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O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO MUNDIAL. UM DESAFIO NOVO Alexandre Kalache * Renato P. Veras ** Luiz Roberto Ramos *** KALACHE, A. et al. O envelhecimento da população mundial. Um desafio novo. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 21:200-10, 1987. RESUMO: O envelhecimento populacional é hoje um fenômeno universal, característico tanto dos paí- ses desenvolvidos como, de modo crescente, do Terceiro Mundo. São apresentados dados que ilustram a ver- dadeira revolução demográfica desde o início do século e estimativas até o ano 2025. Os fatores responsáveis pelo envelhecimento são discutidos, com especial referência ao declínio tanto das taxas de fecundidade como das de mortalidade. Em conjunto, tais declínios levam a um menor ingresso de jovens em populações que passam a viver períodos mais longos. Esse processo gradativo é conhecido como "transição epidemiológica" e seus vários estágios são abordados. As repercussões para a sociedade, de populações progressivamente mais idosas são consideráveis, particularmente no que diz respeito à saúde. Os padrões de mortalidade e morbidade são discutidos e o conceito de autonomia, como uma forma de quantificar qualidade de vida, é introduzido. É proposta redefinição do próprio conceito de envelhecimento, refletindo a realidade médico-social do Tercei- ro Mundo. São formuladas questões sobre a interação envelhecimento-mudanças sociais em curso nos países subdesenvolvidos, cujas respostas podem ser grandemente facilitadas pelo uso do método epidemiológico. UNITERMOS: Envelhecimento da população, tendências. Taxas de mortalidade, tendências. Taxas de fecundidade, tendências. Expectativa de vida. Qualidade de vida. Mudanças sociais. * Unit for the Epidemiology of Ageing. London School of Hygiene and Tropical Medicine - Keppel Street, London, WCIE 7HT England. ** Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ) - Rua São Francisco Xavier, 524 - 20550 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. *** Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina - Rua Botucatu, 740 - 04023 - São Paulo, SP - Brasil. INTRODUÇÃO Desde a década de 50, a maioria dos idosos vive em países do Terceiro Mundo, fato ainda não apreciado por muitos que continuam associando velhice com os paí- ses mais desenvolvidos da Europa ou da América do Norte. Na verdade, já em 1960, mais da metade das pes- soas com mais de 65 anos vivia nos países do Terceiro Mundo (United Nations 17 , 1985). Projeções demográ- ficas indicam que de 1980 até o final do século cerca de três quartos do aumento da população idosa ocorre- rão em tais países (Hoover e Siegel 10 Tabela 1), fa- zendo com que este seja o grupo etário que mais cres- cerá na maioria dos países menos desenvolvidos. Na América Latina, entre 1980 e o ano 2000 deverá ocorrer um aumento de 120% da população total (de 363,7 pa- ra 803,6 milhões), enquanto que o aumento da popula- ção acima de 60 anos será de 236% (de 23,3 para 78,2 milhões), ou seja, duas vezes maior que o percentual de aumento da população como um todo. A longo prazo, as perspectivas são ainda mais impressionantes. A Ta- bela 2 mostra os aumentos das populações idosas em países que terão 16 milhões ou mais de pessoas acima de 60 anos no ano 2025, comparadas com as popula- ções da mesma faixa etária em 1950 (WHO 23,24 ). En- tre os 11 países com as maiores populações de idosos daqui a quarenta anos, 8 situam-se na categoria de paí- ses em desenvolvimento de acordo com os critérios atuais. Haverá, portanto, uma substituição: as grandes populações idosas dos países europeus cedendo lugar a países caracteristicamente jovens como a Nigéria, Bra- sil ou Paquistão. Em termos práticos, o aumento é sem precedentes. Por exemplo, no Brasil, o aumento da po- pulação idosa será da ordem de 15 vezes, entre 1950 e 2025, enquanto o da população como um todo será de não mais que cinco vezes no mesmo período. Tal au- mento colocará o Brasil, no ano 2025, com a sexta po- pulação de idosos do mundo em termos absolutos (Ka- lache e Gray 13 , 1985).

O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO MUNDIAL. UM DESAFIO

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O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO MUNDIAL. UM DESAFIO NOVO

Alexandre Kalache *Renato P. Veras **Luiz Roberto Ramos ***

KALACHE, A. et al. O envelhecimento da população mundial. Um desafio novo. Rev. Saúde públ.,S. Paulo, 21:200-10, 1987.

RESUMO: O envelhecimento populacional é hoje um fenômeno universal, característico tanto dos paí-ses desenvolvidos como, de modo crescente, do Terceiro Mundo. São apresentados dados que ilustram a ver-dadeira revolução demográfica desde o início do século e estimativas até o ano 2025. Os fatores responsáveispelo envelhecimento são discutidos, com especial referência ao declínio tanto das taxas de fecundidade comodas de mortalidade. Em conjunto, tais declínios levam a um menor ingresso de jovens em populações quepassam a viver períodos mais longos. Esse processo gradativo é conhecido como "transição epidemiológica"e seus vários estágios são abordados. As repercussões para a sociedade, de populações progressivamente maisidosas são consideráveis, particularmente no que diz respeito à saúde. Os padrões de mortalidade e morbidadesão discutidos e o conceito de autonomia, como uma forma de quantificar qualidade de vida, é introduzido.É proposta redefinição do próprio conceito de envelhecimento, refletindo a realidade médico-social do Tercei-ro Mundo. São formuladas questões sobre a interação envelhecimento-mudanças sociais em curso nos paísessubdesenvolvidos, cujas respostas podem ser grandemente facilitadas pelo uso do método epidemiológico.

UNITERMOS: Envelhecimento da população, tendências. Taxas de mortalidade, tendências. Taxas defecundidade, tendências. Expectativa de vida. Qualidade de vida. Mudanças sociais.

* Unit for the Epidemiology of Ageing. London School of Hygiene and Tropical Medicine - Keppel Street, London,WCIE 7HT — England.

** Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ) - Rua São FranciscoXavier, 524 - 20550 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil.

*** Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina - Rua Botucatu, 740 - 04023 - São Paulo,SP - Brasil.

INTRODUÇÃO

Desde a década de 50, a maioria dos idosos vive empaíses do Terceiro Mundo, fato ainda não apreciado pormuitos que continuam associando velhice com os paí-ses mais desenvolvidos da Europa ou da América doNorte. Na verdade, já em 1960, mais da metade das pes-soas com mais de 65 anos vivia nos países do TerceiroMundo (United Nations17, 1985). Projeções demográ-ficas indicam que de 1980 até o final do século cercade três quartos do aumento da população idosa ocorre-rão em tais países (Hoover e Siegel10 — Tabela 1), fa-zendo com que este seja o grupo etário que mais cres-cerá na maioria dos países menos desenvolvidos. NaAmérica Latina, entre 1980 e o ano 2000 deverá ocorrerum aumento de 120% da população total (de 363,7 pa-ra 803,6 milhões), enquanto que o aumento da popula-ção acima de 60 anos será de 236% (de 23,3 para 78,2milhões), ou seja, duas vezes maior que o percentual deaumento da população como um todo. A longo prazo,as perspectivas são ainda mais impressionantes. A Ta-bela 2 mostra os aumentos das populações idosas em

países que terão 16 milhões ou mais de pessoas acimade 60 anos no ano 2025, comparadas com as popula-ções da mesma faixa etária em 1950 (WHO23,24). En-tre os 11 países com as maiores populações de idososdaqui a quarenta anos, 8 situam-se na categoria de paí-ses em desenvolvimento de acordo com os critériosatuais. Haverá, portanto, uma substituição: as grandespopulações idosas dos países europeus cedendo lugara países caracteristicamente jovens como a Nigéria, Bra-sil ou Paquistão. Em termos práticos, o aumento é semprecedentes. Por exemplo, no Brasil, o aumento da po-pulação idosa será da ordem de 15 vezes, entre 1950 e2025, enquanto o da população como um todo será denão mais que cinco vezes no mesmo período. Tal au-mento colocará o Brasil, no ano 2025, com a sexta po-pulação de idosos do mundo em termos absolutos (Ka-lache e Gray13, 1985).

O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL ANTES E DE-POIS DOS PROGRESSOS MÉDICO-TECNOLÓGICOS

O envelhecimento da população mundial é um fenô-meno novo ao qual mesmo os países mais ricos e pode-rosos ainda estão tentando se adaptar. O que era no pas-sado privilégio de alguns poucos passou a ser uma ex-periência de um número crescente de pessoas em todoo mundo. Envelhecer no final deste século já não é proe-za reservada a uma pequena parcela da população. Noentanto, no que se refere ao envelhecimento populacio-nal, os países desenvolvidos diferem substancialmente

dos subdesenvolvidos, já que os mecanismos que levama tal envelhecimento são distintos.

Na Europa, por exemplo, o aumento na expectativade vida ao nascimento já havia sido substancial à épo-ca em que ocorreram importantes conquistas do conhe-cimento médico, em meados deste séculos. Este fato po-de ser ilustrado pelo clássico exemplo da redução damortalidade por tuberculose. Na Inglaterra, em 1855,13 de cada 100 mortes eram atribuídas a tuberculose(Aldestein1, 1977). Nos Estados Unidos, no início des-te século, a taxa de mortalidade por essa doença era de194 mortes para cada 100.000 indivíduos em um ano.

Em 1925, a taxa estava reduzida ao meio, e a partir de1940, a cada década a taxa foi novamente cortada pelametade (Fries e Crapo6, 1981). Comparando-se os diasatuais com os de 1900, nos Estados Unidos, constata-se uma redução de 99% (Figura 1). A principal razãoassociada a esse drástico declínio é a elevação do nívelde vida da população, traduzido pela urbanização ade-quada das cidades, melhoria nutricional, elevação dosníveis de higiene pessoal, melhores condições sanitáriasem geral e, particularmente, condições ambientais no tra-balho e nas residências muito melhores que anteriormen-te. Todos esses fatores já estavam presentes quando, nofinal da década de 40 e início dos anos 50, foram intro-duzidos os exames radiográficos, a vacina BCG e todauma gama de drogas potentes que tiveram importantepapel catalisador na redução contínua da incidência eprevalência da tuberculose; no entanto, o processo já es-tava há muito desencadeado.

Em países do Terceiro Mundo, por outro lado, aumen-to substancial na expectativa de vida ao nascimento pode

ser observado a partir de 1960. Desde então até o ano2020, as estimativas são de um crescimento bastanteacentuado; a expectativa média de vida ao nascimentono Terceiro Mundo nesses sessenta anos terá aumenta-do mais de 23 anos, atingindo 68,9 anos em 2020 (Sie-gel e Hoover20 — Tabela 3).

No mesmo período, no entanto, o aumento na expec-tativa de vida para pessoas nascidas em países desen-volvidos será comparativamente muito menor, passan-do de 69,8 anos em 1960 para 77,2 em 202020 (Tabela4). Na verdade, essa estabilização na taxa de crescimen-to da expectativa de vida nos países desenvolvidos é oque inevitavelmente se poderia esperar, tendo em vistao limite biológico de vida da espécie humana, ultrapas-sado somente por uma pequena parcela da população(Sacher19, 1981). Isso é uma verdade para todos os se-res vivos; assim, se é excepcional para um cachorro vi-ver mais que quinze anos, um rato, três ou um elefantesetenta, para a espécie humana esse "relógio biológico"se situa em torno dos 85 anos. Cabe ressaltar que, deacordo com vários registros desde os primordios da His-tória, tal limite biológico de vida para a espécie huma-na não parece ter se alterado em milênios. Tampoucohá evidência, através de comparações internacionais, deque ele seja diferente numa região do mundo compara-da com outra (Fries e Crapo6, 1981). Portanto, quantomaior o número de pessoas que atinge idades próximasao limite biológico de vida para a espécie humana, me-nor é a chance de que a expectativa de vida ao nasci-mento possa crescer de modo significativo.

Considerando-se o exemplo do Brasil, no início doséculo, a expectativa de vida ao nascimento era de 33,7anos, tendo atingido 43,2 em 1950. No decorrer da dé-cada imediatamente posterior a expectativa de vida ha-via aumentado em quase 8 anos (55,9 em 1960). Na dé-cada seguinte a expectativa de vida ao nascimento pas-sou a 57,1 e em 1980 ela atingiu 63,5 anos (FundaçãoIBGE2, 1982); desde então até o ano 2000 ela deverá ex-perimentar um aumento de cinco anos, quando um bra-sileiro ao nascer esperará viver por 68,5 anos. Impor-tantes que sejam estes aumentos, espera-se que aos pou-cos o diferencial entre a expectativa de vida de brasilei-ros ricos e pobres possa ser diminuída. Em termos atuaisessa diferença é elevada: cerca de 15 anos, refletindo aprofunda divisão social e econômica que sempre exis-tiu no país e que foi acentuada nas décadas mais recen-tes.

A expectativa de vida da mulher é maior que a doshomens, sobretudo nos países desenvolvidos — uma di-ferença de 7,5 anos em 198017 (Tabela 5). As razões pa-ra tanto e suas implicações sociais são discutidas em ou-tro artigo (Veras e col22, 1987). Já nos países menos de-senvolvidos, essa diferença é bem menor — 2,2 anos parao conjunto de tais países17 (Tabela 6) — ou mesmo in-vertida. Esse é o caso do Paquistão, por exemplo, ondea expectativa de vida da mulher em 1980 era de 50 anoscomparada com 52 anos para o homem, refletindo de-sigualdades entre um sexo e outro em relação a fatorescomo acesso a cuidados médicos, alta mortalidade ma-terna e mesmo diferenças quanto à disponibilidade dealimentos de acordo com o sexo das crianças. A dife-rença entre a expectativa de vida ao nascimento de acor-do com o sexo nos países da América Latina e Caribeocupa uma posição intermediária entre as observadasnos países desenvolvidos e nos demais países do Tercei-ro Mundo (Anzola-Perez3, 1985). Em 1975-80 a dife-rença era de 5,4 anos (60,5 para homens e 65,9 para mu-lheres); as projeções indicam que ela se manterá prati-

camente inalterada nos próximos anos, em torno de 5,9anos entre 1995-2000, quando as expectativas de vidadeverão alcançar 64,5 e 70,4 respectivamente para o se-xo masculino e feminino3.

Finalmente, é importante notar que embora as dife-renças entre as atuais expectativas de vida ao nascimentosejam consideráveis quando se comparam países desen-volvidos com os do Terceiro Mundo, elas se tornam mui-to menores quando se comparam as expectativas de vi-da em idades mais avançadas (Siegel e Hoover20, 1982— Figura 2). Por exemplo, na Grécia a expectativa devida aos sessenta anos é uma das mais altas do conti-nente europeu, apesar de o país figurar entre os maispobres da região. No México, em 1970, a expectativa devida para uma mulher ao atingir os 65 anos de idadeera cerca de 3 anos mais elevada que nos Estados Uni-dos em 1970. Já aos 45 anos a expectativa de vida deuma mulher em São Paulo é mais elevada do que a ex-pectativa de vida de uma mulher da mesma idade vi-vendo na Inglaterra (Ramos e col.18, 1987). Isso se de-

ve a dois fatores concomitantes. Em primeiro lugar háque se levar em consideração o fato de que o estilo devida, daqueles que sobreviveram até idades mais avan-çadas em países menos desenvolvidos, está associado afatores de risco menos acentuados para determinadasdoenças. Por exemplo, o consumo generalizado do ta-baco ocorreu mais recentemente em tais países, e somen-te nos últimos anos a incidência de doenças como cân-cer de pulmão tem mostrado sensíveis aumentos. Alémdo fumo, a hiperalimentação, a relativa falta de ativi-dade física e a exposição constante a fatores de estressesão todos componentes do estilo de vida do mundo mo-derno mais desenvolvido e que terminam por elevar aincidência de doenças cardiovasculares, de certos tiposde câncer e de certos tipos de distúrbios como o diabe-tes. Por outro lado, as taxa de mortalidade por doençasinfecciosas e parasitárias são baixas na idade adulta,mesmo nos países subdesenvolvidos. Uma vez atingidaa idade adulta, as causas de morte variam pouco, e amaioria das pessoas termina morrendo de doenças

crônico-degenerativas, quer vivam em países desenvol-vidos ou não.

O PROCESSO DE TRANSIÇÃO EPIDEMIOLÓGICA OUDEMOGRÁFICA*

Os significativos ganhos na expectativa de vida daspopulações européias estão ligados historicamente a umamelhor qualidade de vida experimentada pela maioriada população; conquistas médico-tecnológicas de rele-vância foram, quase todas, subseqüentes. Em recente ar-tigo é discutido, de modo bastante abrangente, um pa-ralelo entre a Alemanha Ocidental e o Brasil (Imhof11,1985). No entanto, ainda que muitos milhões de pessoascontinuem vivendo em graus absolutos de pobreza portodo o mundo menos desenvolvido, as conquistas tec-nológicas da medicina moderna, ao longo dos últimoscinqüenta anos, conduziram a meios que tornam possí-vel previnir ou curar muitas das doenças fatais do pas-sado. O aumento atual na expectativa de vida conseqüen-te à redução da mortalidade verificada na maioria dospaíses subdesenvolvidos é, portanto, um fenômeno quese pode chamar artificial, já que está ocorrendo em fun-ção da disponibilidade de meios inexistentes até um pas-sado muito próximo.

A importância das taxas de fertilidadeEm grande parte, o aumento atual do número de pes-

soas idosas em países menos desenvolvidos é decorren-te do alto número de nascimentos durante as primeirasdécadas deste século, associado a um progressivo decrés-cimo nas taxas de mortalidades. Da mesma forma, o en-velhecimento da população de países europeus das úl-timas décadas se deve a taxas de natalidade relativamentealtas no primeiro quarto do século associadas a taxasdecrescentes de mortalidades em todos os grupos etá-rios. Em seguida as taxas de natalidade decaíram, fa-zendo com que a proporção de adultos progressivamenteaumentasse. O processo é portanto dinâmico; para queuma população envelheça é necessário primeiro que nas-çam muitas crianças, segundo que as mesmas sobrevi-vam até idades avançadas e que, simultaneamente, o nú-mero de nascimentos diminua. Com isso a entrada de

* O termo "transição epidemiológica" é usado em preferência ao de "transição demográfica", que denota as mudançasna estrutura etária responsável, em última análise, pelo processo aqui descrito.

jovens na população decresce, e a proporção daquelesque sobreviveram até idades mais avançadas passa acrescer.

As taxas de fertilidade da maioria dos países estãoem declínio17 (Tabela 7 — Fig. 3). No entanto, mesmoum rápido declínio nas mesmas, como por exemplo oque atualmente se verifica no Brasil (decréscimo de maisde um terço entre 1970 e 1980 e ainda mais acentuadodesde então — Ramos e col.18 1987), não se traduz ne-cessariamente em imediato envelhecimento da popula-ção em termos relativos. Ainda que a vida média do bra-sileiro tenha aumentado muito nesse final de século, asaltas taxas de fertilidade do passado próximo ainda serefletirão nas pirâmides populacionais das próximas dé-cadas. Isso se deve ao efeito tardio do alto número denascimentos há 40, 30 ou 20 anos — uma populaçãojovem numerosa, que sobreviveu até a idade reproduti-va. Mesmo que eles tenham poucos filhos, o efeito mul-tiplicador ainda é manifestado por algum tempo25 (Fi-gura 4).

Como a taxa de fertilidade nos anos 60 era conside-ravelmente maior do que a atual, a base da pirâmidepopulacional de hoje é menor do que a de algumas dé-cadas passadas, o que significa que a proporção de crian-

ças está decrescendo e, conseqüentemente, a faixa adul-ta aumentando. Esta coorte nascida na década de 60 se-rá, no ano 2020, a responsável pela pressão no topo dapirâmide populacional, fazendo-a ficar com um contor-no mais retangular, caso seja mantida a tendência debaixo índice de fecundidade. Na Alemanha Ocidental,por exemplo, as taxas atuais de crescimento natural sãonegativas, ou seja, o número de nascimento é menor doque o de mortes. Isso faz com que hoje sua pirâmidepopulacional mostre uma base bem pequena em rela-ção a décadas passadas e, portanto, uma grande pro-porção da população nos demais segmentos da pirâmi-de. As conseqüências socioeconômicas de tais modifi-cações na estrutura etária de uma sociedade manifestam-se por um longo tempo e são discutidas em outro arti-go (Veras e col.22, 1987).

As estimativas de mudanças nas proporções de ido-sos refletem primariamente taxas de fecundidade no pas-

sado e, ao mesmo tempo, hipóteses quanto às taxas re-produtivas brutas no futuro. A curto prazo, os decrés-cimos projetados nas taxas reprodutivas na maioria dospaíses irão reduzir a proporção de jovens e aumentara de idosos. Se além disso ocorrer um decréscimo nastaxas de mortalidade de pessoas adultas e idosas, a pro-porção das mesmas em relação à população como umtodo irá naturalmente aumentar ainda mais. Esse pro-cesso dinâmico no comportamento populacional tem si-do chamado de transição epidemiológica por alguns oudemográfica por outros. Seus estágios são graduais e po-dem naturalmente demorar mais ou menos tempo, emresposta a um grande número de fatores inter-relaciona-dos, conforme observa-se a seguir.

TRANSIÇÃO EPIDEMIOLÓGICA, ESTÁGIOS

1.o Mortalidade concentrada nos primeiros anos de vi-da (grande percentagem da população é jovem)

2 .o Mortalidade decresce; taxas de crescimento aumen-tam ou se mantêm elevadas (percentagem de jovensna população aumenta)

3 .o Taxas de fertilidade decrescem; mortalidade conti-nua a cair (aumento da percentagem de adultos jo-vens, e progressivamente de pessoas idosas)

4 .o Mortalidade em todos os grupos etários continua acair (aumento contínuo na percentagem de idosos napopulação)

Em última análise, o processo de transição epidemio-lógica descreve a gradual mudança de situações carac-terizadas por alta-mortalidade/alta-fecundidade para ade baixa-mortalidade/baixa-fecundidade e, conseqüen-temente, de uma baixa para uma alta proporção de ido-sos na população. Se o processo de transição epidemio-lógica é comprimido, isto é, se seus vários estágios sepassam em um número menor de anos, as repercussõessociais serão muito mais acentuadas, particularmentese os recursos materiais da sociedade são limitados. Emgrande parte, o maior problema é como absorver e li-dar com as necessidades dos idosos quando as priori-dades estão claramente relacionadas a outros grupos etá-rios da população. Quanto maior o número de pessoasque envelhece, maior a necessidade de recursos para aten-der a suas necessidades específicas.

AS MUDANÇAS NAS CAUSAS DE MORTALIDADE EMORBIDADE

Em termos de saúde, o aumento do número de ido-sos em uma população se traduz em um maior númerode problemas de longa duração, que com freqüência de-pendem de intervenções custosas envolvendo tecnolo-gia complexa, para um cuidado adequado. Gradualmentese estabelece uma competição por recursos: de um ladoproblemas prementes, com alta mortalidade infantil oudesnutrição, de outro um número crescente de diabéti-cos, acidentes vasculares cerebrais ou demência senil.

A situação do Brasil, analisada por Imhof11 (1985) eilustrada na Figura 5, mostra claramente essas transi-ções. Em 1930, quase a metade das mortes ocorridas foicausada por doenças infecciosas e parasitárias. Em 1980,tais doenças foram responsáveis por pouco mais que10% das mortes, praticamente a mesma percentagem demortes causadas por doenças respiratórias ou por cân-

cer. O grupo integrado por doenças cardiovasculares pas-sou a primeiro lugar, tendo sido responsável por um terçodas mortes no Brasil em 198015. As diferenças regionaissão grandes — por exemplo, no Rio de Janeiro metadedas mortes é causada por doenças cardiovasculares, en-quanto que em Fortaleza, por exemplo, a proporção di-minui para menos de um quarto das mortes ocorridasnaquela capital (Ramos e col.18, 1987).

Portanto, ao lado de doenças infecciosas e parasitá-rias (que continuam sendo causas de mortes relativa-mente freqüentes quando o Brasil é comparado com ou-tros países), as doenças crônicas, comuns das idades maisavançadas, estão se tornando progressivamente mais pre-valentes num país como o nosso. A escassez de dadosde morbidade dificulta comparações, mas certamenteo contraste é ainda mais pronunciado.

A resposta a situações como essa é, em geral, inade-quada. Em vez de um planejamento cuidadoso e a lon-go prazo, a tendência é de resolver problema por pro-blema, à medida que eles aparecem. Isso reflete em gran-de parte a própria natureza dos mecanismos de tomadade decisões na maioria dos países, assoberbados pelaimensidão de problemas a serem enfrentados simulta-neamente. Ao final temos, inevitavelmente, decisões eações que não refletem prioridades pré estabelecidas.

No que diz respeito à saúde da parcela mais idosa dapopulação, a complexidade é agravada pela natureza detais problemas: doenças que não podem ser resolvidasdo dia para noite, que absorvem grandes quantidadesde recursos materiais e humanos e que, em última aná-lise, continuarão existindo por um longo período. Emoutras palavras, se nada for feito em termos de se cui-dar de um paciente com um problema cardiovascularou com artrite hoje, amanhã ou em algum momento,ele acabará sendo objeto de assistência médica. A par-tir de uma entrada no sistema de prestação de serviços,o uso dos mesmos pode ser extraordinariamente pro-longado. Tais doenças, com freqüência, não são de des-fecho rápido ou dramático. Não são como uma gastroen-terite ou uma broncopneumonia nos primeiros anos de

vida, em que a cura ou a morte é uma questão que, emgeral, se define em poucos dias. Em termos práticos,muitas vezes é mais fácil ignorar problemas como es-tes, da infância (pois eles freqüentemente desaparecemda vista dos profissionais de saúde com a mesma rapi-dez com que haviam surgido), do que negar a existên-cia dos problemas dos idosos que tendem a voltar diaapós dia à porta do hospital: algo acaba tendo de serfeito.

O desafio assim gerado é considerável. De um ladopaíses como o Brasil continuarão a mostrar, através deseus indicadores de saúde, as marcas do subdesenvolvi-mento e das desigualdades sociais por algum tempo. Poroutro lado, tais países passarão a apresentar aumentoda incidência e prevalência das doenças crônico-degenerativas e demais problemas comuns na terceiraidade.

Em termos sociais, é impossível (e errôneo) argumen-tar que diante de altas taxas de mortalidade infantil oude freqüentes casos de desnutrição, doenças como cân-cer, hipertensão ou diabetes devam ser consideradas prio-ridades (Kalache12, 1986).

O crescimento da população idosa leva inevitavelmen-te a um aumento dos recursos despendidos na área desaúde. Para ilustrar a importância desse grupo etário emrelação aos recursos despendidos na área da saúde, oexemplo da Inglaterra pode ser citado: nesse país, a po-pulação acima de 65 anos (cerca de 11% do total) utili-za 60% do orçamento do Departamento Nacional deSaúde e Cuidados Sociais (Gray7, 1985); mais da me-tade dos leitos hospitalares é por eles ocupada (já queo tempo médio de permanência dos mais idosos é cercade duas vezes maior do que o dos demais grupos etá-rios). Para a população ainda mais idosa, com 75 anosou mais, o custo do tratamento médico-hospitalar é se-te vezes maior que o despendido com outras faixas etá-rias. Os gastos com cuidados na comunidade são igual-mente muito superiores: ainda que a grande maioria dosidosos viva na comunidade (na Inglaterra, apenas 5%das pessoas acima de 65 anos vivem em instituições co-mo lares de idosos ou hospitais de longa permanência),sua manutenção é extremamente onerosa. Neste parti-cular há que se considerar não somente os gastos comcuidados primários de saúde (o médico de família e suaequipe) como também os cuidados sociais, como porexemplo fornecimento de refeições, auxílio para as ati-vidades domésticas ou suplementos para fazer face àsdespesas de aquecimento doméstico. A exemplo de ou-tros países mais desenvolvidos, a Inglaterra despendecom os idosos cerca de três vezes mais que o dispêndioper capita com o resto da população. Torna-se portan-to necessária uma política de saúde cuidadosamente pla-nejada de modo que os recursos disponíveis sejam usa-dos com máxima eficiência (Grimley-Evans9, 1986).

CURVAS DE MORTALIDADE, MORBIDADE E INCAPA-CIDADE

Para se instruir os órgãos responsáveis pela saúde ecuidados sociais no que diz respeito ao planejamentode serviços e estimativa de demanda é necessário dis-por de previsões sobre a mortalidade a ser experimen-tada por uma determinada população. Com freqüência,tais previsões são ilustradas através de um gráfico oucurva de mortalidade *.

Comparando-se por exemplo as curvas de mortalidadeda população feminina dos Estados Unidos nascida em1900 com a curva de 1980, as diferenças se tornam bemnítidas (Figura 6). No início do século a mortalidade in-fantil ainda era alta e, portanto, a população se vê sen-sivelmente diminuída ao atingir o primeiro ano de vi-da. Em comparação, em 1980, a mortalidade infantil erabem baixa e se verifica pouca perda no primeiro anode vida. A partir daí as reduções são sempre mais acen-tuadas para a população nascida em 1900 e, progressi-vamente, a curva vai decaindo. A partir da idade adultamais avançada, a curva começa a cair ainda mais acen-tuadamente até que a população original desaparece porcompleto. Isso se dá por volta do ano em que os nasci-dos completariam 85 anos de idade, ou seja, o limitebiológico de vida para a espécie humana. Tal limite, co-mo já foi visto anteriormente, não parece ter aumenta-do desde a antiguidade: tornar-se um centenário é umfato tão excepcional hoje quanto em qualquer ponto daHistória.

Da mesma forma como a construção de curvas demortalidade depende do conhecimento do número denascimentos e do número de mortes experimentado pe-la mesma população, a construção de curvas de morbi-dade é viável, desde que se conheça o número de pes-soas acometidas por enfermidades crônicas na popula-ção em estudo. Uma curva de morbidade mostra qualé a percentagem da população livre de doenças crôni-cas. O mesmo princípio pode ser aplicado em relaçãoa incapacidades funcionais irreversíveis, desde que taisepisódios sejam também registrados para a população;uma alternativa é projetar dados a partir de inquéritosque investiguem especificamente a prevalência de inca-

* Tais curvas podem ser obtidas a partir de dados extraídos de tábuas de vida que são relativamente simples de seremconstruídas desde que se tenha o número total de nascidos em um determinado período (um ano, por exemplo) e onúmero de mortes ocorridas em tal população no decorrer do mesmo período. A curva de mortalidade mais comumenteutilizada é construída colocando-se a percentagem da população que permanece viva (sobrevivência cumulativa) no eixovertical e a idade (em anos) em que ocorre a morte no eixo horizontal.

pacidades em uma comunidade. O conjunto das três cur-vas pode, portanto, mostrar o número total de sobrevi-ventes em qualquer altura da vida de uma população,quantos destes sobreviventes estão livres de doenças (po-pulação sã) e finalmente quantos estão com suas capa-cidades funcionais intactas (Organización Mundial dela Salud,16 1984 — Figura 7).

A CURVA RETANGULAR

Considerando que uma curva de sobrevivência expres-sa a percentagem da população que permanece viva numdeterminado momento, seu formato pode naturalmen-te variar de acordo com a mortalidade experimentadapela população em estudo (Fries5, 1980). Por exemplo,em um meio ambiente selvagem e hostil, os indivíduosestão expostos a riscos — tanto sob a forma de agres-sões como de doenças — que fazem com que a morteseja um evento plausível em qualquer período da vida.A curva de sobrevivência resultante tem portanto umaconfiguração exponencial em que perdas (mortes) ocor-rem dia a dia em qualquer idade. Já para populaçõesmais protegidas, vivendo em comunidades em que omeio ambiente está mais controlado, a morte passa aser postergada até os limites biológicos da capacidadedo homem de sobreviver. Gradualmente, a curva assu-me uma configuração retangular, ou seja, o número deperdas precoces é mínimo e os indivíduos tendem a mor-rer em idades próximas ao limite máximo possível paraa espécie humana (Figura 8).

Atualmente, vários países industrializados estão seaproximando de tais curvas de contorno retangular. Noentanto, as evidências de que as curvas de morbidadee de incapacidade também estejam se "regularizando"são ainda contraditórias. Ou seja, mesmo que progres-sivamente um número maior de pessoas morra em ida-des mais e mais avançadas, não há ainda nenhuma evi-dência inequívoca de que um número igualmente maiorde pessoas esteja atingindo esse limite biológico de vi-da em pleno gozo de suas capacidades físicas e men-tais. Alguns estudos que permitam elucidar essa ques-tão estão ora em curso, mas são necessários muitos maispara uma conclusão definitiva (Svanborg21, 1985). Asimplicações para os serviços sociais e de saúde são imen-sas. Se em uma população os indivíduos atingirem ida-des cada vez mais avançadas mantendo boas condiçõesde saúde e autonomia, não há maiores problemas paraa sociedade em questão. Se, no entanto, essa sobrevi-vência mais longa for acompanhada por períodos dedoenças prolongadas e conseqüente perda de autono-mia, os recursos necessários para fazer face aos proble-mas gerados podem escalar até níveis impossíveis de se-rem absorvidos por tal sociedade.

ENVELHECIMENTO CRONOLÓGICO VERSUSENVELHECIMENTO FUNCIONAL: O CONCEITO

DE AUTONOMIA

O conceito de capacidade funcional é particularmenteútil no contexto do envelhecimento. Envelhecer manten-do todas as funções não significa problema quer parao indivíduo ou para a comunidade; quando as funçõescomeçam deteriorar é que os problemas começam a sur-gir. O conceito está intimamente ligado à manutençãode autonomia que pode ser mais bem compreendidoatravés de um exemplo; se um homem idoso que tenhasofrido um acidente vascular cerebral (deixando algu-mas seqüelas moderadas) se torna viúvo, sua vida pas-sa naturalmente por uma verdadeira revolução. Supo-nhamos que tal homem viva só e não saiba cozinhar;sua situação o torna imediatamente dependente, a pon-to de ter que se considerar sua transferência para umainstituição (lar de idosos) caso não seja possível mobilizarrecursos comunitários que possam mantê-lo em sua pró-pria moradia. Por exemplo, se ele passa a contar coma ajuda de alguém que venha à sua casa diariamente pre-parar sua comida, seu estado de dependência permane-ce inalterado, embora ele tenha recuperado sua autono-mia. O mesmo se pode dizer de uma pessoa idosa comgrau severo de artrite; chega-se a um ponto em que suaautonomia está severamente comprometida pois ela nãopode mais, por exemplo, usar o banheiro que está nosegundo andar da moradia. Se suas condições econô-micas permitem a construção de um banheiro no pri-meiro piso, sua autonomia em permanecer vivendo nacomunidade é imediatamente restabelecida.

Na velhice, a manutenção de autonomia está intima-mente ligada à qualidade de vida. Portanto, uma for-ma de se procurar quantificar a qualidade de vida deum indivíduo é através do grau de autonomia com queo mesmo desempenha as funções do dia-a-dia que o fa-zem independente dentro de seu contexto socioeconô-mico-cultural (Grimley-Evans9, 1984). Sob o ponto devista prático, há várias formas de se medir tais funções

— fundamentalmente através do desempenho de ativi-dades diárias (Fillenbaum4, 1984); por exemplo, a au-tonomia de um idoso que viva em uma grande cidadede um país desenvolvido pode ser medida através de suacapacidade de cuidar de si próprio (higiene pessoal, pre-paro de refeições, capacidade de fazer suas próprias com-pras, manutenção básica da casa, e outras). Já para umidoso que vive em uma zona rural de um país subde-senvolvido, autonomia pode significar algo muito maiscomplexo — por exemplo, capacidade de realizar tra-balho físico pesado na lavoura. Nesse sentido, portan-to, o conceito de envelhecimento cronológico passa aser de relevância muito menor do que o conceito de en-velhecimento funcional. As dificuldades em operacio-nalizar tal conceito são, naturalmente, inúmeras. No en-tanto, sob o ponto de vista de planejamento, a aborda-gem funcional é a mais importante e, conseqüentemen-te, uma área de crescente interesse para pesquisa (Kanee Kane14, 1981). Há ainda que se ressaltar que, em de-corrência das precárias condições de vida nos países sub-desenvolvidos, o envelhecimento funcional precede o cro-nológico e muitas vezes é bastante precoce. Um operá-rio que passa 20 ou 30 anos trabalhando em condiçõesambientais adversas, desempenhando atividades físicasmuito além de sua própria força, mal nutrido, sem con-dições adequadas de lazer, enfrentando todo o estressede uma grande cidade do Terceiro Mundo, com condi-ções de moradia inadequadas e submetendo-se a váriashoras por semana a sistemas de transporte urbano to-talmente impróprio, tal operário, ao chegar aos cinqüen-ta anos, já está funcionalmente envelhecido. O mesmose pode dizer de uma mulher aos quarenta anos apósdez, quinze gestações a termo, longos períodos de lac-tação sem estar bem alimentada, sem descanso na in-cessante tarefa de cuidar dos filhos, da casa e, muitasvezes com co-responsabilidades financeiras na família.Nos países do Terceiro Mundo, envelhecimento pode pre-ceder em muito a barreira artificial dos sessenta ou ses-senta e cinco anos.

O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL NOCONTEXTO DE PROFUNDAS MUDANÇAS SOCIAIS

Com freqüência, outras profundas transformaçõesocorrem em uma sociedade simultaneamente a rápidasmudanças demográficas. Não só um processo de enve-lhecimento prematuro está ocorrendo em vários paísesmenos desenvolvidos, como também transformações cul-turais e sociais imensas estão em curso. O Brasil, porexemplo, é um país onde há 35 anos dois terços de umapopulação de 50 milhões de habitantes viviam em zo-nas rurais. Hoje em dia, praticamente três quartos dos130 milhões vivem em áreas urbanas, metade dos quaisem aglomerados urbanos de mais de um milhão de pes-

soas. Urbanização, muitas vezes (mas não necessaria-mente) associada a industrialização, transforma radical-mente uma sociedade. Valores tradicionais são substi-tuídos, a informação técnica torna-se mais valiosa queo conhecimento acumulado a ser transferido de uma ge-ração para outra; a dinâmica familiar muda e gradual-mente os elos da grande família são desfeitos, dando lu-gar a família nuclear de pais e (poucos) filhos. Expec-tativas diante da vida das mulheres também mudam de-vido, por exemplo, a um crescente número de mulheresna força de trabalho remunerado. Com o crescimentoda população idosa aumentam também os gastos esta-tais para a manutenção da parcela economicamente im-produtiva. Em outras palavras, aumenta a relação de de-pendência entre a parcela economicamente ativa e a não-produtiva da população (Veras e col.22, 1987). O resul-tado prático desses e de outros fatores é claramente ilus-trado em relação aos cuidados com a população idosa.A atenção tradicionalmente proporcionada pelas famí-lias vai sendo gradualmente substituída pela necessida-de de uma intervenção crescente do Estado e/ou de ou-tras formas de cuidado institucional. Deve-se ressaltarque os sistemas de seguro sociais são inadequados namaioria dos países menos desenvolvidos e tais alterna-tivas são naturalmente muito mais onerosas e com fre-qüência também difíceis de serem aceitas pelos mais ve-lhos.

O envelhecimento de sua população é uma aspiraçãonatural de qualquer sociedade. Mas tal, por si só, nãoé bastante; é também importante almejar uma melho-ria da qualidade de vida daqueles que já envelheceramou que estão no processo de envelhecer. Manutenção deautonomia e independência é uma tarefa complexa queresulta dessa conquista social. O desafio para os paísessubdesenvolvidos é considerável; no passado, quando aspopulações dos países europeus começaram a envelhe-cer, tais países eram os mais ricos e poderosos do mun-do. Tome-se a Inglaterra como exemplo; o envelhecimen-to de sua população teve início após a Revolução In-dustrial e no período áureo do Império Britânico. Por-tanto, a sociedade inglesa pode teoricamente dispor derecursos para fazer face às mudanças ditadas pela trans-formação demográfica que ainda está em curso naque-le país. Hoje, quando vários dos países subdesenvolvi-dos vêem suas populações envelhecerem, a situação édistinta. Tais países não completaram ainda um cicloeconômico e político e permanecem carentes em váriossentidos; não dispõem de um império fornecendo rique-zas e um mercado assegurado para seus produtos. O mo-do como os países subdesenvolvidos responderão a es-se desafio proposto pelo envelhecimento de suas popu-lações dependerá em grande parte do grau de sensibili-zação ao problema por parte da sociedade como um to-do e de seus profissionais e políticos em particular.

KALACHE, A. et. al. [The ageing of the world's population. A new challenge]. Rev. Saúde públ., S. Paulo21:200-10, 1987

ABSTRACT: Ageing has now become a universal phenomenon, of increasing importance to developed anddeveloping countries alike. In this, the first of a series of articles on ageing in developing countries, the actualdemographic revolution is discussed, with special reference to Brazil. Estimates are provided up to the year2025. The article analyses the factors which are responsible for this ageing process — such as the rapid declinein fertility and mortality rates that many Third Word countries have been experiencing over the last few years— and the various gradual stages of this process, which is usually referred to as the 'epidemiological transi-tion', are discussed. The consequences for any society with a population that is gradually becoming older areconsiderable, and are of particular importance for the Health Sector. The article discusses the changing mor-bidity and mortality patterns and the concept of autonomy as a possible way to quantify quality of life isintroduced. On this particular point a suggestion is made to redefine the concept of 'Ageing', in order to takeinto consideration the context in which senior adults in the Third World live. Finally, the article addressesitself to points relating to the interaction of ageing and social change. That there is such an interaction is ap-parent in developing countries and this raises questions to which answers could be found through the use ofthe epidemiological method.

UNITERMS: Demographic aging, trends. Mortality rate, trends. Fertility rate, trends. Life expectancy. Qualityof life. Social change.

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Recebido para publicação em 21/10/1986

Aprovado para publicação em 12/02/1987