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O fazer-se professora: as contribuições de Thompson aos estudos sobre a
profissionalização feminina em Feira de Santana
MAYRA PANIAGO SPINOLA CARDOSO *1
A cidade de Feira de Santana, situada entre o Recôncavo baiano e o Sertão nordestino,
era, até o fim dos anos de 19402, uma cidade com uma economia basicamente voltada para a
pecuária e o comércio3. Esta dominância econômica proporcionava uma identificação muito
forte de alguns setores da cidade com suas raízes sertanejas, o que para outros setores,
representava a ideia de atraso e apego a um conservadorismo arcaico, uma certa resistência ao
novo. Esse conflito acentuou-se na virada dos anos 50 com a emergência de algumas mudanças
promovidas por uma nova articulação política nacional em torno do Plano de Metas instituído
pelo presidente Juscelino Kubitschek, em que havia uma tentativa de consolidar um projeto
modernizador e integrador nacional no interior do país. Entretanto, estas modificações
econômicas conferiram alterações no perfil da cidade, seja com a ampliação de ruas e avenidas,
ou pela construção de espaços que pudessem abrigar ou adaptar a população a este novo
contexto. Mas, tais mudanças não permitiram que a população em geral delas se beneficiassem.
Oliveira (2008: 21) aponta, em seu estudo que “nos dois últimos anos dos anos 60, a
cidade foi beneficiada com a instalação de serviços e instituições que a tornaria atrativa para
o segmento industrial”, e enumera, para exemplificar essa modernização, a inauguração do
SENAI, a expansão do serviço de energia elétrica, a instalação do 35º Batalhão de Infantaria, a
criação da Faculdade Estadual de Educação, a elaboração do Plano de Desenvolvimento
Limitado Integrado. Somando a essas inovações, inaugura-se a BR 116 (Rio-Bahia) em 1950 e
a BR 324, ligando Feira de Santana a Salvador. Como indica a autora, a inserção de Feira de
Santana no cenário nacional implicou, para a sociedade feirense, reorganizar a cidade e o seu
cotidiano, alterando hábitos e construindo representações associadas a urbe comercial,
progressista e moderna (OLIVEIRA, 2008: 20).
* Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Bahia, Mestrado em História. 2Sobre as origens da cidade, ver o trabalho de ANDRADE, Celeste Maria Pacheco de. Origens de povoamento de
Feira de Santana: um estudo de história colonial. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da
Bahia: Salvador, 1990. 3Sobre o tema: OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. De empório a princesa do sertão: utopias
civilizadoras em Feira de Santana (1819-1937). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da
Bahia: Salvador, 2000. SILVA, Aldo José Morais. Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana:
elementos para o estudo da construção de identidade social no interior da Bahia, 1933-1937. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia: Salvador 2000.
2
Entretanto, estas modificações econômicas conferiram alterações no perfil da cidade,
seja com a ampliação de ruas e avenidas, ou com a construção de espaços que pudessem abrigar
ou adaptar a população a este novo contexto. Mas tais mudanças não permitiram que a
população em geral delas se beneficiasse (CRUZ, 1999)4.
A criação da Escola Normal de Feira de Santana5 e a sua inauguração em 1927, no
mesmo contexto da recriação da Escola Normal de Caetité, cidade localizada no Alto Sertão
baiano, em 1926, estavam previstas no artigo 119 da Lei 1.846, de agosto de 1925, na
denominada Reforma Anísio Teixeira (BARROS e ALMEIDA, 1999). Em 1935 a
denominação da Escola Normal de Feira de Santana foi alterada para Escola Normal Rural de
Feira de Santana. Em 1949 passou a se chamar Escola Normal e Ginásio Estadual de Feira de
Santana. A partir de 1958, Escola Normal e Colégio Estadual de Feira de Santana. E em 1962
sofreu mais uma alteração, mantendo até hoje o nome de Instituto de Educação Gastão
Guimarães6.
Anísio Teixeira – Diretor Geral de Instrução Pública do Estado da Bahia, em 1924 –
afirmou, em relação necessidade da criação das escolas normais.
De todas as grandes questões em actual período de revisão, no systema escolar
bahiano nenhum sobreleva em importância à formação do professorado [...].
Sempre fundamental, essa peça de machina escolar ganhou modernamente
um relevo mais extraordinário, uma vez que a escola se transformou em uma
oficina governada por leis scientificas de physichologia. (TEIXEIRA, 1928,
p. 88, apud SOUSA, 1999, p. 35)
Nesta época, os discursos dos educadores brasileiros comumente denominados na
História da Educação como escolanovistas7 buscavam sintonizar as práticas escolares, assim
4CRUZ, Rossine Cerqueira da. A inserção de Feira de Santana (Ba) nos processos de integração produtiva e de
desconcentração nacional. Tese (Doutorado em Economia). Universidade Estadual de Campinas: Campinas,
1999. Neste estudo o autor traz uma análise importante, dentre outras, sobre como as mudanças econômicas
mantiveram as estruturas sociais vigentes, não proporcionando dentre outras demandas, a desconcentração de
renda. 5Decreto publicado em Diário Oficial do Estado da Bahia, no dia 29 de janeiro de 1926.
6Detalhes sobre essas mudanças nominativas ver Sousa (1999), Cruz (2000); Barros e Borges (2001).
7 Em 1932, Fernando de Azevedo redigiu o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O texto foi assinado por
26 intelectuais, entre os quais AnísioTeixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de
Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles. O movimento inaugurado com a publicação do manifesto buscava
lançar um processo de renovação educacional sintonizado às mudanças políticas nacionais da época com a
ascensão de Getúlio Vargas à presidência do Brasil.
3
como a normatização de regras, leis e decretos, para formação de professores na perspectiva do
ideal de progresso da nação e da sociedade brasileira (SOUSA, 1999: 25).
O Decreto lei 1.846, de 14/8/1925, [buscava] a redivisão das circunscrições
escolares e a criação de escolas normais de Feira de Santana e Caetité, com o
objetivo expresso de interiorizar o ensino e urbanizar, educar e civilizar os
sertões.
A criação de novas escolas normais no estado da Bahia ocorreu em meio ao processo,
na sociedade baiana, de fortalecimento de camadas sociais intermediárias, que buscavam, para
os seus filhos, uma educação capaz de garantir ascensão social. Naquela época, os filhos das
elites almejavam uma educação propedêutica para o acesso às Faculdades de Medicina,
Engenharia ou Direito. Em seu estudo sobre as normalistas em Feira de Santana, entre os anos
de 1925 e 1945, Sousa (1999: 37) argumenta que na cidade, nesta época
ocorreu uma crescente emergência dos segmentos sociais dedicados à criação
e ao comércio de gado e à distribuição de manufaturados para a microrregião.
Eles, até 1927, quando foi criada a Escola Normal na cidade, enviavam suas
filhas para fazer o Curso Normal na capital, fosse na Escola Normal da Bahia,
fosse no Educandário dos Perdões ou no Educandário do Sagrado Coração de
Jesus8.
Argumento que, inaugurada no final da década de 1920, a Escola Normal em Feira de
Santana serviu para atender aos interesses de grupos sociais locais, que viviam um período de
prosperidade econômica e, consequentemente, uma época de ampliação da diversidade de
camadas sociais com interesses próprios em relação ao desenvolvimento das suas atividades
econômicas. A Escola Normal na cidade serviu então para atender à necessidade, tanto de
estudo de moças provenientes de várias cidades circunvizinhas, que por muitas razões não
poderiam estudar em Salvador, como também para formar e instruir profissionais / mestras e
mestres que trabalhariam com o ensino primário (CRUZ, 2000).
No interior do estado da Bahia, boa parte da educação estava sob a orientação de
professores leigos e o número de escolas na zona rural não era condizente com o número de
8De acordo com Sousa (2001: 35) os colégios para os quais eram enviadas meninas e moças do interior do estado
para fazer o magistério na Capital eram “o Educandário do Santíssimo Sacramento, no Convento dos Perdões, na
freguesia de Santo Antônio Além do Carmo ou no Sagrado Coração de Jesus, na freguesia de Nazaré”, ambos
particulares. Como escola pública a Escola Normal da Bahia, que fora instalada em 1841 pelo governo provincial
da época, e como era costume a maioria dos alunos era do sexo masculino. Somente em 1850, as moças passaram
a frequentar a Escola Normal, mas em horários diferentes dos homens.
4
habitantes destas áreas (CRUZ, 2000). Sobre esta questão o Jornal Folha do Norte publicou em
06 de dezembro de 1930 a seguinte matéria.
E bem que saibamos não corresponder o número atual de escolas primárias à
necessidades da alfabetização da vultuosa população infantil em todo o vasto
território baiano. [...] A carência de escolas normais de estabelecimentos de
ensino onde se aprenda a ministra conhecimentos imprescindíveis ao
indivíduo neste século e no atual momento de civilização é evidente, é
claríssima. (Jornal Folha do Norte, n. 1116, p. 1, apud CRUZ, 2000: 47).
A importância econômica de Feira de Santana em relação às cidades circunvizinhas,
nesta época e em épocas anteriores e posteriores, resultaram na confluência cultural e
educacional para esta cidade. Por isso a demanda por escolas formadoras de professores na
região para atender ao aumento do contingente de educandos e educadores resultou na
inauguração da Escola Normal de Feira de Santana em 1º de junho de 1927, necessárias à
ampliação da população local. Durante o período delimitado nesta pesquisa muitas (os)
estudantes vieram de várias localidades para cursarem o Magistério.
As depoentes que contribuíram para a pesquisa chegaram a mim por caminhos
diferentes. O fato de ser professora do Instituto de Educação Gastão Guimarães contribuiu para
que obtivesse informações de algumas colegas mais velhas a respeito de antigas normalistas
atualmente aposentadas. O primeiro contato feito com uma das depoentes não foi bem sucedido
porque a professora, apesar de ter conversado longas horas comigo em sua casa, não consentiu
gravar uma entrevista para que pudesse registrar suas memórias. Parti então para outros contatos
pessoais e, por intermédio de colegas, cheguei à professora mais antiga e dela vieram o contato
com mais uma e depois outra, até que completasse o círculo de entrevistadas.
De forma geral todos os contatos foram marcados por um padrão. No primeiro momento
em que estive com todas elas expus os motivos da entrevista e apresentei em linhas gerais os
objetivos do trabalho. Procurei estabelecer um diálogo direto e sem rodeios, o que possibilitou
construir entre entrevistador e entrevistado uma relação de confiança (PORTELLI, 1997). No
segundo encontro conversamos diretamente sobre as memórias mais evidentes do período em
que eram estudantes e, posteriormente, da fase de professoras. Esta intimidade construída
proporcionou acumular dados para formular, de maneira direta, as perguntas que faria durante
a entrevista e demonstrar que havia interesse pelas informações que me apresentavam. Na
medida em que estas conversas aconteciam, as tardes se prolongavam até o anoitecer, tamanha
era a vontade das professoras de falar sobre suas vidas. Era como se necessitasse de uma escuta
5
atenta. A maioria delas, viúvas, morava praticamente sozinha e a presença de outra pessoa
pronta para ouvir as fazia reviver cada momento do passado. Deste encontro marcávamos o
próximo em que prometia mostrar algumas fotografias.
Foi graças a elas – as fotografias - que estas memórias vinham à tona. Os álbuns de
formatura e os documentos que muitas delas dispunham relativos às informações detalhadas
sobre o ingresso no mundo do trabalho ou momentos marcantes de suas vidas profissionais
foram peças importantes ao florescimento das lembranças. Impressionou-me a quantidade de
pequenas cadernetas de anotações diversas. Nelas, as professoras registraram, ao longo de suas
trajetórias profissionais, todo histórico das suas vidas de trabalhadoras. Eram dados que, aos
poucos foram descortinando um universo bem pessoal. Nelas encontrei as datas de publicação
de portarias em Diário Oficiais do estado do Bahia, além da publicação de remoção e
transferências.
No terceiro encontro acontecia a entrevista. Vestida de forma mais formal, diferente dos
encontros anteriores, a professora parecia aguardar o inicio de um ritual cerimonioso. Na minha
percepção, as entrevistas constituíram-se em momentos muito importantes, a ponto de serem
responsáveis pelo cancelamento de consultas médicas e encontros familiares. No transcorrer da
gravação a conversa fluía como se um filme estivesse passando em nossas cabeças. Muitos
momentos foram marcantes. Emocionei-me várias vezes em quase todas as entrevistas. Não
saberia contar aqui o que sentia: era uma mescla de satisfação e responsabilidade, ao mesmo
tempo. Passei a considerar-me guardiã destas memórias. Muitas confidências foram feitas
naqueles momentos. Confesso que às vezes sentia-me envergonhada de ter que, em dado
momento, expor alguns sentimentos e lembranças tão íntimos.
Fiz o recolhimento de depoimentos de sete professoras. Ao todo, foram cinco horas e
trinta e seis minutos de gravação, que resultaram em um total de quarenta e duas páginas
transcritas.
Todas as professoras cursaram o Magistério integralmente na Escola Normal de Feira
de Santana ou no Instituto de Educação Gastão Guimarães. Seus nomes completos não puderam
ser utilizados a pedido da maioria delas, que justificaram esta posição por causa da citação, em
seus depoimentos, de nomes de pessoas que ainda estão vivas, ou pertencentes a famílias muito
conhecidas na cidade. O que, de acordo com a argumentação de algumas, poderia causar certos
constrangimentos na revelação de informações até então desconhecidas. Por isso optei por fazer
a abreviatura dos seus nomes e sobrenomes.
6
Nesta discussão portanto, consideramos fundamental a contribuição das leituras
thompsonianas nos estudos relativos à História da Educação (FARIA FILHO, 2008), em nosso
caso particular, relativas aos costumes da sociedade da época de se atribuir às mulheres o papel
de educadoras de crianças. Vem também do historiador inglês Edward Palmer Thompson o
aporte teórico relativo ao fazer-se normalista, enfatizando o traço fundamental nesta pesquisa
que é a construção da identidade da professora a partir das experiências dessas mulheres em
suas salas de aula. No fazer-se entendemos por “um processo ativo, que se deve tanto à ação
humana como aos condicionamentos. A classe operária não surgiu como o sol numa hora
determinada. Ela estava presente no seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 1987: 09).
Veremos que muitos depoimentos apontam para a perspectiva de que ser professora e
tornar-se professora era quase que uma via de mão única para que as mulheres pudessem dar
um sentido às suas vidas – unindo o trabalho ao o casamento e a maternidade - pelas condições
especificas do magistério no referente ao ritmo das aulas; horário partido em turnos, férias
escolares, possibilidade de licenças médicas e ou puerperais mais longas. Um elemento
importante que aparece nas histórias de vida das professoras que foram sujeitos desta pesquisa
é a presença marcante da figura do marido como condicionante da escolha profissional. O
marido ou até mesmo o pai asseguravam que a mulher adotaria uma profissão vista como
feminina por causa da representação maternal que o magistério significava9.
O que ocorre neste processo de formação é a construção da consciência de classe – no
caso desta pesquisa em particular -, e a percepção das condições especificas do magistério-
sendo resultado das experiências de classe - enquanto mulher dos segmentos trabalhadores, que
devem articular as responsabilidades da produção e de reprodução social da força de trabalho,
enquanto experiências femininas no fazer de mãe, esposa e professora. No Prefácio da
Formação da classe operária, Thompson (1987: 10) afirma que:
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências
comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e
geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em
grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou
entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas
experiências são tratadas em termos culturais: encarna tradições, sistemas de
valores, idéias e formas institucionais.
9 A necessidade de tratar desse aspecto reside em analisar este tema do ponto de vista da ruptura com a ‘natural’
tendência feminina profissional ao caress, ou seja, termo traduzido literalmente do inglês para designar cuidado.
Ver o clássico artigo de Demartini (2002) que trata deste tema.
7
É notório que o historiador se referia à formação da classe operária no contexto de
mudanças econômicas para a efetivação do capitalismo inglês – o século XVIII. Aqui, estamos
tratando não necessariamente relações de produção, mas relações sociais inseridas em uma
conjuntura onde os valores culturais apontavam para o ideal de conduta profissional com traços
tipicamente femininos, num contexto de trabalho, que se não diretamente “produtivo”, essencial
a reprodução social ao educar as novas gerações. Apesar dos discursos das professoras terem
finalidades diversas na escolha pelo magistério, eles se aproximam entre si na medida em que
houve a demonstração de uma consciência na decisão pelo ingresso à Escola Normal e no futuro
de trabalhadoras da Educação.
A partir daqui apresento informações diversas sobre o cotidiano de trabalho das
professoras. Para isso utilizo algumas fotografias como fonte de investigação e também como
instrumento importante no auxílio à ativação das lembranças / memórias das professoras no
momento dos seus depoimentos. As fotografias marcaram o fim da etapa de estudantes e o
começo da fase de profissionais do magistério primário. O período de labuta, de trabalho
profissional.
“Na labuta da sala de aula, tornei-me professora”. Esta frase foi dita por uma
professora numa quente tarde de segunda-feira em sua casa, situada à Avenida Contorno, num
dos bairros pouco distantes de centro comercial de Feira de Santana, que hoje se constitui numa
das maiores cidades do nordeste brasileiro. Contrastando à quentura daquela tarde de abril, fui
convidada a me sentar numa larga cadeira de madeira em uma varanda à sombra de grandes
abacateiros cujos frutos já apareciam.
É uma senhora de setenta e poucos anos, dona de casa, pele muito clara e castigada do
sol, que mais tarde, ao longo da nossa conversa, soube que fazia longas caminhadas rumo à
labuta para se chegar à escola onde trabalhava, no bairro da Conceição, na época considerado
zona rural. A frase da sua narrativa marcou nossa conversa porque expressa com muita
propriedade o fazer-se professora, numa demonstração evidente de que, assim como hoje, é no
trabalho cotidiano que o professor prepara a si mesmo para a sala de aula.
Não se trata, como a professora mesma diz de um grande desprezo pelo que se aprende
num curso de magistério, mas evidencia uma situação de certo despreparo dos métodos de
ensino da Escola Normal para a formação das futuras professoras. Considerei a expressão
apropriada para um começo de análise das narrativas sobre o percurso de profissionalização de
8
professoras por causa também da forte presença da ideia do suor do trabalho, das longas manhãs
e tardes com dezenas de crianças em salas de aula com péssimas condições de funcionamento.
O tornar-se, aqui utilizado, traz uma evidência forte de uma das grandes características
das narrativas que expressam o conhecimento de si10 que é a clareza que o indivíduo tem do seu
processo formativo profissional.
No fazer-se também entendemos “por um processo ativo, que se deve tanto à ação
humana como aos condicionamentos. A classe operária não surgiu como o sol numa hora
determinada. Ela estava presente no seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 1987). Trazendo
para nossa pesquisa, o fazer-se implica na construção do significado social da normalista em
sua formação profissional inicial até a sua introdução no mundo do trabalho como professora.
Isto quer dizer que ao longo das décadas em estudo as professoras entrevistadas tiveram uma
noção de que a vida escolar delas estava diretamente ligada ao ingresso na Escola Normal.
Situadas inicialmente as considerações que justificam um título aspeado e em itálico,
passemos às análises dos depoimentos das professoras. Com exceção de uma professora, cuja
entrevista foi gravada em seu local de trabalho, todas as outras seis foram feitas no espaço da
casa delas.
Essa condição geográfico-espacial da entrevista foi fundamental para trazer à tona
muitas lembranças e memórias sobre os tempos de professora. São inúmeros os objetos dos
espaços domésticos que nos remetem à área de atuação dessas mulheres: porta-retratos, álbuns
de fotografias de formatura, fotografias do espaço escolar em algum evento especial – dia do
folclore, dia das mães, festa junina - e da sala de aula em atividades cotidianas.
Trabalhar como professora em uma cidade pequena tornou-a imersa em um jogo de
representações com vários simbolismos em relação ao comportamento de uma professora: sua
roupa, os horários de chegar em casa dentre outros.
E a gente ia para festa no clube, e era aquela distinção, naquele tempo “a
professora”, não é? Me lembro que no dia que eu cheguei para tomar posse,
depois fui lá na Coletoria, desci para casa de meu tio. Ia descendo e uma
senhora me chamou e disse: “Você é a nova professora?”. Eu disse: sou. Ela
se apresentou como mãe de duas professoras que já atuavam lá. Essa aqui é a
casa das suas colegas. Qualquer coisa que precisar. Me deu conselho, de
como é que deveria ser uma professora. Não deve se misturar com todo
10Sobre essa discussão ver SOUZA, 2006.
9
mundo. Professor é uma autoridade no local onde vive. Eu ia descendo e ela
disse que conheceu pelo jeito de vestir, de andar [dá risos].
Ser professora significava não se misturar. Era uma autoridade. A guardiã do saber,
depositária do conhecimento, aquela que levaria luz ao sertão (SOUSA, 1999), e livraria as
populações rurais da ignorância, não poderia se misturar com o povo da rua. Ela precisava ficar
resguardada dos males da rua.
Ao vir de volta para Feira de Santana, a professora teve dificuldade em encontrar local
de trabalho que fosse de fácil acesso a ela.
Queria me botar numa escola lá na Pedra do Descanso. Eu morava no Najé,
não tinha transporte em Feira, eu disse a ele: eu vou sair de casa às sete, vou
chegar lá, na Pedra do Descanso umas nove e meia, vou descansar, 10 eu
começo a aula, 10:30 eu saio para poder 12 horas estar em casa. O senhor quer
assim?
As distâncias eram um problema em Feira de Santana nos anos 60, apesar das
modernizações urbanas com a abertura de avenidas largas como é o caso da Avenida Maria
Quitéria e Getúlio Vargas, e com a duplicação da Avenida Presidente Dutra11. Havia ainda
grandes dificuldades de deslocamento para quem dependia de transporte coletivo, como é o
caso da professora.
O avanço do seu percurso profissional foi tornando sua carga horária cada vez mais
preenchida com vários espaços de trabalho, como pode ser visto a seguir:
Chegava ali em frente aos Capuchinhos saltava para dar aula a tarde toda.
Quando terminava as aulas dos Capuchinhos eu descia a pé, ia para o Colégio
Estadual. Uma amiga me levava café ou sopa e tal. Dava aula até 10 e tantas,
depois ia a pé – porque eu morava lá em cima na Brasília. Atravessava ali
naquela sinaleira, ia andando. Uma vez por outra um colega me dava carona,
ou por bondade ou quando coincidia a aula dele com a minha e uma outra
colega porque ia pra o mesmo lado. Não cansava não, sabe? Eu estava muito
nova, com muito sangue na veia, muita vontade.
Uma rotina de fato bem marcada por ritmos e horários definidos pelo seu trabalho
(SOUSA, 2006). O que estamos examinando neste momento é uma disciplina do trabalho numa
fase de transição em que a professora vivia, que era sua afirmação profissional ainda estudante
de um curso superior na UFBa. Ao que Thompson (2008: 289) denominou de maior
sincronização de trabalho e maior exatidão nas rotinas do tempo em qualquer sociedade, ao
explicar as mudanças que ocorriam na Inglaterra do século XVII. Mesmo o historiador tratando
de transformações econômicas, no âmbito da nascente industrialização inglesa e suas alterações
11 Sobre estas mudanças urbanas ocorridas na cidade de Feira de Santana, ver Oliveira (2008); Rossine (1999).
10
nos costumes desta sociedade, sua análise sobre a disciplinarização do tempo também podem
ser utilizadas aqui em relação à rotina da professora ao tentarmos compreender sua relação com
a profissão.
Em outra trajetória profissional a professora C.C.B. informou que
Fui para o Feira X, com mais vinte horas. Depois, com um ano, fui para o
Colégio Fróes da Motta, no bairro mesmo da Serraria. E no ano seguinte fui
para o Branca de Neve, passei dois anos lá, que foi quanto eu fui para o Ecilda
Ramos. E fiquei na Obra Promocional e no Ecilda Ramos até a aposentadoria.
Em nossa análise até o momento, todas as professoras lecionaram em mais de uma
escola e em mais de um turno de trabalho, onde um deles fora o noturno. Para muitas delas este
turno de trabalho permitia ficar em casa à tarde para acompanhar as tarefas escolares de seus
filhos.
E.S.M. fez uma narrativa sobre o início das suas atividades no magistério bastante
interessante.
Nessa época, 1953 a escola era isolada. Quem comprava o quadro de giz , na
minha escola mesmo, fui eu. Comprei a vassoura. Era uma escola no início do
Sobradinho, era bem distante naquela época porque não tinha transporte. Eu
ia a pé e voltava a pé. Então comprei tudo, quadro, pagava o aluguel da sala.
Era uma sala só, com crianças da 1ª à 4ª série. E COMO ERA PROFESSORA?
Em primeiro lugar não tinha grande eficiência, porque era um professor só
para atender a todas as idades de todas as séries, era difícil. Mas a gente
tentava. Alguns eram alfabetizados, uns iam mais outros menos...
Quase sempre o início dos trabalhos era muito difícil. A professora tinha que arcar com
todos os custos de sua sala de aula. Às vezes, quando dava, ela se juntava com outra colega de
outro turno e dividia as despesas, o que facilitava a vida das duas. Mas o ambiente não favorecia
aprendizagem conforme a professora indica. A sala de aula era multisseriada e com alunos que,
provavelmente tinham idades muito diferentes. Certamente elas faziam o que era possível fazer.
É possível que os recursos didáticos sejam também bem precários. Muitas delas afirmaram que
confeccionavam os cartazes, as cartilhas e fichas de leitura daqueles que estavam em idade de
alfabetização. As informações nos depoimentos indicam que as teorias didático-metodológicas
que eram vistas na época de normalistas quase nunca eram aplicadas, porque as escolas não
possuíam as condições necessárias para tal.
A mesma professora, em outro depoimento fala sobre seu turno de trabalho em outra
época.
Eu tinha que me desdobrar em todos os sentidos. Nesta época eu não tinha
carro, tinha que pagar um transporte para o colégio. Pela manhã eu ia paro
11
colégio e minhas filhas também iam, à tarde nós ficávamos em casa e à noite
meu marido ficava em casa e eu ia para o Ginásio Municipal. Chegava tarde.
A aula terminava 10 e 20, eu não tinha transporte próprio e o ponto de ônibus
era lá no final da Avenida Getúlio Vargas e muitas vezes o motorista só saía
quando enchia o ônibus. Eu chegava em casa umas onze horas da noite.
A rotina da professora nos convence de um cotidiano muito adverso. A proletarização
do trabalho docente provocou uma queda cada vez mais vertiginosa não só da qualidade de
ensino, mas principalmente houve uma queda na qualidade de vida do professor e da professora.
Estudos recentes realizados por entidades de classe12 mostram que tem aumentado o número de
professores acometido por doenças ocupacionais, assunto que movimentaria outra pesquisa.
A ampla jornada de trabalho e os baixos salários foram responsáveis pela desistência da
professora em cursar a Universidade.
Esta é uma das razões que eu não fiz a Universidade. Porque para eu fazer a
Universidade, eu tinha que sair de uma das escolas e reduzia salário. E era
difícil, como era que eu ficava?
A professora apontou em outro momento da entrevista, que seus dias de domingo eram
destinados ao trabalho. Aponto que atualmente esta continua sendo uma queixa constante por
parte dos professores e professoras – esta extensão da jornada de trabalho para o espaço
doméstico. Isso significa que esta jornada do professor ultrapassou desde sempre o âmbito do
espaço escolar. Considero que é necessário que as entidades desta categoria de trabalhadores
ampliem suas lutas envolvendo o reconhecimento das horas de trabalho em casa como horas
extras.
Meus domingos eram comprometidos. Eu não tinha domingo. O domingo era
para corrigir provas, corrigir trabalhos, preparar aulas, os domingos eram para
isso. E A FAMÍLIA? A família, de qualquer forma eu estava dentro de casa
trabalhando, as meninas brincando. Eu ficava entre uma coisa e a outra. Não
foi uma vida fácil não. Porque não tinha aquele negócio: domingo, dia de
lazer. Se tinha que preparar aula para a semana inteira? E era de um colégio e
de outro. Quando não tinha de um, tinha de outro.
Além destas questões referentes às longas jornadas de trabalho, as professoras
também discorrem sobre suas experiências pedagógicas propriamente ditas. Este é um elemento
que auxiliou na construção do perfil profissional da professora em geral porque foi por esta
12 Atualmente o Sindicato dos Professores no Estado da Bahia – SINPRO / BA, mantém uma Secretaria Executiva
/ Departamento que vem estudando as doenças que acometem com mais freqüência esta categoria profissional,
dentre as quais cito: disfonia, depressão, sentimento de abandono, suicídio, hipertensão, problemas circulatórios
dentre outros. A entidade mantém um banco de dados com publicações – artigos, dissertações, teses, estudos em
geral sobre a saúde do docente. Para outras informações específicas, consultar http://www.sinpro-
ba.org.br/saude/artigos_teses.htm.
12
experiência ao longo da historia do magistério brasileiro que as professoras / professores foram
se identificando enquanto classe. Para Thompson (1987: 10) “A classe acontece quando alguns
homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam
a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem
(geralmente se opõem) dos seus”. É esta perspectiva que alimenta a organização dos
trabalhadores nas entidades de classe e suas lutas por melhores condições salariais e de trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Maria Leda Ribeiro de e ALMEIDA, Stela Borges de. Escola Normal de Feira de
Santana: fonte para o estudo da História da Educação. In:
http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/110_maria_leda.pdf, Projeto
desenvolvido pelo Grupo de História da Educação do Departamento de Educação da
Universidade Estadual de Feira de Santana, julho de 1999.
CRUZ, Rossine Cerqueira da. A inserção de Feira de Santana (Ba) nos processos de
integração produtiva e de desconcentração nacional. Tese de Doutorado em Economia.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.
CRUZ. Antônio Roberto Seixas da. Mestras do sertão, reconstruindo caminhos percorridos.
Dissertação de Mestrado – UFBA: Salvador, 2000.
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