrimônio pessoal, às vezes, amealhado ao longo de gerações, na fundamental atividade empresarial se, depois, poderá ser surpreendido com desconsiderações da personalidade jurídica aplicada de maneira atabalhoada e não técnica.

Conforme muito bem demonstrado por Osmar Brina Corrêa-Lima,21 dois são os princípios capitais que orientam a vida das sociedades: a) as pessoas jurídicas têm existência própria e distinta da dos seus membros; e b) o patrimônio da sociedade e o de seus membros não se confundem – isso era expressamente previsto no art. 20 do Código Civil de 1916.22

Do somatório desses dois princípios surte “o efeito benéfico de encorajar o aparecimento e estimular o desenvolvimento da empresa privada nacional”.23

É claro que, presentes os pressupostos de aplicação da teoria do lifting the corporate veil, ela deve ser aplicada de maneira enérgica a fim de evitar, inclusive, a concorrência desleal e o mal maior para os credores.

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21 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 140.

22 Código de Civil de 1916. Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.

23 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 141.

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GONTIJO, Vinícius Jose Marques. Incidente de desconsideração da persona- lidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 371-385. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 3

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Luciana de Castro BastosRodrigo Almeida Magalhães

3.1 Introdução

O objeto do presente estudo enfoca um dos temas clássicos do direito empresarial, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, expressão nacional da disregard of legal entity ou disregard doctrine do direito anglo-americano, através da qual se busca impedir o uso lesivo ou indevido da pessoa jurídica com o intuito de prejudicar terceiros ou para locupletar-se sem causa aceitável, desconsiderando especificamente e momentaneamente sua autonomia patrimonial, atingindo diretamente aqueles que a estão manipulando.

Para compreender fundamentalmente o instituto, cumpre analisar a sua importância no direito empresarial, primeiramente entendendo melhor a evolução do direito de empresa e a personalização da empresa, para, então, passar à análise dos aspectos gerais e específicos que o caracterizam.

Inicia-se aqui a forma de demostrar a desconsideração da perso-nalidade jurídica nos limites condizentes com o ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando a fraude como elemento intrínseco à convi-vência humana, devendo ser combatida pelo direito.

Ao contrário de outras situações, nas quais a limitação de responsabilida-de patrimonial decorre de imposição da lei, como em certos patrimônios especiais, aqui ela é arquitetada pelo próprio sujeito que dela pretende

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se beneficiar, a partir da declaração de vontade mais suscetível de ser dada com intuito fraudulento.1

Logo, são elencados no ordenamento jurídico alguns instrumentos de combate a esses desvios de conduta e à criatividade humana, que parece não encontrar limites. Dentre eles, está a teoria do abuso de direito, atualmente positivado no Código Civil de 2002, em seu art. 187, que diz: “Art. 187: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

A desconsideração da personalidade jurídica no direito de empresas é uma derivação dessa teoria do abuso de direito e tem a finalidade de conter, reprimir, os “agentes fraudulentos” frente aos abusos cometidos à limitação de responsabilidade em seus direitos e deveres, quando tal limitação é utilizada contra as razões que a condi-cionam, sendo esse instituto o mecanismo pelo qual, judicialmente, seria possível relativizar a contingência do princípio da autonomia patrimonial.

3.2 A evolução do direito de empresa

Para melhor compreensão da teoria, primeiramente faz-se neces-sário demonstrar, de forma sucinta, a evolução do direito comercial ou empresarial em três etapas.

A primeira etapa foi denominada pela doutrina de sistema subjetivo corporativo. Considerada como o início do direito comercial, tratava especificamente das corporações de mercadores, nas quais somente permanecia matriculada uma determinada classe de pessoas, ou seja, somente eram consideradas pelo direito comercial as pessoas que fossem filiadas às corporações de mercadores. Esse período iniciou-se no século XII, estendendo-se até o século XVII, com um direito extremada-mente fechado, rígido e principalmente elitista, isto porque os que não pertenciam às classes de corporações como seus filiados matriculados não eram beneficiados com as prerrogativas do direito comercial.

A segunda etapa foi titulada de sistema objetivo. Iniciou-se em 1804, com o término do liberalismo econômico e a forte influência do sistema francês, em que a teoria dos atos de comércio elenca a atividade

1 PARENTONI, Leonardo Netto. Desconsideração Contemporânea da Personalidade Jurídica: Dogmática e Análise Científica da Jurisprudência Brasileira (Jurimetria/Empirical Legal Studies). São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 49.

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comercial e designa o que é um ato de comércio, com intenção de lucro e certa regularidade.

Já a terceira etapa foi chamada de sistema subjetivo do direito comercial, pelo qual o Código Civil de 2002 traz a teoria da empresa para o direito comercial. Surge, então, o direito empresarial moderno, que apresenta todas as atividades exercidas com habitualidade e com o intuito de lucro como atividades empresariais. Sob influência direta do direito italiano, a teoria da empresa abre um leque de atuação de atividades consideradas empresariais.

Nos ensinamentos de Eduardo Goulart Pimenta, em sua obra Direito Societário: “A empresa, categoria essencialmente econômica, passa, a partir de então, a ser objeto de um corpo organizado e sistematizado de normas jurídicas especialmente voltadas para a regulação de sua existência e funcionamento. Trata-se do que hoje se chama de Direito da Empresa”. E continua: “Se a empresa é uma realidade econômica o Direito da Empresa é, como regime jurídico daquela, uma realidade normativa. São as normas que disciplinam o exercício das atividades de natureza empresária”. 2

Assim, a análise do conceito de empresa no direito comercial brasileiro, com a vigência do Código Civil de 2002, certo ou não, é que assumiu a condição de fator de fundamentação científica de todo um grupo de normas jurídicas apartadas do direito privado comum.

José Maria Rocha Filho afirma que, ‘‘economicamente, a empresa é um organismo que se forma pela organização dos fatores de produção, para satisfazer as necessidades das pessoas, para atender às exigências do mercado”.

O mesmo autor ainda diz que:

[...] quando se fala em empresa, interessa ao Direito: a) regulamentar a atividade daquele que organizou os fatores de produção para satisfazer necessidades alheias, ou seja, a atividade do empresário; b) proteger as ideias inovadoras, criadoras, surgidas com ou em função do exercício daquela atividade; c) disciplinar a formação e a existência daquele conjunto de bens que forma o estabelecimento comercial. Interessa ao Direito, em síntese, a atividade do empresário.3

A teoria da empresa enfatiza o importante papel do ente gerador de riquezas, considerando-o como agente absolutamente distinto da

2 PIMENTA, Eduardo Goulart. Direito Societário. Porto Alegre: Editora Fi, 2017, p. 23.3 ROCHA FILHO. José Maria. Curso de Direito Comercial. v. 1. Parte Geral. Belo Horizonte:

Del Rey, 1994, p. 61-62

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pessoa física do empreendedor e concentrando a segurança jurídica menos em seus componentes e mais na sociedade empresária, uma vez que o interesse social passa a prevalecer sobre o individual, direcionando à sociedade empresária o dever de se voltar para o bem da comunidade em primeiro lugar e ao Estado como agente arrecadador e distribuidor de riquezas aos contribuintes.

Essa atividade ganha importância porque prevalece o interesse social na produção e circulação de bens e serviços. Nessa mudança de foco a pessoa jurídica, que é o agente da atividade empresária, ganha “status” de sujeito capaz, autônomo, independente. E tanto é considerado que seu patrimônio é próprio, distinto dos patrimônios das pessoas físicas dos sócios, a ponto de aquela poder ser desconsiderada (despersona-lização da pessoa jurídica) para responsabilização dos sócios por atos fraudulentos.4

Pelo exposto, ocorre a diferenciação da empresa e do empresário, sendo o último quem exerce a empresa.

3.3 Personalização da empresa

O ente inteligente, complexo e conhecedor dos seus limites como ser humano procurou, em toda a sua história, se cercar de instrumentos facilitadores para o seu desenvolvimento coletivo e individual.

Entretanto, para melhor interpretar o conceito das pessoas jurídicas, é preciso entender que esse ente, individualmente considerado, não é capaz de realizar certos atos, necessitando reunir-se com outros homens, criando um novo ente, dotado de estrutura e personalidade própria, e buscando superar as dificuldades antes encontradas com o objetivo de buscar novas metas, antes inatingíveis.

Nesse norte, Sílvio Rodrigues define pessoa jurídica como “entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”.5

4 GRANDE, João Teixeira. Antecedentes Legais da Falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito Falimentar e a Nova Lei de falências e recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 358.

5 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 31. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 64.

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De acordo com Fábio Konder Comparato, “a pessoa jurídica trata-se de um meio prático para se alcançar um fim, qual seja: a limitação das responsabilidades dos sócios e a autonomia patrimonial”.6

Por sua vez, ensina Orlando Gomes que “as pessoas jurídicas seriam entidades autorizadas pelo direito a atuar no campo jurídico, assegurando-lhes a existência e permitindo-as contrair obrigações e adquirir direitos”.7

Sendo assim, tem-se que as pessoas jurídicas são sujeitos de direitos e obrigações, criados com o objetivo de atingir determinada finalidade, contando, para isso, com uma autonomia própria e indepen-dente de seus sócios.

Entende-se, assim, que a autonomia que ganha a pessoa jurídica, de maneira individualizada dos membros que a compõem, é uma das simples razões pela qual as pessoas comprometem uma fatia de seu patrimônio na atividade empresarial e se aventuram nos “riscos do negócio”. Assim preceitua Susy Koury:

A função do instituto pessoa jurídica de limitar os riscos empresariais, através do reconhecimento da sua existência como distinta da existência de seus membros, que objetiva principalmente estimular o desenvol-vimento das atividades econômicas e contribuir, assim, para o desen-volvimento social, não é evidentemente ilegítima; todavia, a utilização desta situação pode ter, em alguns casos, esse caráter.8

Por conseguinte, ao tratar do perfil corporativo que a empresa assume, Susy Koury reporta Savatier, que, dotando a empresa do conceito de instituição, reconhece-a como pessoa jurídica e entende que “a personalidade jurídica consiste em um ser abstrato tornar-se sujeito de direito. Os direitos repousam em seu nome, em vez de repousarem nos indivíduos que o formam”.9

Essa ideia de empresa como instituição é o ponto principal de caracterização de empresa como pessoa, uma vez que a empresa, ao

6 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de Controle na Sociedade Anônima. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 273 e 278.

7 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 191.8 KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard

doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.9 SAVATIER, René. Les Métamorphoses économiques et sociales du Droit civil d’aujourd’hui.

Paris: Dalloz, 1948, p. 65-72 apud KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 40.

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funcionar em sua complexidade, torna-se subjetiva de tal forma que se personifica separadamente de seus sócios, estabelecimento e afins.

Assim, a noção de empresa como ente dotado de personalidade, em que antes era uma tarefa complexa para os primeiros doutrina-dores do direito comercial, se mostra um exercício fácil nos dias atuais, pois não é raro desconhecer por completo qualquer pessoa ou sócio por trás das empresas, tratando-as de forma inteiramente particularizadas.

Compartilha também dessa ideia Washington Peluso Albino de Souza, ao expressar que “cada vez mais, portanto, a empresa passa a ser considerada um organismo, um ente, com capacidade de praticar a ação econômica, não se confundindo com esta”.10

Cumpre ressaltar, porém, que a discussão doutrinária acerca da natureza da personalização da empresa, sendo ela fruto da realidade fática de sua existência no mundo, ou seja, mero reconhecimento legal, não mudaria de forma significativa sua participação nas relações jurídicas.

Em conformidade com o exposto, Koury atenta para o fato de que, “apesar de a empresa nem sempre ter a sua personalidade jurídica reconhecida no ordenamento, a esta é reconhecida sua existência na sociedade por meio de sua personalidade moral e social, nos ensina-mentos dos mestres Despax e Sishes”.11

Ensina-nos Berle Jr., que bem ilustra esse cenário:

Evidencia-se claramente que não é a lei, com sua ficção de personali-dade jurídica, que fornece o sangue vital e o coração pulsante a esses engenhos. Se a lei, agindo através de um artificio qualquer, declarasse os mesmos não existentes, verificar-se-ia que essas entidades não são fictícias, mas reais. A estrada de ferro continuaria em tráfego (...) os ho-mens agregados a esses consórcios continuariam a fazer o que estavam acostumados a fazer. A coletividade continuaria a esperar ser atendida. Seus fregueses continuariam a pagar as suas contas.12

Desse modo, frente à incontestável personalidade moral e social adquirida pela empresa em exercício, é de se reconhecer a personalidade

10 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico e Economia Política. v. 2. Belo Horizonte: [s.e.], 1971, p. 131.

11 KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 55.

12 BERLE JR., Adolf A.; MEANS, Gardiner C. Societá per azioni e proprietà privata. Trad. Giovanni Maria Ughi. Torino: Giulio Einaudi, 1996, p. 70.

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jurídica à empresa no objetivo de garantir sua permanência. Conforme observa ainda Suzy Koury:

Apesar de a personalidade jurídica não lhe dar vida, pois já a possui, tem personalidade moral, é através dela que ficará assegurada a con-tinuidade e a coesão dessa cédula social fundamental, além do que, ao reconhecê-la, o direito adequar-se-á a uma ordem de ideias mais racio-nal, mais verdadeira, indo ao encontro da realidade social. Assim, contra-riando a afirmação de alguns, no sentido de que ainda não é chegado o momento de ratificação da personalidade da empresa pelo ordenamento jurídico, defendemos a imperiosidade de tal reconhecimento explícito, sob pena de o direito permanecer afastado da realidade.13

Superada, afinal, a controvérsia sobre qual seria o ponto origi-nário da personalização da empresa, é de se concordar com a doutrina majoritária ao defender que o aparato legislativo em que está cercada a pessoa jurídica serve para racionalizar e, ao mesmo tempo, regular por meio da lei um fato no mundo, que é a existência fática da empresa em sua complexa organização direcionada para a sua finalidade.

Deve-se ressaltar sempre o valor que a personalização das pessoas jurídicas tem para o direito, para o desenvolvimento ‒ econômico principalmente ‒ e para o progresso, obtendo, assim, grande peso. Portanto, quando esse valor colidir com outros ‒ v.g., a satisfação dos credores ‒, ter-se-á de escolher pelo mais significativo. Geralmente, predominam as vantagens trazidas pela existência da pessoa jurídica, prevalecendo, outrossim, a personificação. Somente quando um valor maior entrar em ação, com a finalidade social do direito, em descordo com a personificação, é que esta cederá espaço.

Quando o interesse ameaçado é valorado pelo ordenamento jurídico como mais desejável e menos sacrificável do que o interesse colimado através da personificação societária, abre-se oportunidade para a des-consideração sob pena de alteração da escala de valores.14

Pelo exposto, a desconsideração deve ser adotada como caso isolado, e não como regra.

13 KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 56.

14 KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na Lei do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 13, p. 78-86, jan./mar. 1995, p. 80.

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3.4 A teoria clássica da desconsideração da personalidade jurídica

Como exposto, as pessoas jurídicas são sujeitos de direito criados no intuito de atingir determinada finalidade, contando, para isso, com uma autonomia própria e independente de seus sócios.

Isso significa basicamente que a personalização da empresa e a integralização de um patrimônio em separado dos bens de seus membros a elevam a um patamar de determinada segurança, a ponto de os sócios que a compõem possuírem uma estabilidade tal que os permita suportar os riscos da atividade que pretendem exercer sem necessariamente aventurar todo o seu patrimônio pessoal no negócio.

Ante os fatos apontados, entende-se que a união de diversos recursos econômicos com o intuito de exercer uma atividade como empre-sário individual possivelmente seria menos viável. Consequentemente, a associação de tais recursos voltados para um fim específico deve observar os ditames legais para a prática de fins lícitos e adequados aos princípios norteadores do ordenamento jurídico.

No entanto, sempre que a pessoa natural usar a pessoa jurídica para cometer um ilícito, a personalidade jurídica da pessoa jurídica poderá ser desconsiderada e a pessoa natural punida em seu lugar. É a chamada Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, ou disregard of legal entity ou disregard doctrine.15

Tratando-se dessa teoria, sobressaem os estudos de Rubens Requião, um dos precursores da doutrina no Brasil e que, desde os primórdios dos anos sessenta, já discutia a questão:

Se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a com-põem, pois são personalidades radicalmente distintas; se o patrimônio da sociedade personalizada é autônomo, não se identificando com o dos sócios, tanto que a cota social de cada um deles não pode ser penhorada em execução por dívidas pessoais, seria então fácil burlar o direito dos credores, transferindo previamente para a sociedade comercial todos os seus bens. Desde que a sociedade permanecesse sob o controle desse sócio, não haveria inconveniente ou prejuízo para ele que o seu patri-mônio fosse administrado pela sociedade, que assim, estaria imune às investidas judiciais de seus credores.16

15 RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 218.

16 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude, através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p. 410.

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Assim sendo, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica seria um importante instrumento no intuito de a persona-lidade jurídica criada por lei não ser um entrave à eficaz solução de uma demanda, de forma que o direito e a realidade sejam julgados na resolução de um conflito, garantindo a afetação do patrimônio do sócio quando necessário e vice-versa. Como diz César Fiuza, “teoria que visa considerar ineficaz a estrutura da pessoa jurídica quando utilizada desvirtuadamente”.17

Nessa concepção sobre a desconsideração da personalidade jurídica, pode se dizer também que essa teoria se mostra como uma alternativa para solucionar aqueles casos em que o empresário se utiliza da personalidade jurídica para fins diversos de sua função, ou seja, quando a personalidade jurídica se torna instrumento para que a limitação do patrimônio societário fuja aos princípios basilares do ordenamento jurídico pátrio e seus pilares da probidade e da boa-fé.

Admitindo-se, dessa forma, que todo instituto jurídico existente é passível de ter desvirtuada sua finalidade, cabe mencionar a tese de Ascarelli, ao defender que:

A existência de uma sociedade não pode servir para alcançar um escopo ilícito; a existência de uma sociedade não pode servir para burlar as normas e as obrigações que dizem respeito aos seus sócios; a existência de uma coligação de sociedades não pode servir para burlar as normas e as obrigações que dizem respeito a uma das sociedades coligadas.18

Também observa Ascarelli que:

Existe a possibilidade de utilização indireta das sociedades, como nos casos em que, levando em conta a existência da pessoa jurídica, os mem-bros por trás dela executam atos discordantes da intenção do legislador, visando concretizar uma finalidade atípica daquela premeditada para a atividade empresarial.19

À vista disto, sob o véu da limitação patrimonial, os sócios conseguiriam manter a incomunicabilidade entre seu patrimônio e os bens da pessoa jurídica, valendo-se dessa perspectiva para materializar fins atípicos, incompatível com a finalidade das sociedades comerciais.

17 FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 153.18 ASCARELLI, Tullio. Questões a respeito das sociedades coligadas. In: Problemas das Sociedades

Anônimas e Direito Comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 490.19 Neste sentido: ASCARELLI, Tullio. Le unioni di imprese. Rivista del Diritto Commerciale,

Milano, 1935, p. 173.

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O Código Civil de 2002, em seu art. 50, trata da teoria da descon-sideração da personalidade jurídica e, com ele, a norma da disregard doctrine ganha aplicação legal no direito privado. Vejamos:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Verifica-se que a autonomia patrimonial da personalidade jurídica em relação à personalidade dos indivíduos envolvidos nela continua sendo regra, mesmo não constando, no Código Civil de 2002, de enunciado semelhante ao do art. 20 da codificação revogada de 1916, que dizia terem as pessoas jurídicas existência distinta da de seus membros. Tem que se deixar sempre claro que a autonomia da pessoa jurídica é a regra, e a exceção é a sua desconsideração.

3.4.1 Disregard doctrine contemporâneaConforme Fiuza:

[...] a Teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao contrário do que se pode parecer, é uma ratificação do instituto da personalização da pessoa jurídica, na medida em que não a anula; apenas não a consi-dera para certos atos praticados com desvio de finalidade.20

A teoria parte de dois importantes pressupostos: a pessoa jurídica tem personalidade distinta da dos sócios; a responsabilidade destes é limitada.

Essa doutrina só deve ser aplicada quando não for possível respon-sabilizar os sócios pessoalmente, por outros meios já previstos em lei.

Walsir Edson Rodrigues Júnior cita, como exemplo, a transferência de recursos financeiros da sociedade para os sócios ou pessoas ligadas ao sócio com o objetivo de inviabilizar a satisfação de uma dívida exequenda. Caracterizado está o desvio de finalidade e, consequente-mente, a possibilidade de deferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, que pode ser feito incidentalmente na

20 FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 154.

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própria ação de execução a fim de que o patrimônio dos sócios possa ser atingido pela penhora.21

Nesse diapasão, assevera César Fiuza que:

[...] o abuso de personalidade ganhou tipificação aberta, ficando as hipóteses concretas subsumidas às espécies concebidas como desvio de finalidade da pessoa jurídica e confusão patrimonial entre os bens da pessoa jurídica e seus membros. Ocorrerá desvio de finalidade, sempre que a pessoa jurídica não cumprir a finalidade a que se des-tina, causando, com isso prejuízos a terceiros. Além disso, é também desvio de finalidade, ou melhor, de função, o desrespeito ao princípio da função social da empresa. A confusão patrimonial ocorrerá quando não for possível estabelecer claramente o que é da sociedade e o que é dos sócios. Destaque-se que a confusão patrimonial também ocorre nos casos de dissolução irregular da pessoa jurídica, quando desaparecem os sócios e os bens, e remanescem débitos a ser pagos.22

E mais: conforme Raquel Nunes Bravo, “para a teoria da descon-sideração, o abuso ocorre quando o titular de um direito subjetivo extrapola os limites dados pela lei, ou contraria o fim econômico, a boa-fé objetiva (conduta esperada) e social”.23

Só comprovado cabalmente o desvio no uso da pessoa jurídica, é que cabe falar em desconsideração, e consequente sacrifício da respectiva autonomia patrimonial, olvidando a separação entre sociedade e sócios.24

Nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, é importante frisar que é apenas em um afastamento pontual e momen-tâneo da personalidade jurídica para solver crédito em caso concreto, não podendo se falar em extinção.

Tanto Pablo Stolze Gagliano quanto Rodolfo Pamplona Filho entendem que:

O afastamento da personalidade jurídica deve ser temporário e tópico, perdurando, apenas no caso concreto, até que os credores se satisfaçam no patrimônio pessoal dos sócios infratores, verdadeiros responsáveis

21 RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 219.

22 FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 157.23 BRAVO, Raquel Nunes. Sociedades Afetivas: dissoluções e a desconsideração da personalidade

jurídica inversa. Curitiba: Juruá, 2013, p. 66.24 SERICK, Rolf. Apariencia Y realidade em las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por

medio de la persona jurídica. Trad. José Puig Brutal. Barcelona: Ariel, 1958, p. 241.

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pelos ilícitos praticados. Ressarcidos os prejuízos, sem de simultânea responsabilização administrativa e criminal dos envolvidos, a empre-sa, por força do próprio princípio da continuidade, poderá, desde que apresente condições jurídicas e estruturais, voltar a funcionar.25

A desconsideração da personalidade jurídica, dessarte, é meio de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais foi criada, é mecanismo para limitar e coibir seu uso indevido.26 Em razão disso, a personalidade jurídica deve se afastar provisoriamente e em momento determinado.

Nesse sentido, Simone Gomes Rodrigues também defende que “o desvio da entidade jurídica de seus fins, de modo ilegítimo, abusivo, danoso, faz com que deixe de existir, ainda que momentaneamente e apenas para determinados efeitos, razão jurídica para a separação patrimonial”.27

Deve-se sempre reforçar que a disregard doctrine não extingue a pessoa jurídica que sobrevive integralmente. Somente em momento preciso e para fins determinados é descartada a sua autonomia. O juiz “se limita a confinar a pessoa jurídica precisamente à esfera que o Direito lhe reservou”.28

Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica:

[...] não visa destruir ou questionar o princípio de separação da persona-lidade jurídica da sociedade da dos sócios, mas, simplesmente, funciona como mais um reforço ao instituto da pessoa jurídica, adequando-o a novas realidades econômicas e sociais, evitando-se que seja utilizado pelos sócios como forma de encobrir distorções em seu uso.29

3.5 A aplicação da disregard doctrine no Código de Processo Civil de 2015

Em uma perspectiva temporal, constata-se que o Código de Processo Civil de 1973 (Lei nº 5.869) foi sancionado e alcançou a sua

25 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume 1: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 220.

26 VERRUCOLI, Piero. Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella common law e nella civil law. Milão: Giuffrè, 1964, p. 195.

27 RODRIGUES, Simone Gomes. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 11, p. 7, jul./set. 1994.

28 SERICK, Rolf. Apariencia Y realidade em las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por medio de la persona jurídica. Trad. José Puig Brutal. Barcelona: Ariel, 1958, p. 242.

29 SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 35.

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399LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

expressão inicial no momento em que o país estava sob o governo da ditadura militar. Decerto, mitigou diversas garantias e direitos fundamentais e, consequentemente, deixou várias lacunas no tocante ao procedimento a ser adotado na aplicação da disregard doctrine, especialmente em se tratando da discussão a respeito do embate entre a garantia dos direitos dos credores e o direito ao devido processo legal e seus pilares do contraditório e da ampla defesa.

Nesse quadro, a Carta Magna de 1988 simbolizou um marco significativo na conquista de direitos na história do povo brasileiro, vez que estabeleceu, na República Federativa do Brasil, o Estado Democrático de Direito.

É notório que, pelo fato de o Código de Processo Civil de 1973 ser anterior à atual conjectura constitucional brasileira, este diploma permaneceu por anos postulando reformulações, vez que seu teor não condizia mais com a nova condição legislativa do país.

No que se refere à disregard doctrine em si, a sua aplicação ocorria amparada por uma jurisprudência oscilante à luz dos princípios gerais do direito, de modo que, no aspecto processual, a prática corrente da desconsideração da personalidade jurídica era habitualmente utilizada na fase de execução e no cumprimento de sentença, podendo ocorrer, algumas vezes, abusos por sua indiscriminada ação, tornando-se neces-sária a inserção desse dispositivo no Código de Processo Civil de 2015.

Assim, depois de extenso debate e desenvolvimento, foi aprovado o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), que passou a vigorar em 16 de março de 2016.

Como anteriormente demonstrado, a positivação da desconsi-deração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro deu seus primeiros passos com o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Posteriormente, outros diplomas consagraram essa teoria, a exemplo da Lei Antitruste, em seu artigo 18, e da Lei nº 9.605/98, referente aos prejuízos ambientais. Em seguida, em 2002, o então novo Código Civil postulou a disregard doctrine em seu artigo 50.

Desse modo, nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro legitimou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em vários diplomas e hipóteses de aplicação, mas nem sempre de forma clara e objetiva o suficiente para que a jurisprudência, não obstante, nos surpreendesse com decisões notavelmente discrepantes.

A partir da edição do Código de Processo Civil de 2015, foi instituído um procedimento (nos artigos 133 a 137 da lei) que confere segurança jurídica à aplicação do instituto, afastando o casuísmo e garantindo previsibilidade.

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Ilustra esse cenário Guilherme Rizzo Amaral, o qual ensina que:

A jurisprudência já vinha reconhecendo, sob a égide do CPC revogado, a possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica dar-se incidentalmente no processo, prescindindo, assim, de ação autônoma para a sua efetivação. Contudo, a ausência de procedimento específico previsto em lei gerava insegurança jurídica, na medida em que nem sempre se observava a também reconhecida necessidade de citação do sócio para se efetivar a desconsideração. Não raro, a desconsideração da personalidade jurídica e a penhora de bens dos sócios davam-se em decisão interlocutória não precedida do contraditório, obrigando o terceiro atingido em sua esfera jurídica pela decisão a voltar-se contra ela por meio de agravo de instrumento que não substitui, em hipótese alguma, a defesa que poderia e deveria ser apresentada em primeiro grau de jurisdição. Os artigos 133 a 137 do atual CPC, vieram, assim, trazer segurança jurídica ao tema da desconsideração, transformando em lei o procedimento que já vinha sendo aplicado pela jurisprudência do STJ em diversos julgados.30

Dessa forma, pode-se considerar um significativo avanço legis-lativo, o que ocorreu com o novo diploma processualista de 2015, vez que foram criadas certas formalidades que permitirão a aplicação da teoria da disregard doctrine de forma mais razoável e segura.

O Código de Processo Civil de 2015 realça, de forma especial, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, contando com um capítulo autônomo destinado à intervenção de terceiros, regulando a matéria em nível processual como tema incidente e disciplinar à aplicação do instituto no direito processual pátrio, qual seja, o capítulo IV do título II, denominado justamente “Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica”.

Antes, porém, é importante sublinhar que o incidente processado não versa em autos apartados, uma vez que o Código de Processo Civil de 2015 dispensou esta técnica, comum no Código de Processo Civil de 1973, suprimindo-a em conjecturas clássicas, como a exemplo do incidente de falsidade documental, contido no art. 430. Em tese, o debate dar-se-á, contudo, no interior do processo, em que, debatida a questão principal e objetivando a simplificação, nada opõe que, em uma situação concreta, o magistrado possa decidir pela autuação apartada se houver justificativa para que o processo prossiga no trato das questões principais ou se assim recomendar a organização do incidente, principalmente se

30 AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 357.

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401LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

houver outros pedidos, ocasionalmente cumulados que, com o tema incidental, não se relacionem.

O art. 133 e seus parágrafos respectivos iniciam apresentando a disregard doctrine em sua forma incidental e prelecionam que:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.§1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.§2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

A redação do art. 133 do Código de Processo Civil de 2015, que cuida desse incidente, em definitivo deve enterrar a tese de que o dispositivo jurídico deve ser aplicado por meio de ação autônoma na justiça, visto que o texto, em qualquer processo ou procedimento, permite ao juiz operá-lo.

Primeiramente, fica evidente nesse dispositivo que o magistrado só atua se as partes forem provocadas e que, se não houver pedido expresso da parte ou do Ministério Público, o julgador fica impedido de promover o afastamento da personalidade jurídica.

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica não pode ser instaurado de ofício, dependendo sempre de provocação da parte interessada ou, quando atue no processo, do Ministério Público. O dispositivo está em plena consonância com o que dispõe o artigo 50 do CC/2002, que expressamente exige provocação da parte (ou do Ministério Público) para a desconsideração da personalidade jurídica, mas vem eliminar o risco de que, nas causas previstas na legislação consumerista, se desse ao artigo 28 do CDC (que é silente sobre o ponto) interpretação no sentido de que ali seria possível desconsiderar-se ex officio a personalidade jurídica. Fica claro, então, que a desconsideração da personalidade jurídica jamais poderá ser decretada de ofício, depen-dendo, sempre, de provocação.31

Pode-se constatar com a redação desse dispositivo legal que, sob a égide do novo diploma, fica extinta a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica ex officio pelo juiz sem que haja a participação da parte diretamente afetada ou o devido processo legal, porquanto o

31 CÂMARA, Alexandre Freitas. In: WAMBIER, Teresa Arruda et al. (Coords.). Breves comentários do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 515-516.

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incidente procederá com a citação do polo passivo e, como de hábito, poderá ser provocada por meio de agravo de instrumento32 ou por agravo interno, se esta tiver sido prolatada em segunda instância.

Todavia, a vedação à atuação ex officio do magistrado no tocante à penetração da personalidade jurídica comporta exceções:

Há casos especiais em que a legislação permite adoção de medidas de ofício pelo juiz em decorrência da desconsideração da personalidade jurídica, como ocorre no art. 82, parágrafo 2º da Lei 11.101 (Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária). Trata-se, contudo, de exceção à regra geral estabelecida no CPC.33

A seguir, percebe-se também que, ao prescrever no §1º do artigo 133, que reza que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica deve observar “os pressupostos previstos em lei”, o legislador nos recomenda que o juiz utilize tal teoria sob a luz dos ditames legais e princípios norteadores do direito brasileiro, com o escopo de evitar possíveis arbitrariedades.

O inciso II do referido artigo nos chama a atenção, uma vez que refere a outra modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, em que quem comete a fraude e o desvio de finalidade é o sócio, e não a administração da empresa em si.

Em tal caso, aplica-se o que se convencionou chamar de descon-sideração da personalidade jurídica inversa e, diante disso, os bens do sócio são o alvo da execução, sendo necessário desconsiderar-se a personalidade jurídica para que estes possam ser atingidos.

O artigo 134 do códex dispõe que:

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.§1º: A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.§2º: Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

32 Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:IV – incidente de desconsideração da personalidade jurídica;

33 AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 362.

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403LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

§3º: A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipó-tese do §2º.§4º: O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupos-tos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Ademais, em homenagem à garantia da duração razoável do processo e à celeridade processual, percebe-se não se tratar de uma ação autônoma, e sim de um incidente processual, apresentando-se em qualquer etapa do processo, quer seja fase de conhecimento, cumpri-mento de sentença ou mesmo execução de título executivo extrajudicial.

É claro que poderá o órgão julgador julgar inconveniente a instaura-ção do incidente em determinados casos e, com isso, indeferi-la, sem prejuízo de renovação de requerimento posterior. Isto porque, se a desconsideração da personalidade jurídica serve para que ‘os efeitos de certas e determinadas sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens da empresa do mesmo grupo econômico’, não haveria interesse processual em se instaurar o incidente, por exemplo, em grau de apelação contra sentença que julgou improcedente a demanda, na medida em que nem sequer o reconhecimento da obrigação do réu verificar-se-ia na hipótese.34

Reforça Guilherme Rizzo Amaral:

O legislador optou pela dispensa de ação própria para o fim da descon-sideração. Assim, o NCPC, ao reservar o espaço do incidente para o trato da questão, reafirmou o caráter sumário do debate a ser estabelecido. Embora não haja restrições na Lei acerca de tipos de prova ou prazos, o fato é que não se pode imaginar a amplitude do debate peculiar ao de uma ação própria travestida em incidente, sobretudo quando proposto no curso do processo de conhecimento.35

O §3º do art. 134 reza sobre a suspensão do processo no momento da instauração do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, exceto se requerida na petição inicial, momento em que a sociedade ou o sócio serão citados para responder dentro do prazo para a defesa. Nesse período de suspensão, fica resguardada ao magistrado a prerrogativa de estabelecer atos urgentes de acordo com o disposto no

34 AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 364.

35 Nesse sentido, WALBIER, Tereza Arruda Alvim et al. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, p. 252 e 255.

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art. 314.36 “Frise-se, que independentemente da suspensão, o incidente deve ser decidido antes do mérito, uma vez que seu resultado pode inserir novos réus, os quais terão suas garantas processuais violadas se contra eles incidir decisão prolatada anteriormente.”37

Interessante anotar a consagração dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório nos casos de instauração do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, que determina a citação do polo passivo ao sócio ou à pessoa jurídica, como já dito, que poderá se manifestar com o prazo regular de 15 dias e especificar provas, se entender necessário, conforme determina o art. 135: “Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”.

O sócio ou a pessoa jurídica são citados com todas as formali-dades e consequências características do ato citatório que estão contidas nos arts. 238 a 259, procedendo-se ao registro na distribuição, referido no art. 134, §1º, e, dependendo do objeto da discussão incidental, o registro, por extensão, da presença do incidente nos moldes do art. 828,38 que dispõe sobre a desconsideração da personalidade jurídica em execução pecuniária ou do art. 167, I, nº 21, da Lei nº 6.216/75,39 que trata da teoria em demandas de natureza real ou reipersecutória. Esses registros, sempre que cabíveis, têm por escopo proteger o requerente contra a alienação de patrimônio pelo terceiro, nos termos do art. 137.40

36 Art. 314. Durante a suspensão é vedado praticar qualquer ato processual, podendo o juiz, todavia, determinar a realização de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável, salvo no caso de arguição de impedimento e de suspeição.

37 DONIZETTE, Elpídio. Novo Código de Processo Civil Comentado (Lei Nº 13.105 de 16 de março de 2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC /73. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 115.

38 Art. 828. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade.§1º: No prazo de 10 (dez) dias de sua concretização, o exequente deverá comunicar ao juízo as averbações efetivadas.§2º: Formalizada penhora sobre bens suficientes para cobrir o valor da dívida, o exequente providenciará, no prazo de 10 (dez) dias, o cancelamento das averbações relativas àqueles não penhorados.§3º: O juiz determinará o cancelamento das averbações, de ofício ou a requerimento, caso o exequente não o faça no prazo.§4º: Presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação.§5º: O exequente que promover averbação manifestamente indevida ou não cancelar as averbações nos termos do §2º indenizará a parte contrária, processando-se o incidente em autos apartados.

39 Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:I – o registro (...) 21) das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis;

40 Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

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405LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Referindo-se à citação do art. 135, acresce Cassio Scarpilella Bueno:

A citação (e não mera intimação) dos sócios ou terceiros é indispensável, estabelecendo-se, se maneira incidental no processo em curso, inde-pendentemente da fase em que ele se encontre, o cabível contraditório entre a existência, ou não, de fundamento para a desconsideração da personalidade jurídica pretendida. O prazo para a defesa é de 15 dias.41

A respeito do art. 136, o legislador foi coerente ao estabelecer o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como uma decisão interlocutória, visto que, conforme o §1º do art. 20342 deste diploma processual, é considerado sentença “o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. Assim, como a decisão que resolve este incidente não extingue a fase cognitiva, nem a executiva do processo, será enquadrada como decisão interlocutória, como disposto no §2º do art. 203. Nesse contexto, o art. 136 deverá ser interpretado conjuntamente com o art. 1.015, IV,43 que dispõe sobre a possibilidade de ser questionada por meio de agravo de instrumento a decisão que resolve o incidente, pois, em tese, são irrecorríveis as decisões interlocutórias. “Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.”

Cumpre destacar que, com o provimento do incidente, a pessoa jurídica ou o sócio passará à condição de litisconsorte, tornando-se parte no processo, inclusive no processo de execução.

Ante os fatos apontados, levando-se em consideração todas as inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, no entendi-mento da doutrina, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica não suprimiu de forma cabal a prerrogativa que possui o juiz, com base em sua discricionariedade, de atingir os bens dos sócios em causas, por exemplo, que demandem medidas liminares.

41 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 134.

42 Art. 203. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.§1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pro-nunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.§2º Decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no §1º. (...)

43 Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: (...)IV – incidente de desconsideração da personalidade jurídica; (...)

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406 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Melhor dizendo, nas demandas que implicam pedido de anteci-pação dos efeitos de tutela ou pedidos liminares no propósito de desconsiderar a personalidade jurídica, a tutela de urgência poderá ser concedida inaudita altera parte, e o contraditório poderá ser deferido na medida em que estejam presentes requisitos tradicionais para o deferi-mento da concessão de liminar ou da tutela antecipada.

Esse conjunto de alterações processadas no sentido de garantir o contraditório no procedimento da disregard doctrine pode dar a impressão de que este códex se preocupou em excesso com a segurança patrimonial dos sócios a serem executados.

Desse modo, cumpre ressaltar, no entanto, “que não há elementos que impeçam o magistrado de, no exercício de seu poder geral de cautela, conceder tutela que aproxime a aplicação do dispositivo à resolução útil do processo”.44

Em conformidade, assevera Daniel Amorim Assumpção Neves:

O Novo Código e Processo Civil prevê um incidente processual para a desconsideração da personalidade jurídica, finalmente regulamen-tando seu procedimento. Tendo seus requisitos previstos no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 50 do Código Civil, faltava uma previsão processual a respeito do fenômeno jurídico, devendo ser saudada tal iniciativa. Segundo o art. 1062 do Novo CPC, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais. Nos termos do art. 795, §4º, do Novo CPC, para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto no Código.A norma torna o incidente obrigatório, em especial na aplicação de suas regras procedimentais, mas o art. 134, §2º, do Novo CPC consagra a hipótese de dispensa do incidente. A criação legal de um incidente processual afasta dúvida doutrinária a respeito da forma processual adequada à desconsideração da personalidade jurídica.45

Logo, conclui-se que, em se tratando da muito discutida teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o Código de Processo Civil de 2015 dedicou-se com prontidão a assegurar o contraditório das empresas e sócios, protegendo a segurança patrimonial destes, com o intuito de coibir a aplicação descabida da teoria da disregard doctrine pelo judiciário.

44 COSTA, Daniel Carnio. Considerações sobre o poder geral de cautela. Revista Científica Integrada – Unaerp, Campus Guarujá, n. 1, mar. 2012.

45 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Método, 2015, p. 141.

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407LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

O grande temor dos aplicadores da teoria está no fato de que, antes, o instituto da disregard doctrine era aplicado com agilidade, mas de forma insensata em várias situações. Com a nova regularização, deverá ganhar em plausibilidade, mas poderá perder em celeridade.

Enfim, o que se percebe, em várias oportunidades, é que o ritua-lismo e o procedimentalismo dificultam em demasia a efetividade.

3.6 Conclusão

O artigo teve por objeto a análise da desconsideração da perso-nalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015.

O legislador foi cuidadoso ao estabelecer a possibilidade da ampla defesa e contraditório antes da aplicação do instituto. Isso possibilita a manifestação da parte antes de ter invadido o seu patrimônio.

Teve ainda a preocupação de acelerar o processo, no sentido de torná-lo mais efetivo, ao colocá-lo como um incidente processual.

Apesar de todas essas preocupações, o instituto ficou mal estabe-lecido. A desconsideração da personalidade jurídica é feita para salvar o patrimônio do empresário e responsabilizar quem efetivamente praticou o ato. Na forma em que ficou estabelecido no Código de Processo Civil, o instituto é uma ampliação da responsabilidade para os sócios e administradores que efetivamente praticaram o ato abusivo, e não uma efetiva desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar quem praticou o ato danoso.

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409LUCIANA DE CASTRO BASTOS, RODRIGO ALMEIDA MAGALHÃES A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BASTOS, Luciana de Castro; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida. A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 387-409. ISBN 978-85-450-0456-1.

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CAPÍTULO 4

NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES1

Pedro D’Angelo RibeiroRoberto Henrique Pôrto Nogueira

4.1 Considerações iniciais

A dissolução parcial de sociedades é de suma importância para viabilização da continuidade e preservação da empresa.

O Código de Processo Civil anterior2 (CPC anterior) manteve a disciplina de seu antecessor3 no que tocava à dissolução e liquidação de sociedades. Voltada à dissolução total e liquidação das sociedades, havia ausência de um rito processual que permitisse resolver a sociedade apenas em relação a um ou alguns sócios.

Naquele cenário, o direito material que disciplinava a disso-lução e liquidação das sociedades era proveniente do antigo Código Comercial,4 que refletia o pensamento individualista da época, que

1 Parte deste trabalho conta com o apoio do Auxílio Pesquisador/UFOP.2 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Diário Oficial da União: Institui o Código de

Processo Civil. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

3 BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de janeiro de 1939. Clbr: Código de Processo Civil. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

4 BRASIL. Lei nº 556, de 25 de junho de 1850. Código Comercial. Coleção de leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0556-1850.htm>. Acesso em: 25 ago. 2010.

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412 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

concebia como causas de dissolução da empresa eventos estritamente ligados à pessoa do sócio.5

À luz do Código Civil italiano, a jurisprudência passou a reconhecer a possibilidade de dissolução parcial requerida pelo sócio dissidente da antiga sociedade por quotas como verdadeiro direito potestativo, similar à mecânica da sociedade por ações.6 Contudo, diante da falta de regulamentação pelo direito material e processual, havia fortes dissensos jurisprudenciais refletindo na fórmula utilizada de apuração de haveres, no momento da exclusão do sócio dissidente e, ainda, na aplicação supletiva das leis de dissolução atinentes às sociedades anônimas.7

A carência de regulamentação legal foi relativizada com o advento do Código Civil8 (CC), que positivou a disciplina referente à dissolução parcial das sociedades sob o título de “resolução da sociedade em relação a um sócio”, denominação que, inclusive, foi alvo de críticas9 da doutrina.

O Código de Processo Civil vigente10 (NCPC) introduziu no ordenamento pátrio o regime processual próprio da dissolução parcial de sociedade.

O objetivo do trabalho teórico-dogmático que pretende imple-mentar investigação jurídico-comparativa é traçar um paralelo entre o procedimento anterior de dissolução parcial, sobretudo nas sociedades limitadas, e o novo procedimento especial, buscando identificar em que medida houve a superação de antigos entraves.

5 COMPARATO, 1990 apud NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Dissolução Parcial de Sociedades. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 13-15.

6 COMPARATO, 1990 apud NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Dissolução Parcial de Sociedades. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 13-15.

7 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 76-78.

8 BRASIL. Lei Federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 27 ago. 2012.

9 Fábio Ulhoa Coelho critica a designação legal, asseverando que nem todas as hipóteses são de resolução; a hipótese contida no art. 1029, que tem por base a retirada imotivada do sócio, é de resilição do contrato da sociedade (COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 165. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015).

10 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de janeiro de 2015. Diário Oficial da União: Código de Processo Civil. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 12 maio 2015.

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413PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES

4.2 Dissolução parcial das sociedades antes do Código de Processo Civil de 2015, de acordo com o Código Civil de 2002

O CC encarregou-se da disciplina material relacionada ao que se entende genericamente como “dissolução parcial das sociedades”, tratada como uma ruptura limitada do contrato social.11 Passou a contemplar as hipóteses já antes observadas pela construção jurispru-dencial existente, com ligeiras modificações.

Desse modo, numa visão ampla, isso possibilitou o desligamento do sócio sem haver necessidade de extinguir completamente a sociedade. Feito isso, algumas das hipóteses elencadas ocorrem sem a necessidade de um processo de conhecimento para a ruptura do contrato social, que, no presente trabalho, se define como dissolução extrajudicial ou de pleno direito.

As modalidades existentes de dissolução parcial são definidas como: direito de retirada e recesso; exclusão do sócio; dissolução convencionada no contrato social; dissolução judicialmente decretada; falência do sócio; retirada do sócio contemplada pelo contrato social; e, por fim, a morte do sócio.12

O direito de retirada é aquele exercido pelo sócio mediante mera manifestação de vontade unilateral e que impõe à sociedade a obrigação de reembolsar o investimento anteriormente feito na forma do valor das quotas sociais. A retirada, portanto, é direito potestativo irrenunciável e indivisível que opera sempre ex nunc, ou seja, produz efeitos apenas depois que efetivamente exercido.13

O direito de retirada divide-se em duas modalidades: a retirada motivada e imotivada. A retirada motivada, convencionalmente chamada de direito de recesso, pode decorrer da alteração do contrato social, que acarreta mudanças na estrutura social, causando a dissidência do sócio. É cabível em qualquer tipo de sociedade limitada, seja por prazo determinado ou indeterminado.14 São também elencadas como

11 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 3.

12 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 3.

13 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 11.

14 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 144. Trimestral. Disponível em:

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razões que autorizam a retirada motivada, a incorporação e a fusão.15 A retirada imotivada geralmente decorre do desinteresse de um dos sócios em manter-se na empresa, em suas atividades ou no convívio social. É cabível a retirada imotivada se satisfeitas duas condições: a) seja a sociedade regida supletivamente pelas regras da sociedade simples; e b) seja o contrato social vigente por prazo indeterminado.

Para a doutrina, ao menos antes do NCPC, tendia a prevalecer a posição de que a retirada se efetivava assim que a sociedade fosse cientificada pelo sócio, produzindo efeitos perante terceiros a partir do registro no órgão competente.16

A exclusão do sócio remete ao seu afastamento compulsório, quando haja descumprimento de obrigações sociais. É promovida pelos sócios remanescentes, que desejam permanecer unidos sob o vínculo societário. Independentemente de ser promovida judicial ou extrajudi-cialmente, admite-se apenas a exclusão motivada, em razão de o sócio incorrer nas causas autorizadoras elencadas em lei, no contrato social, além de outras não prescritas pelo legislador que possam eventualmente surgir. A primeira hipótese, prevista no art. 1.004 do CC, permite, no caso de um dos subscritores do capital, mostrar-se inadimplente quanto à integralização das quotas, que seja operada a exclusão do sócio remisso, pagando-se, evidentemente, as prestações por ele saldadas ou reduzindo o capital social. Salvo disposição em contrário no contrato social, faz-se necessária a interpelação do sócio devedor para que este seja constituído em mora. Quando decretada a falência do sócio, também é imposta a sua exclusão, conforme art. 1.030. A falência do sócio não significa, por óbvio, que a sociedade se dissolve de pleno direito. Em verdade, ela acarreta tão somente a exclusão do falido dos quadros sociais, diante da necessidade de arrecadação de seus ativos naqueles autos de execução concursal. Procede-se, nesse caso, à apuração de haveres, na forma do art. 1.031 do CC. Caso a exclusão do sócio falido acarrete ou evidencie a impossibilidade de continuidade da atividade empresarial pela sociedade, e esta venha a falir, a arrecadação de sua participação

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

15 Ao revés, pode levar a interpretações restritivas e equivocadas em relação à cisão e à transformação, já que as referidas operações de incorporação societária não são mencionadas como hipóteses de retirada no art. 1.077 do CC, induzindo o magistrado ao erro, conforme FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 14.

16 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 11.

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no acervo depende do prévio pagamento de todo o passivo social, na inteligência do art. 123, §1º, da Lei nº 11.101.17 A terceira possibilidade de exclusão de sócio encontra previsão no art. 1.026, parágrafo único, segundo o qual: “Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até noventa dias após aquela liquidação” (CC). Trata-se da liquidação de quota social por credor particular do sócio ante a insuficiência de seus bens, de modo que o capital social deve sofrer a redução correspondente à quota liquidada. Em relação aos sócios minoritários na sociedade limitada, tem lugar, ainda, a exclusão extrajudicial ou administrativa, estabelecida no art. 1.085 (CC).

O CC, observando a orientação vigente no direito estrangeiro e a tendência da jurisprudência pátria, positivou, em seu art. 1.028, que, com algumas exceções, a morte do sócio implica apenas liquidação da sua quota, e não a dissolução da sociedade.

A dissolução parcial propriamente dita já vinha sendo deferida em homenagem ao princípio da preservação da empresa, sempre que houvesse a quebra do vínculo social (affectio societatis) nas sociedades por prazo indeterminado.18

4.3 Dissolução parcial: aspectos controversos anteriores ao Código de Processo Civil de 2015

O procedimento da ação de dissolução parcial,19 em aspecto processual, funcionava socorrendo-se das regras do procedimento comum ordinário, porém, com características peculiares ao gênero. Tal carência, conforme leciona Priscila Fonseca,20 levava o intérprete a socorrer-se ora de normas referentes ao procedimento de dissolução

17 BRASIL. Lei nº 11.101, de 09 de janeiro de 2005. Diário Oficial da União: Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

18 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 62-63.

19 Opta-se, aqui, por diferenciar processualmente a fase de dissolução propriamente dita e a fase de apuração de haveres, que, conforme exposto, já podia ser deflagrada sem a necessidade de processo de conhecimento anterior para a alteração do contrato social, que também já ocorria de pleno direito, com características peculiares.

20 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 75.

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total ainda em vigor e que remete aos arts. 655 usque 674 do Código de Processo Civil,21 ora do regramento relativo à dissolução, liquidação e extinção das sociedades por ações, contido na Lei nº 6.404.22 Assim, tinha lugar sempre que não havia possibilidade de resolução do vínculo através da via contratual ou extrajudicial, ou havia pretensão resistida entre o sócio afastado e os demais referente à ruptura do contrato social.

No entanto, a aplicação dessas normas parecia contraditória, uma vez que as finalidades dos institutos eram opostas na medida em que a dissolução parcial já objetivava preservar a empresa, enquanto a dissolução total sempre ocasionou a extinção da sociedade por completo. Tal panorama era terreno fértil para controvérsias.

4.3.1 Dos atos relativos à liquidação de sociedades na dissolução parcial

A aplicação das normas relativas à dissolução total e liquidação societária contidas no Código de Processo Civil23 e na Lei nº 6.404 à disso-lução parcial ocasionava incongruências normativas. Afinal, neste último cenário, “(...) não há que se falar em liquidação do ativo e do passivo e, portanto, sequer em nomeação do liquidante, pois nesta não há lugar para semelhante função”.24 A rigor, “[e]fetivamente, nada justifica, na dissolução parcial, a investidura de pessoa diversa do liquidante para a prática de atos que só a ele são atribuídos”.25 Nessa senda, também nada explicava que, na ação de dissolução parcial, fosse atribuída pelo magistrado, a quem quer que seja, prática de atos privativos delegados ao liquidante em dissoluções de sociedades anônimas, contidos nos arts. 210 e 211 da lei de regência.26 Porém, não obstante a manifesta

21 BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de janeiro de 1939. Clbr: Código de Processo Civil. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

22 BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de janeiro de 1976. Diário Oficial da União: Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

23 BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de janeiro de 1939. Clbr: Código de Processo Civil. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

24 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 76.

25 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 76.

26 BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de janeiro de 1976. Diário Oficial da União: Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

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incompatibilidade de funções, não eram poucos os magistrados que, socorrendo-se da analogia, outorgavam ao liquidante a tarefa de apurar os haveres correspondentes à participação devida ao sócio retirante.27 Este era o entendimento sedimentado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) até o começo da década passada.28

Em sentido oposto, a Quarta Turma do STJ, em julgado mais recente,29 ainda naquele contexto anterior ao NCPC, entendeu que apenas a figura de um perito contador (eventualmente podendo ser assessorado por outros profissionais especializados em avaliar bens) era concebível,30 de modo que a ele não poderia competir representar a sociedade em juízo (sociedade que nem mesmo se encontra sob intervenção judicial), alienar bens pertencentes ao ativo social, pagar o passivo, promover a cobrança de dívidas e outros atos incompatíveis com sua função.

Ficava, então, instalada a dúvida, pois a mesma Corte Superior parecia apresentar entendimentos dissonantes em relação ao tema, demonstrando o equívoco causado pela aplicação analógica de normas estranhas à finalidade pretendida.

4.3.2 Possibilidade de dissolução parcial nas sociedades anônimas de capital fechado

A dissolução parcial foi concebida no âmbito das sociedades limitadas. Porém, indagava-se se era aplicável às sociedades anônimas.

Os argumentos contrários baseavam-se, sobretudo, na impossibi-lidade jurídica do pedido, eis que a lei que rege as sociedades anônimas já contemplaria o direito de recesso; e no fato de que não se poderia aplicar às sociedades anônimas, constituídas com intuitu pecuniae, normas e critérios próprios das sociedades de pessoas.31

27 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 77.

28 STJ – REsp: 315915 SP 2001/0038521-4, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Data de Julgamento: 08.10.2001, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 04.02.2002, p. 352, RNDJ, vol. 28, p. 145.

29 STJ – REsp: 242603 SC 1999/0115786-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 04.12.2008, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18.12.2008.

30 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 78.

31 Constam precedentes nesse sentido no STJ (REsp. nº 419.174-SP; REsp nº 171354-SP; AgRg. no Ag. nº 34.120-8/SP) e nos Tribunais, como os de São Paulo (Ap. nº 26.887-7) e Minas Gerais (Ap. nº 1.0702.02.036439-5/001), conforme elucida FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 87.

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A preservação da empresa justificaria a possibilidade jurídica do pedido, tanto quanto nas sociedades limitadas. Quanto ao segundo ponto, o foco é o intuitu pecuniae inerente às sociedades anônimas. Sustenta a autora que a lei das sociedades anônimas compreende uma pluralidade de tipos societários regulamentados. Dentre eles, em especial nas companhias fechadas, “[...] podem-se entrever sociedades tipicamente de pessoas, nas quais o papel dos acionistas não se resume ao aporte de capital, mas vai mais além, já que a colaboração deles na administração de tais sociedades pode se denotar fundamental”.32

Na esteira de julgados anteriores,33 que reconheceram a possibi-lidade da dissolução da sociedade de capital fechado pela quebra de affectio societatis, o STJ firmou entendimento,34 mantendo-o no decorrer dos anos seguintes.35

Ainda assim, mesmo com entendimentos doutrinários e juris-prudências no sentido da possibilidade de dissolução, ainda havia controvérsias sobre a aplicabilidade prática, pois havia a necessidade de observar cada caso individualmente pela falta de regulamentação legal a respeito do tema.

4.3.3 Legitimidade passivaÀ sentença proferida em ação de dissolução parcial já era

reconhecida natureza dúplice, por decretar o desligamento do sócio e a ruptura parcial do contrato social (constitutiva negativa), além de deflagrar o processo de apuração de haveres (condenatória).

Priscila Fonseca36 já sustentava que “[...] tal decisão, ao referendar o desligamento do sócio, determinará forçosa alteração do contrato social, circunstância que exigirá a presença de todos os sócios no polo passivo da ação”. Lado outro, a decisão que determinava a apuração do valor e pagamento dos haveres refletiria diretamente no patrimônio da sociedade, motivo pelo qual, continua a autora, “[...] a sociedade, obrigatoriamente, deverá integrar a lide, em litisconsórcio necessário, com todos os demais sócios”.37

32 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 70.

33 TJSP, Terceira Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 324.222-4/0-00, 2004.34 BRASIL, STJ, – REsp: 651722 PR 2004/0048237-2.35 BRASIL, STJ, AgRg no REsp: 1079763 SP 2008/0171572-0.36 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 102.37 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 102.

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Porém, o entendimento exarado pela nobre professora não era pacificado pela jurisprudência. O STJ tendia à exigência do litisconsórcio passivo necessário entre a sociedade e os sócios para mitigá-la no caso concreto.38 Havia julgados39 que consideravam dispensável a citação da sociedade quando todos os sócios remanescentes já tivessem sido devidamente cientificados.40

4.3.4 Legitimidade ativaA questão da legitimidade ad causam sempre foi objeto de

controvérsia em sede de dissolução parcial das sociedades. O dissídio se instaurava, principalmente, em torno daqueles que, em razão de partilha, seja esta decorrente de meação, seja decorrente de inventário, viessem a receber quotas como parte do patrimônio.41

Assim, a jurisprudência sedimentou, em relação aos herdeiros, que a transmissão da herança não implica a transmissão automática do estado de sócio.42 Ao contrário, quando se trata de sociedade intuitu personae, os sócios remanescentes podem impedir a entrada dos herdeiros caso não haja previsão expressa em contrário no contrato social.

Então, não restavam dúvidas que tanto os herdeiros do sócio pré-morto quanto a própria sociedade, esta última por ter também interesse, já possuíam legitimidade ativa para a propositura da ação, dependendo apenas do contexto e da possibilidade de os herdeiros ingressarem ou não na sociedade.43

Quanto ao ex-cônjuge, há grande descompasso em relação à visão pretoriana e ao atual regramento legal pertinente ao tema. O STJ consolidou o entendimento no sentido de que “[o] cônjuge que recebeu em partilha a metade das cotas sociais tem legitimidade ativa para apurar os seus haveres”.44

38 BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 788886 SP 2005/0165148-7. BRASIL, STJ – REsp: 813430 SC 2006/0020520-0.

39 Ver em: BRASIL, STJ – Recurso Especial nº 332650 RJ 2001/0092909-8; BRASIL, STJ – Recurso Especial nº 735207 BA 2005/0034846-9.

40 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 105.

41 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

42 BRASIL, STJ – Recurso Especial nº 537611 MA 2003/0051041-8.43 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 101.44 BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 114708 MG 1996/0075143-9.

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A contrario sensu, o art. 1.027 do CC preceitua que os “herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”.

Ainda se tratando dos herdeiros do cônjuge do sócio, estes também suportam a mesma restrição acima elencada, com o direito limitado à percepção dos lucros. Porém, caso venham a herdar do sócio o restante das quotas sociais, criam-se duas situações distintas em relação à mesma sociedade: a) pelas quotas herdadas do cônjuge do sócio, apenas o direito de auferir lucros; e b) através das quotas herdadas do sócio, a plena titularidade, podendo, se for o caso, ingressar efetivamente no quadro social ou requerer a dissolução parcial e apuração dos haveres com relação apenas a tais quotas.

Não bastasse essa situação iníqua e incômoda,45 o CC, em seu art. 1.026, parágrafo único, defere ao credor do sócio o direito a liquidar sua quota.

4.3.5 Ônus decorrentes de sucumbência e pagamento de verbas honorárias

Caso os sócios ou a sociedade apresentassem resistência à pretensão do sócio retirante e, ao final, fossem vencidos, haveria a condenação no pagamento de verbas de sucumbência, incluídas aí as verbas honorárias. A base de cálculo seria o valor dos haveres apurados e pagos ao sócio retirante, cumulados com eventuais perdas e danos.46

Em sede jurisprudencial,47 existiam entendimentos divergentes, partindo do pressuposto que a sentença, por ser constitutiva negativa, deveria se sobrepor ao caráter condenatório que emerge da decisão. Assim, asseveravam que a verba honorária deveria ser regulada pelo art. 20, §4º, do CPC anterior.

Com efeito, se o pedido da ação fosse julgado improcedente, não haveria condenação do pagamento dos haveres ao sócio dissidente; o mesmo se aplicaria caso a sociedade, sujeito passivo da ação condenatória e quem deveria pagar os haveres apurados, tivesse patrimônio líquido

45 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 99.

46 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 134.

47 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0024.07.754408-8/001. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível nº 106720311910060011.

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negativo, acumulando, portanto, dívidas. Em tais casos, os honorários seriam fixados de acordo com o valor atribuído à causa.48

Porém, a dissidência doutrinária e jurisprudencial de maior relevância em relação aos honorários de sucumbência dizia respeito aos casos nos quais o réu concordasse com a pretensão deduzida pelo autor e apresentasse, desde logo, um cálculo que satisfizesse o interessado, sem que houvesse controvérsia no laudo.

Existia, nesse caso em especial, a possibilidade de não se aplicar o preconizado no §3º do art. 20 do CPC anterior, tendo em vista que “[...] a ação de dissolução parcial converter-se-ia num feito de natureza apenas administrativa, pois a sua finalidade passaria a ser de simples apuração de haveres, o que tornaria inviável a ideia de sucumbência”.49

Ao revés, havia diversos julgados entendendo que, caso reconhecida a procedência do pedido, deveria suportar os honorários quem deu causa à demanda. Essa orientação assumia que, mesmo incontroversa a apuração de haveres ou caso houvesse anuência dos réus em relação ao pedido, teria havido demanda jurisdicional e, portanto, a movimentação da máquina judiciária em ação contenciosa resultaria na condenação em verbas sucumbenciais. Era afastada, então, a ideia de natureza adminis-trativa relativa à ação, reafirmando a existência da lide.50

De todo modo, fica então evidente que o posicionamento dos tribunais pátrios e do STJ quanto à questão da sucumbência estava diretamente ligado à existência de litígio judicial e à consequente imposição do pagamento de verbas sucumbenciais à parte vencida, conforme o comando legal contido no CPC anterior.

4.4 A dissolução parcial como procedimento especial no novo Código de Processo Civil

A análise dos dispositivos criados pela nova lei revela-se neces-sária não somente para justificar sua existência como procedimento especial, mas também para demonstrar se os dispositivos surgiram como superação legislativa de entraves anteriores.

48 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 134.

49 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 135.

50 BRASIL. STJ. Recurso Especial nº 242603 SC 1999/0115786-2. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Cível nº 2218662 PR 0221866-2. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível nº 10355130018854001.

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Cumpre observar que, sob a égide do NCPC, as ações de disso-lução de sociedade podem seguir o rito comum ou especial. Prevê o art. 1.406, em seu §3º, que “os processos mencionados no art. 1.218 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, cujo procedimento ainda não tenha sido incorporado por lei submetem-se ao procedimento comum previsto neste Código”. Assim, a ação de dissolução total enquadra-se no procedimento comum.

4.4.1 ObjetoObservando, então, o procedimento especial em vigor, tem-se

no art. 599 do NCPC a indicação dos objetos da ação de dissolução parcial. Os incisos do referido artigo definem que a ação de dissolução parcial pode ter por objeto a resolução da sociedade em relação ao sócio (inciso I) e a apuração de haveres deste sócio (inciso II). Além disso, preveem a possibilidade de apenas um desses pedidos ser provido, alternativamente (inciso III).51

Incluíram-se, aí, as hipóteses nas quais se reputava dissolvida a sociedade de pleno direito, sendo a ação ajuizada apenas almejando descobrir, por meio de perícia, o valor devido pela sociedade ao sócio dissidente.

Em louvável esforço legislativo, foi incluído no texto final do NCPC o §2º do art. 599, que não estava presente no projeto de lei original, possibilitando a dissolução parcial das sociedades anônimas de capital fechado, impondo para tanto o seguinte requisito: “[...] quando demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim”.

Conforme já mencionado, a jurisprudência trilhou um longo caminho até abarcar a ideia da possibilidade de dissolução parcial das sociedades anônimas de capital fechado. Porém, é de se estranhar a imposição de requisitos mínimos, pois as cortes vinham deferindo hodiernamente a dissolução parcial nesses tipos de sociedade quando verificada a falta de affectio societatis.

51 Erasmo Novaes e França afirma que “[o] projeto confunde, inadmissivelmente, a ação de dissolução parcial de sociedade – de natureza constitutivo-negativa (ou desconstitutiva, se se preferir) – com a ação de apuração de haveres – de natureza condenatória”. E prossegue o autor: “O que a ciência jurídica demorou dezenas de anos para distinguir é misturado numa sopa só, inclusive quanto à legitimação para agir” (FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. O Antiprojeto de CCom: A praga que se propaga no projeto de CPC. 2013. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI177478,11049-O+Antiprojeto+de+CCom+A+praga+que+se+propaga+no+>. Acesso em: 12 jun. 2015.).

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Apesar disso, quando se refere à necessidade de demonstração que a sociedade “não pode preencher seu fim”, o texto legal faz clara e direta remissão ao art. 206, II, alínea b, da Lei nº 6.404. Dentro das circunstâncias que inviabilizam e impedem o preenchimento de sua finalidade, insere-se a incontroversa desarmonia entre os sócios.52 Por conseguinte, é resultado lógico e razoável que se afaste o sócio dissi-dente ou descontente.

O requisito referente a um percentual mínimo de capital social soa, à primeira vista, como uma incongruência, considerando que, quando comprovada a quebra da affectio societatis, o percentual do capital social detido pelo acionista ou grupo de acionistas proponentes da ação torna-se irrelevante frente ao que está em jogo. Afinal, pode ser também de interesse da sociedade afastar o membro dissidente e promover a ação de dissolução parcial. Lado outro, tal percentual passa a ser extremamente relevante caso o próprio acionista dissidente, por sua insatisfação pessoal e entendendo quebrado o vínculo societário, decidir retirar-se da sociedade.

Como também anteriormente exposto e consonante com os ensinamentos de Priscila Fonseca, as hipóteses do direito de retirada contidas na Lei nº 6.404 não se confundem com a dissolução parcial, uma vez que o rol apresentado no art. 137 da referida lei é absolutamente taxativo, não prevendo a possibilidade de retirada pelo rompimento do affectio societatis.53

A redação do dispositivo vincula o direito do dissidente ao percentual das ações por este detido, afastando assim a incidência do princípio da livre associação, contido no art. 5º, XX, da Constituição Federal,54 na contramão da construção pretoriana.55 De todo modo, tal percentil é comum para o exercício de uma série de prerrogativas previstas na Lei nº 6404, o que pode justificar a escolha desse parâmetro pelo legislador.

52 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 72.

53 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 69.

54 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal, 1988. Disponível em <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 12 jun. 2015.

55 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 74.

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4.4.2 Legitimidade ativa: sujeitos e condiçõesO art. 600 do NCPC contém o rol enumerativo daqueles que têm

legitimidade ativa para propor a ação de dissolução parcial. No caso do espólio do sócio falecido (inciso I), este só se legitima quando todos os sucessores não ingressarem na sociedade, seja por vontade destes, seja por deliberação dos sócios remanescentes, quando o contrato social prevê a necessidade de anuência destes últimos.56 Portanto, o artigo positivou o entendimento já sufragado pela doutrina e pela jurisprudência. Afinal, não há, nas sociedades de pessoas, a transmissão automática do estado de sócio com o falecimento do de cujus, de modo que é do espólio a atribuição de representar a titularidade das quotas, até que se proceda à partilha.

Atente-se que esse caso em especial, interpretado conjuntamente com o inciso III do referido artigo, diz respeito apenas às circunstâncias nas quais não há concordância de todos os herdeiros em dissolver o vínculo societário.

Nos casos dos incisos I e II, a legitimidade do espólio e dos suces-sores é apenas para a apuração de haveres, considerando que, como dito, não há a transmissão automática do estado de sócio aos herdeiros nas sociedades em alusão.

O inciso III também confere legitimidade ad causam à sociedade para requerer a dissolução parcial, porém apenas quando houver previsão no contrato social de não admissão dos herdeiros do sócio pré-morto pelos sócios remanescentes.

Essa restrição, estranha à primeira vista, decorre de uma impre-cisão legislativa. Isso porque esse regramento se aplica apenas aos casos de sociedades de capital em que tal direito não decorra da lei, mas esteja previsto no contrato social.

Nas sociedades de pessoas, os sócios sobreviventes detêm o direito de impedir o ingresso, na sociedade, dos sucessores, observando o regramento do art. 1.028 do CC.

Daí decorre outro problema causado pela identidade de legiti-mados ativos e passivos nas ações de dissolução parcial e apuração de haveres: no caso da sociedade limitada em que o contrato social é silente sobre o ingresso dos herdeiros do sócio falecido e que utiliza

56 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 150-151. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

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subsidiariamente a disciplina atinente às sociedades simples, seria negada à sociedade a legitimidade ativa para propor a apuração de haveres? Afinal, se os sócios deliberam pela não admissão dos herdeiros na sociedade, quem tem interesse processual em apurar os haveres é a sociedade, e não os sócios.

No inciso IV, a intenção é de evitar a judicialização do procedi-mento, conferindo legitimidade ativa ao sócio que exerceu o direito de recesso ou retirada somente depois de demonstrada a inércia dos sócios remanescentes e quando infrutífera a tentativa extrajudicial de resolução do conflito. Óbvio é que, caso não haja concordância do sócio com a forma de apuração ou os valores apurados, resta-lhe esperar o prazo legal para intentar a ação correspondente.57

O inciso V confere legitimidade ativa à sociedade nos proce-dimentos decorrentes de comando legal, em importante inovação legislativa, levando em conta que a lei admite ser a sociedade parte legitimada em qualquer procedimento de dissolução parcial judicial.

Interessante notar que a legitimidade inexiste apenas nos casos de exclusão extrajudicial elencados no CC.

Por fim, uma inovação bem-vinda em relação à legitimidade ativa é aquela conferida pelo parágrafo único do art. 600 supramencionado ao “cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio” (NCPC).

Ao possibilitar ao meeiro a legitimidade para liquidar a quota adquirida por intermédio de partilha de bens, o NCPC corrige a distorção criada pelo malfadado art. 1.207 do CC, tornando-o sem efeito.

Vale dizer, em consonância com as demandas doutrinárias e a orientação jurisprudencial, o dispositivo extingue a figura da subso-ciedade formada pelos meeiros dentro da sociedade, onde uma das partes tinha direitos extremamente restritos em relação às quotas ou ações,58 conferindo o direito a esta parte a requerer, desde logo, a apuração de haveres.

57 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 151. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

58 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 98-99.

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Por interpretação extensiva, se o meeiro possui legitimidade para requerer a apuração de haveres, é certo que seus herdeiros também a possuem, resolvendo assim essa antinomia criada pelo ultrapassado dispositivo incluído no CC.

4.4.3 Legitimidade passivaQuanto à questão da legitimidade passiva, o art. 601 do NCPC

afirma que os sócios e a sociedade serão citados no prazo legal para concordar com o pedido ou apresentar contestação.

Até aí, funciona de modo idêntico ao procedimento comum ordinário. Porém, o parágrafo único do referido artigo positiva um entendimento que já era alvo de severas críticas da doutrina quando apresentado por alguns julgados,59 preconizando ser dispensável a citação da sociedade quando todos os sócios se encontrarem devida-mente citados.

Parece ter andado mal o legislador, pois, sob o argumento de promoção de economia processual de tempo, ignora o litisconsórcio passivo necessário, como se a administração da sociedade fosse, sempre, necessariamente, ocupada por sócios e como se o interesse societário pudesse ser reconduzido à mera conjuntura de interesses particulares dos sócios. Da sociedade, assim, é subtraída a oportunidade de parti-cipar da condução dialética do feito e de articular as provas úteis ou necessárias à comprovação de seus interesses. Nega-se à sociedade o reconhecimento de sua personalidade jurídica e efeitos decorrentes, alijando-a do direito ao contraditório e ampla defesa. A inovação acaba por possibilitar o absurdo da imposição de efeitos da decisão a quem não compõe a lide.

O art. 602 do NCPC traz outra regra que atenta contra a própria ideia da ação de apuração de haveres, que tem por finalidade levantar o valor devido ao sócio desligado, retirante, falecido ou excluído. Aduz o texto que “[a] sociedade poderá formular pedido de indenização compensável com o valor dos haveres a apurar”. Isso infere-se também em prol da celeridade processual.

De plano, fica ressaltada a imprecisão técnica legislativa que permeia a redação deste procedimento especial como um todo. A lei fala claramente em pedido de indenização compensável com os haveres a serem apurados.

59 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 105.

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Entende-se, portanto, fazer referência à compensação tratada no CC, o que parece incongruente, haja vista que o seu art. 369 permite a compensação entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.60 Se a lei pretendia se referir à construção intitulada “compensação judicial”,61 citada por Priscila Fonseca62 como deduzível em sede de reconvenção, e de construção exclusivamente pretoriana, deveria ter feito referência direta a essa disciplina bastante específica.

Não parece ser esse o caso, considerando que o teor deste artigo se apresenta, exatamente, como a possibilidade de um pedido cumulado de indenização, matéria afeita ao procedimento comum ordinário. Caso o polo passivo apresente contestação, como se verá adiante, estar-se-á, também, diante do procedimento comum ordinário.

O referido artigo, com a redação atual, não aparenta ter utilidade prática. Quando muito, poderá servir como forma de pressão dos sócios remanescentes para barganhar o valor dos haveres apurados63 visando a reduzir quantia a ser paga. Logo, a finalidade original, de acelerar os trâmites processuais e preservar a atividade empresarial e os sócios da desgastante batalha recursal que consequentemente pode se instaurar, parece improvável de ser alcançada.

4.4.4 ProcedimentoO art. 603 do NCPC dispõe a respeito da hipótese na qual há a

concordância de todos os sócios em relação à dissolução da sociedade. Preconiza o caput do referido artigo que, “havendo manifestação expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação”.

60 RESTIFFE, Paulo Sérgio. O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber. 2010. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI122853,11049-O+Caranguejo+e+o+Projeto+de+Novo+CPC+o+procedime>. Acesso em: 12 jun. 2015.

61 Aduz a autora que, “tendo em conta que a liquidação dos haveres resulta da mensuração econômica do patrimônio social para definição do valor da quota do excluído, tem-se que os bens que compõem o ativo continuam de propriedade da sociedade, um estado que autoriza a confecção de um balanço completo, inclusive do prejuízo que fora apurado pela desídia do sócio, podendo ser deduzido na forma reconvencional” (FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 118).

62 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 118.

63 RESTIFFE, Paulo Sérgio. O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber. 2010. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI122853,11049-O+Caranguejo+e+o+Projeto+de+Novo+CPC+o+procedime>. Acesso em: 12 jun. 2015.

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O que o procedimento prevê aqui é exatamente o que ocorre sempre que a parte reconhece parte do pedido formulado na inicial, quando o fato deixa de ser controverso.

Se há concordância unânime entre os sócios, parece configurar uma hipótese de falta de interesse de agir, sobretudo se ficar eviden-ciado que as partes jamais tentaram ou resistiram à dissolução parcial extrajudicial.

A jurisprudência, já apontada, entende majoritariamente que, quando há demanda jurisdicional, há sucumbência, e que geralmente as verbas são devidas por quem deu causa à demanda.

Ao apresentar a possibilidade de afastar a sucumbência irrestri-tamente, condicionando-a apenas à concordância unânime dos sócios a respeito da dissolução, o legislador assemelha a fase de conhecimento do procedimento especial a um procedimento de administração pública dos interesses privados, o que vai de encontro ao entendimento mais acurado e não coaduna com as construções traçadas pela jurisprudência até então.

Ainda, o §1º do dispositivo em alusão é obscuro ao não especi-ficar se são afastadas as condenações em verbas sucumbenciais apenas durante a fase dissolutiva ou se tal benesse também se estende à fase de apuração de haveres, quando há sentença de natureza diversa da fase de dissolução parcial, passível de ser executada em face da sociedade.

A manutenção da natureza dúplice da sentença proferida na ação de dissolução parcial tende ainda a agravar o problema relativo ao cálculo das verbas de sucumbência, pois o legislador se omitiu quanto aos honorários, não prevendo expressamente se estes seriam devidos ao fim de cada fase ou ao fim da ação, além de negligenciar qual seria a natureza preponderante da sentença para a fixação do percentual devido, sempre observando que a ação envolve procedimento pericial complexo.

De todo modo, a sentença proferida ao final da ação de dissolução parcial continua a ter natureza constitutivo-negativa em relação aos sócios, e seus trâmites processuais continuam praticamente inalterados.

Por isso, como ocorre no procedimento em vigor atualmente, cabe ao magistrado a hercúlea tarefa de definir se utilizará o critério do §2º ou o critério restritivo do §8º, ambos do art. 85 do NCPC. Perdeu o legislador a oportunidade de dirimir essa controvérsia de longa data existente na seara das ações de dissolução parcial de sociedade.

Por fim, o §2º do artigo 603 da lei aduz que, havendo contestação, o procedimento a ser seguido é o procedimento comum ordinário.

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Ganha força a linha de argumentação que questiona a real utilidade de se criar um procedimento especial de dissolução parcial, no qual existem poucas ou, de fato, nenhuma especificidade em relação ao procedimento comum ordinário que justifique sua existência.64

A única singularidade remanescente diz respeito à apuração de haveres. Os dispositivos analisados até agora se preocupam apenas em definir quem são os legitimados passivos e ativos, além dos objetos e hipóteses nas quais é cabível a ação, o que, ao que parece, foi feito com uma imprecisão técnica significativa, misturando a fase dissolutória e a fase de apuração de haveres, pouco contribuindo com a intenção de preservar a empresa.

4.4.5 Apuração de haveresProssegue o procedimento especial à fase de apuração de haveres,

considerada por Fábio Ulhoa Coelho65 a mudança mais importante trazida pela disciplina do procedimento especial. O despacho inaugural que inicia a fase de liquidação passa a trazer os balizamentos indis-pensáveis à apuração dos haveres, que são a data da resolução da sociedade e a forma de apuração de haveres, observando o contrato social, conforme os incisos I e II do art. 604 do NCPC.

Cumpre ressaltar que o juiz não é livre para fixar tais baliza-mentos, estando adstrito às datas previstas no rol elencado no art. 605 do NCPC. Essas disposições constituem uma inovação legislativa, tendo em vista que, malgrado o assunto estar atualmente pacificado, foi fonte de controvérsias jurisprudenciais durante um tempo considerável.66

Registre-se que críticas são possíveis, contudo, à consideração da data da resolução da sociedade como sendo, na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante. Isso impõe ao sócio retirante o dever de prosseguir associado e até mesmo vinculado a atos acerca dos quais não mais pretende manifestar-se e ainda possibilita que atitudes pouco

64 RESTIFFE, Paulo Sérgio. O Caranguejo e o Projeto de Novo CPC: o procedimento especial de dissolução parcial de sociedade ou lição de como se piorar por não saber. 2010. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI122853,11049-O+Caranguejo+e+o+Projeto+de+Novo+CPC+o+procedime>. Acesso em: 12 jun. 2015.

65 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 153. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

66 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 185-190.

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colaborativas sejam implementadas pelos remanescentes, de maneira a prejudicar o valor de sua participação societária a ser apurado.

Em relação ao critério de apuração de haveres, o juiz deve observar primeiramente o que está contido no contrato social. O acordo de vontades prevalece nesse sentido, não podendo ser ignorado pelo magistrado, mesmo que o critério ali descrito careça de maior precisão técnica em relação ao definido pela lei.67 Em caso de omissão, o valor deve ser definido, conforme o art. 606 do NCPC, pelo balanço patri-monial de determinação.

Esse entendimento causa estranheza. Afinal, em um dispositivo, a lei define critérios objetivos para lastrear a apuração de haveres; depois, prevê a nomeação de perito altamente especializado da área de avaliação de sociedades, ignorando que o expert possa a vir a apresentar método diverso que reputar mais adequado.

Continuando, o art. 607 do NCPC prevê que “data da resolução e o critério de apuração de haveres podem ser revistos pelo juiz, a pedido da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia”. Essa disposição foi alvo de críticas,68 pois prevê que a data de resolução da sociedade e o critério para apuração de haveres não transitam em julgado antes do início da perícia.

A referida crítica, porém, parece não ser a melhor interpretação do dispositivo. Nesse ponto, o legislador se refere à possibilidade, por exemplo, “[...] de ter a defeituosa redação do contrato social despertado inicialmente certa interpretação, que, à vista dos argumentos posterior-mente aduzidos pela parte, vem a ser descartada pelo juiz”.69

Por isso, não faria sentido que ocorresse o trânsito em julgado relativo aos elementos supracitados antes de se iniciar a perícia, tendo em vista que ambos podem ser objeto de disputa pelas partes, e novas provas podem ser produzidas no intuito de modificar as definições contidas no despacho inicial que determina a apuração de haveres.

67 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 153. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

68 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. O Antiprojeto de CCom: A praga que se propaga no projeto de CPC. 2013. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI177478,11049-O+Antiprojeto+de+CCom+A+praga+que+se+propaga+no+>. Acesso em: 12 jun. 2015.

69 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 153. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

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431PEDRO D’ANGELO RIBEIRO, ROBERTO HENRIQUE PÔRTO NOGUEIRA NOVOS HORIZONTES DA DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES

A preclusão relativa à matéria ocorre logo após iniciada a perícia, haja vista que suas balizas são fixadas pelo magistrado levando em conta ambos os elementos mencionados no art. 607 do NCPC, não fazendo sentido modificá-las durante a realização da complexa atividade contábil.

Claramente, é possível interpretar a referida disposição como mais uma imprecisão legislativa, pois primeiro a lei determina o método de apuração de haveres e, logo em seguida, permite que as partes possam revê-lo antes mesmo que se inicie a perícia.

O art. 607 supramencionado prevê, ainda, que, antes da perícia, qualquer das partes pode especificar o ramo de atuação do profissional a ser nomeado, o que poderia ser desastroso, já que o perito é nomeado pelo despacho inicial que determina a apuração de haveres.

Assim, a mudança de especialista no curso do processo só aumen-taria as despesas, obtendo-se assim o efeito inverso ao pretendido – a celeridade processual – e até mesmo prejudicando a preservação da empresa, diante do aumento eventual significativo dos custos em razão dessa manobra.

Vale ressaltar também que, ao contrário do que eventualmente acontecia no procedimento anterior, o perito não tem, nem pode ter, poderes para praticar qualquer ato em nome da sociedade, ficando adstrito apenas à avaliação do valor patrimonial das quotas.

O art. 608 do NCPC define qual a natureza do crédito devido pela sociedade em função da apuração de haveres. Fábio Ulhoa Coelho parte da premissa que “[...] até a data da resolução, o crédito tem natureza de participação nos resultados da sociedade, perdendo-a a partir de então”.70

Porém, o referido autor não apresenta qualquer posicionamento que referende tal entendimento, tampouco explica o motivo da natureza creditícia apresentada.

Indiferente a isso, após a data da resolução, os titulares do crédito têm direito apenas à correção monetária e aos juros contratuais ou legais, conforme o artigo supracitado.

Por fim, o art. 609 do NCPC é afeito ao cumprimento de sentença e define como os haveres serão pagos: conforme o contrato social ou, omisso este, na forma do CC.

70 COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução parcial de sociedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 190, n. 48, p. 141-155, abr. 2011. p. 154. Trimestral. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242887/000923100.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 abr. 2015.

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Neste último artigo do procedimento especial de dissolução parcial, não houve qualquer inovação frente ao que já vinha sendo aplicado na normativa processual atualmente em vigor.

4.5 Conclusões

Algumas principais novidades podem destacar-se do procedi-mento especial do NCPC.

Foi dado tratamento diferenciado aos trâmites das ações de dissolução parcial, que agora passam a englobar, em sentido amplo, todas as formas de ruptura do contrato social, independentemente de tal forma demandar ou não processo de conhecimento anterior para deflagrar a fase de apuração dos haveres.

Houve êxito em consagrar alguns aspectos processuais da disso-lução parcial de sociedade. Assim, a partir da vigência do NCPC, ocorreu a inserção da sociedade anônima de capital fechado como objeto da ação de dissolução parcial.

Definiu-se que o espólio detém legitimidade ativa para pleitear a dissolução parcial caso não haja anuência dos sócios supérstites para a entrada dos herdeiros na sociedade, consagrando assim que o estado de sócio não se transfere automaticamente.

Admitiu-se também a sociedade como legitimada para promover os procedimentos de dissolução parcial elencados em lei visando à defesa de seus interesses. Foi conferida, também, legitimidade ativa ao cônjuge que recebeu parte das quotas em partilha de bens, excluin-do-se a figura da subsociedade e tornando sem efeito esse instituto ultrapassado contido no CC.

No tocante à apuração de haveres, foram estabelecidas por lei a data da resolução da sociedade em relação ao sócio dissidente e a forma como deve ser realizada a apuração de haveres, tendo sido incluída também a necessidade de se nomear um perito especialista e, principalmente, que todos esses quesitos acima elencados possam ser questionados a qualquer tempo antes de se iniciar a perícia. Também foi definida a natureza do crédito devido pela sociedade ao sócio e também como os valores apurados devem ser pagos.

Foi dirimida a controvérsia relativa aos poderes de liquidante, por vezes conferidos ao perito pelas Cortes ao longo do tempo e que não têm cabimento no atual ordenamento jurídico, como também foram positivados os parâmetros do cumprimento de sentença já estabelecidos no procedimento vigente.

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Deixou, contudo, o legislador de superar celeumas clássicas, tais como a natureza da sentença de dissolução parcial e a definição jurídica da fase de apuração de haveres. Deixou também de diferenciar os legitimados em relação a cada procedimento, não estabelecendo as hipóteses em que seria necessário o litisconsórcio passivo entre a sociedade e os sócios. Desse modo, admitiu-se, explicitamente, a possi-bilidade pretoriana de se ignorar o litisconsórcio passivo necessário entre sociedade e sócios. Parece ter havido a pressuposição de que os interesses particulares de sócios e sociedade são sempre coincidentes e que pelo menos um dos sócios sempre se ocupa da administração da sociedade (deixando-a ciente da lide), o que, a rigor, na prática, não se verifica. Comprometem-se, dessa sorte, expressamente pelo texto da lei, nuances da personalidade da pessoa jurídica e garantias constitucionais processuais de base.

O legislador também foi omisso quanto ao problema das verbas sucumbenciais, preferindo incluir um dispositivo semelhante à administração pública de interesses particulares, em que não haveria sucumbência, em vez de positivar o entendimento já consagrado que prevê que, se houve demanda jurisdicional, a parte que deu causa à demanda deve pagar as verbas correspondentes.

Também andou mal o legislador quando previu a possibilidade de compensação de indenizações dentro do procedimento especial, esbanjando imprecisão técnica e inserindo uma disposição concernente ao procedimento comum ordinário.

Novamente, caberá ao sistema do direito, a partir do processo autorreferencial aos elementos de sua própria rede recursiva, construir-se e reconstruir-se, de maneira que a jurisprudência e a doutrina, na aplicação da ciência social, poderão colmatar as lacunas subsistentes. Estas, contudo, subsistem como desafios de processo investigatório futuro.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; RIBEIRO, Pedro D’Angelo. Novos horizontes da dissolução parcial de sociedades. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 411-436. ISBN 978-85-450-0456-1.

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SOBRE OS AUTORES

André Cordeiro LealDoutor e Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Titular da Universidade FUMEC, onde leciona nos cursos de Graduação (Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil) e Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado em Instituições Sociais, Direito e Democracia). Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil no curso de Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu do Instituto de Educação Continuada (IEC – PUC Minas). Diretor de Pesquisa do Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos – INPEJ. Advogado e Economista.

Bruno de Almeida Lewer AmorimMestrando em Direito Privado pela PUC Minas. Pós-Graduado em Direito Civil Aplicado pela PUC Minas. Pós-Graduado em Direito do Consumidor pela Faculdade Damásio de Jesus. Professor de Direito Civil na FAMIG. Mediador de Conflitos com ênfase em Relações de Consumo pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ). Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG. Advogado.

Bruno Oliveira de Paula BatistaMestrando em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Professor do Centro Universitário CESMAC. Advogado.

César FiuzaDoutor em Direito pela UFMG. Professor de Direito Civil na UFMG, na PUC Minas e na Universidade FUMEC. Professor Colaborador na FADIPA. Advogado e Consultor Jurídico.

Claudia Lima MarquesDoutora pela Universidade de Heidelberg e Mestre em Direito pela Universidade de Tübingen, Alemanha. Professora Titular da UFRGS. Professora Permanente e Coordenadora do PPGD UFRGS. Advogada em Porto Alegre (RS).

Cristiano Chaves de FariasMestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito. Professor de Direito Civil do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.

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438 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Elcio Nacur RezendeMestre e Doutor em Direito pela PUC Minas. Professor do Curso de Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. Procurador da Fazenda Nacional.

Felipe Peixoto Braga NettoDoutor em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito pela UFPE. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República).

Fernando Solá SoaresPós-Graduado no L.L.M. de Direito Empresarial Aplicado das Faculdades da Indústria (IEL/PR). Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogado.

Gabriella de Castro VieiraMestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na Escola Superior Dom Helder Câmara. Professora do Curso de Direito da Faculdade Pitágoras. Pesquisadora do CEBID (Centro de Estudos em Biodireito). Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG. Advogada.

Giovani Ribeiro Rodrigues AlvesMestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Empresarial do Centro Universitário do Brasil (UNIBRASIL). Membro do Núcleo de Direito Empresarial Comparado da UFPR. Advogado.

Guilherme Calmon Nogueira da GamaMestre e Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor Associado de Direito Civil da UERJ (Graduação e Pós-Graduação). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá (RJ). Ex-Coordenador Geral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UERJ. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Ex-Juiz de Direito do Estado de São Paulo. Ex-Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais. Ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito de Família e do Instituto dos Advogados do Brasil.

Humberto Theodoro JúniorDoutor em Direito. Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da UFMG. Desembargador Aposentado do TJMG. Membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas, do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law e da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française. Advogado.

Karine Cysne Frota AdjafreBacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada.

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439SOBRE OS AUTORES

Lucas Magalhães de Oliveira CarvalhoBacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

Luciana de Castro BastosMestranda em Direito na PUC Minas. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Veiga de Almeida/RJ. Professora de Direito. Advogada.

Luis Alberto ReicheltMestre e Doutor em Direito pela UFRGS. Professor nos cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS. Procurador da Fazenda Nacional em Porto Alegre (RS).

Marcelo de Oliveira MilagresDoutor e Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Minas Gerais.

Marcia Carla Pereira RibeiroMestre e Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora Titular de Direito Empresarial da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Professora Associada da UFPR. Advogada licenciada. Secretária de Administração do Estado do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Direito Empresarial Comparado da UFPR.

Marcos Boechat Lopes FilhoEspecialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Juiz de Direito do Estado de Goiás.

Marcos Ehrhardt Jr.Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Coordenador da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Advogado.

Mariza RiosMestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Nacional de Brasília (UnB). Doutoranda em Direito na Universidade Complutense de Madrid/Espanha. Professora na Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Grupo de Pesquisa Pensar a cidade: seus aspectos ambientais, jurídicos e sociais.

Melissa Ourives Veiga Mestranda em Direito Privado pelo Centro Universitário Sete de Setembro (Fa7). Professora de Direito Civil da Faculdade São Salvador. Professora de Direito Civil do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogada.

Michael César SilvaDoutor e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Professor

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440 FELIPE PEIXOTO BRAGA NETO, MICHAEL CÉSAR SILVA, VINÍCIUS LOTT THIBAU (Coord.)O DIREITO PRIVADO E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: REPERCUSSÕES, DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

da Pós-Graduação Lato Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado.

Nelson RosenvaldPós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália). Professor Visitante na Universidade de Oxford (United Kingdom). Professor Investigador na Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton Teixeira CarvalhoMestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor de Direito de Família e de Processo Civil na Escola Superior Dom Helder Câmara. Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Membro do Grupo de Pesquisa Pensar a cidade: seus aspectos ambientais, jurídicos e sociais.

Paulo NalinPós-doutor pela Universidade de Basel, Suíça. Doutor em Direito das Relações Sociais e Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Paraná. Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná. Associado ao Instituto de Direito Privado (IDP), ao Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e ao Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Advogado e Árbitro em Curitiba/PR.

Pedro D’Angelo RibeiroPós-Graduando em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Rede de Ensino Luís Flávio Gomes. Graduado pela Universidade Federal de Ouro Preto/Minas Gerais. Advogado. Analista de Planejamento, Orçamento e Logística junto ao Estado de Minas Gerais.

Renata C. SteinerDoutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora Visitante durante Doutorado em Munique/Alemanha. Associada ao Instituto de Direito Privado (IDP). Professora do FAE Centro Universitário. Advogada e Membro do Corpo de Árbitros da CAMFIEP em Curitiba/PR.

Renato Campos AndradeMestre em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogado.

Roberto Henrique Pôrto NogueiraDoutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito Tributário pela Faculdade Milton Campos. Pesquisador do Núcleo de Estudos

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441SOBRE OS AUTORES

“Novos Direitos Privados” – DEDIR/UFOP. Coordenador do Centro de Mediação e Cidadania – DEDIR/UFOP. Professor Adjunto do curso de Graduação e Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto/Minas Gerais.

Rodrigo Almeida MagalhãesDoutor e Mestre em Direito na PUC Minas. Professor da PUC Minas e UFMG. Advogado.

Samuel Vinícius da SilvaAcadêmico do 7º Período do Curso de Direito Integral da Escola Superior Dom Helder Câmara.

Vinícius Jose Marques GontijoDoutor e Mestre em Direito Comercial pela UFMG. Professor nos Cursos de Mestrado, Pós-Graduação e Graduação da Faculdade de Direito Milton Campos. Professor no Curso de Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Ex-Professor Substituto na UFMG e UFOP. Conselheiro Federal da OAB. Advogado.

Vinícius Lott ThibauDoutor e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara, nas modalidades integral e convencional. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Advocacia Cível da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais. Professor de Direito Processual Civil no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Processual Civil e Argumentação Jurídica do Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos sobre o Novo CPC da Escola Superior Dom Helder Câmara. Vice-Presidente do Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos. Advogado.

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Esta obra foi composta em fonte Palatino Linotype, corpo 10 e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa)

pela Laser Plus Gráfica, em Belo Horizonte/MG.