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“O Mix Público-Privado no Sistema de Saúde Brasileiro: elementos para a regulação da cobertura duplicada” por Isabela Soares Santos Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências na área de Saúde Pública Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Alicia Domínguez Ugá Rio de Janeiro, julho de 2009.

o Mix Publico Privado No Sus

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o Mix Publico Privado No Sus

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  • O Mix Pblico-Privado no Sistema de Sade Brasileiro: elementos para a regulao da cobertura duplicada

    por

    Isabela Soares Santos

    Tese apresentada com vistas obteno do ttulo de Doutor em Cincias na rea de Sade Pblica

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Alicia Domnguez Ug

    Rio de Janeiro, julho de 2009.

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    Esta tese, intitulada

    O Mix Pblico-Privado no Sistema de Sade Brasileiro: elementos para a regulao da cobertura duplicada

    apresentada por

    Isabela Soares Santos

    foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

    Prof. Dr. Hsio de Albuquerque Cordeiro Prof. Dr. Paulo Henrique de Almeida Rodrigues Prof. Dr. Claudia Maria de Rezende Travassos

    Prof. Dr. Silvia Marta Porto Prof. Dr. Maria Alicia Domnguez Ug Orientadora

    Tese defendida e aprovada em 06 de julho de 2009.

  • iii

    A U T O R I Z A O

    Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese, por processos fotocopiadores.

    Rio de Janeiro, 06 de julho de 2009.

    ________________________________

    Isabela Soares Santos

    CG/Fa

  • iv

    Servio de Gesto Acadmica - Rua Leopoldo Bulhes, 1.480, Trreo Manguinhos-RJ 21041-210 Tel.: (0-XX-21) 2598-2730 ou 08000230085

    E-mail: [email protected] Homepage: http://www.ensp.fiocruz.br

    Catalogao na fonte Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca de Sade Pblica

    S237 Santos, Isabela Soares O mix pblico-privado no sistema de sade brasileiro:

    elementos para a regulao da cobertura duplicada. / Isabela Soares Santos. Rio de Janeiro : s.n., 2009.

    xv, 186 f., tab., graf.

    Orientador: Ug, Maria Alicia Domnguez Tese (Doutorado) Escola Nacional de Sade Pblica Sergio

    Arouca

    1. Poltica de Sade. 2. Setor Privado. 3. Setor Pblico. 4. Sade Suplementar. 5. Assistncia Sade. 6. Regulao Governamental. I. Ttulo.

    CDD 22.ed. 362.10981

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    O sistema de sade o espelho da sociedade.

    Ele reflete sua histria e seu carter.

    (Deppe, 2006: 3. Traduo livre)

    O Estado brasileiro no tem dinheiro suficiente pra aprimorar o SUS e atender toda a populao do pas integralmente, mas, ao mesmo tempo, deixa de receber

    vultuosas somas de dinheiro por conta da renncia fiscal, no recebe o ressarcimento previsto na lei, paga planos de sade para os funcionrios pblicos, sustenta o

    atendimento pelos planos em hospitais universitrios, e ainda financia a ANS com recursos pblicos mais taxas

    (reportagem Como o dinheiro pblico financia os planos de sade privados, de Fernando Sucupira, publicada na revista Carta Maior em 25/07/2005).

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo Fiocruz, em especial Escola Nacional de Sade Pblica e os pesquisadores que me acolheram e contriburam para uma formao crtica de ps-graduao, resultando nos trabalhos e pesquisas desenvolvidos desde minha chegada ao Rio de Janeiro em 1998, inclusive na dissertao de mestrado (2000) e nesta tese de doutorado. Entre os pesquisadores, merece destaque a amiga e orientadora Alicia Ug, pela pacincia e pela competncia e, sobretudo, pelo companheirismo na crena em uma poltica de sade mais solidria para nosso sistema de sade, cuja persistncia durante todo o processo de orientao corroborou minha coragem nas concluses dessa tese.

    Este trabalho tambm foi aprimorado a partir de conversas, reflexes, discusses tericas, troca de dicas de fontes documentais e revises com diversos queridos, entre eles destacam-se Danielle Borges e Mario Viola, Paulo Henrique Rodrigues, Mario Arajo, Pipo, Silvia Porto, Thiago Pereira, Brbara, Silvia Costa, Eleonor Conill, Hsio Cordeiro, Nrso e Chico Braga. Com especial importncia aos membros examinadores da banca de qualificao e outros que tanto discutiram e encorajaram o projeto, a includos Claudia Travassos, tio Gasto, tia Lenir e tio Gilson Carvalho, sem os quais eu possivelmente no teria seguido esta trilha. Tambm agradeo a Chico Viacava, sem o qual eu no teria aprendido a analisar os microdados da PNAD com competncia e tanto bom humor.

    Chico, meu marido e pai de nosso filho ou filha, merece um agradecimento especial pelo apoio nos exerccios de elaborao dos pressupostos e das perguntas da tese que me encorajaram, ainda nos idos de 2005, a tratar o mix pblico-privado na sade como algo mais do que um contexto de uma discusso: como um tema de pesquisa. Agradeo tambm sua pacincia nas diversas leituras atentas e discusses acaloradas sobre os trechos espinhosos.

    Agradeo aos meus pais e meus irmos pelo suporte fsico e emocional nos momentos de retiro, que correspondem aos de escrita da tese, e pelo amor por eles doado a mim que, mesmo imergida no processo de elaborao da escrita, em todos os momentos sentia a presena de carinho e cuidado que me foi entregue pela simples confiana no meu ser e que pela sensao que estamos no mesmo barco. Ainda, agradeo meu pai pelo empenho empreendido nas leituras e nas prolongadas discusses sob o delicioso sol da tarde campineiro.

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    Agradeo tambm s equipes de trabalho da ANS (tanto os colegas da Gepin como agora os da Geats), especialmente pela iluminao das pessoas que coordenam o trabalho na Dides, como Lencio Feitosa, Ceres Albuquerque e Mrcia Piovesan pelo apoio para que fosse possvel concluir uma tese concomitante ao desenvolver do trabalho na instituio. Em especial, Mrcia Piovesan pelo seu respeito aos seres humanos que me ilumina um caminho mais leve para levar a vida.

    A todos aqui citados e aos inmeros outros que conviveram comigo neste perodo, tm todo meu reconhecimento que sem vocs e a pacincia que tiveram comigo e com a minha obsesso pelo tema, este trabalho no teria sido possvel.

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    RESUMO Este trabalho se originou de trs perguntas: (i) qual a funo do segmento

    suplementar no sistema de sade brasileiro?; (ii) o segmento suplementar desonera o SUS financeiramente e na diminuio da demanda por servios? e; (iii) como a regulao governamental sobre o segmento suplementar interfere sobre o arranjo pblico-privado? Objetiva analisar o mix pblico-privado no sistema de sade brasileiro, seus efeitos na desigualdade de uso, financiamento e oferta de servios de sade e o modelo de regulao vigente.

    analisado o debate sobre o mix pblico-privado na bibliografia internacional, so discutidos os resultados de reformas setoriais ocorridas nas ltimas dcadas do sculo XX, so apresentadas as tipologias de arranjos pblico-privados no sistema de sade o brasileiro considerado Suplementar com Cobertura Duplicada e so analisados os efeitos da regulao brasileira sob a tica do mix pblico-privado.

    As evidncias identificadas em estudos internacionais acerca da cobertura duplicada mostram que este arranjo est associado a desigualdades prprias deste tipo de mix e prejudicial ao sistema de sade como um todo. O mesmo ocorre no sistema brasileiro, onde o aspecto negativo da dualidade de nosso mix pblico-privado se deve no cobertura de servios alm-SUS (suplementar), mas que concorre com o SUS (duplicada). A anlise da regulao brasileira leva a autora a concluir que esta aprofunda a duplicao da cobertura e contribui para a manuteno da segmentao do sistema de sade e da sociedade brasileiros, privilegiando a elite e o mercado de bens e servios privados de sade, alm de operar como ferramenta para o Estado continuar subsidiando a existncia do segmento de sade suplementar no pas. A nossa regulao se distancia do caminho escolhido pelos pases com cobertura duplicada que de fortalecer o sistema pblico como a principal forma de proteo social aos riscos sade.

    Da agenda de questes a serem incorporadas ao debate sobre o mix pblico-privado proposta, destaca-se que a regulao deve objetivar a defesa do sistema pbico, sem se restringir ao segmento suplementar e contemplando todo o mix pbico-privado. Com isso, este trabalho inova ao introduzir no debate brasileiro o conceito da cobertura duplicada e suas consequncias, bem como ao abordar criticamente a funo do Estado e da sociedade brasileiros no que tange regulao do arranjo pblico-privado do sistema de sade.

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    ABSTRACT

    This work was originated from tree questions: (i) Does the private health insurance (PHI) alleviate the Brazilian National Health System (called SUS)? (ii) Witch is the PHI function in the Brazilian health system? (iii) How does the government regulation interferes on the effects of PHI on the public-private mix? This thesis analyzes the public-private mix in the Brazilian Health System and its effects on the inequality of utilization, financing and health care delivery and the existing government regulation.

    It shows that inequalities that occur in the Brazilian system, where the private

    health insurance market is supplementary with a duplicated coverage to the public system, are similar to the inequalities presented at the literature review that are specific from the duplicated coverage.

    The author of this thesis argues that the duplicated coverage occurs in a detriment to the public system; the Brazilian society segmentation influences the health system segmentation in favor of the richest population, and turn our system far from one that is based on solidarity; the government regulation on PHI should action throughout the public-private mix, in defense of the public interest and not restricted to the PHI market.

    The author concludes that regulation is putting Brazil in the opposite way of the public policies from countries that have maintained their health systems guided by principles of social protection based in solidarity principles. Also argues that one of the possible effects of the Brazilian regulation is to maintain the targeting of the health system and the society, particularly the elite of society and the market of goods and private health services, besides than being a tool of the State to continue subsidizing the existence of the PHI market. This paper seeks to contribute to a critical function of the Brazilian State and society on the public-private mix and proposes an agenda to be incorporated into the debate on the public-private mix of the Brazilian health system.

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    SUMRIO AGRADECIMENTOS ......................................................................................... vi RESUMO ...........................................................................................................viii ABSTRACT ......................................................................................................... ix SUMRIO............................................................................................................. x LISTA DE TABELAS ........................................................................................ xii LISTA DE QUADROS ....................................................................................... xii LISTA DE GRFICOS....................................................................................... xii LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS ............................... xiv 1. INTRODUO................................................................................................. 1

    1.1. APRESENTAO........................................................................................ 2 1.2. OBJETIVOS E METODOLOGIA................................................................ 8

    2. O CONTEXTO EM QUE SE D O DEBATE DO MIX PBLICO-PRIVADO NO SETOR DE SADE ..................................................................................... 14

    2.1. QUESTIONAMENTOS AO MODELO DOS ESTADOS DE BEM-ESTAR SOCIAL E A PRESENA DO IDERIO NEOLIBERAL............................... 15 2.2. O DEBATE ATUAL SOBRE A PARTICIPAO DO ESTADO E DO SETOR PRIVADO............................................................................................. 23 2.3. RESULTADOS DAS REFORMAS DOS ESTADOS DE BEM-ESTAR NOS SISTEMAS DE SADE ........................................................................... 32 2.3.1. As mudanas segundo o tipo de sistema de sade.................................... 34 Pases com Sistema Nacional de Sade ............................................................. 34 Pases com Sistemas de Sade Privados ............................................................ 36 Pases com Seguro Social................................................................................... 38 Consideraes sobre as Reformas dos Estados de Bem-Estar nos Sistemas de Sade .................................................................................................................. 39

    3. TIPOLOGIAS E DEFINIES DE MIX PBLICO-PRIVADO NO SISTEMA DE SADE ......................................................................................................... 45

    3.1. INTRODUO AO CAPTULO 3 ............................................................ 46 3.2. TIPOS DE SISTEMA DE SADE............................................................. 47 3.3. TIPOLOGIAS DE SISTEMAS DE SADE MISTOS E SUAS CONTRIBUIES PARA O DEBATE SOBRE O MIX PBLICO-PRIVADO............................................................................................................................ 53 3.3.1. Dov Chernichovsky .................................................................................. 53 Contribuio do modelo de anlise de Chernichovsky ...................................... 57 3.3.2. Richard Saltman ....................................................................................... 59 Contribuio do modelo de anlise de Saltman ................................................. 61 3.3.3. Carolyn Tuohy, Colleen Flood e Mark Stabile ........................................ 62 Contribuio do modelo de anlise de Tuohy et al ............................................ 66 3.3.4. Jurgen Wasem, Stefan Greb e Kieke GH Okma ...................................... 67 Contribuio do modelo de anlise de Wasem et al .......................................... 68 3.3.5. Francesca Colombo e Nicole Tapay (OCDE), Elias Mossialos, Sarah Thompson e Agns Couffinhal........................................................................... 69 Sobre os modelos de anlise de Mossialos, Thompson, Couffinhal e OCDE .... 73 3.4. O FINANCIAMENTO DOS SISTEMAS DE SADE: PANORAMA ATUAL............................................................................................................... 75 Financiamento setorial e Financiamento pblico.............................................. 76 Financiamento do Seguro Privado de Sade ..................................................... 80 Populao que possui Seguro privado de sade ................................................ 83 3.4.1. Consideraes sobre as Reformas dos Estados de Bem-Estar e o Mix Pblico-Privado .................................................................................................. 85

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    3.5. EVIDNCIAS SOBRE ESPECIFICIDADES DO TIPO DUPLICADO E SUPLEMENTAR ............................................................................................... 92

    4. O MIX PBLICO-PRIVADO DO SISTEMA DE SADE BRASILEIRO: ORIGENS, CARACTERSTICAS ESTRUTURAIS E ATUAO DO ESTADO........................................................................................................................... 100

    4.1. INTRODUO AO CAPTULO 4 .......................................................... 101 4.2. CARACTERSTICAS E DIMENSES DO MIX PBLICO-PRIVADO DO SETOR DE SADE BRASILEIRO ......................................................... 104 4.2.1. Caractersticas da populao com cobertura duplicada.......................... 106 4.2.2. Financiamento ........................................................................................ 108 4.2.3. Oferta de servios de sade .................................................................... 112 4.2.4. Uso dos servios de sade ...................................................................... 118 4.3. ORIGENS E DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA DE SADE BRASILEIRO................................................................................................... 124 4.4. A REGULAO DO SEGMENTO SUPLEMENTAR NO SISTEMA DE SADE BRASILEIRO .................................................................................... 137 4.4.1. Regulao do segmento suplementar e Regulao do mix pblico-privado do sistema de sade brasileiro: mais elementos para seu escopo ..................... 144

    5. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................ 155 Regulao de Sistemas de Sade com Cobertura Duplicada: Debate internacional e atuao do Estado Brasileiro.................................................. 156 Comentrios acerca da contribuio de estudos internacionais para a Regulao sobre o mix pblico-privado no sistema de sade do Brasil.......... 161

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................. 171

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    LISTA DE TABELAS Tabela 1: Evoluo Percentual do Gasto com Sade. Pases da OCDE, 1960-2005. Tabela 2: Evoluo da Participao do Gasto com Sade no PIB e da Participao

    do Gasto Pblico no Gasto Total com sade. Pases da OCDE, 1995-2004. Tabela 3: Evoluo da Participao do Gasto com Seguro Privado no Gasto

    Privado com Sade. Pases da Unio Europeia, 1980-1998. Tabela 4: Cobertura da populao com Seguro Privado. Pases da Unio Europeia,

    2000. Tabela 5: Desoneraes Fiscais no setor de sade. Brasil, 2008. Tabela 6: Distribuio da Rede de Servios segundo natureza e disponibilidade.

    Brasil, 2005. Tabela 7: N. de Leitos por 1.000 habitantes. Pases OCDE (2004) e Brasil (2005). Tabela 8: Nmero de equipamentos de Mdia e Alta Complexidade / Alto Custo,

    por 100.000 habitantes e de Leitos por 1.000 habitantes, segundo contrato/convnio com SUS e disponibilidade no-SUS. Brasil, 2005.

    Tabela 9: Taxas de uso de servios de sade. Brasil, 2003. Tabela 10: Populao internada pelo SUS nos 12 meses anteriores entrevista,

    segundo tipo de servio e posse de seguro privado. Brasil, 2003. Tabela 11: Populao atendida pelo SUS nos 2 meses anteriores entrevista,

    segundo tipo de servio e posse de seguro privado. Brasil, 2003.

    LISTA DE QUADROS Quadro 1: Tipos de Sistemas de Sade. Quadro 2: Classificao do sistema de sade segundo o mix pblico-privado de

    Chernichovsky.

    Quadro 3: Sistemas Combinados de Chernichovsky. Quadro 4: Classificao do seguro privado de sade segundo sua relao com o

    sistema pblico. Quadro 5: Cobertura de servios de sade no segmento de seguro privado de

    sade do brasileiro segundo a regulamentao (desde 1998).

    LISTA DE GRFICOS Grfico 1: Evoluo da Participao do Gasto Pblico sobre o Gasto Total com

    sade. Pases OCDE, 1995-2004.

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    Grfico 2: Evoluo da Participao do Gasto com Seguro Privado no Gasto Privado com Sade. Pases da Unio Europeia, 1980-1998.

    Grfico 3: Curva de Concentrao da Renda Familiar per capita (Curva de Lorenz). Brasil, 2002.

    Grfico 4: Distribuio da populao brasileira segundo a posse de seguro privado de sade e a renda familiar per capita. Brasil, 2003.

    Grfico 5: Composio da Fontes de financiamento do setor de sade. Brasil, estimativa para 2006.

    Grfico 6: Composio do Gasto Privado Direto com Sade por dcimo de renda familiar per capita. Brasil, 2002.

    Grfico 7: N. de Equipamentos de Mdia e Alta Complexidade / Custo, por 100.000 habitantes e de Leitos por 1.000 habitantes, segundo contrato/convnio com SUS e disponibilidade no-SUS. Brasil, 2005 e mdia OECD, 2000.

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    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS

    AMA/SP: Assistncia Mdica Ambulatorial do Municpio de So Paulo AMS/IBGE: Pesquisa Assistncia Mdico-Sanitria do IBGE ANS: Agncia Nacional de Sade Suplementar ANVISA: Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria BNDES: Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CAP: Caixas de Aposentadorias e Penses CID: Classificao Internacional de Doenas e de Problemas Relacionados Sade CIT: Comisso Intergestores Tripartite

    CNES/MS: Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Sade 8 CNS: 8 Conferncia Nacional de Sade CNS: Conselho Nacional de Sade CRM: Conselho Regional de Medicina Cofins: Contribuio sobre o faturamento CONSU: Conselho de Sade Suplementar CSLL: Contribuio sobre o lucro lquido DESAS: Departamento de Sade Suplementar no mbito da Secretaria de Assistncia Sade do Ministrio da Sade ECHP: European Community Household Panel FFS: fee-for-service GKV: Seguro Social de Doena HMO: Health Maintenance Organization IAP: Institutos de Aposentadoria e Penses IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IDB: Indicadores e Dados Bsicos IDEC: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumido INAMPS: Instituto Nacional de Assistncia e Previdncia Social INPS: Instituto Nacional de Previdncia Social IPEA: Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IRPF: Imposto de Renda sobre Pessoa Fsica IRPJ: Imposto de Renda sobre Pessoa Jurdica LOS: Lei Orgnica da Sade MS: Ministrio da Sade

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    NHS: National Health System ou Service

    NOAS: Norma Operacional de Assistncia Sade NOB: Norma Operacional Bsica

    OCDE: Organizao de Cooperao para o Desenvolvimento Econmico OMS: Organizao Mundial de Sade OOP: Out-of-pocket PAS/SP: Plano de Atendimento Sade de So Paulo PACS: Programa de Agentes Comunitrios de Sade PCV: Pesquisa de Condies de Vida do Seade PSF: Programas de Sade da Famlia PHI: Private Health Insurance

    PIB: Produto Interno Bruto PNAD/IBGE: Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios PAC: Programa de Acelerao de Crescimento SADT: Servios de apoio diagnstico e teraputico SAS: Secretaria de Assistncia Sade do Ministrio da Sade SHI: Social Health Insurance

    SIB: Sistema de Informaes de Beneficirios

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    1. INTRODUO

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    1.1. APRESENTAO

    Frequentemente leio e ouo que o Sistema nico de Sade (SUS) tem problemas de acesso, longas filas, tratamento inadequado e desumanizado, instalaes inadequadas, que no responde a todas as necessidades da populao, que faltam materiais e equipamentos, e uma infinidade de outros problemas mais. Considero correta tal crtica e, mais que isso, entendo que se a proposta realizar o SUS conforme seus princpios, faz-se necessrio que os problemas sejam questionados e enfrentados. Entretanto, junto a esses questionamentos, comum o discurso que a existncia dos seguros privados de sade alivia o SUS, em que se sugere que desoneram a demanda do sistema pblico tanto em termos de quantidade de uso de servios como de recursos financeiros para sua sustentao.

    Esse tipo de comentrio feito pelos mais diferentes atores e interesses. Ao longo dos ltimos 10 anos de minha trajetria de trabalho na academia e nos rgos do Ministrio da Sade Departamento de Sade Suplementar, que em 2000 teve suas funes transferidas para a Agncia Nacional de Sade Suplementar (ANS), rgo que teve outras competncias acrescidas , tenho presenciado esta fala vinda tanto de profissionais de sade, acadmicos, tcnicos e dirigentes governamentais, representantes de organizaes e associaes que compem o mercado de bens e servios de sade, como de mdicos, de hospitais, indstria de medicamentos e equipamentos, parlamentares e at em conversa com colegas de trabalho da rea de sade pblica. quase um senso comum dizer que os seguros privados desoneram o SUS, como se pode ver nos trechos abaixo, que exemplificam tal discurso:

    a Constituio Federal instituiu o SUS, cuja meta era a cobertura universal, que no se verifica, pelo menos com a excelncia mnima exigida. Em princpios da dcada de 1990 ocorreu aguda crise no setor. As consequncias foram a queda na qualidade e na cobertura. Desse modo, tornou-se importante o desenvolvimento da sade privada, no apenas para prestar atendimento a parcela expressiva da populao, mas tambm no sentido de reduzir a demanda do SUS (Merula Steagall. S faltam oito anos. Jornal de Braslia, Opinio, dia 29/07/2007).

    ao desafogar parcialmente as filas nos hospitais pblicos, os planos de sade poderiam ser vistos como parte da soluo da sade brasileira (Revista Carta Capital, Bem longe do paraso, dia 16/04/2008).

    De qualquer forma, o SUS est muito aqum do que deveria ser para ganhar a total adeso da populao e dos estudiosos do sistema e essa brecha provavelmente um dos caminhos que levam aceitao dos seguros privados como forma

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    compensatria. Mas so raras as vezes em que leio questionamento ou viso contrria a

    tal discurso, como a de Mendes, aps apontar que o SUS real est muito longe ainda do SUS constitucional e criticar a ideia de o SUS se destinar aos mais pobres:

    os sistemas segmentados so justificados, tal como se faz no Brasil, por um argumento de senso comum, de que ao institurem-se sistemas privados para quem pode pagar por servios de sade, sobrariam mais recursos pblicos para dar melhor ateno aos pobres (Eugnio Vilaa Mendes. O dilema do SUS. Mmeo, sem data).

    Dessa discusso deriva uma das perguntas desta tese: o segmento suplementar desonera o SUS, seja pela diminuio da demanda aos seus servios, seja pela do gasto pblico? Afinal, temos elementos para afirmar se os seguros privados de sade de fato desoneram o SUS?

    Da deriva a segunda pergunta: qual a funo do segmento suplementar no sistema de sade brasileiro, ou seja, no mix pblico-privado do nosso sistema?

    E o Estado brasileiro, que atuao deve ter para proteger o interesse pblico? Nesse sentido, a regulao sobre os seguros estaria contribuindo positivamente ou negativamente para um possvel alvio ao SUS e para o interesse pblico? Ento, a terceira pergunta : como a regulao governamental sobre o segmento suplementar contribui para os seus efeitos sobre o arranjo pblico-privado?

    Este debate no exclusivo do Brasil. O debate internacional sobre o arranjo pblico-privado no setor de sade tem se tornado cada vez mais caloroso na disputa de ideias e crescente a produo de estudos tcnico-cientficos que analisam como a relao entre o pblico e o privado se d na prtica nos sistemas de sade.

    Segundo Saltman1, o mix pblico-privado j ocorre em diversos pases europeus h mais de meio sculo, pois desde que foram implantados os sistemas nacionais de sade coexistem Estado e setor privado na prestao de servios de sade, sempre que permitida a proviso por entes privados. Este arranjo existe, segundo Stiglitz, em quase todos os pases; em suas palavras, na maioria dos pases h uma combinao de aes pblicas e privadas, mas esta combinao varia entre os pases e no tempo. Para este autor, preciso compreender como o mix pblico-privado vai se dar em cada sociedade e a sua relao com o os princpios que norteiam cada sistema de proteo social: um problema fundamental com que se enfrentam muitos pases qual a combinao adequada para as circunstncias atuais (Stiglitz, 1994: 27) 2.

    Nas ltimas dcadas, diversas mudanas que vm ocorrendo no contexto ideolgico, poltico e scio-econmico de muitos pases contribuem para que este

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    debate venha sendo gradualmente incorporado s discusses no campo das polticas pblicas e da organizao e anlise de sistemas de sade e de reforma setorial.

    Algumas dessas mudanas so estruturais e vm ocorrendo desde o final do sculo passado nos sistemas de sade de muitos pases, em consequncia do debate sobre o tamanho e as funes do Estado na sociedade. Correspondem a um movimento de rearranjo do sistema nacional de sade, construdo com base nos alicerces de proteo social do welfare state, para variaes e adequaes de seu modelo, tendo sido agregadas questes que despontam na sociedade a partir da dcada de 1980, comumente identificadas por valores do individualismo e da valorizao do mercado e do setor privado. Estes so elementos centrais no iderio neoliberal, e uma crtica que se faz aos sistemas nacionais de sade que nestes nem sempre so admitidas tais questes, por terem como prioridade as demandas que so coletivas e maior dificuldade em atender individuais.

    Muitas das mudanas so diretamente relacionadas ao papel do setor privado nos sistemas de sade, como o aumento progressivo do peso do setor privado no financiamento total do setor de sade e a tendncia de transferncia da execuo, mais ou menos regulada, de servios do setor pblico para o privado como exemplo a privatizao, que um ponto amplamente defendido nas reformas administrativas e polticas dos Estados desde fins da dcada de 1970 e quesito central nas reformas neoliberais. Estas mudanas resultam no imbricamento cada vez maior do Estado com os agentes privados na prestao e no investimento que se faz no sistema de sade.

    Entretanto, como ser discutido a seguir, o crescimento do setor privado nos pases europeus e a maior insero deste setor nos sistemas de sade no necessariamente afetaram a estrutura desses sistemas, herdada de meados do sculo XX. Em quase todos os casos, a alterao na configurao das relaes entre o pblico e o privado nos sistemas de sade no correspondeu a uma retrao das responsabilidades e funes do Estado do ponto de vista do financiamento, da elaborao de polticas pblicas de sade e conduo do sistema de sade, tampouco ao crescimento do setor de seguros privados de sade.

    O que se verificou foi, fundamentalmente, a introduo e coexistncia pactuada e regulada de mecanismos de mercado no mbito do setor pblico e o aumento do gasto privado direto. Alm disso, os arranjos pblico-privados vm sofrendo transformaes que se do no apenas pelo crescimento do setor privado, como tambm por mudanas no formato administrativo-jurdico e de financiamento das instituies

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    que prestam servios de sade e no tipo de contrato de prestao dos servios, fazendo com que os conceitos de Pblico e Privado venham se transformando e se tornando cada vez mais difusos (Saltman, 2003: 27) 1.

    Essas mudanas conferem dinamismo ao mix pblico-privado que, ao contrrio de um fenmeno esttico, uma situao em constante mutao. Assim, alm da coexistncia do pblico e do privado nos sistemas de sade parecer inevitvel em praticamente todos os pases do mundo, ela resulta de uma determinada configurao em dado momento e, por este motivo, inconstante. A questo que aqui se coloca a ser examinada : em que base o arranjo pblico-privado vem se dando, para ento vislumbrar como ele deveria se dar de modo que estivessem preservados os objetivos gerais dos sistemas de sade de contribuio positiva aos resultados de sade, ao desenvolvimento do prprio sistema de sade e aos objetivos com base nos direitos sociais.

    Entretanto, o debate sobre o mix pblico-privado confuso e contm contradies, que resultam tanto de evidncias provenientes de estudos tcnico-cientficos, como de um componente ideolgico. Por este motivo, necessrio entender onde, em qu e de que maneira o setor privado afeta e interfere nos sistemas de sade e qual a interface que faz com o sistema pblico de sade.

    Para responder a esta questo os Captulos 2 e 3 apresentam e analisam os debates sobre o mix pblico-privado no setor de sade na bibliografia internacional, tendo como referncia o sistema pblico de sade. Primeiramente, no Captulo 2 apresentado o debate ideolgico e poltico-econmico sobre o contexto em que as questes do arranjo pblico-privado aparecem. O conflito acompanhado de uma carga ideolgica que se d desde um ponto extremo dos defensores dos sistemas nacionais de sade puramente pblicos at o outro plo, no qual o sistema de sade deveria ser privado. Tambm sero discutidos alguns dos resultados de reformas setoriais ocorridas nas ltimas dcadas do sculo XX, como a cada vez maior introduo de mecanismos de mercado, fruto de um movimento em consonncia com a reviso do modelo de bem-estar.

    O Captulo 3 sistematiza e analisa uma recente produo terica e emprica em mbito internacional sobre modelos de mix pblico-privado no setor de sade, com foco no papel do seguro privado, tanto em termos da cobertura da populao com seguro privado como da composio do financiamento dos sistemas de sade em diversos paises. Apesar das taxas de cobertura de seguro privado nos paises observados no chegaram ao patamar dos 20% da brasileira, diferentemente do que o senso comum diz,

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    so altas e conformam problemas nos seus arranjos pblico-privados. Os modelos apresentados trazem conceitos-chave para a compreenso desses arranjos e ajudam a esclarecer parte das questes levantadas no debate apresentado no Captulo 2.

    Por fim, as categorias identificadas na reviso da literatura internacional so sistematizadas e so discutidas as relaes de influncia entre elas que constituem diferentes relaes entre o pblico e o privado. Os achados do marco terico no podem ser diretamente aplicados ao caso brasileiro, mas so teis para a identificao e contextualizao das categorias que orientaro a anlise emprica.

    Tambm sero discutidos alguns dos resultados de reformas setoriais ocorridas nas ltimas dcadas do sculo XX, como a cada vez maior introduo de mecanismos de mercado, fruto de um movimento em consonncia com a reviso do modelo de bem-estar, e a composio do financiamento dos sistemas de sade.

    O Captulo 4 contextualiza e expe os arranjos pblico-privados no sistema de sade brasileiro, desde sua origem at os dias atuais, utilizando contribuies de alguns autores selecionados na extensa bibliografia que existe sobre o sistema de sade brasileiro e de elementos selecionados da (ainda pouco frequente) bibliografia especfica de estudos empricos sobre efeitos do mix pblico-privado no nosso sistema de sade.

    A partir dos achados da bibliografia internacional, a ltima Seo do Captulo 4 apresenta e o Captulo 5 (Consideraes Finais) analisa possveis efeitos que a regulao do Estado tem sobre nosso sistema de sade, com foco especial no que de interesse pblico, neste caso representado pelo SUS. Muito embora os sistemas pblicos de sade dos pases investigados sejam reconhecidamente melhores e mais abrangentes que o SUS no Brasil, em muitos aspectos, diferentemente do que o senso comum supe, as taxas de cobertura de seguro privado nesses pases no so desprezveis. No apenas por esse motivo, mas tambm por outros que sero tratados nos Captulos 2 e 3, a importncia dos seguros privados no sistema de sade desses pases consta como uma preocupao presente entre governantes e estudiosos do tema. Por este motivo, a anlise internacional contribui enormemente para a reflexo sobre o sistema de sade brasileiro, sem perder de vista nossas questes especficas.

    Nesta Tese mostro que a forma com que vem se desenvolvendo a regulao sobre o segmento suplementar est colocando o Brasil na contramo das polticas pblicas dos pases que mantiveram seus sistemas de sade orientados pelos princpios de uma proteo social aos riscos sade, isto , baseada no ideal de um Estado de Bem-Estar

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    Social equnime. Argumento, alm disso, que um dos possveis efeitos da nossa atual regulao sobre o mix pblico-privado contribuir para a manuteno da segmentao do nosso sistema de sade e da prpria sociedade brasileira, privilegiando a elite da sociedade e o mercado de bens e servios privados de sade e, ainda, sendo a ferramenta do Estado para continuar subsidiando a existncia do segmento de sade suplementar no pas.

    Este trabalho parte de um problema relevante, ainda no tratado como objeto de pesquisa cientfica por outros estudos brasileiros e contribui para uma abordagem crtica da funo do Estado e da sociedade brasileira sobre o arranjo pblico-privado do sistema de sade que permeia a nossa proteo social do ponto de vista do campo da assistncia sade (com foco na organizao do sistema, financiamento, prestao, oferta e uso dos servios), alm de propor uma agenda de questes a serem incorporadas ao debate sobre o mix pblico-privado do sistema de sade brasileiro.

    Ora, se o seguro privado atende a uma demanda especfica das pessoas, importante conhecer como isso se d na prtica do sistema de sade, de que forma interfere na proteo social e afeta as desigualdades de sade da nossa populao. Afinal, se as sociedades tm que conviver com o que Saltman1 considera uma inevitvel presena do mix pblico-privado nos sistemas de sade, a questo que deve ser colocada em que base deve se dar esse arranjo para que os objetivos das polticas de sade sejam preservados.

    Enfim, os apontamentos das questes tericas sobre o mix do tipo suplementar e com cobertura duplicada, aqui comentados, diferem dos objetivos da poltica de regulao que vem sendo destinada ao mercado de seguros privados no Brasil. Por este motivo justifica-se a preocupao com tal objeto e dela sobressai a pergunta sobre como este mix se d na realidade do sistema de sade brasileiro. Com essa resposta ter-se- mais elementos para analisar em que medida a atual poltica de regulao refora ou diminui as desigualdades apontadas na teoria estudada.

    Assim, esse trabalho se justifica por levantar um problema relevante que o significado do seguro privado para o sistema de sade brasileiro e ainda no tratado com objeto de pesquisa cientfica por outros estudos acadmicos brasileiros da forma como aqui o fez. Alm disso, contribui para o debate sobre as consequncias do imbricamento pblico-privado no sistema de sade brasileiro e para uma abordagem crtica da funo do Estado brasileiro sobre a sua regulao.

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    1.2. OBJETIVOS E METODOLOGIA

    Esta tese parte das hipteses de que (i) o segmento suplementar no desonera o SUS pela diminuio da demanda aos seus servios ou do gasto pblico e (ii) a regulao pblica existente, separada para o SUS e para o segmento suplementar, desconsidera o mix pblico-privado e no interfere para diminuir os seus efeitos negativos, havendo casos em que contribui para que existam.

    Os objetivos so analisar o arranjo pblico-privado do sistema de sade brasileiro, o modelo regulao vigente no pas das relaes entre o pblico e o privado e os efeitos do mix pblico-privado do sistema de sade brasileiro em relao desigualdade de uso, financiamento e oferta de servios de sade.

    Como toda pesquisa cientfica, existem limitaes a serem consideradas para os resultados qualitativos e quantitativos deste trabalho. Algumas delas foram levantadas nesta Seo, mas todas sero devidamente tratadas ao longo da anlise dos resultados.

    No que diz respeito aos procedimentos metodolgicos, foi realizada uma reviso da bibliografia nacional e internacional sobre o debate em torno do mix pblico-privado no setor de sade e suas tipologias. O tipo de arranjo que corresponde a um sistema de sade com cobertura duplicada e suplementar foi considerado o modelo brasileiro e por este motivo foram estudadas pesquisas empricas de efeitos especficos em outros sistemas de sade com esse arranjo.

    Uma das limitaes deste trabalho refere-se as diferenas e especificidades entre o Brasil e os demais pases estudados, que so tanto qualitativas (de qualidade do sistema nacional de sade) como quantitativas (da proporo de segurados). Mesmo assim, deve ser ressaltado que, embora cada sociedade tenha desenvolvimento histrico e econmico-poltico-social prprios e as taxas de cobertura de seguro privado suplementar nos pases estudados ao longo deste trabalho no cheguem ao patamar dos 20% do caso brasileiro, em muitos outros casos essa proporo tambm alta e conforma problemas no arranjo pblico-privado daqueles pases, motivo pelo qual a anlise comparativa no deve ser desqualificada.

    Outra limitao que a bibliografia internacional com pesquisas empricas sobre efeitos do arranjo suplementar sobre o sistema de sade no apresentam indicadores de resultado de sade. Mas foram utilizados por serem os nicos estudos empricos

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    especficos sobre o tema desta tese e que mostram efeitos da cobertura duplicada sobre o acesso, financiamento, uso e oferta dos servios de sade.

    Tambm foi feita anlise descritiva a partir de pesquisa emprica sobre uso, financiamento e oferta de servios de sade no Brasil, em pases da Organizao de Cooperao para o Desenvolvimento Econmico (OCDE) e em pases da Unio Europeia.

    No caso do Brasil, para dimensionar as interfaces do mercado de seguros privados com o restante do sistema de sade, foram usadas diferentes fontes de informaes.

    A anlise da Oferta de servios de sade foi realizada com base na Pesquisa Assistncia Mdico-Sanitria, AMS, do IBGE de 2005 3, que censitria e contm informaes da distribuio da rede instalada de servios segundo esfera administrativa qual o estabelecimento de sade est vinculado e UF do estabelecimento. Da AMS foi analisada a disponibilidade dos servios para serem usados segundo financiamento SUS e no SUS, com distino para leito e equipamentos de diagnose e terapia.

    Para a anlise da oferta de servios de sade no Brasil, devem ser consideradas as limitaes da AMS/IBGE. Uma delas que esta pesquisa mensura a quantidade de recursos fsicos, mas no o volume de servios produzidos, o que restringe a anlise de seus resultados. Outra limitao diz respeito possvel superestimao e subestimao da oferta nos indicadores de disponibilidade, uma vez que possvel que (i) os estabelecimentos privados que oferecem leitos e equipamentos ao SUS tambm o faam para a clientela dos seguros privados e/ou para os que pagarem diretamente pelo servio e; (ii) muitos leitos e equipamentos que estejam contratados ou conveniados ao SUS poderem, na prtica, ser utilizados para pacientes privados. A escolha dessa fonte de dados se justifica pelo fato de, alm de ser considerada uma base de dados consistente e ser censitria, antiga que o recm-criado Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Sade (CNES/MS).

    Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD/IBGE) de 20034, foram analisadas informaes scio-econmicas, etrias e demogrficas, de posse de seguro privado, regio de moradia e renda dos indivduos com cobertura duplicada que usaram servio de sade, bem como do tipo de servios utilizados.

    A anlise do Uso de servios de sade foi efetuada com base nas informaes sobre a forma de financiamento do uso das pessoas que possuem seguro privado (se pelo SUS, pelo seguro privado e/ou pelo pagamento privado direto). Neste caso, os dados foram tratados da forma explicitada abaixo.

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    Para a posse de seguro privado de sade, foram considerados como possuidores de seguro privado de sade todos os entrevistados pela PNAD/IBGE de 2003 que responderam sim questo (varivel 1321) Tem direito a algum plano de sade (mdico ou odontolgico), particular, de empresa, ou rgo pblico?.

    Neste trabalho so considerados planos/seguros privados todos os planos, inclusive os chamados pela PNAD/IBGE de 2003 de plano pblico. Esta opo se deve ao fato de estes serem financiados por instituies pblicas para um grupo especfico de pessoas, como funcionrios pblicos, exrcito, etc. e, portanto, manterem o carter privado da elegibilidade ao plano.

    Os tipos de servios de sade usados foram obtidos nas respostas dos entrevistados PNAD/IBGE de 2003 sobre a internao realizada pela ltima vez nos 12 meses anteriores entrevista e qual o principal atendimento recebido nas duas semanas anteriores entrevista. As internaes consideradas na varivel utilizada (varivel 1372) so: tratamento clnico, parto normal, parto cesreo, cirurgia, tratamento psiquitrico, exames. Os atendimentos (1360a) so: consulta mdica, consulta odontolgica, consulta de agente comunitrio ou de parteira, consulta de outro profissional de sade (fonoaudilogo, psiclogo, etc.), consulta na farmcia, quimioterapia ou radioterapia ou hemoterapia ou hemodilise, vacinao ou injeo ou curativo ou medicamento de presso ou outro atendimento, cirurgia em ambulatrio, gesso ou imobilizao, internao hospitalar, exames complementares, somente marcao de consulta, outro atendimento.

    A anlise de quem financiou o uso do servio de sade nas informaes da PNAD/IBGE de 2003, foram feitas pelas respostas s perguntas que permitem identificar se o servio de sade utilizado foi realizado pelo SUS, pelo seguro privado ou por meio de desembolso direto. As perguntas referentes ao agente financiador dos atendimentos e internaes, e as possibilidades de respostas, so:

    1) este atendimento/internao de sade foi coberto por algum plano de sade? Alternativas de resposta: SIM ou NO (variveis 1364 e 1374);

    2) pagou algum valor por este atendimento/internao de sade? Alternativas de resposta: SIM ou NO (variveis 1365 e 1375) e;

    3) este atendimento de sade foi feito atravs do SUS? Alternativas de resposta: SIM, NO, NO SABE (variveis 1366 e 1376).

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    Como as opes de respostas s perguntas no so excludentes e um mesmo indivduo pode ter respondido sim a mais de uma, foi utilizada a metodologia desenvolvida por Porto et al em 20065 para diferenciar quem financiou o servio utilizado.

    Para as informaes de renda, foi utilizada a renda mensal familiar per capita sem agregados. Da mesma forma que em Porto et al5 e no trabalho de Santos et al de 20086, foi usada a definio do Glossrio da PNAD/IBGE de 2003 para esta renda, que a soma dos rendimentos mensais dos componentes da famlia, exclusive os das pessoas com menos de 10 anos de idade e os daquelas cuja condio na famlia de pensionista, empregado domstico ou parente do empregado domstico. A partir dessa informao e da quantidade de pessoas em cada famlia, foi calculada a renda mensal familiar per capita sem agregados e, posteriormente, a populao foi organizada em dcimos ordenados pela aludida renda familiar.

    Para a composio das fontes de financiamento do sistema de sade brasileiro foram usadas diferentes informaes. No caso do gasto pblico e do gasto privado direto foram utilizadas as estimativas elaboras por Carvalho7 para dimensionar o gasto em sade em 2006, que utilizou fontes primrias para o gasto pblico e a Pesquisa de Oramentos Familiares (POF/IBGE) de 2003 para o gasto privado direto, cujas informaes foram devidamente inflacionadas para 2006. Deve ser considerada como uma das limitaes desta informao a da prpria POF, que o gasto privado direto se restringe aquele efetuado pelas famlias brasileiras, de modo que no est contabilizado o gasto privado diretor realizado por Empresas.

    No caso do gasto com seguros privados de sade foram utilizadas as informaes da Agncia Nacional de Sade Suplementar (ANS/MS) 8 referentes 2006, por serem mais atualizadas que a apresentada por Carvalho 7.

    Outra limitao composio das fontes de financiamento setorial no Brasil que nesta no esto contabilizadas as diversas outras rubricas que foram tratadas no Relatrio das Contas Nacionais em Sade do IBGE 9. Esta opo se deu por ser esta a composio do indicador mais adequada para as comparaes com os indicadores internacionais elaborados a partir dos dados da OCDE.

    Alm dessas limitaes, deve ser considerado que o gasto com sade no Brasil mencionado no contabiliza outros gastos, como os previstos em Lei com as diretrizes para elaborao do oramento anual da Unio com a assistncia mdica e odontolgica a servidores pblicos e empregados das trs esferas de governo, inclusive das entidades

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    da administrao indireta e das Foras Armadas. Alm disso, no foi contabilizado no Gasto total com sade o gasto pblico indireto, que resulta das desoneraes fiscais para determinadas despesas, sendo uma delas a com sade.

    Em relao s anlises internacionais, a OCDE organiza e atualiza anualmente as mais diferentes informaes de sade dos pases que a compem, a partir da base de dados OECD Health Data e de publicaes divulgadas no site da Organizao. Com base nessas informaes, foram construdos indicadores internacionais para os pases da OCDE sobre a Evoluo do Gasto com Sade, a Participao do Gasto com Sade no PIB e a Participao do Gasto Pblico no Gasto Total com Sade.

    Devido aos limites de disponibilidade pblica dos dados da OCDE, as informaes especficas sobre o seguro privado de sade tiveram que ser obtidas no estudo desenvolvido por Mossialos e Thompson em 200410 e se restringem aos pases da Unio Europeia. So elas: Evoluo da Participao do Gasto com Seguro Privado no Gasto Privado com Sade e Cobertura da Populao com Seguro Privado de Sade.

    Assim, uma outra limitao deste trabalho diz respeito comparao dos indicadores internacionais, uma vez que possuem diferentes fontes, datas e pases considerados. Enquanto o os relativos ao financiamento setorial utilizados na comparao so elaborados com informaes da OCDE para todos os pases que compem esta Organizao no perodo 1995-2004, os indicadores de cobertura de populao com seguro privado so de 2000 e de gastos especficos com seguro privado, contemplam os pases da Unio Europeia no perodo de 1980-1998.

    Algumas decises tiveram que ser tomadas em relao conceitos e nomenclatura, que neste trabalho so assim considerados:

    1. Seguro privado de sade:

    contempla todos os planos e seguros de sade. Esta uma tentativa de aproximao da terminologia internacional, que denomina a todo tipo de plano ou seguro privado private health insurance (PHI). Alm disso, uma deciso originada pelo pressuposto de que a diferena entre o que chamado de plano e de seguro no Brasil no justifica sua diferenciao para os objetivos da tese, pois seus efeitos so os mesmos para o sistema de sade como um todo.

    so todos os planos ou seguros de sade, inclusive os chamados pela PNAD/IBGE de 2003 de plano pblico. Esta opo se deve ao fato de estes

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    planos serem financiados por instituies pblicas para um grupo especfico de pessoas, como funcionrios pblicos, exrcito, etc. e, portanto, manterem o carter privado da elegibilidade ao plano.

    2. Segmento suplementar: todo o mercado de seguros privados de sade no Brasil, que conhecido por setor suplementar. Essa deciso se fundamenta na escolha para uso setor nos casos tambm utilizados pela classificao do IBGE. No presente trabalho, setor considerado corretamente utilizado quando o para setor de sade, setor pblico, setor privado. Note-se que neste trabalho o segmento suplementar tambm no considerado sistema ou mesmo subsistema, uma vez permeia todo o setor de sade sem conformar um sistema.

    3. Estatutrio: o sistema denominado statutory na bibliografia internacional e estatutrio neste trabalho, que corresponde ao sistema definido na legislao como o principal meio de proteo ao risco sade para a sociedade. No caso brasileiro, o Sistema nico de Sade (SUS).

    4. Arranjo pblico-privado e mix pblico-privado: a bibliografia referente s tipologias de sistemas de sade mistos extremamente recente, e reforam uma linha de pesquisa denominada public-private mix. O presente trabalho d preferncia ao termo arranjo pblico-privado, mas para se aproximar mais da nomenclatura original deste campo de produo cientfica, situado na Economia da Sade, que recente e ainda predominantemente internacional, optou-se por manter o termo mix.

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    2. O CONTEXTO EM QUE SE D O DEBATE DO MIX PBLICO-PRIVADO NO SETOR DE SADE

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    2.1. QUESTIONAMENTOS AO MODELO DOS ESTADOS DE BEM-ESTAR SOCIAL E A PRESENA DO IDERIO NEOLIBERAL

    Diversas mudanas ocorreram nos sistemas de sade de diversos pases desde o final do sculo passado em consequncia do questionamento do tamanho e das funes do Estado e do mercado nas sociedades. Deve ser lembrado, entretanto, que este no um movimento exclusivo do final do sculo XX, pois antigo e se fundamenta em correntes ideolgicas antigas e novas.

    Para Williams 11 e Maynard 12, no plano das ideias o debate sobre o mix pblico-privado sustentado pelos que defendem a igualdade de direitos, os egalitarians, em contraposio aos dos que sustentam o direito ao livre arbtrio dos indivduos, os libertarians. Atualmente, essa discusso comumente traduzida pela que se d entre o welfarianismo e o neoliberalismo. um debate que diz respeito a todas as dimenses da sociedade, sendo a sade uma delas.

    Nesse sentido, as mudanas que ocorrem nos sistemas de sade so frutos da constante reformulao das ideologias dos egalitarians e dos libertarians e da agregao de elementos que tratam dos problemas e contextos de cada poca e sociedade.

    Contudo, deve-se ter o cuidado de aprofundar a observao dos fundamentos da relao entre essas ideologias, de seu aparente antagonismo, para a sua essncia, que remonta s suas origens. Como assinala Polanyi13, o forte desenvolvimento do mercado ao longo dos sculos que, aps a criao do sistema financeiro bancrio ganhou grandes propores no incio do sculo XX, as quais o autor compara ao poder do Cristianismo muitos sculos antes sempre trouxe consequncias danosas populao e, em especial, aos trabalhadores. Por este motivo, foi acompanhado do que o autor chamou de contramovimento (Polanyi, 2000: 161) 13, que a mobilizao da prpria sociedade em defesa dessa forma de organizao da produo e da coeso social. Em suas palavras:

    Voltemos agora quilo que chamamos de duplo movimento. Ele pode ser personificado como a ao de dois princpios organizadores da sociedade, cada um deles determinando seus objetivos institucionais especficos, com o apoio de foras sociais definidas e utilizando diferentes mtodos prprios. Um foi o princpio do liberalismo econmico, que objetivava estabelecer um mercado auto-regulvel, dependia do apoio das classes comerciais e usava principalmente o laissez-faire e o livre comrcio como seus mtodos. O outro

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    foi o princpio da proteo social, cuja finalidade era preservar o homem e a natureza, alm da organizao produtiva, e que dependia do apoio daqueles mais imediatamente afetados pela ao deletria do mercado bsica, mas no exclusivamente, as classes trabalhadoras e fundirias e que utilizava uma legislao protetora, associaes restritivas e outros instrumentos de interveno como seus mtodos. (Polanyi, 2000: 163-4) 13

    o contramovimento que se ops ao liberalismo econmico teve todas as caractersticas inequvocas de uma reao espontnea. Em inmeros pontos isolados ele surgiu sem que houvesse ligaes aparentes entre os interesses diretamente afetados ou qualquer conformidade ideolgica entre eles (...) a anlise revela que nem mesmo os adeptos mais radicais do liberalismo econmico puderam fugir regra que tornou o laissez-faire inaplicvel as condies industriais avanadas. No caso crtico da lei dos sindicatos profissionais, e das regulamentaes antitrustes, os prprios liberais extremados apelaram para intervenes mltiplas do Estado, a fim de garantir as precondies de funcionamento de um mercado auto-regulvel contra acordos monopolistas ... , portanto, contrrio a todos os fatos o mito liberal da conspirao coletivista das dcadas de 1870 e 1880 (Polanyi, 2000: 182)13.

    Por este raciocnio, o desenvolvimento das sociedades capitalistas se d com base em dois princpios organizadores, que so o liberalismo econmico e a proteo social, mas que no so antagnicos, pois compem um duplo movimento, em que um princpio leva ao outro. Enquanto o liberalismo foi desenvolvido de forma planejada, a proteo social foi uma resposta espontnea da sociedade, para proteger a classe trabalhadora [i].

    Portanto, quando o welfarianismo e o neoliberalismo estiverem sendo tratados neste trabalho, so entendidos no como oposio absoluta, mas sim como uma lgica dialtica da sociedade que se protege das mazelas da forma de produo e acumulao que desenvolveu.

    Nos sculos XVIII e XIX as ideologias majoritrias podem, grosso modo, ser resumidas em duas. Por um lado, os liberais defendiam a livre atuao dos agentes do mercado e a auto-organizao deste. Tal ideal expresso no exemplo da mo invisvel de Adam Smith (sculo XVIII) e no laissez faire, retomado pelos neoliberais no sculo XX. Por outro lado, em contraposio ao liberalismo do sculo XIX, socialistas e comunistas defendiam a interveno radical do Estado sobre o mercado e que a execuo dos servios fosse realizada pelo prprio Estado. Este iderio se juntou ao dos

    i Em relao ao perodo subsequente ao que Polany se remete, no deve ser desconsiderado que as bases da proteo social contribuem como fundamento ideolgico para o socialismo e o comunismo ao longo do sculo XIX, mas foi ao longo da implementao da proteo social dos Estados de social democracia europeus, resultante de movimentos solidrios de defesa das sociedades desgastadas na IIa Guerra Mundial, que a proteo social tomou corpo ideolgico contra o liberalismo.

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    keynesianos do sculo XX, que viam o Estado como promovedor da demanda agregada, pela gerao de empregos e por meio da execuo de polticas sociais.

    No decorrer do sculo XX esses ideais foram reformulados, tanto no plano terico como no prtico. Na primeira metade deste sculo foram institudos governos socialistas que implementaram modelos de sociedade em que as funes do Estado interferiram fortemente nas relaes que se do entre a sociedade e o mercado. Na segunda metade deste sculo, a reconstruo dos pases europeus capitalistas aps a II Guerra Mundial se sustentou majoritariamente por ideais universalistas de proteo social e do modelo keynesiano do papel do Estado no desenvolvimento econmico e social, expressos no Estado de Bem-Estar Social (welfare state).

    A tipologia mais comumente usada para distinguir os sistemas de proteo social desenvolvidos pelos Estados de Bem-Estar dos pases capitalistas a de Esping-Andersen14. Esta tipologia organiza os modelos em trs tipos ideais o liberal, o conservador corporativo e o social-democrata que correspondem s relaes entre o pblico e o privado na proviso dos servios, ao grau de desmercantilizao dos bens e servios sociais, e estrutura social. Como a classificao de Esping-Andersen14 define tipos ideais, eles no sero idnticos aos encontrados na realidade dos modelos de Estado de Bem-Estar, desenvolvidos ao longo dos anos e dos acontecimentos de cada pas, onde coexistem elementos dos diferentes tipos.

    O regime liberal caracterizado pelo alto grau de participao das empresas empregadoras na proteo e a assistncia pblica residual e destinada aos mais pobres. Neste regime os interesses de mercado exercem forte influncia sobre as questes sociais e econmicas. Estados Unidos, Austrlia e Nova Zelndia so exemplos tpicos de pases onde o regime liberal se desenvolveu fortemente. Note-se que o termo liberal usado por Esping-Andersen14 para denominar um tipo de welfare state, porm o presente trabalho continuar utilizando o termo welfarianismo para identificar a corrente ideolgica fundada nos valores de solidariedade e universalidade, diferentes daqueles que regem os regimes liberais.

    O regime chamado de conservador corporativo baseado no modelo bismarkiano de seguro-social, onde a proteo social destinada a um conjunto de pessoas organizadas em categorias profissionais ou de renda. O desenvolvimento deste regime foi mais intenso na Europa continental, como ustria, Frana, Holanda e Blgica.

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    O modelo social democrata o desenvolvido robustamente nos pases nrdicos, Inglaterra e, mais recentemente, em Portugal e Espanha. fundado em valores de solidariedade e os benefcios so providos fundamentalmente pelo Estado e destinados a toda a populao, sendo igualmente distribudos independente da situao de renda ou ocupao do cidado, constituindo-se em um direito inerente cidadania.

    A tipologia de Esping-Andersen 14 e o estudo que este autor faz dos Estados de Bem-Estar aps a crise do modelo sero utilizados neste Captulo para auxiliar a compreenso do desenvolvimento do mix pblico-privado no setor de sade luz das trajetrias dos pases no desenvolvimento dos seus modelos de Estado de Bem-Estar. Os arranjos entre o pblico e o privado nas sociedades capitalistas estaro permeados do mesmo movimento dialtico da relao entre a lgica do welfarianismo e a do liberalismo assinalado por Polanyi13.

    As mudanas que originaram o que se convencionou chamar de crise do Estado de Bem-Estar Social se iniciaram na dcada de 1970 e resultaram em reformas de Estado a partir do final da dcada de 1970 e, sobretudo, nos anos 1980 e 1990. Tais mudanas ocorreram em relao ao contexto em que o Estado de Bem-Estar foi desenvolvido, como mostra Esping-Andersen14, quando eram outros os valores que vigoravam: nas economias abertas e globalmente integradas de hoje (...) muitas das premissas que guiaram a construo desses welfare states no so mais vigentes (Esping-Andersen, 1995: 73) 15.

    Embora a transformao industrial tenha se iniciado logo depois de finda a II Guerra Mundial, sobretudo a partir da dcada de 1970, junto crise econmica, que comearam a se fazer sentir os impactos do aumento dos gastos derivado do avano tecnolgico. A crise econmica iniciada na dcada de 1970 cujo estopim foi o choque do petrleo, sobretudo aps a segunda alta do preo em 1979 exps o limite de recursos como um problema para as economias dos pases.

    Os reflexos da crise econmica no foram poucos, como o aumento das taxas de desemprego, o desenvolvimento de novas formas de emprego, mais flexveis, a reduo da jornada de trabalho e o trabalho no mbito do lar. A crescente incorporao da mulher no mercado de trabalho demandou novas estruturas de apoio ao cuidado da famlia e repercutiu nas taxas de fertilidade. O envelhecimento da populao, associado menor fertilidade, contribuiu (e ainda contribui) fortemente para o desequilbrio da seguridade, a qual passa a ter sua sustentabilidade como uma questo preocupante. Ademais, como mostra Draibe, foram feitas presses sociais e polticas por

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    modificaes no sentido de uma utilizao mais humana, racional e democrtica dos recursos (Perrin, 1981 apud Draibe, 1988: 56) 16. E nesse contexto que demandas orientadas por valores exclusivamente individuais vm, desde ento, questionando o welfarianismo e ganhando fora.

    Diversos autores analisam os questionamentos ao welfare state (Esping-Andersen15, Draibe 16, Fleury 17,18, Castel 19). Para Esping-Andersen 15, as mudanas que os originaram podem ser organizadas em trs eixos: novas necessidades de seguridade social, condies econmicas e demografia, que dizem respeito ao envelhecimento populacional, baixa fertilidade, estrutura ocupacional e da famlia; desindustrializao, ao crescimento econmico mais lento, no mais disponibilidade do pleno emprego e perda da garantia do emprego.

    No setor de sade o aumento dos gastos na prestao de servios mdico-hospitalares tambm foi e continua sendo expressivo, como mostra a evoluo dos gastos com sade para os pases da OCDE no perodo de 1960 a 2005 (Tabela 1). Diversos fatores contribuem para o crescimento do gasto com sade, como o aumento dos preos dos insumos e produtos do setor de sade, a incorporao de novas tecnologias de sade (que no substituem as antigas) e o envelhecimento da populao, sendo que esses dois ltimos so associados e respondem pela maior parte do aumento dos gastos.

    O alargamento do topo das pirmides etrias populacionais tambm contribui para o aumento da utilizao de servios de sade para os idosos, com maior incidncia de doenas crnicas que implicam na longa durao do problema de sade e, portanto, do uso das novas tecnologias entre os idosos, como mostra Veras 20.

    Algumas mudanas vem sendo feitas para combater o aumento dos gastos com sade, como ferramentas de avaliao de incorporao de novas tecnologias, de realocao de ambiente de algumas tecnologias (transio do ambiente hospitalar para o ambulatorial) e de reviso de tecnologias em curso, mas sobre as quais haja dvidas acerca de sua efetividade. Assim, a incorporao de novas tecnologias abarca maiores gastos no curto prazo, mas possvel que o enfrentamento desse efeito, por meio de critrios especficos, possa estar contribuindo para a reduo do gasto com sade no mdio e longo prazo, alm de uma maior efetividade e eficincia dos servios de sade.

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    Tabela 1: Evoluo Percentual do Gasto com Sade. Pases da OCDE, 1960-2005. (incremento % por dcada)

    Pases 1960-1970 1970-1980 1980-1990 1990-2000 2000-2005 Austrlia - - 11,7 6,9 - ustria

    11,0 14,4 5,2 8,2 3,7 Blgica

    16,1 7,9 6,0 7,1 Canad

    11,2 13,5 10,6 4,6 7,1 Rep. Tcheca - 6,0 7,1 16,5 8,2 Dinamarca - - 7,2 4,3 5,8 Finlndia

    15,2 16,9 12,7 2,3 6,4 Frana

    14,2 16,7 10,7 4,8 6,7 Alemanha - 11,9 5,0 7,0 2,4 Grcia - 20,9 21,8 17,5 9,5 Islndia

    23,1 46,8 40,0 8,1 8,8 Irlanda

    13,7 25,2 7,5 11,4 12,9 Itlia - - - 5,9 5,7 Japo

    21,4 16,7 5,2 4,0 - Coreia - - - 13,0 11,8 Luxemburgo - 15,0 9,6 8,6 12,5 Mxico - - - 23,9 11,9 Holanda - - 4,9 5,5 - Nova Zelndia - 16,5 13,9 5,8 9,3 Noruega

    13,9 18,5 9,9 8,3 7,1 Polnia - - - 30,1 8,3 Portugal - 31,0 22,5 13,2 7,0 Rep. Eslovquia - - - - 15,2 Espanha

    24,9 24,3 15,0 8,1 10,5 Sucia - 14,9 9,1 4,5 5,5 Sua

    10,7 9,8 7,1 4,8 4,1 Turquia - - 55,8 88,9 35,0 Reino Unido

    8,7 18,8 9,9 7,5 8,0 Estados Unidos

    10,5 12,9 10,9 6,6 8,0 Fonte: OECD 2007 21. Nota: - : dados no disponveis no perodo.

    Assim, todas essas mudanas foram fortemente usadas para embasarem propostas de polticas de enfrentamento do dficit pblico e da inflao, feitas por estudiosos e equipes das reas econmicas de cada pas. Na segunda metade da dcada de 1980 comeou a ser implantada a agenda liberal elaborada para realizar o ajuste macroeconmico. Tinha como eixo central estabilizar as economias e intervir nas polticas sociais, tomadas como instrumento de ajuste, como mostrou Ug em 1997 22. Foi nesta dcada que comearam a cair muitos dos governos socialistas e a ser desfeitos os modelos de sociedade que estes haviam construdo. O liberalismo se fortaleceu, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, com nova roupagem, assim como o neoliberalismo, representado pelos projetos dos defensores da poltica do governo

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    Reagan, expressa pelo Reagonomics, e da primeira ministra do Reino Unido Margaret Thatcher com correntes similares de no interveno do Estado no mercado.

    Para Ug e Marques esse momento correspondeu a um paradigma neoliberal pelo fato de a proposta liberal da dcada de 1980 trazer uma nova abordagem da sociedade pela associao das diferentes correntes liberais, a da Escola Austraca, a de Chicago e a do Public Choice. As autoras organizam o paradigma do neoliberalismo em trs eixos, os quais sustentam as propostas de (a) privatizao, pela ideia de superioridade do livre mercado como mecanismo de alocao eficiente de recursos, (b) do individualismo e (c) da liberdade, em detrimento da igualdade (Ug e Marques, 2005:196)23.

    So disseminadas e fortalecidas as ideias de que o investimento em uma seguridade social generosa implica em menor crescimento econmico e da oferta de emprego, e de que o Estado tende a ser menos eficiente que o mercado. A propagao dessas ideias neoliberais gerou uma menor confiana na capacidade de gerenciamento do Estado, como apontou Draibe 16. Como consequncia, corroborou-se a crena nos valores individuais e em solues de mercado, sob o argumento de que, para combater as deficincias identificadas na gesto feita pelo Estado, preciso reform-lo e retir-lo da execuo, expondo a execuo de servios concorrncia entres entes privados.

    Esse momento de propostas neoliberais de ajuste macroeconmico bem resumido por Ug:

    no plano estritamente econmico, o padro de interveno estatal keynesiano deve ser abolido, retirando-se o Estado da economia, atravs da total desregulamentao do sistema e privatizao do setor estadual, no plano social, a igualdade e a solidariedade social cedem lugar diferenciao e ao individualismo, visto como a responsabilidade individual na alocao dos recursos pessoais (Ug, 1997: 85) 22.

    Assim, so questionados a eficincia e o escopo das atividades dos Estados de Bem-Estar e so supervalorizados o indivduo e a liberdade individual.

    As ideias do neoliberalismo se fortaleceram paulatinamente, sobretudo a partir da dcada de 1990. As propostas de privatizao de programas sociais e de reduo das aes sociais do Estado s populaes mais pobres, eram (e so) comumente apresentadas como soluo para a necessidade de diminuio do gasto pblico e como resposta s demandas mais diferenciadas e individualistas da sociedade ps-industrial (Esping-Andersen, 1995: 106) 15.

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    Com a difuso das ideias neoliberais o lema passa a ser a reduo das atividades welfarianas do Estado, (...) consideradas como elementos de estmulo falta de responsabilidade individual, alm de serem vistas como o grande fardo financeiro carregado pelo setor produtivo da economia (Ug e Marques, 2005:197) 23. Portanto, ao mesmo tempo em que foi colocada em questo a frmula do crculo virtuoso entre o crescimento econmico derivado da combinao da poltica econmica keynesiana com a expanso das polticas sociais, os padres de produo e demanda das economias capitalistas se transformaram, aumentou a inflao e ocorreu um menor crescimento

    econmico de muitos pases. O conflito se deu (e se d) entre a poltica econmica e a social, e na relao entre Estado e sociedade.

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    2.2. O DEBATE ATUAL SOBRE A PARTICIPAO DO ESTADO E DO SETOR PRIVADO

    Existe extensa bibliografia referente aos resultados dos questionamentos aos Estados de Bem-Estar. No objeto especfico dessa Seo sua anlise exaustiva em cada pas, mas sim entender como, nas trs ltimas dcadas do sculo passado, as polticas de ajuste interferiram na relao do Estado com a sociedade e influenciaram os modelos de mix pblico-privado no setor de sade. Por este motivo, a anlise se concentrar nos elementos das reformas realizadas nos modelos de Estado considerados tpicos (como os casos de Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha), para auxiliar a compreenso das reformas do setor de sade desses pases.

    Foi mostrado na Seo anterior que a crise econmica levou os governos e, sobretudo, os organismos internacionais de financiamento, a elaborarem polticas de ajuste estrutural de reviso da poltica keynesiana e das funes do Estado, retraindo-as.

    As polticas de ajuste estrutural a partir da dcada de 1980 prescreveram o saneamento das finanas pblicas pela diminuio do espectro de interveno do Estado na economia e na rea social que, como afirmou Ug, o receiturio do ajuste estrutural respeita, nos seus pressupostos e prescries, o iderio neoliberal (Ug, 1997: 94) 22.

    Como j salientado, a proposio da retrao do papel do Estado sobre a administrao e proviso da seguridade social e sobre o melhor comportamento dos mercados, se baseou em um dos eixos do paradigma neoliberal, que a crena de que a produo feita com maior eficincia no setor privado que no pblico. Um exemplo dessa corrente a associao do setor privado maior eficincia na alocao de recursos sob o argumento que, uma vez que os provedores estejam expostos s foras de mercado, tal exposio gera concorrncia, o que faria com que a alocao de recursos se tornasse mais eficiente [ii].

    central nessa discusso que as ideias neoliberais colocam que a eficincia depende da exposio dos provedores concorrncia de mercado e pressupem que o

    ii A argumentao em defesa da maior eficincia gerada pelo mercado advm do resgate que a

    economia neoclssica faz do Equilbrio de Pareto. Vilfred Pareto foi um economista no final do sculo XIX, props que quando h diferentes solues de um determinado problema, em um mercado perfeito, uma soluo domina a outra quando considerada, pelo menos, melhor em termos de satisfao, e no considerada pior nas outras possveis funes de serem comparadas. Assim, a soluo que domina vai ser considerada Pareto-timo e, sob tal lgica, representa a possibilidade de alcanar maior eficincia que a outra soluo.

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    sucesso dos efeitos da concorrncia isto , a eficincia no ocorreria no setor pblico, motivo pelo qual defendem a maior exposio dos provedores s foras de mercado como forma mais eficiente de alocar os recursos, como mostra Preker24.

    Ainda em relao proviso, vem sendo debatido em quais casos o Estado deve transferir a proviso dos bens e servios para o setor privado e em quais os deve prover diretamente, com o fim de garantir sua oferta. Tanto o argumento da maior eficincia da proviso de servios abertos concorrncia de mercado, como a discusso de quais servios devem ser oferecidos pelo Estado e quais pelo mercado, so temas centrais na proposta que o Banco Mundial fez, no incio da dcada de 1990, para a agenda das reformas dos sistemas de sade. No Relatrio Investindo em Sade de 1993 25 foram sugeridos, entre outros, o ajuste macroeconmico, o investimento no aumento da concorrncia no setor de sade e a reviso do papel do Estado para a proviso de bens pblicos e polticas voltadas para a populao de menor renda.

    Este documento defendeu a reorganizao da assistncia sade para a elaborao de pacote de servios clnicos essenciais que garantisse bem-estar aos mais pobres (considerados os servios de assistncia sade materno-infantil, de planejamento familiar, controle da tuberculose e das doenas sexualmente transmissveis e o atendimento focado nas doenas que apresentassem risco de vida em crianas, como diarricas, doenas respiratrias, sarampo, malria e desnutrio aguda), proposta que ficou conhecida como de focalizao da assistncia. O mesmo documento props que fosse ampliada a cobertura da populao com seguro privado de sade e aumentada a gama de opes de seguro para serem escolhidos pelos consumidores que pudessem arcar com seu financiamento.

    A proposta do Banco Mundial 25 visou direcionar o financiamento pblico cobertura da populao de baixa renda com cesta bsica de servios e ao combate de externalidades, e o financiamento privado para os demais servios clnicos, pela criao de mecanismos que obrigassem as pessoas com maior renda a se responsabilizarem pelos recursos financeiros que garantissem sua assistncia sade. O argumento apresentado pelo Banco em defesa de suas recomendaes era que o financiamento de um sistema de sade de acesso universal utiliza, para pessoas com mais renda, recursos que poderiam estar sendo gastos com os de menor renda.

    A sobreposio das questes do mercado sobre as sociais tem sido severamente criticada por muitos estudiosos. Um de seus opositores Deppe 26, para quem as propostas de reforma da seguridade que defendem a substituio do Estado na

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    organizao das polticas sociais e a introduo de mecanismos de competio do mercado apenas pelo suposto maior ganho de eficincia que este pode gerar, conformam um processo de economizao das questes sociais que, embora seja defendido com entusiasmo pelos neoliberais, no garante nem a melhoria das questes econmicas, tampouco a das sociais.

    As reformas do setor pblico que vm sendo realizadas, desde que anunciada a crise do Estado de Bem-Estar, foram fortemente influenciadas pelas questes aludidas e pelas reaes dos governos, mercados e sociedades. Para Fleury, as solues que vem sendo empreendidas podem ser analisadas segundo o grau de enraizamento do projeto de proteo social de cada sociedade. Para essa autora, o grau de penetrao das propostas neoliberais de privatizao de programas sociais e de reduo da funo do Estado nesses programas exclusivamente aos mais pobres depender do xito geral do projeto de welfare state e do enfrentamento que se deu no interior do prprio sistema de proteo social (Fleury, 1995: 74) 18. Assim, as mudanas decorrentes desse processo acontecem de forma diferente nos pases.

    Para Esping-Andersen15, as estratgias de enfrentamento das mudanas passam pelo grau de organizao das instituies de cada pas e pelo que resulta das mudanas e interferncias polticas em termos de investimento social. Assim, a capacidade de cada pas em administrar seus conflitos vai resultar de como o pas lida com a interferncia de interesses outros que os dos objetivos de bem-estar social, emprego e crescimento.

    Embora as solues para a chamada crise dos Estados de Bem-Estar tenham se diferenciado entre os pases, alguns pontos foram comuns. Por exemplo, em muitos pases foi transferida parte da proviso de servios que eram realizados pelo setor pblico para o mbito do mercado, fenmeno comumente observado em servios de telecomunicaes, transportes, abastecimento de energia, gua e esgoto, alm de servios sociais como sade, educao e administrao de fundos de penses e aposentadorias. Alm disso, importantes instrumentos foram desenvolvidos para viabilizar as reformas, como os contratos do Estado com organizaes pblicas e privadas, e a introduo de mecanismos de conteno de custos e gastos, como mostrou Preker 24. Enfim, sob o argumento da maior eficincia, buscou-se aumentar a competio na produo de bens e servios, inclusive dos de proteo social, e atender a demandas individuais especficas.

    Essas mudanas interferem no papel do Estado, que passa de produtor para comprador de bens e servios produzidos e executados por outros provedores,

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    pblicos e privados. Para exercer as novas funes e assegurar a sustentao equitativa do financiamento e da distribuio desses bens e servios, preciso investir na melhoria de capacidade de coordenao do Estado, funo que ficou conhecida como de regulao24.

    A anlise da trajetria especfica de cada pas no desenvolvimento do modelo de Estado de Bem-Estar foi feita por Esping-Andersen 15 alguns anos aps ter elaborado a denominada tipologia dos regimes de welfare state. Nesta obra, o autor os agrupou pela posio na ordem mundial e pelo percurso histrico, poltico, cultural e econmico, que so os conjuntos de pases: (a) Estados Unidos, Canad, pases antpodas; (b) Europa continental; (c) Pases escandinavos; (d) Leste europeu; (e) Amrica Latina e; (f) Leste asitico.

    Para este autor, os trs primeiros grupos correspondem, respectivamente, aos exemplos de pases onde predominam o regime liberal, o corporativo conservador e o social democrata. O quarto grupo, dos pases do leste europeu, se diferencia por estes pases terem passado por uma transio da economia socialista para a de mercado, que requer o fortalecimento de instituies para intermediar os diferentes interesses que passam a vigorar quando entram para o mundo capitalista.

    O grupo dos pases da Amrica Latina tem uma especificidade, dados os problemas estruturais pelos quais eles passaram e, segundo o autor15, o agravamento das questes pela forte presena do clientelismo. As mudanas ocorridas mostram diferenas entre esses pases pelas estratgias adotadas de privatizao da seguridade social e/ou de reduo da rede pblica, caso de Argentina e Chile que corresponde ao modelo liberal/produtivista da anlise da reformas da seguridade na Amrica Latina realizada por Fleury18 , e pela elaborao de polticas de cunho universalista, como Brasil e Costa Rica modelo chamado pela mesma autora de universal/publicista.

    Esping-Andersen 15 considera que no Brasil houve um fortalecimento da rede pblica de seguridade social, por ser um momento em que o pas estava colhendo os resultados da transio democrtica realizada nos anos 1980. Neste perodo, a Constituio Federal de 1988 estava recm promulgada e a seguridade brasileira em fase de reestruturao. Em geral, as reformas realizadas na Amrica Latina so consideradas tardias 27 quando comparadas s realizadas nos pases da Organizao de Cooperao para o Desenvolvimento Econmico, OCDE.

    No grupo dos pases asiticos, sobretudo Japo e Coreia, Esping-Andersen15 os considera modelos hbridos por serem focados na famlia, por um lado, e, por outro

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    lado, no Bem-Estar fortemente dependente dos servios proporcionados pelas empresas. Esses pases se fortaleceram com a reconstruo da II Guerra Mundial e o desenvolvimento de um modelo de Estado interventor, que os levou a despontarem como economias fortes na dcada de 1980, quando se tornaram conhecidos como os tigres asiticos. O xito econmico destes pases passa por uma combinao de elementos que fortalecem tanto o Estado como o mercado. Para Stiglitz, so dois os principais elementos que compuseram o cenrio de crescimento dos tigres asiticos: el gran papel para el gobierno y la gran confianza en los mercados, combinados pelo poder do Estado de definio das regras de funcionamento do mercado, como assinala o autor, algunos dicen que el gobierno utiliz el mercado para lograr su objetivo; otros dicen que el gobierno gobern el mercado (Stiglitz, 1994: 20) 2.

    A anlise das modificaes desde o incio da chamada crise do Estado de Bem-Estar, mostrou que nas sociedades com Estado de Bem-Estar mais desenvolvido no foram destrudos seus objetivos 15, 28 quando comparados os rumos dos pases em relao ao papel do Estado e do mercado em garantir a proteo social a toda a sociedade. Ainda h casos de ampliao do papel do Estado nas polticas sociais, como os que Esping-Andersen 15 verificou, nos pases nrdicos, que tinham o regime de welfare state social democrata bastante avanado e que continuaram expandindo o emprego no setor pblico, por exemplo.

    Em pases com o regime de welfare state que Esping-Andersen classifica como liberal, verificou-se aumento da desigualdade e da pobreza, mas nem todas as mudanas foram uniformes: no Canad a proteo ao desemprego no diminuiu, mas no Reino Unido, Nova Zelndia e Estados Unidos, ocorreu um certo grau de eroso do welfare state devido desregulamentao salarial e do mercado de trabalho e da diminuio da renda real (Esping-Andersen, 1995: 85) 15. Nos Estados Unidos houve, alm disso, o fortalecimento do modelo de participao das empresas no complemento seguridade. A comparao das modificaes dos Estados Unidos com os pases escandinavos mostra que, enquanto aqueles enviesaram sua poltica scio-econmica para o neoliberalismo, estes capitaneiam uma estratgia de investimento social mesmo tendo estes pases cortado parte dos benefcios sociais (Esping-Andersen, 1995: 105) 15.

    No welfare state do tipo corporativo-conservador foi verificada a preservao da renda real familiar, mas com algum nvel de reduo da rede pblica de seguridade social15. No Leste Asitico foi identificado o aumento da participao das empresas empregadoras para proporcionar a seguridade, seguindo o modelo dos Estados Unidos,

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    onde as empresas empregadoras e no o Estado so responsveis por grande parte do financiamento e organizao da seguridade social de seus empregados e dependentes. Na Amrica Latina, as experincias foram diferenciadas, exemplificadas pela expanso da cobertura da seguridade no Brasil e na Costa Rica e, no caminho contrrio, se encontram Argentina e Chile, conforme mencionado.

    A tipificao que Paul Pierson fez sobre as mudanas decorrentes da crise do Estado de Bem-Estar enriquece a anlise de Esping-Andersen15 por aprofundar a questo do imbricamento de elementos dos diferentes tipos ideais de regimes de Estado de Bem-Estar, o qual se d como resposta s diferentes mudanas nos welfare state de cada pas, em que foram reforadas as misturas dos tipos. Como mostra Rodrigues 28, tais mudanas podem ocorrer para (i) Conteno de Custos; (ii) quando feita adaptao do Estado a demandas de mudana nos servios oferecidos (Recalibrao) e; (iii) quando as necessidades que haviam sido transferidas do mercado para o Estado, na formao dos welfare states, so devolvidas ao mercado (Remercantilizao).

    Entre essas, apenas a ltima forma de organizar as modificaes diz respeito a transferncia de bens e funes do Estado ao mercado (Pierson, 2001 apud Rodrigues, 2003)28. Assim, quanto mais prximas da remercantilizao estiverem as modificaes, argumenta Rodrigues, mais elas se aproximam do modelo proposto pelos neoliberais por sua proposta de privatizao de programas sociais e de reduo do papel do Estado nos programas sociais (Rodrigues, 2003: 152) 28.

    Segundo essa tipificao, os Estados de Bem-Estar do tipo liberal de Esping-Andersen 15 tenderam a realizar mudanas de Remercantilizao. Os pases com welfare state dos tipos social-democrata e conservador-corporativo, tenderam a aes associadas Conteno de Custos, sendo que os ltimos tambm aplicaram aes de ajuste dos servios para responder a demandas que originaram a crise, isto , de Recalibrao 28.

    Assim, as transformaes do welfare state ocorridas nas dcadas de 1980 e 90 no desmontaram totalmente a sua estrutura e os seus princpios. A fora do neoliberalismo em meio s transformaes do Estado de Bem-Estar tem sido comumente propagada mas, na realidade, essas mudanas no tm sido suficientes para aniquilar os propsitos que orientaram o desenvolvimento dos Estados de Bem-Estar 15, 28, 29, 30. Sua estrutura no foi abalada porque foram poucos os pases que recuaram em relao ao que haviam construdo no ps-guerra 15 e, como assinala Rodrigues, tais mudanas representaram

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    muito mais a exceo do que a regra das mudanas que vm se processando nos sistemas de proteo social entre os pases desenvolvidos (Rodrigues, 2003: 183) 28.

    Deve ser acrescentado que o prprio termo crise do welfare state pode ser considerado exagerado, e mais adequado seria dizer questionamentos realizados ao regime de Estado de Bem Estar.

    Entretanto, h consequncias que no podem ser descartadas. Uma delas que as propostas neoliberais de privatizao da proteo social e da reduo do papel do Estado assistncia pblica aos mais pobres, corroboraram a menor confiana no Estado e influenciaram a sociedade. Porm, Esping-Andersen defende que essas propostas nem sempre chegaram ao ponto de derrubarem os objetivos do welfare state de ser um mecanismo de integrao social, de erradicao das diferenas de classe e de construo nacional (Esping-Andersen, 1995: 107) 15.

    Para Esping-Andersen, os Estados de Bem-Estar avanados foram bem sucedidos no sentido de proporcionar uma seguridade social baseada em direitos universais e por este motivo os efeitos econmicos negativos que resultaram do investimento feito pelos Estados de Bem-Estar no deveriam ser supervalorizados. Ainda, como a nica razo para promover eficincia econmica a de garantir o bem-estar, os efeitos econmicos negativos seriam um trade-off a ser constantemente debatido (Esping-Andersen, 1995: 108) 15.

    Embora este seja um ponto de vista extremamente importante por assumir a proteo social como condio si ne qua non da organizao das sociedades, ele deve ser considerado junto aos problemas das economias capitalistas contemporneas que, se no forem resolvidos, podem interferir na garantia do bem-estar a ser proporcionado.

    Devem ser considerados a fora e o poder dos defensores do neoliberalismo, bem como o risco da penetrao de suas ideias na sociedade; problemas estruturais de financiamento da seguridade social para toda uma sociedade e, ainda, a organizao dos servios e sua capacidade de responder s demandas sociais. Assim, no porque o welfare state no foi desmontado que as ideias do neoliberalismo devam ser desconsideradas, pois estas vm sendo paulatinamente disseminadas e incorporadas ao discurso da mdia de diversos outros atores (como academia, polticos, imprensa, movimentos culturais, etc.), os quais podem acabar por defender a maior capilaridade do mercado sobre a sociedade, em detrimento da organizao e financiamento da proteo social entendida como direito de direito de cidadania.

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    Portanto, o grau de penetrao do iderio neoliberal uma questo importante nas sociedades contemporneas e o discurso em favor do mercado sem proteo social adequada faz dos atores que o defendem uma importante influncia na opinio pblica. A propagao das ideias do neoliberalismo contribui na difuso da ideia de ineficincia do Estado quanto sua capacidade de gerenciamento, bem como refora os valores individualistas e a crena no mercado como o ator que melhor faria a proviso dos bens e servios sociais. Este movimento corri a confiana na adequabilidade da proteo social ser universal e a sua concepo como um direito de cidadania, ao mesmo tempo em que fortalece a ideia de que a proteo social corresponde a um bem de responsabilidade individual.

    O dilema da reconstruo do welfare state desde o final do sculo XX est relacionado a conseguir sustentar uma seguridade social universal que proporcione qualidade de vida aos cidados31. Para garan