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1 O ESPÍRITO E O TEMPO J. HERCULANO PIRES

O Espirito e o Tempo (José Herculano Pires)

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O Espirito e o TempoObra de J. Herculano Pires

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  • 1O ESPRITO E O TEMPOJ. HERCULANO PIRES

  • 2NDICE

    Dedicatria

    O esprito e o tempo preliminares

    Primeira parte - FASE PR-HISTRICACaptulo 1: Horizonte tribal e mediunismo primitivoCaptulo 2: Horizonte agrcola: animismo e culto dos ancestraisCaptulo 3: Horizonte civilizado: mediunismo oracularCaptulo 4: Horizonte proftico: mediunismo bblicoCaptulo 5: Horizonte espiritual: mediunidade positiva

    Segunda parte - FASE HISTRICACaptulo 1: Emancipao espiritual do homemCaptulo 2: Ruptura dos arcabouos religiososCaptulo 3: A invaso espiritual organizadaCaptulo 4: Antecipaes doutrinariasCaptulo 5: A falange do consolador

    Terceira parte - DOUTRINA ESPRITACaptulo 1: O tringulo de EmmanuelCaptulo 2: A cincia admirvelCaptulo 3: A filosofia do espritoCaptulo 4: Religio em esprito e verdadeCaptulo 5: Mundo de regenerao

    Quarta parte A PRTICA MEDINICACaptulo 1 Pesquisa cientfica da mediunidadeCaptulo 2 As leis da mediunidadeCaptulo 3 Antropologia esprita

    BIBLIOGRAFIA

  • 3DEDICATRIA

    Helena,

    que me fez escrever este livro.

    Aos companheiros

    Urbano de Assis XavierAnselmo Gomes

    Euripides Soares da Rocha

    que empregaram o tempo no estudo destes problemas,e hoje o prosseguem, no fluir da durao.

  • 4O ESPRITO E O TEMPO

    A Histria, que essencialmente Histria do Esprito, transcorre no tempo. Assim, pois, odesenvolvimento do Esprito cai no tempo. Hegel, porm, no se contenta em afirmar aintratemporacialidade do esprito como um factum, mas trata de compreender a possibilidadede que o Esprito caia no tempo, que o sensvel no -sensvel, O tempo h de poder acolhero esprito, por assim dizer. E o esprito h de ser, por sua vez, afim com o tempo e com a suaessncia.

    HEIDEGGEB, crtica de Hegel, em O Ser e o Tempo .

  • 5PRELIMINARESUm sculo aps a codificao do Espiritismo por Allan Kardec, reina ainda grandeincompreenso a respeito da dou trina, de sua prpria natureza e de sua finalidade . Acodificao, entretanto, foi elaborada em linguagem clara, precisa, sensvel a todos. lucideznatural do esprito francs, Kardec juntava a sua vocao e a sua experincia pedaggicas,alm da compreenso de tratar com matria sumamente complexa. Vem o-lo afirmar, a cadapasso, que desejava escrever de maneira a no deixar margem para interpretaes, ou seja,para divergncias interpretativas.

    Qual o motivo, ento, por que os prprios adeptos do Espiritismo, ainda hoje, divergem, notocante a questes doutrinrias de importncia? E qual o motivo por que os no -espritascontinuam a tratar o Espiritismo com a maior incompreenso? Note -se que no nos referimos aadversrios, pois estes tm a sua razo, mas aos "no -espritas". Parece-nos que a explicao,para os dois casos, a mesma. O Espiritismo uma doutrina do futuro . maneira doCristianismo, abre caminho no mundo, enfrentando a incompreenso de adeptos e no -adeptos.

    Em primeiro lugar, h o problema da posio da dou trina. Uns a encaram como s istematizaode velhas supersties; outros, como tentativa frustrada de elaborao cientfica; outros, comocincia infusa, no organizada; outros ainda, como esboo impreciso de filosofia religiosa;outros, como mais uma seita, entre as muitas seitas re ligiosas do mundo. Para a maioria deadeptos e no-adeptos, o Espiritismo se apresenta como simples "crena", espcie de religioe superstio, ao mesmo tempo, eivada de resduos mgicos.

    Ao contrrio de tudo isso, porm, o Espiritismo, segundo a defini o de Kardec e dos seusprincipais continuadores, constitui a ltima fase do processo do conhecimento. ltima, no nosentido de fase final, mas da que o homem pde atingir at agora, na sua lenta evoluoatravs do tempo. evidente que se trata do conh ecimento em sentido geral, no limitado aum determinado aspecto, no especializado. Nesse sentido geral, o Espiritismo aparece comouma sntese dos esforos humanos para compreenso do mundo e da vida. Justifica-se, assim,que haja dificuldade para a sua compreenso, apesar da clareza da estrutura doutrinria dacodificao. De um lado, o povo no pode abarc -lo na sua totalidade, contentando -se com oseu aspecto religioso; de outro, os especialistas no admitem a sua natureza sinttica; e deoutro, ainda, os preconceitos culturais levantam numerosas objees aos seus princpios.

    No captulo primeiro de "A Gnese", nmero 18, Kardec explica que o Espiritismo, do ponto devista cientfico, tem por objeto um dos dois elementos constitutivos do universo, que oesprito. O outro elemento a matria. Como ambos se entrelaam, para a constituio dotodo universal, o Espiritismo "toca forosamente na maioria das cincias" , ou seja, estnecessariamente ligado ao desenvolvimento das cincias. Assim sendo, esc larece ocodificador: "Ele no poderia aparecer seno depois da elaborao delas, e surgiu por foradas coisas, da impossibilidade de tudo explicar -se somente com a ajuda das leis da matria."

    Lon Denis, sucessor e continuador de Kardec, observa em seu livro "Le Genie Celtique et leMonde Invisible" , o seguinte: "Pode dizer-se que a obra do Espiritismo dupla: no planoterreno, ela tende a reunir e a fundir, numa sntese grandiosa, todas as formas, at aquidispersas e muitas vezes contraditrias, do pe nsamento e da cincia. Num plano mais amplo,une o visvel e o invisvel, essas duas formas da vida, que, na realidade, se interpenetram e secompletam, desde o princpio das coisas." Logo a seguir, como prevenindo a objeo dedualismo que se poderia fazer, Denis acentua: "No seu desenvolvimento, ele demonstra que onosso mundo e o Lado-de-L no esto separados, mas en trosados um no outro, constituindoassim um todo harmnico. "

  • 6Os estudantes de Espiritismo sabem que muitos outros trechos, tanto de Kar dec quanto dosseus seguidores, podem ser citados, para se afirmar a tese da natureza sinttica da doutrina,bem como a sua posio, d e ltima fase do processo do conhecimento. Lembramosparticularmente a definio da doutrina em "O que o Espiritismo" , de Kardec, sobre a qualvoltaremos mais tarde. Basta -nos, no momento, esta colocao do problema, para justificar anossa tentativa d e oferecer uma viso histrica do desenvolvimento espiritual do homem,como a forma mais apropriada de introduo ao estud o da doutrina.

    Foi o prprio Kardec quem criou a disciplina que procuramos desenvolver neste curso, tantocom a "Introduo ao estudo da doutrina esprita", que abre "O Livro dos Espritos" , quantocom o "Principiante Esprita" . O nosso curso no dispensa, antes requer o estudo dessestrabalhos do codificador. Mas evidente que a introduo a qualquer ramo do conhecimento,como explica o filsofo Julin Marias, no caso particular da Introduo Filosofia, exigesempre novas perspectivas, de acordo com o fluir do tempo. A introduo, diz Marias, o"agora", o circunstancial, o ato de introduzir algum em alguma coisa. Essa alguma coisa, sejaa Filosofia ou seja o Espiritismo, uma realidade histrica, uma coisa que existe de maneiraconcreta.

    Sendo o Espiritismo uma realidade histrica, afirmada pelo codificador e seus sucessores, temele o seu passado e o seu presente, como ter o seu futuro. No tempo de Kardec, introduziralgum no estudo do Espiritismo era introduzi -lo numa realidade nascente, numa verdadeiraproblemtica em ebulio, num processo histrico em princpio de definio, e principalmente"numa nova ordem de ideias". Hoje, introduzir esse algum num processo j definido, e noapenas numa ordem de ideias, mas tambm no quadro histrico em que essa ordem surgiu.Dessa maneira, introduzi -lo tambm na prpria introduo de Kardec. Esse o motivo por queescrevemos, para a nossa traduo de "O Livro dos Espritos" , editado pela LAKE, umaintroduo obra.

    Sem o exame histrico do probl ema medinico, por exemplo, os estudantes de hoje estaroameaados de flutuar no abstrato. Introduzindo -se numa ordem de ideias, sem o conhecimentode suas razes histricas, arriscam -se a confundir, como fazem os leigos, mediunismo eEspiritismo, ou seja, o processo medinico de desenvolvimento espiritual do homem, com oEspiritismo. Arriscam-se, ainda mais, a aturdir -se com fatos medinicos rudimentares,considerando-os, por sua aparncia extravagante, como novidade. Por outro lado, dificilmentecompreendero a aparente contradio existente no fato de ser o Espiritismo, ao mesmotempo, uma doutrina moderna e um processo histrico provindo das eras mais remotas dahumanidade. Existe ainda o problema religioso, e particularmente o das ligaes do Espiritis mocom o Cristianismo, que somente uma introduo histrica pode esclarecer.

    Por tudo isso, foi que nos propusemos a dar este curso, - a convite da Unio da MocidadeEsprita de S. Paulo - a partir do "horizonte primitivo", ou seja, das manifestaes medi nicasentre os homens primitivos, examinando as fases histricas que nos conduziram at aomomento presente. Para isso, servimo -nos da bibliografia doutrinria, como fundamental, e deoutros livros, de reconhecido valor cultural, como subsidirios. Daremo s a indicaobibliogrfica, para facilitar aos interessados maior aprofundamento do assunto.

  • 7PRIMEIRA PARTE

    FASE PR-HISTRICACaptulo 1

    HORIZONTE TRIBAL E MEDIUNISMO PRIMITIVO

    1. MEDIUNISMO E ESPIRITISMO. - As cincias sociais tm uma grande con tribuio a dar aoestudo do Espiritismo. Quem viu isso com mais clareza, segundo nos parece, foi ErnestoBozzano. O grande discpulo italiano de Herbert Spencer, profundamente ligado aodesenvolvimento dos estudos sociolgicos, uma vez atrado para o camp o dos estudosespritas, soube aplicar a este o conhecimento adquirido em outros campos. Seus trabalhossobre as manifestaes supranormais entre os povos selvagens, publicados na revistamilanesa "Luce e Ombra" , em 1926, posteriormente reunidos no livro "Popoli Primitivi eManifestazioni Supernormali" , representam uma das mais poderosas contribuies para oesclarecimento histrico do problema esprita.

    Kardec j havia esclarecido que os fatos espritas so de todos os tempos, uma vez que amediunidade uma condio natural da espcie humana. Mas com Bozzano que temos aprimeira penetrao esprita no exame antropolgico e sociolgico do homem primitivo,revelando-nos, com base em investigaes cientficas, as formas pr -histricas do fenmenomedinico. Alis, os estudos de Bozzano levam-nos mais longe, pois revelam tambm asorigens medinicas da religio. Temos assim um a teoria esprita da gnese da crena nasobrevivncia, que se apresenta como uma sntese das teorias opostas da teologia e dasociologia.

    Para maior clareza do nosso estudo, servimo -nos do esquema que nos fornece o chamado"mtodo cultural", dos antroplogos ingleses, aplicado por John Murphy, com pleno xito, emseus estudos sobre as origens e a histria das religies. Mtodo usado na antropologia culturale no estudo das religies comparadas, aplica -se perfeitamente s necessidades de clareza donosso estudo. Seu esquema constitudo pelos "horizontes culturais", dentro dos quais odesenvolvimento humano pode ser analisado na ampli tude de cada uma das suas fases. evidente que no vamos muito alm do esquema. Nosso intuito no o estudo antropolgico,nem o das religies comparadas, mas apenas o esclarecimento do problema esprita.

    Os "horizontes culturais" so os meios em que s e desenvolveram as diferentes fases daevoluo humana. A expresso metafrica. Chama -se, por exemplo, "horizonte primitivo", omundo do homem primitivo. A palavra "horizonte" mostra que devemos encarar esse homemdentro dos limites da nossa viso, de todas as condies do meio fsico e social em que elevivia, na paisagem cultural fechada pelos horizontes do mundo primitivo. Podemos assimexaminar cada fase em seu meio, cada homem em seu mundo, compreendendo -os melhor. Oestudo de Bozzano, embora anteri or a esse mtodo, integra-se nele.

    O "horizonte primitivo" geralmente dividido em trs formas: o primitivo propriamente dito, oanmico e o agrcola. Em nosso esquema, reduzimos as duas primeiras formas a uma nica: o"horizonte tribal", que nos permite abranger numa viso geral o problema medinico do homemprimitivo, e destacamos a terceira forma, dando -lhe autonomia. Isso porque o "horizonteagrcola" tem interesse especial no tocante mediunidade. Assim, nosso esquema da fase pr -histrica do Espiritismo o seguinte: horizonte tribal, agrcola, civilizado, proftico e espiritual.At o "horizonte proftico", segundo Murphy. O "horizonte espiritual" uma formulao nova,exigida pelo Espiritismo.

  • 8O horizonte tribal caracteriza-se pelo mediunismo primitivo. Adotamos a palavra "mediunismo",criada por Emmanuel para designar a mediunidade em sua expresso natural, pois evidenteque ela corresponde com preciso ao nosso objetivo. Mediunismo so as prticas empricas damediunidade. Dessa maneira, temo s as formas sucessivas do mediunismo primitivo, domediunismo oracular e do mediunismo bblico, s atingindo a mediunidade positiva nohorizonte espiritual, que surge com o Espiritismo. Somente com o Espiritismo a mediunidade sedefine como uma condio na tural da espcie humana, recebe a designao precisa de"mediunidade" e passa a ser tratada de maneira racional e cientfica.

    Convm deixar bem clara a distino entre fatos espritas e doutrina esprita, paracompreendermos o que Kardec dizia, ao afirmar que o Espiritismo est presente em todas asfases da histria humana. Os fatos espritas - assim chamados os fenmenos ou asmanifestaes medinicas - so de todos os tempos. As prticas mgicas ou religiosas,baseadas nessas manifestaes, constituem o Mediunismo, pois so prticas medinicas. Adoutrina esprita uma interpretao racional das manifestaes medinicas. Doutrina aomesmo tempo cientfica, filosfica e religiosa, pois nenhum desses aspectos pode seresquecido, quando tratamos de fenmeno s que se relacionam com a vida do homem na terra esua sobrevivncia aps a morte, sua vida e seu destino espiritual.

    enorme a confuso feita pelos socilogos neste assunto, seguindo de maneira desprevenidaa confuso proposital feita pelos adversrios do Espiritismo. Os estudos sociolgicos domediunismo referem-se sempre ao espiritismo. Entretanto, a palavra "Espiritismo", criada porAllan Kardec, em 1857, e por ele bem explicada na introduo de "O Livro dos Espritos" ,designa uma doutrina por ele elaborada, com base na anlise dos fenmenos medinicos egraas aos esclarecimentos que os Espritos lhe forneceram, a respeito dos problemas da vidae da morte. As prticas do chamado "sincretismo religioso afro - brasileiro", por exemplo, noso espritas. O sincretismo religioso um fenmeno sociolgico natural. O Espiritismo umadoutrina.

    Defrontamo-nos, neste ponto, com uma complexidade que tambm tem dado margem aconfuses. Os fatos medinicos so fatos espritas, assim chamados pelo prprio Kard ec, masno so Espiritismo. Porque o Espiritismo se serve dos fatos medinicos como de umamatria-prima, para a elaborao de seus princpios, ou como de uma fora natural, queaproveita de maneira racional. Exatamente como a hidrulica se serve das qued as dgua oudo curso dos rios para a produo de energia. Esclarecidos estes pontos, podemos passar anlise dos fenmenos medinicos no horizonte tribal.

    2. ORIGEM SENSRIA DA CRENA NA SOBREVI VENCIA. - Bozzano apoia-seespecialmente nas pesquisas do antroplogo Andrew Lang e cio etnlogo Max Freedom Long,realizadas entre as tribos da Polinsia, para mostrar a existncia dos fenmenos espritas nohorizonte tribal. Serve-se tambm de outras fontes, no esquecendo os estudos de seu mestreHerbert Spencer. Andrew Lang o autor da tese esprita da origem medinica da religio, teseque lanou em seu livro "The Making of Religion" . Bozzano esposa essa tese e procuraesclarec-la, confrontando-a com a tese spenceriana, na qual encontra, alis, os germes daexplicao esprita do problema.

    A primeira afirmao de Bozzano a da universalidade da crena na sobrevivncia. Vejamoscomo ele inicia o seu estudo: "Se consultamos as obras dos mais eminentes antroplogos esocilogos, notamos que todos concordam em reconhecer que a crena na sobrevivncia doesprito humano se mostra universal." Esse fato confirmado por vrias citaes textuais. Aseguir, Bozzano analisa as explicaes que lhe do os socilogos e antroplogos, para concluirpela inoperncia das mesmas. Somente Spencer encontra intuies seguras, que so mais

  • 9tarde desenvolvidas por Lang. Este realizo u um trabalho de anlise comparada dos fenmenosdo mediunismo primitivo com as experincias metapsquicas, concluindo pela realidadedaqueles fenmenos, que constituem a base concreta da crena na sobrevivncia.

    O primeiro fato concreto a surgir no horizonte primitivo, no tocante a esse problema, o daexistncia de uma fora misteriosa que impregna ou imanta objetos e coisas, podendo atuarsobre criaturas humanas. E a fora conhecida pelos nomes polinsicos de "mana" e "orenda".Considerada em geral como imaginria, essa fora produz os mais estranhos fenmenos.Bozzano lembra a resposta de Marcel Habert a Goblet D'Alviella, sobre a natureza imaginriadessa fora. Dizia Habert: "Passa-me pela mente uma nuvem de dvida. Mana e Orenda noseriam talvez concepes demasiado abstratas, para podermos consider -las o princpio deque partiram os selvagens, para chegar aos espritos?"

    A dvida de Habert considerada por Bozzano "funda mental e psicologicamente" justa, umavez que conhecemos a natureza concreta do pensamento primitivo, incapaz dos processos deabstrao mental que caracterizam o homem civilizado. Mana ou Orenda no uma foraimaginria, mas uma fora real, concreta, positiva, que se afirma atravs de amplafenomenologia, verificada entre as tribos primitivas, nas mais diversas regies do mundo. Essafora primitiva corresponde ao ectoplasma de Richet, a fora ou substncia medinica dasexperincias metapsquicas, cuja ao foi estudada cientificamente por Crawford, professor demecnica da Universidade Real de Belfast, na Irlanda. O mtodo comparativo, seguido porLang, oferece-nos a o seu primeiro resultado. A imaginria fora dos selvagens encontrasimilar nas pesquisas dos sbios europeus e americanos, empenhados nos estudos espritas emetapsquicos.

    O etnlogo Max Freedom Long, que era tambm mitlogo, realizou demoradas pesquisas entreas tribos da Polinsia, e particularmente das ilhas do Hava, convivendo durante anos com osselvagens, para verificar a realidade e a natureza dessa fora primitiva. Conclui que oskahunas, curandeiros polinsios, consideravam a existncia de trs formas de Mana, ou trsfrequncias, trs voltagens dessa fora, semelhana da corrente eltrica. A mais baixavoltagem correspondia fora emitida p elos corpos materiais do cristal ao organismo humano;a voltagem mdia, proveniente da mente humana; e a voltagem superior, proveniente deuma espcie de centro espiritual da mente humana, permitindo ao homem prever o futuro erealizar fenmenos fsicos a distncia, bem como materializao e desmaterializao deobjetos.

    Outra curiosa concluso de Freedom Long a de que os kahunas consideravam essa foracomo susceptvel de acumulao. Os curandeiros, que usavam de feitiaria, podiam prenderespritos inferiores que, a seu mando, faziam provises de Mana para atuar em ocasiesoportunas. Bozzano mostra que as concluses do etnlogo correspondem s de Andrew Lange aos relatos e observaes de numerosos outros estudiosos do assunto, bem como deviajantes e missionrios que conviveram com tribos diversas, em diferentes pocas e vriasregies do globo. Por outro lado, estabelece as relaes entre essa fora e o ectoplasma, oque tambm fizera Freedom Long.

    O segundo fato concreto, de ordem esprita, do horizonte tribal, o da existncia dos prpriosespritos, tambm universalmente afirmada. Antroplogos e etnlogos costumam estabelecerarbitrariamente certa distncia de tempo entre o aparecimento de um e outro fato. Bozzano,entretanto, rejeita essa tese, para sustentar a simultaneidade de ambos. Lembra que nenhumapesquisa ou observao revelaram essa pretensa sucesso dos fatos, e assevera. "A verdade,pelo contrrio, que essas duas concepes aparecem sempre associadas." Uma das provasest na s prprias concluses de Freedom Long, onde vemos os espritos operarem atravs demana, ou seja, servindo-se dessa fora. A coexistncia das duas concepes, a da fora

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    misteriosa e a dos espritos, impe -se tambm diante da multiplicidade dos fenmenosmedinicos no meio primitivo, onde, como acentua Bozzano, a presena de "agentesespirituais" se impunha, de maneira positiva.

    Vemos, assim, que as supersti es dos selvagens, as suas prticas mgicas, no eram nempodiam ser de natureza abstrata, imaginria. Decorriam, como tudo na vida primitiva, derealidades positivas e de fatos concretos, conhecidos naturalmente dos selvagens, comosempre foram e so conhecidos dos homens civilizados, em todas as pocas e em todas aslatitudes da terra. Somente nos momentos de grande refinamento intelectual, quando oshomens constroem o seu mundo prprio, de abstraes mentais, e se encastelam nas suastentativas de explicao racional das coisas, que essas realidades passam a ser negadas,por uma reduzida elite. O materialismo , portanto, uma espcie de flor de estufa, artificial,cultivada em compartimentos de vidro, que isolam a mente da realidade complexa da natureza.

    O aparecimento desses dois fatos espirituais no horizonte primitivo - a ao de uma foramisteriosa e a ao de entidades espirituais - deve ser considerado, entretanto, juntamentecom o problema do antropomorfismo. De uma posio positivista, como a qu e Bozzanoassumia, antes de se tornar esprita, esses dois fatos se explicariam pelo prprioantropomorfismo. De uma posio esprita, entretanto, tal explicao se torna insuficiente.Porque o antropomorfismo e a caracterstica psquica do mundo primitiv o, a maneirarudimentar de interpretao da natureza pelo homem. Reduzir todo o processo da vidaprimitiva a esse psiquismo nascente, limit-lo apenas mente embrionria de criaturassemianimais, um simplismo que o Espiritismo rejeita.

    3. DA LITOLATRIA AO POLITEISMO MITOLGICO - O antropomorfismo uma espcie defase preparatria do animismo. A fase em que o homem primitivo ainda no desenvolveusuficientemente o seu psiquismo, e em que interpreta todas as coisas em termosexclusivamente humanos. Quer dizer, aplica ao exterior as noes rudimentares que possui danatureza humana, dando forma humana aos ele mentos naturais. Podamos aplicar -lhe oprincpio de Pitgoras, o sofista: "O homem a medida de todas as coisas." Mas uma medidapor assim dizer afetiva, sem o controle da razo. pelo sentimento, e no pelo raciocnio, queo homem primitivo humaniza o mundo.

    Estamos certamente no alvorecer da razo, e mais do que isso, no subsolo do processo doconhecimento. As teorias materialistas no enxergam nada mais do que a luta dessa razonascente com o mundo exterior. Para elas, as manifestaes supranormais no so outra coisaalm de projees desse poder psquico, vises alucinatrias da mente primitiva. Murphy,citando Rodolf e Otto, lembra que estam os diante de um processo de adorao rudimentar, emque o homem parece adorar -se a si mesmo nas coisas exteriores. Veremos como oantropomorfismo, por este aspecto, se enquadra na "lei de adorao", que Kardec estuda em"O Livro dos Espritos" .

    O antropomorfismo se revela por duas formas, que tanto podem ser sucessivas com osimultneas, o que difcil precisar. Admitindo que sejam sucessivas, podemos citar comoprimeira forma a vital, ou seja, aquela em que o homem primitivo projeta nas coisas o seusentimento vital, dando vi das s coisas inanimadas. A segunda forma a volitiva, esse"segundo grau do antropomorfismo", de acordo com Murphy, em que o homem projeta tambma sua vontade, e por isso mesmo personaliza as coisas. Neste grau j nos defrontamo s com odesenvolvimento do animismo, a fase em que o homem vai dar no apenas vida e vontade aosobjetos e coisas, mas a sua prpria alma.

    Bozzano j nos mostrou o absurdo de admitir -se um processo to complexo de abstraomental em homens primitivos. So mente a tese esprita pode, portanto, socorrer as teorias

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    materialistas, que tateiam no caminho certo, mas no conseguem firmar -se nele. A teseesprita nos mostra que o processo do antropomorfismo auxiliado pelos fenmenosmedinicos. O simplismo da pro jeo anmica nas coisas exteriores complica -se, com aresposta dessas coisas ao homem, atravs da ao natural dos espritos. evidente que ohomem primitivo tem de interpretar as coisas de acordo com as suas experincias vitais. Arazo se forma na experincia. O homem enquadra o mundo nas categorias nascentes darazo, enche essas categorias, como queria Kant, com o contedo das sensaes. Mas ascategorias, como explica hoje o Relativismo Crtico, e particularmente Ren Hubert, no sofixas ou estticas, mas dinmicas. So a prpria experincia em movimento, e no umresultado da experincia. E essa experincia implica os fatos supranormais, o contato dohomem primitivo com foras estranhas, como no caso de mana ou orenda, e com os "agentesespirituais" de que fala Bozzano.

    Podemos formular uma verdadeira escala da adorao no mundo primitivo. Embora seus grauspossam ser simultneos e no sucessivos, o simples fato de existirem esses graus, mostra quea adorao, resultando de um sentimento inato no h omem, desenvolve-se num verdadeiroprocesso. No grau mais baixo, temos a litolatria ou adorao de pedras, rochas e relevos dosolo; no grau seguinte, a fitolatria ou adorao vegetal, de plantas, flores, rvores e bosques;logo acima, a zoolatria ou adorao de animais; e somente num grau mais elevado, a mitologiapropriamente dita, com a sua forma clssica de politesmo. O processo da adorao sedesenvolve, assim, a partir do reino mineral at o humano ou hominal. Cada uma dessas fases ligada outra por uma interfase, em que os elementos de adorao se misturam. E osresduos das vrias fases, desde a litoltrica, permanecem ainda nos sistemas religiosos daatualidade. O homem carrega consigo as suas heranas, atravs do tempo.

    Se encararmos todo esse processo dentro apenas da teoria do antropomorfismo, ou mesmo doanimismo, ser difcil ou impossvel explicar a sua persistncia nas fases superiores dodesenvolvimento humano. Porque o natural, e at mesmo o dialtico, no desenvolvimento, ohomem libertar-se progressivamente daquilo que o ajudou numa fase e o atrapalha em outra.A persistncia do antropomorfismo e do animismo, nas prprias elites culturais da atualidade,demonstra que neles havia alguma coisa alm da simples projeo do homem nas cois as.Essa "alguma coisa", como j vimos, a presena dos "agentes espirituais", atuandoincessantemente sobre o homem e as comunidades humanas, em todas as fases da pr-histria e da histria.

    Kardec dedicou o segundo captulo da terceira parte de "O Livro dos Espritos" Lei daAdorao. Os Espritos Superiores, que o ajudaram mediunicamente na elaborao do livro,ensinaram-lhe que "a adorao o resultado de um sentimento inato no homem" , como osentimento da existncia da divindade. Acrescentaram que ela faz parte da lei natural, ou seja,do conjunto de foras n aturais que constituem o mundo, ao qual o homem naturalmentepertence. A seguir, mostraram como a lei de adorao se desenvolve nas sociedadeshumanas, a partir da adorao exterior de objetos materiais, at atingir aquela fase superiorque definiram com estas palavras: "A verdadeira adorao a do corao." J vimos,anteriormente, que esses ensinamentos espirituais concordam com a interpretaoantropolgica de Murphy e Rodolfe Otto, de que o antropomorfismo uma forma de "adoraorudimentar".

    Lembremos ainda, para evitar confuses, que os Espritos no falavam a Kardec por meio devises ou de outras formas msticas de revelao. Quando dizemos que os EspritosSuperiores ajudaram Kardec a elaborar "O Livro dos Espritos" , os chamados "homenscultos" costumam torcer o nariz, lembrando que tambm a Bblia, os Evangelhos e o Alcoroforam ditados por Deus ou por Espritos. Acontece, porm, que as antigas escrituras pertencems fases do mediunismo emprico, enquanto a codificao esprita pertence fase da

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    mediunidade positiva. Os Espritos Superiores (superiores em conhecimento e refinamentoespiritual, precisamente como os homens superiores), conversavam com Kardec e oauxiliavam atravs da prtica medinica. Quer dizer: atravs de comunicaes medinicassujeitas a controle, e no de revelaes msticas, aceitas de maneira emotiva.

    Por outro lado, quando acentuamos a natureza racional do Espiritismo, no negamos o valordo sentimento. O velho debate filosfico entre razo e sentimento, traduzido no plano religiosopelo dualismo de razo e f, encontra no Espiritismo a sua soluo natural, pelo equilbrio deambos, na frmula clssica de Kardec: "a f raciocinada". No estudo do antropomorfismo, comsuas formas rudimentares de ado rao, encontramos todo um esquema elucidativo do velho edebatido problema. Razo e f se apresentam como as for mas de contradio de um processodialtico.

    4. AMPLIAO DA TEORIA DE SPENCER - O materialismo do sculo dezoito negou a aodos "agentes espirituais", tanto sobre as comunidades primitivas, quanto sobre as coletividadescivilizadas. Bozzano, que foi positivista durante anos, explicava a crena na sobrevivnciaatravs da teoria de Spencer, o fil sofo que chegou a considerar como um Aristtelesmoderno. Em que pese toda essa admirao, a realidade inegvel dos fatos espritas mostroua Bozzano que a tese spencereana estava errada, que no era possvel explicar -se a gneseda crena universal na sobrevivncia por alguns fenmenos comuns, sensoriais, que exigiriamdo homem primitivo uma reelaborao mental, no plano abstrato. No obstante, Bozzanoreconheceu que Spencer "pusera os ps no caminho certo" . Chega a ser emocionante amaneira por que o antigo discpulo corrige o mestre, reconhecendo -lhe os mritos.

    Entende Bozzano que faltou a Spencer o conhecimento das experincias metapsquicas.Dessa maneira, o gnio de Spencer viu -se obrigado a tatear no plano das cincias materiais.Apesar disso, precisamente por ser um gnio, Spencer tocou no ponto central do problema,indicando os rumos certos de sua soluo. A crena na sobrevivncia decorre de experinciasconcretas do homem primitivo, e no de formulaes do pensamento abstrato. Sua origemest nas sensaes, e no na cogitao filosfica. Esse o ponto central, que Spencer soubever. Usando o mtodo comparativo, Bozzano mostra como a tese de Spencer pode serdesdobrada ou ampliada, com o acrscimo dos fatos metapsquicos, para tornar -seplenamente verdadeira.

    Vejamos como isso possvel. As origens da crena na sobrevivncia, para Spencer, soestes fatos comuns da vida primitiva: o sonho, quando o selvagem se sentia liberto do corpo eagindo em lugar distante; a sombra que o seguia nas caminh adas ao sol e a sua imagemrefletida na gua, quando se debruava nas bordas de um lago; o eco de sua voz, repetidapelos desfiladeiros e as cavernas. Bozzano acrescenta, ao sonho comum, o sonhopremonitrio, que faz ver com antecedncia um acontecimento f uturo; ao fenmeno da sombrae do reflexo na gua, o s fenmenos de vidncia, de apario e de materializao de espritos;ao eco, o fenmeno da voz-direta. E acrescenta, ainda, fora imaginria de mana ou orenda,a prova concreta das ectoplasmias. Com o se v, a tese spencereana desdobra-se, amplia-se,atingindo os fatos metapsquicos, que escapavam a Spencer. Com essa ampliao, a gneseda crena na sobrevivncia no deixa o terreno do concreto, dos fatos sensoriais, em queSpencer a colocara. Mas, ao mesmo tempo, o problema da induo, que implica o uso dopensamento abstrato, substitudo pela experincia imediata, mais acorde com a mentalidadeprimitiva. O selvagem no precisava induzir, dos vrios fenmenos citados por Spencer, umasupra-realidade, pois esta se impunha a ele atravs dos fenmenos espritas oumetapsquicos, direta e imediatamente.

    Quanto ao problema das ectoplasmias, convm lembrarmos que o ectoplasma, emanaofludica do corpo do mdium, hoje uma realidade, cientificamente comprovada. No somente

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    as experincias clssicas de Richet, Crookes, Schrenck -Notzing e outros a comprovaram,como tambm e principalmente os estudos experimentais do Prof. W. J. Crawford, daUniversidade de Belfast, Irlanda, que j referimos. Esses estud os foram realizados entre 1914e 1920, com a mdium Kathleen Goligher. Verificou Crawford a existncia de alavancas deectoplasma, produzindo os fenmenos de levitao. Mais tarde, chamou essas alavancas de"estruturas psquicas". No "Tratado de Metapsquica", entretanto, Richet se refere a essasestruturas como "Alavancas de Crawford".

    Gustavo Geley realizou tambm numerosas experincias com o ectoplasma, servindo-se damdium Eva Carrire, a mesma que realizara sesses com Richet, em Argel, na casa doGeneral Noel, produzindo as excelentes materializaes de Bien Boas, um rabe. Richetpublicou, no "Tratado", uma fotografia dessas materializaes, vendo -se o fantasma de BienBoas pairando no ar e ligado por uma "alavanca" ao corpo da mdium. Constatou Ge ley, com omais rigoroso critrio cientfico, as formas de emanao fludica do ectoplasma, que descreveucomo "uma substncia esbranquiada que sai do corpo da mdium" . Aconselhamos osinteressados neste assunto a lerem o captulo intitulado "Ectoplasma", do livro "Histria doEspiritismo", editado em portugus pela Livraria O Pensamento, de S. Paulo, em 1960, emtraduo de Jlio Abreu Filho.

    Mas o que nos interessa, quanto ao ectoplasma, neste momento, a sua relao com asforas mgicas de mana ou orenda. Alm da emanao fludica esbranquiada, a que se refereGeley, o ectoplasma apresenta -se tambm de forma invisvel. Assemelha -se, ento, a umafora impondervel, como o magnetismo ou a eletricidade. O Prof. Imoda, italiano, nasexperincias de ideoplastia, que realizou com a mdium Linda Gazzera, em conjugao comRichet, expe uma curiosa teoria das trs formas do ectoplasma: a invisvel, a fludica -visvel ea concreta, no seu livro "Fotografias de Fantasmas" . Geley, por sua vez, constatou que oectoplasma, em forma invisvel, girava em torno das pessoas, nas sesses, antes da produode fenmenos.

    O mais curioso, porm, a comparao dos dados colhi dos sobre a fora mana ou orenda, naPolinsia, por Freedom Long, e as observaes do Prof. Crawford, em Belfast, sobre oectoplasma. Verifica-se ento a plena correspondncia entre as duas foras. Os selvagenspolinsicos diziam, como j referimos, que o ectoplasma humano produzido pela mente. OProf. Geley afirma, por sua vez, que os Espritos, nas sesses experimentais realizadas por elee outros cientistas, na Europa e na Amrica, agiam sobre o crebro dos mdiuns e dosparticipantes da reunio, para provocar a emanao do ectoplasma. A observao vulgar dosselvagens, traduzindo uma simples o pinio, coincide, assim, com a observao cientfica deGeley. Como em tantos outros casos, a cincia confirma, dessa maneira, um conhecimentovulgar, adquirido na experincia comum.

    Provocada a emanao, o ectoplasma gira em torno dos assistentes, flui em redor do grupo,aumentando pouco a pouco sua intensidade e sua fora, para a final se dirigir ao mdium.Liga-se ao sistema nervoso deste, formando aquilo que Geley considera "um suprimento". graas a este "suprimento" que os Espritos, chamados por G eley de "operadores", conseguemproduzir, em seguida, os vrios fenmenos de levitao, movimento de objetos ematerializao. A teoria cientfica do "suprimento" de ectoplasina corresponde tambm "superstio" polinsica de acumulao ou armazenamento de mana ou orenda, paraoperaes mgicas posteriores.

    Resta acentuar que o processo de seleo do mdium e de realizao de sesses praticamente o mesmo, entre selvagens e civilizados. Bozzano explica que os selvagens seutilizam de indivduos sensitivos, depois de prov-los quanto a essa qual idade, e realizamsuas sesses noite ou ao entardecer, evitando a luz excessiva do sol. Freedom Long chega a

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    pormenores curiosos. Os selvagens se dispem ao redor de uma pequena cabana de palhas,para cantar e danar, ao entardecer. O mdium fica no interior da cabana. Esta corres ponde,como vemos, cabina medinica das experincias cientficas, onde o mdium se livra daincidncia da luz na sala de sesses. As experincias de Croockes, por exemplo, feitas a p lenaluz, com as famosas materializaes de Katie King, eram desse tipo. A mdium ficava numgabinete ou cabina, onde se processa a elaborao ectoplsmica. S de pois de materializado,o esprito sai para a sala iluminada.

    Os fenmenos produzidos nas sel vas so naturalmente mais grosseiros, violentos e fortes, queos produzidos nas experincias cientficas. Isso se explica pela qualidade mental dosassistentes, do prprio mdium, e consequentemente dos "operadores" ou espritos que atuamno meio selvagem. Os fenmenos do meio civilizado so mais sutis, revestindo -se, por vezes,de inegvel harmonia e beleza, como ocorria nas materializaes de Katie King, comCroockes, e nas famosas sesses com o mdium Douglas Home, onde havia encantadorasmaterializaes de mos.

    As mos grosseiras da selva, porm, e as delicadas mos inglesas das sesses de Home,revelam a mesma coisa: a sobrevivncia do homem aps a morte do corpo e a possibilidade decomunicao entre encarnados e desencarnados. As mos produzidas por mana ou orendaindicam aos homens o mesmo caminho de espiritualizao indicado pelas mos deectoplasma. Das selvas civilizao, os Espritos ensinam aos homens que a vida no seencerra no tmulo, como no principia no bero.

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    Captulo 2

    HORIZONTE AGRCOLA: ANIMISMO E CULTO DOS ANCESTRAIS

    1. RACIONALIZAO ANMICA - Quando estudamos o "horizonte agrcola", ou seja, o mundodas primeiras formas sedentrias de vida social, vemos o animismo tribal desenvolver -se noplano da racionalizao. Estamos n aquele momento hegeliano, e por isso mesmo dialtico, emque a razo se desenrola no processo histrico, entendido este como o progresso do homemna terra. A domesticao de animais e de plantas, a inveno e o emprego de instrumentos, acriao da riqueza, processam-se de maneira simultnea com o aumento demogrfico e odesenvolvimento mental do homem.

    precisamente do desenvolvimento mental que vai surgir uma consequncia curiosa: oaprofundamento da crena tribal nos espritos, num sentido de personali zao, envolvendo osaspectos e os elementos da natureza. A experincia concreta, que deu ao homem primitivo oconhecimento da existncia dos espritos, alia -se agora ao uso mais amplo das categorias darazo. As duas formas gerais de racionalizao do Uni verso, que aparecem nesse momento, eque devem constituir a base de todo o processo de racionalizao anmica, so a concepoda Terra-Me e a do Cu-Pai. Essas formas aparecem bem ntidas no pensamento chins, queconservou at os nossos dias os elemento s caractersticos do "horizonte agrcola". O cu odeus-pai, que fecunda a terra, deusa-me.

    Em algumas regies, como podemos ver no estudo da civilizao egpcia, h uma inverso deposies: o cu me e a terra pai. Essa inverso no tem outra sig nificao que a de maiorimportncia da terra ou do cu para a vida das tribos. Quando as inundaes do Nilo nodependem das chuvas locais, no parecem provir do cu, mas das prprias entranhas da terra.Esta encarna, ento, o poder fecundante, cabendo a o cu, to-somente, o papel materno deproteger as plantaes. Os estudos materialistas confundem o problema da racionalizao como da experincia concreta da sobrevivncia. Tomam, pois, a Nuvem por Juno, ao concluremque o homem primitivo atribui terr a e ao cu uma feio humana, Cinicamente para t ornar omundo exterior acessvel compreenso racional. Os estudos espritas mostram que h umadistino a fazer-se, nesse caso. O processo de racionalizao decorre da experinciaconcreta, e por isso mesmo no pode ser encarado de maneira exclusivamente abstrata.

    Procuremos esclarecer isto. De um lado, temos a experincia concreta, constituda peloscontatos do homem com realidades objetivas. De outro lado, temos o processo daracionalizao do mundo, ou seja, de enquadramento dos aspectos e dos elementos danatureza nas categorias da razo ou categorias da experincia. Da mesma maneira porque ocontato do homem com o espao fsico lhe fornece uma medida para aplicar s coisasexteriores - a categoria espacial, o conceito de espao - assim tambm o contato com osfenmenos espirituais lhe fornece uma medida espiritual, que conceito de esprito. Esteconceito usado no processo de racionalizao, como qualquer outro. Mas absurdoquerermos negar os fatos concretos que deram origem categoria racional, ou querermosatribuir a essa categoria uma origem abstrata, diferente das outras.

    Somos levados, assim, a concluir que o animismo do "horizonte agrcola" apresenta trsaspectos distintos, quando encarado s sob a luz do Espiritismo. Temos primeiramente oaprofundamento do animismo tribal na personalizao da natureza, que chamaremosFetichismo, com os fetiches bsicos da Terra -Me e do Cu-Pai. Depois, temos a fuso daexperincia e da imaginao, com o des envolvimento mental do homem, no progresso naturaldo Mediunismo. Dessa fuso vai nascer a mitologia popular, impregnada de magia. E emterceiro lugar encontramos a primeira forma de religio antropomrfica, consequncia daexperincia concreta de que fala Bozzano, com o culto dos ancestrais. Deuses -lares, manes e

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    deuses-locais, como os deuses dos "nomos" egpcios, por exemplo, so entidades reais e noformas de racionalizao. Nos deuses dos "nomos" egpcios, ou seja, das regies do antigoEgito, temos j o momento de transio dos deuses reais para o processo de racionalizao.

    A transio se efetua por uma maneira bastante conhecida. um processo de fuso, queencontramos ao longo de todo o desenvolvimento espiritual do homem. O Fetichismo se fundecom o Culto dos Ancestrais, atravs do Mediunismo. Os fetiches, como a terra e o cu,misturam-se aos ancestrais, identificam -se a eles, na imaginao em desenvolvimento. Amente rudimentar no sabe ainda fazer distines precisas. Assim, por exemplo, Osris, que foium antepassado e como tal recebeu um culto familiar, transforma -se numa personificao daterra, com o seu poder de fecundao, ou no prprio Nilo, cujas guas sustentam a vida. Aprojeo anmica se realiza, nesse caso, atravs de uma experinci a concreta. A mitologianasce da histria, pois a existncia histrica de Osris convertida em mito, pela necessidadede racionalizao do mundo. Nada melhor que os estudos de "sir" James Frazer sobre o mitode Osiris, para nos mostrar isso.

    Kardec esclarece este problema, ao comentar a pergunta 521 de "O Livro dos Espritos" ,afirmando: "Os antigos haviam feito desses Espritos divindades especiais. As Musas no erammais do que personificao alegrica dos Espritos protetores das cincias e das artes, comochamavam pelos nomes de lares e penates os Espritos protetores da famlia. Entre osmodernos, as artes, as diferentes indstrias, as cidades, os pases, tm tambm os seuspatronos, que no so mais do que os Espritos Superiores, mas com outros nom es." Aofazerem dos Espritos "divindades especiais", como assinala Kardec, os antigos procediam racionalizao do mundo, o que no quer dizer que os Espritos fossem apenas "formasracionais". Essas formas, pelo contrrio, decorriam de fatos concretos, de realidades naturais.

    Como vemos, ao tratar do animismo primitivo e seu desenvolvimento no "horizonte agrcola",no podemos negar a existncia real dos espritos, a pretexto de explicar o mecanismo doprocesso de racionalizao. Este mecanismo torna -se mesmo inexplicvel, quando lhesuprimimos a base concreta dos fatos, como dizia Bozzano, na qual se encontram os espritoscomunicantes. V-se claramente a distoro da realidade, a guinada do pensamento para osrumos do absurdo, quando os cientistas mat erialistas tentam explicar o processo deracionalizao, ignorando as experincias medinicas do homem primitivo. O Espiritismorestabelece a verdade, ao mostrar a importncia do mediunismo no desenvolvimento humano.

    2. O EXEMPLO EGPCIO - A China e a ndia so os dois pases que conservaram at osnossos dias a estratificao religiosa do horizonte agrcola. Mas no so os nicos. Aquilo quechamamos de horizonte agrcola, o mundo das grandes civilizaes agrrias, constitui umaespcie de subconsciente coletivo das civilizaes modernas. Os resduos mgicos, anmicos emitolgicos do horizonte tribal e do horizonte agrcola apresentam -se ainda bastante fortes nomundo contemporneo. Nossas religies mostram -se poderosamente impregnadas dessesresduos. Mas o antigo Egito oferece-nos, talvez, o quadro que melhor demonstra a passagemdos deuses-familiares para a categoria dos deuses -csmicos ou universais.

    O exemplo egpcio fecundo em vrios sentidos. No s demonstra essa transformao dosdeuses, como tambm nos fornece as razes histricas de vrios dogmas, sacramentos einstituies das religies dominantes em nosso mundo. J estudamos, embora rapidamente, ocaso de Osris, cuja existncia real transformada em mito. Esse caso nos coloca numaposio semelhante a de Evmero, para quem os deuses mitolgicos haviam sidopersonagens reais. Mas essa, exatamente, a posio esprita, como j vimos em Kardec. Amitologia, encarada atualmente como uma forma de racionalizao, para o Espiritismo umpouco mais do que isso. Por que tambm uma prova da participao dos Espritos na

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    Histria, ao mesmo tempo que uma poderosa fonte de esclarecimento dos problemasreligiosos.

    Vemos no Egito duas categorias de deuses, bem definidas: a dos deuses -csmicos e a dosdeuses-familiares. Na primeira, encontramos a trade familiar constituda por Osris, Isis eHrus, com toda a sua corte de divindades consanguneas e de outras divindades. Nasegunda, encontramos casos curiosos, como os referentes aos deuses Imhotep, Ame nhotep eBs, o ano. Estes deuses -familiares oferecem-nos o exemplo de divinizao csmica euniversal que justifica a tese evemerista. Imhotep, mdico do rei Dsejer, da terceira dinastia, eAmenhotep, arquiteto e mdico de Amenofis 3 ., da dcima oitava dinastia, passam lentamente da categoria de deuses -familiares para a de deuses -universais, adorados comoentidades-terapeutas, para chegarem depois ao limiar da categoria superior de deuses -csmicos, encarnando a prpria medicina ou os poderes curadores da natureza.

    Quando vemos todo esse processo de transformao realizar -se aos nossos olhos, atravs dosestudos histricos, compreendemos a maneira por que a famlia csmica de Osris, Isis eHrus, o deus-pai, a deusa-me e o deus-filho, foram elevados da terra ao cu. Assim comoImhotep e Amenhotep, anteriormente adorados na famlia real, como deuses -familiares, depoisse tornam deuses-populares, e por fim se transformam em divindades mitolgicas ou deuses -csmicos, assim tambm aconteceu, forosamente, com a famlia osiriana. E isso quer dizer,pura e simplesmente, o seguinte: que aquilo que hoje chamamos, no Espiritismo, de espritos -familiares, ou seja, a manifestao medinica dos parentes e ami gos mortos, que velam pelosnossos lares, a fonte da mitologia, a base d o processo de racionalizao e a prpria origemdas religies.

    O caso do ano Bs tambm bastante elucidativo. Esse ano tornou -se um esprito- popular,isto , passou do culto familiar para o culto do povo. Costumava aparecer cerc ado de macacos.Devia ter sido um ano que tratava de macacos sagrados. Depois de morto, seu espritoaparecia aos videntes, ou nos momentos de apario medinica, da mesma maneira por queele vivera. E como possua virtudes que interessavam ao povo, alm de apresentar-se demaneira curiosa, em breve rompeu os limites do culto familiar. Os macacos que o cercavameram remanescentes da zoolatria, alis muito abundante no Egito, onde a zoolatria imperou ato fim da civilizao. O ano Bs um caso tpico de universalizao de um deus -familiar. Ofato de no ter esse processo atingido a categoria do deus -csmico nada tem deextraordinrio. Os processos naturais nem sempre se completam.

    Os egpcios mantiveram-se apegados zoolatria, como os indianos se man tm at hoje. Oescaravelho dos amuletos, a adorao do Boi Apis em Mnfis, de Ibis na bacia do Nilo, dosCrocodilos em Tebas e do Bode de Mendes no Delta, so exemplos da arraigada zoolatriaegpcia. Mas h casos de ambivalncia, como o do Crocodilo, que era adorado em Tebas e n aregio do Lago Noeris, mas caado em Elefantina. A zoolatria passa por uma fase dehumanizao, que culmina na fuso de elementos animais com as figuras humanas. O caso dadeusa Hator tpico. Essa deusa, que equivale Ceres do s romanos e Demeter dos gregos,ora apresentada com orelhas de vaca, ora com chifres, ora com o bucrnio, ou ainda comeste e o sistro. A lei de adorao de que fala Kardec, evolui dos animais para as formashumanas, mas de maneira lenta. Os resduos a nimais se conservam ainda nas figuras dosdeuses antropolgicos, como nas prprias imagens de Hrus, com cabea de falco.

    A humanizao dos deuses animais, que fatal, pois a zoolatria no mais que uma projeoanmica, vai implicar tambm a organiza o familiar do panteo divino. Os deuses soreunidos em famlias, e a forma mais simples destas famlias a trade, constituda pelo pai, ame e o filho, como vimos no caso de Osris. Essa trade familiar, deriva da do sistemapatriarcal do horizonte agrcola, uma das formas mais antigas da trindade divina. O conceito

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    de esprito, entretanto, far sentir a sua influncia nesse processo de socializao dos deuses.Assim como, de um lado, os ele mentos animais sero fundidos nas figuras humanas dasdivindades, de outro, o conceito de esprito, ou seja, a ideia de esprito como forma sobre-humana de existncia, far a sua interveno, em sentido contrrio, na organizao dasfamlias humanas.

    Digamos isto de maneira mais clara, se possvel. No processo de desenvolvimento da lei deadorao, os resduos animais so projetados nas figuras humanas dos deuses, como no casodas orelhas e dos chifres da deusa Hator. Mas, ao mesmo tempo, o conhecimento que ohomem obteve, atravs da experincia medinica, da e xistncia de seres espirituais,semelhantes aos seres humanos, permitir o agrupamento dos deuses em famlias e far queas famlias humanas sofram a interveno divina. o caso dos deuses gregos, que seenamoravam das "filhas dos homens". O caso de Pitg oras, que no era filho de seu paihumano, mas do deus Apolo. O caso da teogamia egpcia, de que derivam as doutrinasteogmicas das religies crists.

    A teogamia egpcia atingiu sua forma perfeita, ou pelo menos a mais definida, com a rainhaHatsepshut, cerca de 1.500 a. C., conservando o seu vigor at os Ptolomeus, no 4 . sculo a.C. Segundo essa doutrina, os Faras eram portadores de dupla natureza, a humana e a divina,porque eram filhos da rainha com o deus -solar. No eram, portanto, filhos de um ho mem, enem mesmo de um homem-deus, mas do prprio Deus, que atravs de processos divinosfecundava a rainha. O conhecimento desses processos histricos indispensvel ao esprita,para imuniz-lo contra as deturpaes msticas ou supersticiosas da doutrin a, to comuns nummundo que, apesar de se orgulhar do seu progresso cientfico, ainda no se libertou de suapesada herana mitolgica.

    3. OS MITOS AGRRIOS - A vida agrria, como j acentuamos, marcou profundamente oesprito humano, em seu desenvolvimen to nos rumos da civilizao. Os mitos do horizonteagrcola exercem ainda poderosa influncia em nosso mundo. Isso contribui para o descrditodas religies, em face dos estudiosos de histria, e mais ainda, dos que tratam de mitologia.Osris, por exemplo, como tpico deus agrrio, parece constituir uma prova das origens mticasdo dogma da ressurreio. Quando os cristos proclamam a ressurreio de Cristo, osestudiosos sorriem com desdm, lembrando a ressurreio de Osris.

    Vejamos porque Osris, filho da Terra e do Cu, cresce, viceja, explende, e ento ceifado,retalhado ou modo, e por fim enterrado. Mas da terra, como as sementes, Osris renasce,para comear novo ciclo, semelhante ao anterior. Morto e espostejado por Set, seu irmo, ressuscitado por sua esposa e irm, a deusa Isis, atravs de ritos especiais. Est bem visvel aanalogia agrria. Osris como o trigo, que depois da ceifa sofre a debulha, volta a serenterrado na semeadura, e por fim renasce. s vezes, associado ao Nilo, um deus fluvial.Cresce com a inundao, declina e morre na vazante, mas depois ressuscita e faz nasceremas plantas, com o poder mgico das guas.

    Osris, deus-fluvial, est naturalmente ligado ao cultivo da terra. No seu aspecto fluvial, porm,apresenta-nos um elemento novo, que a magia da gua. Vemos nele a "gua pura", queserve para purificar a terra seca, estril, poeirenta, e com ela os homens e os animais; a "guada renovao", usada largamente nas ablues sagradas e utilizada nas for mas ba tismais,como no caso clssico de Joo Batista; e, por fim, a "gua fecundante", que representa avirilidade do deus-fluvial, fecundando a terra. Por isso, na sua mais alta expresso mitolgica,o Nilo flui das mos de Osris, para se derramar como uma b no sobre a terra rida.

    "Deus-agrrio, - diz John Murphy - deus da inundao e de uma vida nova, a todos levava aesperana da ressurreio." Essa esperana mantinha o prestgio do deus. Assim como ele

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    morrera para ressuscitar, atravs dos ritos agrrio s de Lis, assim tambm os homens, uma vezsubmetidos a ritos semelhantes, ressuscitavam. Essa crena ingnua faz lembrar o dogmacristo, nas palavras do apstolo Paulo: "Se no h ressurreio dos mortos, tambm Cristono ressuscitou." (1. Cor. 15:12.) O sentido osrico da ressurreio crist torna -se maisevidente, quando os ritos agrrios so exigidos para que a alma se salve, ou seja, para quereal mente possa ressuscitar. Por outro lado, h um paralelismo histrico bastantecomprometedor. Osris, graas ressurreio, mostrou-se capaz de superar os outros deusesegpcios, da mesma maneira por que, mais tarde, graas ressurreio, o Cristianismosuperaria as demais religies orientais que invadiram o Imprio Romano.

    O dogmatismo religioso no conseg ue furtar-se ao impacto dessas comparaes. A f ingnua,imposta pela autoridade e a tradio, derrete -se como cera frgil, ao fogo da razo. Somente af racional, ou a "f raciocinada", como queria Kardec, pode enfrentar serenamente essaanlise histrica, sem perder-se na negao ou extraviar -se na dvida. De outro lado, a razoctica, por mais cultivada que seja, no consegue penetrar a essncia do mito agrrio. Assimcomo a f necessita da luz da razo, esta luz, por sua vez, necessita do pavio da f .

    O Espiritismo demonstra que o mito agrrio essencialmente analgico, nasce do podercomparativo da razo. Esse poder assimilou, desde a era tribal, a ressurreio humana,demonstrada pelos fatos medinicos, ressurreio vegetal. Sem a prova material daexistncia do esprito, da sobrevivncia do homem, o mito agrrio se reduz ao seu aspectoanalgico, no deixando perceber os motivos profundos da analogia. Da a descrena e osorriso irnico dos "sbios", que na verdade deviam esperar para sorrir ma is tarde, uma vezque os que riem por ltimo riem melhor.

    Agrrio, tambm, o mito da Virgem -Me, que adquire amplitude social e poltica na doutrinada teogamia egpcia, como j vimos. A terra, deusa -me, virgem antes e depois do parto,pois no sai maculada da fecundao e est sempre em estado de pureza. Fecundada pelodeus celeste, floresce nas messes, embalando no seu colo materno o Messias, ou seja, odeus-solar, que traz a luz, a vida e a fartura das colheitas, aps o inverno . O mito agrrio daVirgem-Me tem ainda o seu aspecto astronmico, semelhana de todos os deuses -agrrios, uma vez que a terra e o cu se conjugam no mistrio da fecundao. A constelaoda Virgem a primeira a aparecer no cu, aps o solstcio do inverno. Dela nasce o Sol, oMessias. E a constelao continua virgem, aps o nascimento. A palavra "messe", como se v,tem um grande poder mtico: dela derivam o nome do Messias e do culto que lhe atribuem,mais tarde representado na liturgia da Missa.

    Assim tambm o mistr io do po e do vinho, O po representava nos mistrios gregos a deusaDemeter, ou a Ceres para os romanos, me dos cereais . O vinho representava Baco ouDionsio, deuses da alegria, da vida, e portanto do esprito. Comer o po e beber o vinho erasimbolizar a fecundao da matria pelo poder do esprito. A matria impregnada pelo poderdo esprito era representada, nas cerimnias religiosas pags, pelo po embebido de vinho.Quando os hebreus chegaram a Cana encontraram essa pra tica entre os cananitas.

    Todo o horizonte agrcola se m ostra dominado por essa simbologia mgica do po e do vinho,de que o prprio Cristo se serviu, no para sujeitar os homens ao smbolo, mas para ilustr -losatravs dele. Bastam esses exemplos, para vermos a intensidade da imp regnao mtica dopensamento religioso contemporneo. O Espiritismo luta contra essa impregnao, libertando ohomem do peso esmagador do horizonte agrcola, para conduzi -lo ao horizonte espiritual, queJesus anunciou mulher samaritana.

    4. JEOV, DEUS AGRRIO - Quando estudamos religio comparada, ou histria dasreligies, o exame do "horizonte agrcola" nos revela a natureza agrria do deus bblico Iav ou

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    Jeov. As diferenas fundamentais existentes entre o Deus bblico dos hebreus e o Deusevanglico dos cristos decorre da diferena de "horizontes". Jeov um deus mitolgico, emfase de transio para o "horizonte espiritual". Nasceu, como todos os deuses agrrios, por umprocesso sincrtico. Nele se fundem a experincia concreta da sobrevivncia humana, obtidaatravs dos fatos medinicos, e a exigncia de racionalizao do mundo, manifestada naselaboraes mitolgicas. Ao mesmo tempo, concepes vrias, e at mesmo contraditrias,originadas ao longo da vida tribal e da vida agrcola, tambm se misturam nessa figura bblica.Da as suas contradies, que do margem a tantas crticas, oriundas da incompreenso dofenmeno e da ignorncia do processo histrico.

    Encontramos em Jeov, num verdadeiro conflito, as caractersticas de deus -tribal e deus-universal, de deus-familiar e deus - popular, de deus-lar e deus mitolgico. Como deus -tribal,Jeov o guia e o protetor das tribos de Israel, e como deus -universal, pretende estender suasleis a todos os povos. Como deus -familiar, o clssico "Deus de Abro, Isaac e Jac" , protetorde uma linhagem de pastores, e como deus-popular, o protetor de todos os descendentes deAbro. Como deus-lar, o Esprito que falava a Ter e a Abro em Ur, revelia dos deuses -nacionais dos caldeus, e como deus -mitolgico, aquele que declara na Bblia "Eu sou o quesou", tendo a terra por escabelo de seus ps e o cu por morada infinita de sua grandezasobre-humana.

    O mesmo sincretismo que j estudamos no caso dos deuses egpcios aparece no deushebraico. Se a deusa Hator, por exemplo, tinha orelhas de vaca, Jeov ordena matanas,misturando em sua natureza caractersticas humanas e divinas. Protege especialmente umpovo, uma raa, com ferocidade tribal, e se no exige mais os antigos sacrifcios humanos,entretanto exige os sacrifcios animais e vegetais. Suas monumentais narinas, emborainvisveis, dilatam-se gulosas, como as de Moloc, aspirando o fumo dos sacrifcios. No Templode Jerusalm, maneira do que acontecia com os templos gregos, havia locais especi ais paraos sacrifcios sangrentos e os incruentos. Assim como Pitgoras, vegetariano, podia oferecerao deus Apolo, na ara especial do templo, sacrifcios vegetais, assim tambm os hebreuspodiam escolher a espcie de homenagens que deviam prestar a Jeov .

    A histria dos sacrifcios ainda est por ser escrita, em bora muito j se tenha escrito arespeito. No dia em que a tivermos, na extenso e na profundidade necessrias, veremos umanova confirmao histrica do desenvolvimento da lei de adorao. Dos s acrifcios humanospassamos aos de animais, destes aos vegetais, e destes aos cilcios, s penitncias e aossimples ritos devocionais. Correr muita gua por baixo das pontes, antes que Paulo, apstolo,possa proclamar, apoiado no ensino espiritual de Jes us, que existe um culto racional,consistente em oferecermos a Deus nosso prprio corpo, como "Hstia imaculada". No entanto,Jeov j proclamara: "Misericrdia quero, e no sacrifcio" , demonstrando a sua evoluoirrevogvel para o "horizonte espiritual" , que raiaria mais tarde.

    Muitos estudiosos estranham a afirmao esprita de que o Deus bblico o mesmo Deus deJesus. Fazendo uma distino, que nos parece natural e necessria, entre a Bblia, comoVelho Testamento, e os Evangelhos, como Novo Testamento, diremos que o Deus bblico omesmo Deus evanglico. As diferenas entre ambos se explicam atravs da lei de evoluo.Se os homens do horizonte agrcola no podiam conceber o Deus nico seno por uma formasincrtica, uma mistura de Deus e de Homem, os do horizonte espiritual iro conceb -lo demaneira mais pura. No se trata, porm, de dois Deuses, e sim de um mesmo Deus, visto deduas maneiras. Por trs de todas as formas de Deus, encontra -se uma realidade nica, que oprprio Deus. Isso o que permitia a Jesus dizer-se filho de Jeov e ao mesmo tempo apontar oseu Pai como pai universal, em esprito e verdade.

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    Da mesma maneira, os princpios fundamentais da Bblia no so negados, mas confirmadospelos Evangelhos. A Lei no destruda, mas confi rmada. Mais de uma vez nos servir deesclarecimento a afirmao de Paulo: "A lei era o pedagogo, para nos conduzir a Cristo." ATor judaica no valia pelas suas normas exteriores e transitrias, circunstanciais, mas pelasua substncia. Essa substncia que prevalece, sendo confirmada por Jesus, nos doismandamentos principais: "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao prximo como a si mesmo."O processo histrico no contraditrio, mas progressivo. Quando no sabemos enxergar aslinhas da evoluo, em seu desenvolvimento natural, enxergamos apenas as aparentescontradies das coisas. Assim como a ideia de Deus evolui com os homens, desde a litolatriaat as formas mitolgicas, e destas concepo espiritual que hoje aceitamos, assim tambmos princpios e o s postulados bblicos vo atingir sua verdadeira expresso nos Evangelhos, epor fim sua espiritualizao no Espiritismo.

    H um encadeamento perfeito no processo histrico, que no podemos perder de vista.Graas a esse encadeamento os Espritos puderam dizer a Kardec que o Espiritismo orestabelecimento do Cristianismo, o que vale dizer: a ltima fase do desenvolvimento histricodo Cristianismo. Quando sabemos que este originou-se no solo do Judasmo, representandoum desenvolvimento natural da religio judaica, ento compreendemos que o Espiritismo,como queria Kardec e como sustentava Lon Denis, o ponto mais alto que podemos atingir,at hoje, em nossa evoluo religiosa. Jeov, o deus -agrrio, transforma-se no Pai evanglico,para chegar "Inteligncia Suprema", no Espiritismo. Jeov se depura, e com ele se depuramos ritos do seu culto, que por fim se transformam na "adorao em esprito e verdade", de quefalava Jesus.

    O "horizonte agrcola" permanece subjacente em nossa mentalidade mod erna. Ainda noconseguimos libertar-nos de suas frmulas agrrias, de seus deuses e seus cultos, carregadosde sacrifcios animais e vegetais, O "horizonte civilizado" desenvolve-se sob os signosagrcolas. Mas vir, por fim, o momento de transio para o "horizonte espiritual", queassinalar uma fase de transcendncia na vida humana.

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    Captulo 3

    HORIZONTE CIVILIZADO: MEDIUNISMO ORACULAR

    1. OS ESTADOS TEOLGICOS. - Os grandes imprios da antiguidade, as chamadascivilizaes orientais, passaram lenta mente do horizonte agrcola para o horizonte civilizado. Omesmo aconteceu com os imprios ocidentais, que constituiriam mais tarde a civilizaoclssica greco-romana. Os gregos, e posteriormente os romanos, tiveram bem marcado o seuhorizonte agrcola. Roma nunca se livrou das marcas profundas da sua origem camponesa.Mas antes que a Grcia e Roma superassem a fase agrria, j as civilizaes orientais haviamdesenvolvido todo um ciclo evolutivo, atingindo o horizonte civilizado, com as gigantescasestruturas de seus Estados Teolgicos.

    Realmente, os grandes imprios do Egito, da Assria, da Babilnia, da China, os reinos dandia, o pequeno reino de Israel, o fabuloso imprio da Prsia, constituem verdadeiros EstadosTeolgicos, em que o humano e o divin o se fundem e se confundem, numa estrutura nica. APrsia vai assina lar o apogeu das civilizaes orientais, que encontraro na sua grandeza e noseu esplendor, ao mesmo tempo, a sntese e o arremate desse espantoso ciclo evolutivo. Oimprio persa ser o ltimo elo da grande cadeia, e com ele comear uma fase nova, cujodesenvolvimento, entretanto, caber aos gregos e aos romanos: a fase de libertao do Estadodo domnio teolgico.

    Essa libertao no se processar com rapidez, mas de maneira lenta. A ssim, a prpriacivilizao grega, e sua herdeira direta, a romana, apresentaro ainda, no horizonte civilizado,acentuado aspecto teolgico. Mas com os persas j se inicia a separao dos dois poderes, opoltico e o religioso. Curioso notar -se que essa separao, iniciada pelos persas no terreno daeducao, vai projetar-se na Grcia em duas formas diferentes de estrutura estatal: Espartaser o Estado Poltico por excelncia, com a religio submetida aos interesses temporais, eAtenas o Estado Teolgico, dominado p elos deuses, mas j impulsionado, graas aodesenvolvimento econmico e cultural, nos rumos da emancipao poltica. Esparta recebe,por assim dizer, a herana persa como um impacto, que a modela de maneira rgida. Atenas,pelo contrrio, absorve lentam ente a contribuio persa e a reelabora atravs da crtica. Aseparao dos dois poderes, o civil e o religioso, se acentuar em Atenas com odesenvolvimento da democracia. Esparta opor ao domnio teolgico a supre macia estatal.Atenas, pelo contrrio, o por a reflexo crtica e o individualismo, ou seja, os direitos dohomem, como indivduo.

    Os Estados Teolgicos das civilizaes orientais nos oferecem, portanto, o primeiro panoramadesse novo ciclo da evoluo humana, que chamamos horizonte civilizado. Analisando essesEstados, verificaremos que sua estrutura herdada do horizonte tribal. O monarca egpcio,babilnico, hindu ou chins, um cacique tribal, cujas dimenses foram aumentadas quase aoinfinito. Suas prerrogativas so as mesmas da vida tribal: domnio absoluto sobre o povo, que odeve respeitar e adorar, como a um deus. A evoluo econmica e tcnica do horizonteagrcola, que determinaram acentuado desenvolvimento do animismo, daro estrutura racional,mais sutil e complexa, a essas prerrogativas. Mas as civilizaes orientais, dominadas peloabsolutismo tribal, sero estruturas teolgicas asfixiantes, em que no haver lugar para oindivduo. O homem civilizado, maneira do homem -tribal, ser apenas uma pea dagigantesca engrenagem do Estado Teolgico, que lhe determinar, de maneira irrevogvel, asformas de pensar e de sentir. O estatismo espartano ser uma espcie de reao poltica aesse absolutismo teolgico, mas servindo -se do mesmo processo de absoro. Somente ademocracia ateniense abrir possibilidades a um individualismo, to novo e to fascinante, queacabar por embriag-la, fazendo-a perder-se nos excessos do liberalismo.

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    Nos Estados Teolgicos, a estrutura poltica assemelha -se estrutura metafsica ou divina. AReligio e o Estado se modelam reciprocamente, uma sobre o outro, e vice-versa. A classesacerdotal, racionalmente organizada, elabora os mitos no plano intelectual, criando a teologia,estruturando o ritualismo, estabelecendo a genealogia dos deuses e as for mas de relaesentre estes e os homens. A teogamia egpcia, de que j tratamos, um dos mais perfeitosexemplos dessas formas de relaes: a genealogia divina se prolonga na genealogia humanados faras, graas fecundao da rainha por um deus. Amalgamados assim os dois poderes,o temporal e o divino, na prpria carne dos monarcas, os Estados Teolgicos tornam -semonolticos. Ainda na Grcia vemos isso: a figura humana de Zeus, na sua corte olmpica,refletindo no espao a estrutura poltica da nao.

    Murphy acentua esse aspecto do horizonte civilizado, da seguinte maneira: "No horizonte quechamamos civilizado, a religio reflete o sistema poltico e social: em geral poli testa, comum grupo de deuses semelhante ao Senado de uma Repblica o u, mais frequentemente, corte de um monarca supremo e mais ou menos autocrata. Os deuses so principalmente asforas da natureza, como anteriormente, sob o horizonte agrcola, mas, agora, maisprofundamente personalizadas e dotadas de uma realidade dram tica, que resulta doprogresso da reflexo mental, entre as classes que dispuseram de lazer nessas antigas naescivilizadas." Os Espritos presentes nesse horizonte - devemos acentuar, por nossa vez - soainda os da tribo e os do horizonte agrcola, ma s enriquecidos pela experincia e pelodesenvolvimento do pensamento abstrato.

    Um novo Esprito, entretanto, marcar esse horizonte. Murphy considera o seu aparecimento, ecom razo, como "acontecimento de imensa importncia". Trata -se do "Esprito Civilizado",como o chama Murphy, ou o que poderamos chamar Esprito de Civilizao. Esse Esprito secaracteriza por trs funes especiais: a capacidade de formulao de conceitos abstratos, deformulao de juzos ticos e morais, e de formulao de princpi os jurdicos. Dessas funessurgir o indivduo, como a mais bela afirmao do horizonte civilizado. Como vemos, ohomem se liberta de si mesmo, da sua condio humana, construda penosamente atravs dasestruturas sociais do horizonte tribal e do horizon te agrcola, procurando uma forma maisprecisa de definio de sua natureza. Na organizao tribal, ele se libertou da condio animale do jugo absoluto das foras da natureza, para elaborar a sua condio prpria. Naorganizao agrcola, ele aprendeu a dominar a natureza e submet -la ao seu servio, mascaiu prisioneiro da estrutura social. No horizonte civilizado, ele comea a romper os liames daorganizao social, para descobrir -se a si mesmo, o que s far quando se tornar um indivduo.

    A evoluo do Esprito est bem clara nesse imenso processo de desenvolvimento histrico dahumanidade. O homem se eleva progressivamente da selva civilizao, atravs de perodoshistricos que podem ser definidos como "horizontes", ou seja, como universos prprios , nosquais os diferentes poderes da espcie vo sendo treinados em conjunto, at que odesenvolvimento da razo favorea o processo de individualizao. Primeiramente, o homemse destaca da natureza atravs do conjunto tribal; depois, reafirma a sua indep endnciaatravs dos conjuntos mais amplos das civilizaes agrrias; e, depois, ainda, constri osconjuntos mais complexos das grandes civilizaes orientais. Nestes conjuntos, porm, ohomem descobre a possibilidade de destacar -se individualmente da est rutura social. O espritohumano se afirma como individualidade, como entidade autnoma, capaz de superar nosomente a natureza, mas a prpria humanidade.

    2. O ESPRITO DE CIVILIZAO - O homem supera a Natureza desde o momento em que setorna capaz de organizar-se em sociedade. Nesse momento, ele deixa de ser o animal gregriodas cavernas, para adquirir uma nova natureza, tornando -se o animal poltico de Aristteles, ouseja: um ser social. Dessa maneira, o ser biolgico superado por uma forma nova de ser. Odesenvolvimento humano um processo de transcendncia. Cada fase do processo

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    representa uma superao da anterior. Superar a Natureza, por tanto, no quer dizer apenasdomin-la, adquirir poder sobre as coisas exteriores, mas superar -se a si mesmo.

    Quando falamos da Natureza, referimo -nos, em geral, ao binmio Homem -Natureza, que umcontraste dialtico. De um lado colocamos o Homem, como um poder oposto ao que seencontra do outro lado, representando o mundo exterior. Essa, entretanto, uma con ceposimplista, pois a verdade bem mais complexa. O Homem no se ope Natureza como umapotncia contrria, mas como parte dela mesma. A oposio no externa, mas interna. Peloseu corpo, o Homem pertence a "res extensa" cartesiana, uma espcie animal. Pelo seuesprito, pertence "rescogitans", uma substncia pensante. Podemos dizer, com Espinosa,que o Homem uma simples afeco do Todo, em que se conjugam as modalidades extensa epensante da Substncia, o que equivale a dizer, com o apstol o Paulo, que em Deus estamose em Deus nos movemos.

    Natureza Universal, portanto, devemos opor a Natureza Humana, que uma simplesdiferenciao daquela. O processo evolutivo explica essa oposio, mostrando -nos que amatria e o esprito, ou o que K ardec chama o princpio material e o princpio inteligente doUniverso, modificam-se atravs do tempo. Essa modificao progressiva, assinalando umdesenvolvimento qualitativo, como podemos verificar pela evoluo fsica do planeta e dasespcies vegetais e animais que o povoam. Esta evoluo, por sua vez, encontra no Homem oseu ponto culminante. Quando dizemos, pois, que o Homem supera a Natureza, podemosacrescentar que essa superao no apenas do Homem, mas da prpria Natureza, queatinge na espcie humana a sua mais elevada expresso. Isso nos permite compreender,tambm, o que queremos dizer, quando falamos da superao da Humanidade. Nessa fasesuperior, a evoluo est alcanando um novo plano, e o homem que avana alm da craveiracomum, superando a sua poca, supera a sua prpria espcie.

    O Esprito de Civilizao, cujo aparecimento Murphy assinala como consequncia do horizonteagrcola, marca a fase de superao do animal -poltico, com a transformao do ser -social doHomem num ser-moral, e consequentemente a transformao da espcie humana numprocesso histrico. Simone de Beauvoir adverte, com razo, que a humanidade no umaespcie, mas um devir. No obstante, devemos acentuar que ela j foi uma espcie, e que porisso mesmo guarda as marcas da sua animalidade ancestral. As caractersticas do Esprito deCivilizao constituem os carismas dessa transformao profunda, que assinalam a passagemda espcie humana para o devir, ou seja, do concreto para o abstrato, da forma animal para aforma espiritual.

    Analisemos rapidamente essas caractersticas, que se apresentam como trs funes doHomem numa fase superior da sua evoluo. Temos primeiramente a capacidade deformulao de conceitos abstratos, que o resultado de uma longa evoluo da "rs cogitans",da coisa pensante cartesiana. A Histria da Matemtica nos ajuda a compreender esseprocesso, mostrando-nos o desenvolvimento da capacidade de contar, na vida primitiva, Opensamento do homem-selvagem revela a sua natureza concreta na inca pacidade para contaralm do nmero dos dedos das mos ou dos ps, nas tribos mais atrasadas. Somente nastribos mais evoludas o homem se torna capaz de utilizar -se de nmeros abstratos. A abstraomental , portanto, uma conquista da evoluo. E a Hist ria da Filosofia nos mostra que,apesar do enorme desenvolvimento intelectual dos gregos, foi Scrates quem descobriu oconceito e revelou a sua importncia.

    Depois de haver conquistado o conceito, ou seja, a capa cidade de conceituar, de formular aconcepo dos objetos materiais, o homem se torna capaz de ajuizar, de comparar, medir ejulgar as coisas. Somente nesse momento ele se torna apto a formular juzos ticos e morais, aelaborar regras para a sua conduta moral e a esboar um panorama tico das re laes

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    humanas e divinas. evidente que uma funo no decorre imediatamente da outra. Acapacidade de abstrao evolui lentamente para a de julgamento das coisas, e s numa faseadiantada da evoluo intelectual atinge a de formulao de juzos ticos e morais. o que nosmostra, por exemplo, a evoluo do pensamento grego, ao passar dos antigos fisilogos paraos sofistas, e destes para os filsofos da linha socrtica.

    A capacidade de formular princpios jurdicos, ou normas reguladoras da vida social, aparecebem cedo, antecedendo a capacidade de formulao dos juzos ticos e morais. Essaprecedncia natural e decorre das exigncias materiais da vida em sociedade. Entretanto,suas primeiras fases so ainda inconscientes, determinadas pelo mecanismo das exignciassociais. Somente no horizonte civilizado a funo se define, permitindo a elaborao verdadeirados princpios, que se incorporam nos primeiros cdigos, como o de Hamurabi, para depois sedesenvolverem em estruturas mais complexas. As necess idades de organizao do Imprioexigiram dos romanos o aprimoramento dessa funo, que caracterizou a sua civilizao.Todas as dificuldades de ligao das substncias cartesianas, que Espinosa tentou resolvercom a sua formulao pantesta, resolveram -se, assim, no no plano filosfico, mas no planohistrico. A Histria nos mostra a conjugao dos elementos materiais e espirituais nodesenvolvimento do processo evolutivo.

    O Esprito de Civilizao, ou o Esprito Civilizado, a que John Murphy se refere , , portanto, umproduto da evoluo da Natureza Universal, que aparece e se desenvolve no plano superior daNatureza Humana. Ao atingir o horizonte civilizado, o homem se transforma no ser moral quesupera o ser social, ou o animal poltico aristotlico , projetando-se em direo ao ser espiritualdo futuro. A humanidade deixa de ser uma espcie, para se transformar num devir. Por issomesmo, o mediunismo primitivo, o animismo e o culto dos ancestrais se refundem numa formanova de manifestao psquica, que o mediunismo oracular. Os juzos ticos, morais ejurdicos, remodelam as antigas for mas de relaes medinicas do homem com os Espritos,as maneiras rudimentares de intercmbio do mundo humano com o mundo espiritual,formalizando essas relaes e cercando-as de cuidados especiais no plano moral.

    3. MEDIUNISMO ORACULAR - Os orculos do minam todo o horizonte civilizado. Constituem,praticamente, o centro de orientao de toda a sua vida urbana e rural, poltica e religiosa.Mas que so os orculos? Sua definio no muito fcil, o que mostra a natureza transitriadessas instituies religiosas. As antigas formas de relaes medinicas esto em trnsito paranovas formas, e por isso mesmo apresentam, na sua constituio oracular, evidentementesincrtica, motivos para diferentes interpretaes, dificultando a sua definio.

    O orculo s vezes a prpria Divindade, outras vezes a resposta dada s consultas, osanturio ou templo, o mdium que atende aos consulentes, ou o local das consultas: umbosque sagrado, uma gruta misteriosa, uma fonte miraculosa. A palavra serve para designartodas essas coisas, uma de cada vez, ou todas em conjunto. Porque a mentalidade popularno sabe ainda distinguir a fora misteriosa que age, nem os seus meios de ao . A Divindadepode falar por si mesma, como pode estar encarnada no santurio, no templo, na trpode, napitonisa ou nos elementos da natureza.

    Os orculos so procurados por todos: reis e sbios, guerreiros e comerciantes, homens emulheres do povo. Nisso, esto todos de acordo, porque todos reconhecem e res peitam apresena de uma fora sobrenatural nesses locais sagrados. A "lei de adorao", de que trataKardec, atinge nos orculos uma forma de sntese, reunindo as conquistas efetuadas ao longode sua evoluo nos horizontes anteriores. Esto ali presentes, e mescladas, as formassucessivas de desenvolvimento da lei, que encontramos nos horizontes tribal e agrcola. Aconcepo anmica do mediunismo primitivo, o culto dos ancestrais, a deificao doselementos naturais, podem ser facilmente identificados. Os prprios elementos larvares,

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    rudimentares, da magia e da religio, esto ali presentes: a litolatria, a fitolatria, a zoolatria, naadorao de pedras, de guas, de rvores e bosques, de animais e d ivindades semianimais.

    Por outro lado, as conquistas mentais do homem, na longa evoluo que realizou, desde a eratribal at a civilizao, constituem a fora aglutinadora desses elementos. A capacidade deabstrao mental, o desenvolvimento tico e a f ormulao de normas jurdicas, responsveispela individualizao, modelam os elementos aglutinados, dando as sim uma estruturacomplexa ao processo de comunicao medinica. O fenmeno natural, de intercmbiomedinico, artificializa-se, O processo de racionalizao, por outro lado, exige a elaborao decosmogonias. Os orculos no so, portanto, formas simplrias de culto religioso, ou simpleslocais de consulta medinica. Sua estrutura, muitas vezes bastante complicada, alicera-senuma concepo do mundo.

    A natureza vaga dessa concepo corresponde prpria natureza sincrtica da instituiooracular. O fenmeno medinico aparece nela como um mistrio. Nada o explica, nem podeexplic-lo, nem deve atrever-se a tanto. O tabu tribal se impe de maneira mais vigorosa emais ampla, agora desenvolvido numa forma racional, que a concepo do sagrado. Ahumanidade se encontra, nessa fase, como um adolescente, que reelabora em seu ntimo ossonhos, os temores e as esperanas provenientes das primeiras visual izaes do mundoexterior. A fase infantil de indiferenciao psquica, vivida coletivamente no horizonte tribal,exerce ainda a sua influncia sobre as cosmogonias oraculares.

    Curioso notar-se que no h, nos orculos, aquilo que chamaremos de individual izaomedinica. Embora exista o mdium, ora chamado de orculo, ora de pitonisa, e emboraexista uma entidade comunicante, as mensagens so dadas atravs de processos impessoais.s vezes, o murmrio da fonte que responde ao consulente; de outras vezes, o rumorejardo bosque ou os sons misteriosos de uma gruta; e quando o mdium responde diretamente,sua resposta imita os rumores co nfusos da natureza. Em todos os casos, a resposta dependeda interpretao sacerdotal. H , portanto, um corpo de sacerdotes que responde, de maneiracoletiva, s consultas oraculares. As excees representam casos de avano do processoevolutivo, no sentido da individualizao.

    O mediunismo oracular , portanto, uma forma de transio para o culto individual dosEspritos, que por sua vez exigir a individualizao medinica, j definida em casos tpicos,como o da Pitonisa de Endor, de que nos fala a Bblia. A Histria das Religies nos mostra queo culto dos ancestrais foi inicialmente coletivo, os espritos dos mortos c onsiderados emconjunto e assim adorados, como no caso dos "parentum" e dos "manes" romanos. Aindividualizao se efetua lentamente, evoluindo as coletividades humanas, como crianas emdesenvolvimento, da "indiferenciao psquica" para as fases superior es da racionalizao. Osorculos representam, no horizonte civilizado, esse momento de transio.

    4. OS ARQUTIPOS COLETIVOS - A transio do mediunismo coletivo - claramenterepresentado nos orculos e nos antigos mistrios egpcios, babilnicos ou greg os - para omediunismo individual, mostra -nos a existncia de grandes idealizaes coletivas, que souma espcie de sonhos da humanidade. Esses sonhos apresentam-se em todas as pocas,desde a fase tribal, e aprimoram -se com o desenvolvimento da civiliza o. Jung chamou-os, nasua teoria do inconsciente coletivo, de "arqutipos coletivos". Os cticos e os materialistasservem-se desses arqutipos para negarem as grandes profecias religiosas e a prpriaexistncia da realidade espiritual. Vejamos como o Esp iritismo encara esse problema.

    Os arqutipos so, para Jung, os "complexos" da humanidade, produzidos por grandestraumas coletivos. Assim como os traumas infantis produzem os chamados complexos

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    psicanalticos, as condies coletivas por que passou a huma nidade, em suas fases dedesenvolvimento primitivo, teriam produzido os arqutipos. Como se v, as analogias doorganicismo spenceriano, tantas vezes ridicularizadas, encontram novas aplicaes em nossosdias. Um desses arqutipos de Jung a lenda do dil vio universal encontrada nas maisdiversas regies do globo. O dilvio bblico de No tem o seu correspondente, por exemplo, nodilvio assrio de Gilgamesch ou no dilvio grego de Deucalio. E este ltimo nos oferece aorigem lendria dos orculos gregos, que descendem, entretanto, dos orculos de civilizaesmais antigas.

    Para o materialista, essas coincidncias histricas desvalorizam pr completo a teseespiritualista, que se reduz a um rosrio de lendas e de supersties mais ou menosracionalizadas pelos grupos sacerdotais, atravs dos tempos. Para o esprita, pelo contrrio,essas coincidncias revelam a autenticidade dos arqutipos, como grandes vises coletivas derealidades espirituais, que no puderam ser compreendidas na infncia da humanidade. Assimcomo a criana, nas fases de descontrole emocional e insegurana da razo, elaborainterpretaes fantsticas de ocorrncias reais, assim tambm procedeu a humanidade emsuas fases primitivas. O fantstico das interpretaes no nega a realidade dos fatos, e acoincidncia histrica serve para confirmar essa realidade.

    Deucalio, o No grego, salvou -se numa barca, levando consigo sua esposa Pirra. QuandoZeus deliberou acabar com a espcie humana, em consequncia da impiedade que avassalavaa terra, Deucalio foi avisado e conseguiu escapar. Da mesma maneira que No, navegousobre o dilvio e depois de nove dias aportou nas encostas do Parnaso, como aquele no monteArarat. Deucalio e Pirra desceram da montanha para consultar um orculo, que osaconselhou a cobrirem a cabea e atirarem pedras para trs. A terra estava despovoada pelodilvio. As pedras que Deucalio atirou converteram -se em homens, e as de Pirra emmulheres. Assim, o mundo p de ser novamente povoado. Depois, o casal teve um filho,Heleno, que deu origem raa helnica, to privilegiada quanto o seria a raa hebraica.

    O nome de Apolo, o deus clssico dos orculos, recebe em Delfos um acrscimo: o cognomePtico. Esse acrscimo corresponde a outro arqutipo. E que aps o dilvio apar eceu na regiouma serpente gigantesca, que tudo avassalava. A serpente Piton, que foi morta por Apolo,como So Jorge, mais tarde, mataria o Drago. Apolo Ptico tinha uma intrprete humana: apitonisa, a mdium grega dos orculos. Os textos sagrados do j udasmo e do cristianismoreferem-se a pessoas tomadas pelo Esprito de Piton. Os orculos gregos, como vemos,nascidos do Dilvio de Deucalio, projetam -se no mundo hebraico, atravs dos intrpretespticos, dos quais podemos apontar, no Velho Testamento , o caso da Pitonisa de Endor, e noNovo Testamento, a da moa "tomada" por Piton, que acompanhava Paulo, segundo o Livrodos Atos.

    Kardec oferece-nos, em "O Livro dos Espritos" , um exemplo da origem concreta dosarqutipos de Jung, ao considerar, no cap tulo terceiro do Livro 1, o dilvio bblico de No comouma inundao parcial. As escavae s arqueolgicas de "sir" Charles Leonard WolIey,realizadas muito mais tarde, em 1929, ao norte de Ba sora, prximo ao Glfo Prsico, para adescoberta da cidade de Ur, parecem confirmar a tese de Kardec. Ao encontrar a camada delodo que cobria as runas de Ur, "sir" Woolley declarou que havia encontrado os restos dodilvio bblico de h quatro mil anos. Esse dilvio, atingindo uma vasta regio, teria produzidoum trauma coletivo, de que resultaria o "com plexo" ou "arqutipo " coletivo da lenda diluviana.

    Resta-nos perguntar, naturalmente, se essa localizao do dilvio no vem contrariar auniversalidade da lenda. Kardec explica, entretanto, que "a catstrofe par cial foi tomada por umcataclisma geolgico" O mesmo que aconteceu em Ur, podia ter acontecido em Delfos e emoutros locais, produzindo o mesmo abalo emocional em coletividades diferentes, cada uma das

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    quais considerava a sua regio particular como sendo o prprio mundo. Sabemos que a faltade comunicaes isolava os povos, e isso at bem mais tarde, como vemos pela histria dosdescobrimentos martimos, no incio da era moderna. A realidade concreta da inundao,ferindo a imaginao dos povos, mistura -se com a realidade abstrata ou espiritual, que adeterminao "krmica" da "prova". A lenda do dilvio reproduz, por toda parte, uma alegoriaespiritual, advertindo os homens quanto s exigncias da evoluo, que se traduzem nanecessidade de espiritualizao.

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    Captulo 4

    HORIZONTE PROFTICO: MEDIUNISMO BBLICO

    1. SUPERAO DO GREGARISMO - O gregarismo primitivo permanece, como vimos, at ohorizonte agrcola, passando ao horizonte civilizado, ainda bastante vigoroso. Mas neste ltimoj se verifica a ruptura da homogeneidade gregria, com o aparecimento do individualismo. Oshomens tomam conscincia de si mesmos, de sua potencialidade individual, e vo aos poucosrompendo as malhas do rebanho. O exemplo e o ensino dos mais adiantados estimulam osque vm na retaguarda, e a fascinao do domnio prprio, o prazer e a novidade do controleautnomo, encorajam os que se iniciam na individualizao.

    O horizonte proftico, que assinala o avano da humanidade alm do horizonte civilizado, omundo da individualizao. Assim como a criana, ao tomar conscincia de si mesma, aps aprimeira infncia, mostra-se encantada com a possibilidade de se dirigir sozinha e fazer o quequer, assim tambm o homem -gregrio, resultante natural da evoluo do homem -tribal,encanta-se com as possibilidades da individualizao. Nada mais justo, portanto, que osexcessos e abusos que caracterizam o indivduo greco -romano e o profeta hebraico. Elesmanejam um instrumento novo, uma nova mquina, e se embriagam na liberdade recm-adquirida.

    Liberdade bem o termo, pois a individualizao representa a libertao do rebanho. Ohomem que se individualiza aprende a pensar por si mesmo, a escolher, a julgar, no sesubmetendo mais aos moldes coletivos. Ao mesmo tempo, liberta -se dos instintos, da foraabsorvente das necessidades da espcie, que o escravizaram no gregarismo. A capacida de deabstrao mental libertou-o do concreto, da sujeio matria. A capacidade de formulao dejuzos ticos, jurdicos e religiosos, transformou-o em juiz da tradio, do meio social e de simesmo. O poder de racionalizao o erigiu em senhor da sociedade e da natureza. Nada maisjusto que ele agora se imponha ao mundo, em vez de submeter -se s contingncias e scircunstncias. Descobrindo o seu prpr io poder, e conquistando a habilidade de manobr -lo aseu talante, o homem civilizado eleva -se ao plano do profetismo. J no apenas uma ovelhado rebanho humano. algum que ergueu a sua cabea sobre a turba e viu-se capaz de julg-la.

    Essa nova condio explica o aparecimento, no mundo que se estende, mais ou menos, dosculo nono ao terceiro, antes de Cristo, das grandes individualidades de sbios, msticos,poetas e profetas, n uma vasta rea de grande desenvolvimento da civilizao. Murphyentende que essa rea abrange o chamado Frtil Crescente, que vai da Grcia e o Egito,passando pela Palestina e a Mesopotmia, at a ndia e a China. Nos lim