O Feitico de Aquila - Joan D. Vinge

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  • O FEITIO DE QUILA

    JOAN D. VINGE

    Traduo: Luza IbaezEdio em Epub: Exilado de Marlia(Ladyhawke, 1985)

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  • CAPTULO 1

    Ao nascer do sol, o cavaleiro de negro esperava no alto da colina,muito acima da cidade, como j havia esperado l no amanhecer anteri-or e no amanhecer anterior quele.Ele ajeitou o corpo na sela, com frio e cansado, observando o cuclarear e a nvoa acinzentada da manh elevar-se do vale abaixo.Quando a cerrao desfez-se, ele avistou as torres de ameias doCastelo quila surgindo em perspectiva, pontilhadas de dourado, comoum vislumbre do cu. Por um momento, aquela vista fez a saudadeoprimir-lhe o peito. Foi apenas um momento. Ele sorriu desoladamenteda prpria incapacidade em deixar de crer que essa viglia algum diateria fim ou lhe mostraria uma resposta.Agora, abaixo dele o resto da antiga cidade emergia da neblina.quila havia sido uma cidade florescente desde os tempos romanos -ainda ostentava seu velho nome romano que significava: "guia". Con-tudo, a Idade Mdia confinara suas casas apinhadas e as ruas estreitas,serpenteantes, dentro de soturnas muralhas de pedra, circundando-ascomo um fosso de gua negra e lenta, alimentada por um rio subter-rneo.Os campos fora dos portes da cidade tambm mostravam quaseidntica desolao.O outono chegara cedo esse ano, aps um vero causticante, quasesem nenhuma chuva.O ano anterior no havia sido melhor. A esta altura, os campos jhaviam sido despojados de todas as suas pobres colheitas, crestadaspela seca, que tinham conseguido sobreviver.A colheita do ano presente mal daria para alimentar os moradoresj famintos de quila durante o inverno, mesmo que seu Bispo nohouvesse tornado a aumentar os impostos, a fim de manter cheios seusprprios cofres e armazns. O espectro da fome assombrava as ruaslgubres da cidade. Contudo, enquanto a Igreja Militante governasse, opovo pagava e passava fome.

  • Somente a catedral, situada no corao da cidade, aindamantinha sua etrea beleza a plena luz do dia. Altas janelasde vitrais e incontveis bandeirolas de seda transformavamsuas paredes com santos enfileirados e os tetos abobadadosem uma viso do paraso - a mais aproximada do cu sobrea terra que jamais veriam os fiis ali reunidos para a missa.As faces esqulidas dos cidados de quila, iluminadaspelas velas, voltavam-se impassivelmente para o altar, to-dos conformados em dizer suas oraes. A msica do rgoinundava o espao acima deles e flua para as ruas,chegando at mesmo ao observador sobre a colina.O Bispo de quila estava diante do altar enfeitado, umafigura severamente resplendente em suas vestes de brocadobranco. Ele entoava o Credo da missa, em uma cantilenaaguda e sem tonalidade, que mais era um aviso do que umapromessa de redeno. Os fiis declamavam as obrigatriasrespostas em latim, palavras sem sentido que haviam decor-ado mecanicamente. Se alguns deles ousassem fitar o Bispodiretamente, era com constrangimento que notavam o con-traste entre a riqueza de seu vesturio e a doentia palidezde suas feies angulosas. Era um homem alto, j avanadona meia-idade, com o rosto mostrando os sinais dos anosde vida auto-indulgente, e os olhos brilhantes, plidos e im-placveis como gelo.Ele se virou para os dois coroinhas que esperavam, de pao seu lado, segurando um clice de ouro, incrustado de ji-as, prestes a ser abenoado pelo Bispo. Ele dissera sua con-gregao que aquele era o Santo Graal, e o achava to beloque deveria mesmo ter sido. Pagara tanto por aquele cliceque s podia s-lo. O Bispo era um homem com um sensoesttico altamente refinado.Estendeu a mo para os dois coroinhas, baixando os ol-hos para o anel, enquanto isso.Era de ouro macio, to grande e pesado que s cabiaem seu polegar. Seu modelo simples e slido continha umaesmeralda perfeita, do tamanho de uma azeitona. S aqueleanel lhe custara uma pequena fortuna, retirada, natural-mente, do dinheiro que extrara dos fiis em nome de Deus.

  • Entretanto, as necessidades de Deus no eram tomundanas nem to dispendiosas quanto as dele.Quando os coroinhas beijaram o anel e recuaram, umestalido surdo, semelhante ao eco de um tiro, penetrou nacatedral. O Bispo olhou para uma janela de postigos aber-tos.As pernas pendentes de trs corpos oscilaram silen-ciosamente de um patbulo, bem ao lado do Castelo quila,na praa da cidade. A msica do rgo evoluiu novamenteem torno dele e o Bispo recomeou a missa, despreocupada-mente.Nesse meio tempo, uma pequena multido dos cidadosmenos devotos de quila se reunira na praa. De olhos es-bugalhados, eles fitavam os corpos flcidos e pendentes detrs ladres que, de maneira abrupta, haviam feito as pazescom Deus. Os quatro guardas encarregados de trazer nov-os prisioneiros para a execuo permaneciam desconfiada-mente entre eles, esperando ordens posteriores de seu cap-ito. Os uniformes vermelho e negro destacavam-se em san-grento contraste contra as roupas andrajosas e remendadasda multido.Marquet, o capito da guarda, era um homem brutal, debarba escura e olhos to duros como seu temperamento. Seucorpo grosseiro e fortemente musculoso dava a impressode ter nascido para a brutalidade e a violncia. Marquetchefiava os guardas h dois anos, desde quando o capitoanterior havia sido acusado de traio e banido pelo Bispo,por motivos que nenhum deles compreendia bem. Seu an-tigo capito tinha sido um homem a quem respeitavam eadmiravam, e tinham-no servido bem. Marquet no rece-bia nem uma coisa nem outra - mas era temido, de maneiraque tambm se esmeravam em cumprir suas ordens. En-tretanto, medida que suas vidas e as vidas de todos emquila ficavam mais difceis sob o taco de Marquet, osguardas resmungavam sombriamente, que algum dia seuantigo capito ia voltar e clamar por vingana. Marquetouvia os murmrios, e como temia a mesma coisa, seu tem-peramento ficava ainda mais agressivo.

  • Agora, Marquet erguia os olhos para os patbulos, sor-rindo de satisfao vista dos corpos que oscilavam - trsinfelizes que haviam sido surpreendidos roubando cereaisnos armazns do Bispo. Em seu capacete, as asas douradasde guia, smbolos de seu posto, cintilaram luz do sol en-quanto ele assentia.- Aquilo os empanturraria - murmurou.O Bispo o promovera a capito por confiar em que elecumpriria suas ordens inflexivelmente...divertindo-se como que fazia. Marquet se virou para seu tenente:- Jehan! Os prximos trs!Jehan fez continncia e guiou seus homens pela praapavimentada de pedra em direo aos calabouos do Caste-lo quila. Penetrando em uma passagem subterrnea, fo-ram descendo cada vez mais em crculos pelos escorrega-dios e estreitos degraus cavados na rocha slida - a nicaentrada, fortemente guardada, para uma priso que tinhamficado conhecendo muito bem nos ltimos meses. O arficava mais mido e ftido enquanto desciam, e elescomearam a ouvir os gemidos dos prisioneiros maisabaixo.Os calabouos situavam-se em um vasto buraco, cava-dos nos alicerces rochosos do castelo, to profundos e in-expugnveis como os poos do inferno. Uma grade demadeira e ferro dividia a cmara em uma colmia de incon-tveis celas e jaulas, todas tendo uma ntida viso dos in-strumentos de tortura dos calabouos. Jehan gritou quandoos guardas chegaram ao fundo. O carcereiro-chefeaproximou-se em passos pesados, com uma tocha na mo,um molho* de chaves de ferro chocalhando em seu cinto.- Por que no construram uma forca maior? - res-mungou ele. - Assim no me amolariam tanto aqui embaixo.- Pelo menos, voc est aqui apenas de visita - disse umdos guardas.Ele prendeu o nariz. Jehan bufou. O carcereiroconduziu-os ao longo de corredores elevados, passando celaaps cela. Os gemidos e gritos extinguiam-se quando elespassavam; rostos fantasmagricos recuavam das gradescobertas de bolor escorregadio.

  • Os prisioneiros ocultavam-se na escurido, acreditandoainda que havia algo pior do que a existncia de mortos-vivos que agora levavam.Jehan parou diante de uma cela no mais profundo re-cesso do poo e perscrutou atravs da grade, em sbita eansiosa procura pela prxima vtima do patbulo. Ele re-cordava aquele particular prisioneiro, tinha-o encerrado alipessoalmente. O jovem ladro preste a ser enfocado lud-ibriara os homens da guarda durante meses, sempre con-seguindo escapulir, at que finalmente tinham-no cap-turado. Jehan ansiava ver aquele rato manhoso balanandona forca.Jehan olhou atravs do rendilhado das grades. Piscoudurante um longo momento para ajustar a viso penum-bra do outro lado. Conteve a respirao; o fedor de deje-tos humanos e doena eram insuportveis. Quando seus ol-hos se adaptaram, distinguiu dois vultos esfarrapados quese encostavam parede mais distante. Um deles olhava fixa-mente para diante, como se sua mente houvesse escapadodaquele buraco infernal, deixando o corpo para trs. Ooutro prisioneiro cantarolava por entre os dentes uma can-o desafinada, murmurando as palavras de modo inin-teligvel. Mesmo na escurido, Jehan sabia que nenhumdaqueles dois rostos sujos e cadavricos era o que pro-curava. Apertou-se contra as grades, pesquisando cadacanto da cela. No havia mais ningum ali dentro.- Phillipe Gaston? - chamou, perplexo. Virou-se para ocarcereiro. - Cela errada. Eu quero Phillipe Gaston, aquele aquem chamam de Rato.O prisioneiro que cantalorava comeou a cantar audivel-mente:- O rato, o rato...Foi embora de nossa casa...O carcereiro ergueu a tocha e examinou os arranhesquase elegveis na porta da cela.- Cento e trinta e dois, senhor. esta mesmo.- Ele fugiu - cantou o prisioneiro. - No h nenhum ratohoje... - Depois emitiu um riso contido fazendo um gestoabarcando a cela, com a mo ossuda.

  • Jehan tornou a apertar-se contra as grades, examinandomelhor os cantos penumbrosos da cela. Desta vez enxergoua grelha aberta do esgoto. Ofegou de boca aberta, semacreditar no que via. O buraco no teria mais de trinta cent-metros quadrados- certamente nenhum ser humano adulto, nem mesmoo escanifrado, miservel e pequeno Gaston poderia ter es-capado por ali. Enquanto espiava, um ratinho saiu doburaco e correu atravs do piso nauseabundo da cela.-... Parou o sofrimento, ele se foi pelo encanamento...- Cale a boca, seu imbecil! - gritou Jehan. Tornou a olharpara o carcereiro. - Abra a porta!O carcereiro remexeu em suas chaves e abriu a portacom frentica pressa. Jehan e os guardas entraram na cela.- O que houve com ele? - exigiu Jehan, com entonaobrutal. O cantor olhou para ele, com descuidada calma.- Eu j lhe disse, caro senhor. - Fez um gesto para oburaco do esgoto. - Eu tambm tentei escapar, mas nocoube. . . - Sorriu levantando as mos. - Portanto, como elecontinua vivo, o senhor pode me matar duas vezes.Jehan deu meia-volta, nada mais vendo seno o rosto dePhillipe Gaston, que no estava ali. Empurrou os -guardasfuriosamente para a porta.- Revistem cada esgoto! Cada encanamento! Encontremo homem ou o Capito Marquet enforcar vocs no lugardele! E talvez a mim tambm, maldito seja ele! Jehan ouviuos passos atemorizados dos guardas, afastando-se por ondetinham vindo. Deu uma ltima espiada ao buraco do es-goto.- Inacreditvel! - murmurou.Depois, com uma praga de frustrao, abandonou a cela.

  • CAPTULO 2

    Muito abaixo do Castelo quila, o buraco do esgoto se abria paraoutro mundo - um mundo ainda mais proibido do que os calabouos docastelo. As cloacas de quila haviam comeado com a cidade, nos tem-pos romanos, quando engenheiros especializados do Imprio tinham-se aproveitado de um sistema natural de cavernas que existia abaixodas primitivas instalaes para dejetos. Em certa poca, a rede de es-gotos fizera parte de um plano ordenado, estruturado, como a prpriacidade. Entretanto, desde a queda do Imprio, fora deixada ao aban-dono e deteriorao atravs dos sculos, enquanto a cidade estendia-se plancie acima, inteiramente ao acaso, de maneira descontrolada.Agora, os esgotos compunham um labirinto insondvel, perdurando osubsolo como tneis de cupim, abaixo de cada prdio e cada rua - umoutro mundo, no qual nenhum cidado lcido de quila tinha qualquervontade de entrar.Aquele mundo secreto e subterrneo jazia esperando em eternosilncio, perturbado apenas pelo guincho ocasional de ratos, opingadouro da efluncia e o correr de gua distante. Agora, no entanto,aquela paz escura era quebrada por sons novos e inesperados.Os rudos de grunhidos, arquejos e arranhes eram dbeis a princ-pio, mas comearam a intensificar-se at ecoarem do buraco do esgotopara o tnel vazio abaixo. De repente, um brao saiu do buraco para oar livre. Acenou selvagemente para baixo e para cima, perplexo e emtriunfo. Depois do brao foi a vez de parte de um ombro. Em seguidasurgiu o resto do corpo gil e de ossatura mida de Phillipe Gaston.Emergiu pouco a pouco, como um recm-nascido. Contorcendo-se esacudindo-se como um acrobata, o jovem ladro conseguiu finalmentelibertar-se do cano do esgoto e caiu no solo.Ele ficou sentado, ofegando para respirar, mal sentindo o fedor aoencher os pulmes completamente, pela primeira vez em muito tempo.Olhou para o buraco com ar de incredulidade e um pequeno sorriso en-viesado repuxou-lhe a boca.

  • - Em verdade, no foi muito diferente de escapar dotero da me - murmurou. -Cus, que recordao...Desviou os olhos, estremecendo. Sua pele estava es-folada e os farrapos de sua roupa estavam cobertos deimundcie. Tinha as unhas quebradas e sangrentas, apsrastejar pelo esgoto abaixo. Levara horas forando o corpoatravs do encanamento, horas que pareciam anos. Oburaco do esgoto no caa diretamente na fossa, mas se do-brava contra si mesmo como uma serpente. Vezes sem contaele se imaginava irremediavelmente encurralado no mesmocotovelo ou volta de seus intestinos. Contudo, no tiveraescolha seno continuar esforando-se e, no fim, conseguiralibertar-se do emaranhado. Escapara dos calabouos, e osbons cidados de quila jamais lhe poriam os olhos emcima... Se pelo menos pudesse encontrar a sada de sua redede esgotos.Ele se agachou onde estava, olhando devagar em torno.A imensido daquele mundo subterrneo o espantava. Est-ivera muitas vezes em cidades do tamanho de quila,porm jamais penetrara nos esgotos de uma Na maioriadas cidades visitadas, os esgotos corriam simplesmente pelomeio da rua. Por fim, a escurido deixou de ser to completa- uma claridade mortia infiltrava-se pelas incontveis aber-turas pluviais do mundo acima.Acostumados penumbra dos calabouos, seus olhosno tinham dificuldades em ver.A primeira coisa que viu foi um esqueleto humano sub-merso na lama negra, a um metro de distncia. Ele saltoupara trs, com um grito assustado. O crnio amarelado sor-ria em oca hilaridade. Ele respondeu com um sorriso arre-pendido e estudou especulativamente o esqueleto.- Um e oitenta e cinco, hein? - Sua voz ecoou fracamenteno tnel. Ele se ergueu, espichando o corpo mido at gan-har a altura total. - Um tamanho ideal para passar pelosportes do cu, meu amigo. No entanto, veja s onde o Sen-hor, em Sua infinita sabedoria, preferiu deixar ns dois. -Fez um gesto em torno, olhou de repente para o teto gote-jante. -

  • No estou me queixando, compreenda - disse, para ocu. - Apenas...apontando as coisas.Deu de ombros. Tinha o que gostava de imaginar comoum relacionamento pessoal com Deus. Era um confortosaber que o Senhor sempre o ouvia, mesmo que ningummais o fizesse. No gostava de parecer ingrato quando suaspreces eram respondidas, mesmo atravs daquela bnoconfusa. Suspirou e comeou a caminhar, esborrachando olodo com os ps.Muito acima dele, mas no to alto quanto o cu, aGuarda do Bispo enchia as ruas de quila, procurando oprisioneiro fugitivo. Um esquadro inteiro entrou no cam-panrio da catedral, por ordem de Marquet, e puxou ascordas dos pesados sinos. Pela primeira vez em anos, osenormes sinos da catedral soaram um alarme atravs dacidade.Dentro da catedral, a missa ainda prosseguia. En-tretanto, quando os sinos repicaram, enchendo a vasta navecom o seu som, os fiis entreolharam-se com espanto emedo. O Bispo se virou do altar, o rosto impassvel subita-mente tenso de preocupao. Olhou por sobre as cabeas damultido de p e avistou Marquet. O Capito da Guarda es-tava perto dos fundos do templo, diante da soleira para umacapela particular. As asas douradas em seu capacete cintil-aram luz, quando ele assentiu com urgncia.O Bispo prosseguiu com a missa e sua cantilena recitadaficou mais ominosa do que antes.L embaixo, Phillipe, o Rato, esgueirava-se pelas cav-ernas das cloacas maneira de seu apelido, agachando-seat as costas doerem, quando se espremia por uma pas-sagem estreita, avanando para outra vasta cmara sub-terrnea. Ficou finalmente de p, sem flego, os msculosdas costas retesados em um espasmo. Fazendo uma careta,limpou a sujeira do rosto com a manga suja, olhou en-viesado para o ponto por onde viera e depois novamentepara diante. Nada mais via alm do labirinto desordenadode traioeiros tneis e cavernas, as mesmas poas negras, fe-dorentas, e correntes de fungos que se estendiam ao infinito.

  • Por um momento, pensou que podia realmente ter morridoe que estava no inferno.Sacudiu a cabea, deixando cair gotas de gua e limodo cabelo imundo. No...era miservel demais para ter mor-rido. Continuava vivo - mas, de repente, perguntou-sequanto tempo teria de suportar aquilo. O pnico oprimiu-lhe o peito, ao pensar que talvez nunca encontrasse o cam-inho de sada daquela tumba subterrnea, que poderia per-ambular por ela, sozinho e perdido, at morrer.Sentou-se na lama, tomado de sbitos calafrios.- Fique calmo, Rato - murmurou suavemente, crispandoos punhos. Obrigou-se a uma respirao profunda, depoisoutra. - Uma avanada firme...um tranqilo passeio domin-ical pelos jardins...Forou a mente para o mundo escondido de seusdevaneios, expulsando o labirinto interminvel das cav-ernas, o terror de estar perdido em sua escurido. Elesempre fora muito pequeno, muito fraco ou muito pobre;sua imaginao era a nica coisa com que contava paraa sobrevivncia e seu nico refgio da realidade. Afinal,quase calmo novamente, ele se levantou e chapinhou devolta gua oleosa que lhe batia pelos joelhos, deixando amente gui-lo atravs de sua caminhada domingueira.As horas passavam, enquanto Phillipe perambulavapelo subterrneo; seu medo transformou-se lentamente emfatigada resignao. Escolheu caminhar precariamente aolongo de um ressalto, a grande altura em uma parede dacaverna, contornando outra salincia de pedra - e viu-sefrente a frente com um guinchante demnio. Com um grito,ele saltou para trs, reconhecendo, j muito tarde, a carade um gato uivante. O gato bufou e escapuliu, perdendo-se na escurido. Os ps de Phillipe fizeram-no dar meia-volta e o enviaram aos tropees em outra direo. Olhandopara trs enquanto corria, sentiu que o beirai do ressalto ce-dia sob ele, com sbita e agoniante precipitao. A beira daplataforma, coberta de lama, desfizera-se sob seus ps.Ele fincou os dedos na terra limosa da parede enquantocaa, enterrando-os com desespero. Aps um momento deofuscante pnico, seus olhos tornaram a focalizar, quando

  • sentiu que deixara de cair. Pela primeira vez, ficou real-mente cnscio do rudo borbulhante que enchia o vastotnel, o som de um grande rio fluindo para algum ponto naescurido. Mal ousando respirar, olhou para alm dos pspendurados. Para baixo, bem para baixo.L no fundo, avistou as guas negras e rugentes dorio subterrneo. A claridade mortia vindo de algum lugaracima lhe mostrou o enorme e desbotado crnio de umavaca, preso aos detritos da margem. Longas e pegajosas en-guias entravam e saam das rbitas vazias do crnio.Phillipe fechou os olhos e gemeu baixinho.- Senhor - murmurou. - Nunca mais esvaziarei outrobolso enquanto viver, juro! - Sua voz tremia ligeiramente.- S que... eis o problema: se no me deixares viver, comopoderei provar minha boa f em Ti?No houve resposta. Phillipe olhou para cima. A guapingou em seu olho.- Vou me iar agora, Senhor - disse ele, com maisfirmeza. Seus dedos comeavam a ficar com cibras. Aindano houve resposta. - Se me ouviste, esta platibanda per-manecer firme como uma rocha. Caso contrrio, sem res-sentimentos, naturalmente, mas vou ficar muito decepcion-ado.Trincando os dentes, chutou a parede, formando umapoio para o p, depois outro.Libertou uma das mos da lama e tornou a enterr-la, mais perto do ressalto desmoronado. A terra agentou.Centmetro a centmetro, miraculosamente, ele abriu cam-inho com as mos em garra, de volta prateleira, at con-seguir puxar-se penosamente para ela. Estirou-se em suasuperfcie slida, sacudiu braos e pernas, espantado porencontrar o corpo ainda inteiro.- No acredito!Balanou a cabea, enquanto ficava de p caute-losamente.De sbito, a msica de rgo encheu o ar sua volta.Phillipe olhou para cima, atemorizado. Sobre ele abria-seum comprido tubo, seguindo para o alto em direo a uma

  • luz cintilante. Phillipe caiu de joelhos, petrificado, enquantoa msica e a luz o envolviam.- Acredito - sussurrou, em voz rouca.No querendo deixar o Senhor esperando, ele tornou alevantar-se e comeou a trepar pelo tubo, usando os ps e asmos.O caminho para o cu no era fcil. Mostrava-se con-torcido, liso e escorregadio. Em seus olhos caa gotejando agua que escorria de rachaduras na face da rocha. As corro-das travessas de ferro que lhe davam apoio aos ps e mospareciam ter estado ali por tanto tempo quanto a rocha.A meio caminho para o alto, uma cedeu repentinamentesob seu peso e o enviou de volta escurido, deslizandopelo tubo. Phillipe entalou freneticamente o p em outratravessa. Ela rangeu em protesto, mas aguentou firme.Phillipe tornou a olhar para cima, respirando em arque-jos. Agora a luz era mais forte e a msica do rgo ficara en-surdecedora. Um coro comeou a cantar. Ele reiniciou a es-calada, cheio de nova inspirao. Chegou finalmente ao altodo tubo e ergueu a cabea, ansioso. Seus olhos arregalaram-se. Acima dele, uma forte grade de ferro barrava a entradado tubo. E atravs dela, muito l no alto, ele teve umaradiosa viso de negrume da noite e ofuscante claridade.Fechou os olhos, tornou a abri-los. A viso da noite e do diatransformou-se nas cores luminosas e intrincados modelosde um vitral circular. Phillipe pendurou-se grade e espiou.Conhecia aquele vitral...era a roscea acima da entradada Catedral de quila. Tudo quanto podia ver era o vitral,mas sabia agora que o que tinha ouvido era a missa domin-ical...e a missa seria a cobertura perfeita para sua fuga. OSenhor o ouvira, afinal de contas. Entalando-se nas paredesdo tubo, ele comeou a empurrar a grade para cima.Dois passos adiante dele, escondidas de sua viso pelongulo do tubo, estavam as pesadas botas e as fortes costasuniformizadas do Capito da Guarda. Marquet tinha ocenho franzido esperando impacientemente na sacristia quea missa terminasse.

  • Uma famlia andrajosamente vestida estava perto dele,cantando com o coro e lanando ocasionais olhares inquie-tos em sua direo. A menininha da famlia, entediada einquieta por ficar horas em p na orla da multido, olhouabertamente para ele. Seus olhos irrequietos encontraram agrade no cho atrs dele; com espanto, ela observou os de-dos que emergiam pelos entrelaados e danavam no ar. Agrade comeou a mover-se e a saltar. A menininha sorriu,depois riu contidamete. Seu pai sussurrou que se calasse.- Papai...! - Ela apontou, puxando-o pela mo.Marquet olhou indolentemente para ela, relanceou os ol-hos por sobre o ombro. O pai dela tornou a pux-la, a fim deficar voltada para o altar. Virando-se, Marquet olhou para ointerior da capela, a curiosidade envolta em suspeita. Deuum passo no aposento, depois mais outro.O coro irrompeu em extasiante salva, quando suas pesa-das botas militares pisaram sobre a grade, esmagando osdedos expostos de Phillipe. O grito de dor de Phillipe foi su-plantado pela msica, enquanto ele caa pelo cano abaixo.Ele deslizou e ricocheteou vertiginosamente para baixo,os braos agitando-se em desesperada procura por qualquerponto de apoio. De repente, seus dedos se fecharam sobremais dedos - outra mo humana. Phillipe aferrou-se a ela,puxando com fora. A mo se soltou do brao apodrecidode um cadver sepultado e ele gritou novamente, ao tornara cair pelo cano abaixo...Chocou-se contra a platibanda lamacenta e escorregadiado esgoto. Antes de conseguir parar, o mpeto o arrastoupor sobre a borda e ele caiu a prumo, varando o ar nausea-damente, e as rugentes guas negras do rio subiram ao seuencontro.Phillipe mergulhou no rio, foi muito fundo, sentindo-seasfixiado na gua imunda.Lutou para retomar a superfcie, cuspindo e sufocando.A corrente o arrastou consigo, ao chapinhar inexoravel-mente em um mar de nojentos detritos. Um rato mortoenvolveu-se em sua garganta, uma cabea de cavalo colidiucom a sua e mais uma dzia de horrores irreconhecveis re-

  • demoinhou a seu lado, distanciando-se. Atordoado e com-balido, quase afogado, ele lutou para permanecer tona.Abruptamente, seu corpo bateu contra algo duro eimvel que lhe deteve o movimento corrente abaixo.Pestanejando para tirar a gua dos olhos, ele se viu jogadocontra uma grade de ferro, bloqueada por sculos de lixoencharcado. Agarrou-se s barras da grade, tossindo e ge-mendo, at que uma sbita luz de compreenso clareou suacabea. S podia haver um motivo para que uma grade lhebloqueasse a passagem...Ele havia chegado s muralhas dacidade! Olhou para cima e viu dbeis raios de luz diurnainfiltrando-se pelas barras de ferro entulhadas de detritos,aquelas barras que eram o ltimo obstculo separando-o daliberdade. Muito acima dele, as grades eram solidamentecravadas no teto de pedra do escoadouro. A nica pas-sagem teria que ser pelo fundo se fosse possvel transpor oobstculo.Aferrou-se s grades por mais um momento, reunindocoragem. Ento, tomando uma respirao to profundaquanto conseguiam seus pulmes inundados, ele mergul-hou na gua lodosa. A viva correnteza o apanhou em seuapertado abrao, rolando-o para baixo de uma represa dedetritos submersos. As guas encapeladas o detiveram ali,encurralado contra o final da grade, a despeito de seus es-foros guiados pelo pnico. Ele tateou freneticamente naescurido, ao longo dos espiges no final das barras, comos pulmes doendo, a mente comeando a ficar turva, ene-voada. De repente, sentiu um espao vazio - uma abertura,no grande o suficiente para um homem normal, pormmais do que larga para Phillipe, o Rato. Introduziu-se labor-iosamente por sob a grade e disparou para cima, atravs dagua que clareava.Sua cabea rompeu a superfcie luz do dia. Ele aspirouuma golfada imensa de ar fresco, depois outra e outra, en-quanto olhava para as altas e proibidas muralhas de quila,vistas do exterior... Estava no fosso. Conseguira libertar-se,finalmente.Ouviu os sinos ainda repicando as batidas de alarme at-ravs da cidade, sons de gritos dos guardas e de cavalos

  • galopando pelos portes de quila. Estava livre...mas nosalvo.Apertando os olhos luz do sol, olhou atravs do fossoe dos campos lisos, abertos, mais alm, em direo ao san-turio das colinas distantes. Suspirou de resignao ecomeou a vogar silenciosamente, dentro do fosso.Ao longe, nas colinas, muito distante para perceber comclareza qualquer detalhe da cidade, o cavaleiro de negroficou ouvindo os sons inesperados dos repiques de alarme.Ficou contemplando a cidade por muito tempo; ento,como se houvesse chegado a uma deciso, sacudiu as rdeasde seu garanho negro e comeou a descer a encosta dacolina, em direo a quila. No momento seguinte, desa-parecia de vista entre os vermelhos e dourados das rvoresoutonais.

  • CAPTULO 3

    O Bispo caminhava serenamente pelo ptio nos fundos do Casteloquila, seu refinado e fortemente guardado domnio pessoal. Rosas ecrisntemos ainda desabrochavam nos jardins verdejantes e abrigados,dando a impresso, como ele, de que a vida estava perfeitamente orde-nada e sob o controle mais absoluto. A escolta pessoal e seu secretrioseguiam-no a uma discreta distncia, como de hbito. Fora de seusaposentos privados, ele estava constantemente exposto e a longa exper-incia lhe ensinara a nunca exibir nada a ningum.Olhou para cima, quando o som de ps calando botas intrometeu-se em sua no to pacfica contemplao. O Capito Marquet cam-inhava rapidamente para ele, atravs dos jardins. A boca do Bispocomprimiu-se. Nem por um instante esquecera o som dos repiques dealarme interrompendo a missa, mas no permitiria que nem mesmoMarquet percebesse sua preocupao. O exerccio do poder completoexigia, pelo menos, a aparncia de total confiana.- Notcias alarmantes, Excelncia Reverendssima. . . - irrompeuMarquet, parando ofegante diante dele.O Bispo franziu o cenho.- Voc esqueceu, Marquet?O rosto de Marquet congelou-se. Caindo instantaneamente de joel-hos, em genuflexo, ele beijou o anel de esmeralda que o Bispo lhe ap-resentava. Contudo, antes de tornar a se levantar, as palavras fatais lheescaparam:- Um dos prisioneiros fugiu.O Bispo retirou a mo com um puxo, os olhos plidos cintilando.- Ningum foge dos calabouos de quila - disse, em voz suave. - Opovo desta cidade aceita isto como uma questo de fato histrico.Marquet engoliu em seco.A responsabilidade minha - murmurou, com o suor brotando natesta.- Sim, .

  • Marquet ousou erguer os olhos novamente.- Ser um milagre se ele conseguir safar-se do sistema deesgotos...- Eu acredito em milagres, Marquet - disse o Bispo. - Socomponentes inabalveis de minha f.Marquet desviou os olhos nervosamente.- De qualquer modo... - Procurou escolher as palavrasque afastariam de seu pescoo a espada do desprazer doBispo. - Trata-se apenas de um ladrozinho insignificante,um pedao annimo de lixo humano...O Bispo olhou friamente para ele.- Grandes tormentas costumam anunciar-se por umamera brisa, Capito. E os fogos da rebelio podem seracesos por uma nica fagulha.O Bispo desviou os olhos, sua expresso ficou distante,como se possusse algum conhecimento de outro mundo,conferido a ele de um modo que nenhum mortal comumpudesse compreender. Marquet levantou-se, com o queixocrispado.- Se ele estiver l fora, eu o encontrarei, Excelncia Rev-erendssima!O Bispo olhou de novo para seu capito e seus olhosapertaram-se.- Uma vez que tem a minha bno, s posso invejar seuinevitvel sucesso neste assunto.Marquet curvou a cabea como um colegial castigado,no mais capaz de enfrentar o olhar da ofuscante figura debranco, em p sua frente. Mais do que a maioria dos ho-mens, ele sabia que o Bispo no mantinha sua posio depoder pela simples graa de Deus... Girando nos calcan-hares, afastou-se to depressa quanto teve coragem.O Bispo viu-o afastar-se. Somente quando Marquet es-tava quase fora de vista ele pestanejou subitamente, comimperceptvel apreenso. Tocando seu anel de esmeralda,girou-o em torno do dedo.Marquet montou em seu cavalo e partiu a galope,afastando-se de seu pblico no castelo como se perseguidopor demnios. Seus homens haviam revistado a cidade eos seus esgotos, nada encontrando. Sem dvida, aquele no-

  • jento vermezinho, Phillipe Gaston, devia estar morto. Con-tudo, apenas para o caso de continuar vivo, Marquet convo-cou seus homens e se decidiu por uma vistoria tambm noscampos que circundavam a cidade.Na base da ponte encurvada perto das portas da cidade,os guardas reuniram-se a cavalo, em torno de um carrode bois carregado de suprimentos. Marquet virou-se im-pacientemente na sela, quando Jehan, seu lugar-tenente,aproximou-se.- Leve dez homens na direo de Chenet! - gritou. - Euseguirei para o norte, para Gavroche.O sol j se punha e restava pouco tempo para a busca,antes que a noite casse. Mais cavaleiros colocaram-se suavolta, enquanto ele dava ordens. Firmando-se nos estribos,a fim de localizar o carro de boi com os suprimentos, Mar-quet esporeou o cavalo naquela direo.Atrs dele uma pequena sombra gotejante disparou desob o arco da ponte e agachou-se embaixo das patas doscavalos reunidos.- Voc! - gritou Marquet para os dois homens no carrode suprimentos. - Levem os suprimentos!A sombra esgueirou-se por baixo do carro de boisquando Marquet passou junto dele em seu cavalo, desa-parecendo subitamente.- Ao meio-dia de amanh, ns nos encontraremos foradas portas de Gavroche! -Marquet olhou para as tropas que o esperavam, com ex-presso dura. - O nome do homem que encontrar PhillipeGaston ser levado ateno pessoal do Bispo! Assim comoo corpo daquele que o deixar escapar!Ficou olhando, enquanto Jehan partia a galope com suastropas, entre pedrinhas e fascas que voavam de baixo daspatas dos cavalos. Ento fez seu cavalo girar e conduziuseus homens para o norte.Os dois guardas deixados para trs com o veculo dossuprimentos entreolharam-se no silncio vazio que seseguiu, dando de ombros. O condutor estalou o chicote. Osbois avanaram com dificuldade, puxando o rangente carrode madeira pela estrada vincada de sulcos.

  • Aninhado entre os eixos do carro de bois, Phillipe se col-ou enlameada parte de baixo do veculo como se fosseuma excrescncia, enfiando os ps nas juntas dos cantos tra-seiros. Sorriu, pestanejando, quando o carro de bois final-mente comeou a mover-se.Tateou com os dedos machucados, em busca de um mel-hor ponto de apoio. Uma tbua frouxa no fundo do veculocedeu inesperadamente, ao apertar-se contra ela. Philliperiu e a fez deslizar para um lado, sempre atento ao potencialde uma situao. Enfiando um brao pela abertura, deixoua mo vagar entre os suprimentos, orientada pelo tato.Seu corao saltou, quando os dedos se fecharam sobrealgo que identificou de imediato e sem dvidas: a bolsacheia de moedas pendendo do cinto do condutor. Com amxima delicadeza, ele experimentou os cordes que aprendiam.- Se quer saber, estamos procurando um fantasma - disselugubremente a voz do segundo guarda.Phillipe hesitou, depois voltou a manejar a bolsa, masos cordes tinham sido firmemente amarrados. Sua mo secrispou de frustrao, comeando a tatear ao longo do cintodo homem.- Tome cuidado. . . - avisou o condutor. A mo de Phil-lipe ficou glida. - Dizem que o Bispo deixa sua janela aberta noite e que as vozes descontentes lhe so levadas em umanuvem negra.Os dedos de Phillipe roaram a adaga do condutor, pen-dendo perto da bolsa de dinheiro. Mostrando uma percianascida de longa prtica, ele a fez deslizar da bainha e cor-tou destramente os cordes da bolsa. A bolsa de dinheiro ea adaga desapareceram atravs das tbuas do fundo, sem omenor som.- Neste caso - disse o segundo guarda, - eu tenho umrecado para o Bispo. - Soltou um sonoro arroto:- Feche suajanela!Os dois homens caram na gargalhada. Embaixo docarro de bois, Phillipe abriu a bolsa e examinou o contedocom olho clnico. Sorriu. Depois olhou para cima, tomado

  • de sbito remorso, para a fatia de cu que brilhava por entreas tbuas.- Bem sei que prometi, Senhor - sussurrou. - Nunca mais.Contudo sei como percebes o quanto sou uma pessoa devontade fraca. Esta a Tua maneira de indic-lo a mim e hu-mildemente aceito o meu castigo em Teu nome.Puxando os ps dos cantos do veculo e soltando asmos, ele se deixou cair silenciosamente na estrada em-poeirada, por entre as rodas. O carro de bois e seus ocu-pantes continuaram avanando em meio ao crepsculo, ig-norando o que havia acontecido.Phillipe ficou, de joelhos em tempo de ver os ltimosraios do sol que se punha, desaparecendo atrs das colinasdistantes. Um lobo uivou um pouco mais perto. O somlgubre e desolado ecoou pela terra vazia. Phillipe ficou dep com um estremecimento e esgueirou-se para os arbustos beira da estrada.Durante os dois dias seguintes, Phillipe levou a vida deum animal perseguido. Os guardas de quila enxameavampor toda parte, cobrindo a regio rural como uma praga devermes, prometendo ricas recompensas por sua captura eterrveis castigos para quem o ajudasse. A fria e a metic-ulosidade da busca deixavam-no surpreso e desalentado. Aidia de que se dariam a tanto trabalho para capturar um in-significante punguista estava alm de sua compreenso. En-tretanto ele no ousava mostrar a cara em nenhuma choade campons, enquanto a busca estivesse em andamento, demaneira que sobreviveu custa de razes, frutos silvestres esobras meio apodrecidas, largadas nos campos. Tinha umabolsa cheia de moedas debaixo de seus andrajos, mas nose animava a aproximar-se de uma casa o suficiente, nempara roubar alimento ou roupas. Durante o dia, escondia-sena floresta; noite, dormia nas rvores, a fim de fugir aosigualmente impiedosos caadores que agiam nas trevas.O prprio tempo pareceu se voltar contra ele. O cu quepermanecera quase sem nuvens por dois anos, a despeitodas preces interminveis dos lavradores, de repente se en-chia de nuvens borrascosas, despejando torrentes de chuva,impelidas pelo frio vento do outono. Phillipe passou sua se-

  • gunda noite, faminto e congelado, aninhado na forquilha deuma velha rvore da floresta, sob um intil e inadequadoabrigo de ramos entrelaados.Segurando-se ao tronco com mos entorpecidas, en-quanto a chuva incessante lhe molhava o rosto, ele roeu umnabo murcho, at seu estmago enrolar-se em ns e rebelar-se. Agoniado, ps para fora os restos meio digeridos e de-pois, descansando a cabea contra a casca spera do tronco,fechou os olhos, sentindo-se profundamente infeliz... Em al-gum lugar devia existir um mundo melhor do que aquele...E se acreditasse nisso o suficiente, poderia estar l... Suamente livre voou para as terras inexploradas da imaginao.Com os olhos apertadamente fechados, a gua escorrendopelas pestanas e nariz, ele aos poucos comeou a sorrir.Em algum lugar, na terra de seus sonhos, o sol estavabrilhando, como sempre, esquentando-lhe as costas.- vero - murmurou ele, com um suspiro. - O solquente e brilhante dana nas guas azuis como uma criana.E ela aparece.Ele a via claramente agora, os cabelos mais reluzentes doque o sol, o rosto jovem e claro mais belo do que as rosas elrios beira do lago. O corao de Phillipe inundou-se dealegria, quando ela o beijou ternamente e jurou que nunca odeixaria: "Oh, Phillipe, eu o amo tanto... Jamais tive um in-stante de felicidade que no fosse dado por voc".Ao acordar pela manh, ele descobriu que o tempo, pelomenos, havia melhorado.Suas esperanas brilharam com o nascer do sol. Desceuda rvore, movendo-se como um velho reumtico. Estir-ando braos e pernas para livrar-se do entorpecimento,comeu um punhado de bagos amassados e internou-se nafloresta.A manh era ensolarada e quente para o outono. Suasroupas secaram, pela primeira vez em dias. Cerca do meio-dia, ele conseguiu finalmente esgueirar-se at uma cabanasolitria e roubar um po que esfriava no peitoril de umajanela. No parou para dar as graas antes de devor-lo, es-

  • perando que o Senhor reconhecesse sua gratido pela velo-cidade com que o consumia.Reforado por sua primeira refeio substancial, em umperodo mais longo do que podia recordar, caminhou paraas colinas. No vira nenhum guarda em toda a manh ecomeou a esperar que se tivessem distanciado ou, pelomenos, cansado de procur-lo. A esta altura, certamente jhaviam desistido de caar um nico e imprestvel ladro.Se assim fosse, ele no se sentia nem um pouco humilhado.J no fim da tarde, ousou parar ao lado de um ribeiro, afim de descansar e lavar-se.A chuva que cara havia levado consigo a parte mais re-pulsiva e fedorenta que ele trouxera da cidade. Uma nuvemcom uma leve forrao prateada pensou ele, no to agrade-cido como deveria estar. Sua tnica e as calas, que antesj eram velhas e usadas, estavam agora em farrapos, masmuita gente se vestia assim, naqueles dias. Com sorte, po-deria roubar vestes melhores. Se conseguisse tornar-se maisou menos apresentvel, talvez passasse por um honestoviajante e no por um fugitivo caado. Imaginou-secomendo um bom guisado quente, bebendo vinho aquecidoat ficar com as entranhas entorpecidas, dormindo em umacama quente de uma estalagem, em vez de em uma rvore...Phillipe sorriu, satisfeito.Ajeitou-se sobre uma rocha aquecida, meio escondidaentre as ervas silvestres e juncos margem do ribeiro. Fric-cionou os ps doloridos, saboreando a viso do sol poente,emoldurada pelo arco da ponte. Em seguida, com o maiorcuidado, tirou a camisa arruinada fazendo caretas quandoo tecido spero arranhava os profundos verges semicica-trizados em suas costas. Estirou o brao para trs e os to-cou de leve, pestanejando. Antes de sua captura, mantiveraa Guarda do Bispo em selvagem e furiosa caada atravsdo labirinto de ruas em quila. Por fim, eles terminariamapanhando-o e tinham-no surrado sem d, em retribuio.Phillipe deixou a camisa cair, com parte de seu bom nimodesaparecendo.- Tu os enviaste todos contra mim, Senhor - disse,erguendo o queixo, com um certo orgulhoso prazer em seu

  • martrio -, mas eu sobrevivi. Vs diante de Ti um J dos tem-pos modernos...Molhou o rosto com a gua gelada do rio, ofegando como frio, ao esfregar a pele com as mos.Viu sua imagem refletida para melhor, no cintilante es-pelho da gua. O rosto limpo lhe sorriu, sob uma massaconfusa de cabelos castanho-escuro - de fato, um rosto sim-ptico, pensou. Um pouco magro, naturalmente... mas en-to, considerando a maneira de sua recente fuga doscalabouos, ele sups que deveria ser grato por no se tersuperalimentado nas ltimas semanas. Passou pelo rostoliso a mo ainda coberta por machucaduras prpuro-esver-deadas. Em verdade tinha feies bastante sensveis e re-finadas, convinham ao rosto do filho de um nobre, roubadoao nascer por inimigos traioeiros e criado por humildescamponeses como da famlia. Seu pai, o Duque, no podiaimaginar que o filho h muito perdido ainda vivesse e, port-anto, jamais se preocupara em procur-lo. Contudo, algumdia eles se encontrariam e o pai reconheceria o filho instant-aneamente, devido incrvel semelhana entre ambos...Os sonhadores e escuros olhos do jovem arregalaram-se quando um sbito rudo acima e atrs dele, o assustou,trazendo-o de volta realidade. Phillipe girou em torno,agarrando a camisa enquanto olhava para a encosta da co-lina. Muito acima, dois cavaleiros com os inconfundveisuniformes vermelhos da Guarda do Bispo desciam a colinaem direo margem do ribeiro. Ele tomou uma profundarespirao e saltou para a gua.Jehan e um segundo guarda desceram para o rio em seuscavalos, atravs da relva alta e madura. Jehan batia nos jun-cos beira da gua com a parte plana da espada. Haviapercorrido os campos circunjacentes com olhos cansados ecrescente frustrao.- Eu poderia jurar que vi algum...!Descansou na sela, soltando as rdeas, e embainhou a es-pada. O segundo guarda remexia-se na sela, inquieto, semencontrar uma rea macia.- At quando vamos continuar, senhor?

  • Seu cavalo moveu-se para diante e comeou a pastar aolado do de Jehan, arrancando tufos de relva tenra na beirad'gua.- At que o Capito Marquet se d por satisfeito... Porqueo Bispo se deu por satisfeito - replicou Jehan com raiva.Suas vozes quase inaudveis chegavam fracamente atPhillipe, jazendo de costas abaixo da superfcie da gua,entre os arbustos. A pouca profundidade, ele respirava pelotalo oco de um junco e via a espuma expelida pela boca doscavalos que pastavam, descendo preguiosamente at seurosto. Por que eu, Senhor? - pensou ele.Ento o junco foi puxado repentina e abruptamente deseus dentes. Um cavalo o abocanhara, juntamente com umpunhado de relva. Subitamente sem respirao, Phillipe malconteve o arquejo de choque que o teria afogado. Agarrou-se aos arbustos, frentico, procurando deter sua angustiosanecessidade de saltar e encher os pulmes de ar.- A vida de Marquet est na balana - trovejou Jehan,pouco mais acima -, e ele sabe disso.Vo embora! Vo embora! Gritou a mente de Phillipe. Aqualquer minuto seus pulmes explodiriam... Qualquer se-gundo...O cavalo de Jehan tornou a enfiar o focinho na gua,roando as ervas.Imediatamente, um jato violento de spray estourou nacara do animal e ele recuou bruscamente, com um grunhidode espanto, quase atirando Jehan no rio.Jehan puxou as rdeas freneticamente, mal conseguindoevitar uma queda. Ao conseguir controlar a montaria, ele sevirou para a margem do rio e, diante de seus olhos admira-dos, surgiu repentinamente a figura tambm admirada dePhillipe Gaston. Jehan ficou olhando para ele, com a raiva eo reconhecimento transparecendo em suas feies.- Sinto muito - gaguejou Phillipe, de maneira no muitoracional. - A culpa foi toda minha. Vamos, deixe-me acalmarseu cavalo...Tomado de medo, ele tropeou para a margem.- ele! - gritou o segundo guarda.

  • - No, no ! - guinchou Phillipe. Jehan j tinha a espadana mo.- Agarre-o!Virando-se para tornar a mergulhar no rio, Phillipe viuque o outro guarda j estava sua frente, cortando-lhe a re-tirada e impelindo- de volta margem. Esforou-se paraescalar o barranco, mas Jehan avanou para ele, com a es-pada cintilando mortalmente na mo. Gritou histerica-mente, ao ver a lmina que descia para cort-lo em dois. Noentanto, em vez disto, foi a parte chata da espada que caiucom fora em seus fundilhos, jogando-o escarrapachado nocho. Phillipe rolou de costas e olhou para cima, incrdulo.O rosto de Jehan sorria selvagemente acima dele, fazendo-ocompreender que aquilo era uma brincadeira de gato e rato.Levantando-se com esforo, Phillipe disparou para oalto do barranco, correndo como nunca havia corrido.Acima dele ficava a ponte. Se, ao menos, conseguissealcan-la...Os dois cavaleiros o seguiram em trote tranqilo,deixando-o esfalfar-se na corrida.Suas risadas o alcanavam como chicotadas.Quando j pensava que a subida era interminvel, Phil-lipe chegou finalmente ao alto do barranco. Ofegando porar, precipitou-se para a ponte e comeou a cruz-la, emrpida corrida. As tbuas planas do piso permitiam-lhedesenvolver toda velocidade, porm atrs dele ouvia ochocalhar das patas dos cavalos, batendo na madeira. En-quanto corria, olhou inutilmente para trs. Seu p pisouem uma tbua solta e ele foi atirado para diante, caindocom terrvel impacto sobre as seguintes. A queda sobre amadeira dura arrancou-lhe o resto de ar que tinha nos pul-mes. Ficou cado e imvel por um longo momento, paralis-ado pela certeza da morte iminente. Contudo nenhuma es-pada se abateu sobre ele, nenhum ofuscante segundo de dorencerrou o seu terror. Um sinistro silncio pairou sobre elee sua volta e, por fim, Phillipe ousou erguer a cabea. Seuqueixo caiu.Sua cabea estava entre os cascos ferrados de ao e asmusculosas patas dianteiras de um enorme cavalo de com-

  • bate. As patas mudavam de posio ligeiramente; anis devapor, expelidos pelas narinas do grande animal,enovelavam-se no ar gelado. Olhos escuros reviraram-separa baixo e o fitaram, de sua cabea belamente formada,com suspeita quase humana. Aquele cavalo era o animalmais magnfico que ele j vira. Ento, viu tambm a pernavestida de negro de um cavaleiro, pressionando o flanco doanimal.Phillipe arrastou-se lentamente e saltou ereto, quandoo feroz falco de olhos dourados, descansando no braoenluvado do cavaleiro, grasniu subitamente. A ave sibiloupara ele, agitando as asas. Phillipe caiu de joelhos,boquiaberto, espiando para o homem que controlava o fal-co e o cavalo ao mesmo tempo. A sinistra e encapuzadafigura, vestida inteiramente de negro, s podia ser o QuintoCavaleiro do Apocalipse. Sua capa negra era forrada de umvivo vermelho e parecia um vislumbre do inferno, quandoele se virou na sela e baixou os olhos para Phillipe. Sustinhauma grande e reluzente espada na mo livre, e os olhosde um azul acerado, brilhando em seu rosto na penumbra,eram to distantes e ameaadores como a terra da Morte.Phillipe desviou os olhos da figura silenciosa e olhou paratrs, por sobre o ombro.Os dois guardas permaneciam imveis em seus cavalos,momentaneamente tolhidos pelo mesmo temor. Asmontarias pisoteavam e recuavam nervosamente, como setambm pressentissem a aura de perigo que pairava emtorno do homem de negro.Por fim, Jehan encorajou-se e disse:- Saia da ponte!O estranho no respondeu, sentado imvel em seucavalo. O vento que comeava a soprar sibilou inquieta-mente entre as rvores.- O homem um prisioneiro fugitivo - anunciou Jehan,alterando a voz. - Queremos captur-lo.- Com que autoridade? - perguntou afinal o estranho.- De Sua Excelncia Reverendssima, o Bispo de quila.Somente Phillipe notou a fugaz e involuntria toro naboca do estranho, que poderia ter sido um sorriso. Ento,

  • o cavalo de combate precipitou-se para diante e o falcoelevou-se no ar, entre guinchos estridentes. Phillipe saltoude lado, escapando por pouco de ser atropelado.O segundo guarda arremeteu para diante, ao encontrodo homem de negro, com a espada erguida. O cavalo do es-tranho empinou-se, com toda a fria e esplendor de umabesta mitolgica. Um golpe mortfero da espada do homemde negro passou rente s costelas do guarda, derrubando-opelo flanco de sua montaria e por cima da borda da ponte.Seu grito ecoou, quando ele voou a prumo para o rio maisabaixo.Antes que o primeiro homem se chocasse contra a gua,o estranho se virar para Jehan e o desmontava, com umrpido movimento. Jehan caiu encolhido sobre as tbuas daponte; tentou erguer-se, mas o estranho j estava sobre ele,com a ponta da espada espetando-lhe a garganta. Jehan en-goliu em seco, fitando a face da Morte com olhos arregala-dos.O homem de negro puxou o capuz para trs. O rosto deJehan ficou ainda mais plido, ao reconhecer quem estavaacima dele.- Retorne a Marquet - disse o estranho. - Diga a ele queNavarre voltou!Jehan assentiu, mudo de pavor. Levantou-se e correupor onde tinha vindo. O homem chamado Navarre ficou ol-hando, enquanto ele montava em seu cavalo e galopava nocrepsculo. Por fim, o estranho se virou e tornou a montarem seu cavalo. O falco desceu das alturas aniladas do cuem um vo espiralado e voltou a pousar em seu pulso. Ohomem ficou imvel por um instante, olhando para Phil-lipe com curiosidade. Este continuava onde ele o deixara,com os joelhos bambos de medo. O cavaleiro instigou ocavalo para diante e aproximou-se da pequena figura queesperava em silncio.Phillipe despertou parcialmente do entorpecimento econseguiu erguer-se at ficar quase de p.- Magnfico, senhor! - bradou. - Uma exibio maravil-hosa! Como o senhor mesmo poderia ver, eu estava no pro-

  • cesso de atra-los para a ponte, no momento de sua chegada,e... Navarre conteve o cavalo com as rdeas, fitando Phillipecom um sorriso enigmtico.- Um prisioneiro fugitivo de quila? - exclamou, quasepara si mesmo. - No dos calabouos.- Por que no dos calabouos? - perguntou Phillipe.- Jamais algum fugiu de l!O homem disse estas palavras como se soubesse queaquilo seria impossvel. Phillipe ergueu as sobrancelhas,considerando a possibilidade de que realmente houvessepraticado uma faanha notvel. No entanto, apenas encol-heu os ombros, demasiado cavalheiro para vangloriar-se deseus feitos.Sobre a sela, Navarre inclinou-se para diante, estudandoPhillipe pensativamente.Ento, de sbito, tornou a olhar para cima, na direooeste, onde o sol desaparecia atrs das montanhas. Seu rostoficou severo e tenso. Incitando a montaria com as esporas,Navarre comeou a cruzar a ponte, passando ao lado dePhillipe em silncio, como se ele houvesse deixado de exi-stir.Sobressaltado, Phillipe estendeu o brao, mas sem ousartocar o outro homem.- Senhor! Espere... - Navarre nem mesmo baixou os olhose Phillipe trotou atrs dele, gritando: - Escute! Em verdade,eu estava pensando em arranjar um companheiro deviagem... - No obteve resposta e gritou ainda mais alto,desesperado: - H mais guardas por a! O senhor precisarde um bom homem para vigiar seus flancos!Phillipe agora corria, mas o estranho seguiu em frente,embrenhando-se na escurido, sem olhar para trs. Phillipeparou de correr, deixando as mos carem ao longo docorpo. Baixou os olhos para si mesmo.- Oh, cale a boca, Rato! - murmurou.Deu meia-volta e retornou ponte, tentando ignorar ador inominvel que enchia seu peito de repente. Espioupara baixo, pela borda das tbuas do piso e viu o corpo do

  • guarda morto, boiando entre os juncos. Sacudiu a cabea,pesaroso.- Voc nem chegava aos ps dele, meu amigo. Nuncateve uma chance...Olhou para trs, na direo tomada pelo estranho, comum breve sorriso de gratido e desapontamento. Emseguida, terminou de cruzar a ponte e aproximou-se docavalo que esperava o guarda, a fim de surripiar a bolsapresa sela.- mais fcil um camelo passar pelo buraco de umaagulha do que um homem rico entrar no Reino dos Cus. -Tornou a olhar para o cadver e gritou: - No mencione isto!Ento, recomeou a caminhar.

  • CAPTULO 4

    Durante as horas da noite alta, a chuva retornou como umavingana. Phillipe perguntou-se, desanimado, se dois anos de secahaviam realmente chegado ao fim s para tornar sua vida miservel.Passou outra noite angustiosa em uma rvore, despertando sobres-saltado de seus sonhos com um guerreiro magnfico, trajado de preto,por cintilaes de relmpago e estrondos de troves. De uma vez, po-deria jurar que fora despertado pelo relincho de um cavalo, que vira opoderoso animal negro empinar-se no alto de uma colina distante - semcavaleiro - e desaparecer na tempestade.Ao alvorecer, no entanto, tudo aquilo no passava da desbotadalembrana de um pesadelo. Phillipe pulou para o cho e ps-se nova-mente a caminho, subindo a montanha.Estava nos contrafortes agora, onde esperava finalmente escapar perseguio do Bispo.Subiu e desceu com dificuldade as encostas lamacentas do terrenospero, preferindo seguir por entre os arbustos avermelhados e asescorregadias folhas amarelas da floresta de carvalhos. Mesmo ali, umaparte de sua mente estava sempre alerta a qualquer indcio de cavaleir-os. O fato de agora saber por que os guardas do Bispo estavam todecididos a recaptur-lo, no o tornava mais desejoso de facilitar-lhestal possibilidade. Contudo, a despeito de sua cautela, nunca viu o ca-valeiro de negro reaparecer em algum espinhao atrs dele, logo depoisdo amanhecer. Como tambm nunca percebeu que o estranho o seguirapor toda a manh.Por fim, Phillipe chegou a uma pequena aldeia aninhada em um valeestreito entre as montanhas. A lavoura ali era ainda mais pobre do quena plancie castigada pela seca, em torno de quila. O lgubre amon-toado de casas construdas com tijolos de barro e reboco, agachadas nointerior de uma muralha de pedra desmoronando, era prova suficienteda miserabilidade da vida dos aldees. No obstante, acocorado e tirit-ante atrs de um telheiro em runas, logo dentro das muralhas Phillipe

  • verificou que os moradores do lugar ainda estavam em mel-hores condies do que as suas. Passava pouco do meio-dia e poucos aldees estavam vista. Ele imaginou que to-dos deveriam achar-se em suas casas, aquecidos e secos,comendo sua refeio do meio-dia...O pensamento de comida fez sua garganta doer. Se nin-gum mais estava fora de casa, infeliz e faminto, entoaquele era o momento perfeito para arranjar algumasroupas decentes.- mais abenoado dar do que receber - murmurou.Dito isto, disparou como flecha de seu esconderijo, parasurrupiar um par de botas deixadas em uma soleira para se-car.Novamente na segurana de seu esconderijo, ele arran-cou os restos de seus sapatos de solado mole e enfiou osps nas botas de couro mido, amarrando firmemente osatilhos em torno das pernas, a fim de mant-los calados.Levantou-se, sorrindo de satisfao.Ele era Phillipe, o Rato, o nico homem que conseguiraescapar dos calabouos de quila. Para ele, tinha sido brin-cadeira de criana. Visitou rapidamente outro quintal, ondese apoderou de uma tnica com capuz pendurada em umvaral, rejeitando um par de calas quase to andrajosasquanto as suas.A tnica o engolfou como uma mortalha, quando a ves-tiu. Enrolando as mangas para cima, a fim de ter as moslivres, comeou a caminhar marginando a orla da aldeia.Atrs de uma casa que devia estar sendo construda ou des-moronando, encontrou outro varal com calas mais bemconservadas. Esgueirou-se para l, ergueu-se brevemente, afim de inspecionar a pea mais de perto. Fez uma careta.- O alfaiate poderia ser melhor amigo do dono, mas...Dando de ombros, arrancou as calas do varal. Olhouem torno subitamente, ao sentir cheiro de comida e de fu-maa de madeira no ar. Localizou uma taberna desmante-lada entre as casas, com a fumaa escapando da chamin.Detendo-se apenas o tempo suficiente para trocar de calas,caminhou apressado pela rua lamacenta.

  • Os aldees sentavam-se entrada da sombria taberna,aproveitando a ltima metade do ano ao ar livre. Comiam ebebiam em mesas de madeira, sob o abrigo do caramanchocoberto por uma trepadeira, no ptio esqulido. Um bra-seiro crepitante em uma estufa central abrandava um poucoa friagem do ar. Phillipe examinou rosto por rosto sub-repticiamente, ao entrar no ptio murado da taverna. Osreunidos pareciam estranhamente contidos; a gama de ex-presses que viu, corria do normal indiferena. Uma ta-citurna atendente movia-se silenciosamente entre as mesas.Pouco alm do muro, um ferreiro trabalhava na forja deuma estrebaria.Os homens continuaram a conversar em tons descon-exos, nem mesmo erguendo os olhos quando Phillipe pas-sou por eles. Ningum demonstrou o menor interesse emsua pessoa ou em suas roupas de emprstimo. A princpio,ele ficou apenas aliviado, mas quando os momentos forampassando, seu ego comeou a instig-lo. Sem dvida, noera sempre que apareciam estranhos naquele lugarejo. Elepodia ser pequeno, mas no era invisvel. Afinal, tratava-sede Phillipe Gaston, que encapara dos calabouos de quilae vivera para contar a histria.Impulsivamente, puxou sua pesada bolsa de dinheiro ea deixou cair em uma mesa, diante da atendente.- Um drinque de sua bebida mais cara - disse, em vozalta - e o mesmo para todos que se juntarem a mim em umbrinde!Desta vez, os outros o fitaram com curiosidade, mas foiapenas por um instante e logo voltaram s suas conversas.A atendente voltou, carregando uma pesada caneca decermica. Phillipe a examinou com ar crtico, quando atomou de sua mo.- No recomenda muito - comentou.Moveu a cabea bruscamente para a bebida. A atendentedeu de ombros e afastou-se sem responder. Pouco vont-ade, Phillipe comeou a perguntar-se se toda a aldeia noestaria sob alguma espcie de feitio.- Queremos ouvir seu brinde - disse uma voz subita-mente, atrs dele.

  • Phillipe se virou. Um homem enorme, de expressogrosseira e envergando uma grossa capa, caminhou paraele.- Beberemos a um homem especial, meu amigo - dissePhillipe ousadamente. -Algum que esteve nos calabouos de quila e viveupara contar a histria.Erguendo a caneca, ele sorveu um longo gole. A boca doestranho repuxou-se em um sorriso desagradvel.- Ento, beba a mim, homenzinho. Meu nome Fornac ej vi aqueles calabouos.Perplexo, Phillipe olhou para o pescoo grosso dohomem, percorreu seu corpo fortemente musculoso de altoa baixo e sorriu para o que imaginava alguma piada.- Um ferreiro, talvez - disse. - Um lenhador ou mesmobritador, mas, prisioneiro de quila?- Eu no disse que fui um prisioneiro.Fornac levou as mos garganta e desabotoou a capa.Arrancou-a. Por baixo, usava o uniforme vermelho-sangueda Guarda do Bispo.Phillipe ficou aturdido, enquanto outros homenscomeavam a levantar-se das mesas, removendo as capas.Os fregueses costumeiros permaneceram rgidos, os rostostensos de medo. Seu estranho comportamento repentina-mente fez sentido para ele, agora quando era demasiadotarde. Mais de uma dzia de guardas tinham-no rodeadoempunhando silenciosamente as espadas. Uma curta pragaescapou-lhe dos lbios, ao ver Jehan levantar-se de um jogode dados junto ao fogo, com o Capito da Guarda ao seulado.- Se tivesse ficado enfiado na floresta, poderia ter tidouma chance, Gaston - disse Marquet.- Tem razo - respondeu Phillipe, em tom lastimoso. Ol-hou para uma refeio pela metade, sobre uma mesa prx-ima, com uma espcie de nsia desesperada, antes de pigar-rear para limpar a garganta.- Quero dizer, na verdade, eu estava tentando encontr-lo, Capito.

  • Marquet o fitou apaticamente e ele acrescentou rpido,atropelando as palavras:- Um de seus homens foi cruelmente assassinado, nomuito longe daqui. O senhor est com sorte. Estou quer-endo barganhar o nome do assassino pelo seu perdo.Sem esperanas, Phillipe considerou que aquilo soavainacreditvel, mesmo para ele prprio. Marquet olhou paraFornac.- Mate-o - ordenou.Fornac arremeteu para diante, com a espada em punho.Phillipe atirou sua bebida nos olhos do guarda e mergulhoupara baixo da mesa mais prxima, esgueirando-se comomercrio, por entre as pernas dos aldees.Um grupo de guardas correu para a mesa macia e aemborcou, derrubando comida, pratos e cntaros, violenta-mente, sobre os aldees e o cho. No havia ningum de-baixo dela.- L est ele! - gritou Fornac.Phillipe disparou como flecha, de trs de um homemsentado na mesa seguinte -direto para os braos de outro guarda, espera.- Peguei-o!Phillipe contorceu-se furiosamente at libertar um brao.Enfiando um bem dirigido cotovelo no rosto do guarda,soltou-se e desapareceu debaixo das mesas.Os guardas saltaram atrs dele, procurando em cadacanto, virando mesas e jogando cadeiras para os lados, emdesordenada raiva, transformando o ptio em pandemnio.Fregueses gritaram e correram, mas os guardas osforaram a voltar, quando quiseram fugir do ptio. Phillipe,o Rato, no entanto, parecia ter-se evaporado.Houve um sbito silncio, enquanto Marquet observavacada rosto amedrontado, com mortais intenes. De re-pente, o silncio foi cortado por um grito agudo, no outrolado do ptio. Phillipe rastejou de trs das volumosas saiasde l de uma mulher de meia-idade, imensamente gorda eimensamente indignada.- Foi puramente sem inteno, madame - gaguejou ele,desculpando-se.

  • Frentico, olhou para a direita e para a esquerda, defrente para o corredor que os guardas formavam espera,entre ele e a sada. Desta vez no havia escapatria. Era umhomem morto, antes mesmo de se entregar. Puxou sua ad-aga, desafiante, incapaz de pensar em outra coisa a fazer, epulou de costas por entre os guardas, esforando-se em gan-har a entrada do ptio e a liberdade.Vendo a artimanha de Phillipe, Marquet tomou a mesmadireo, empurrando os aldees, decidido a intercept-lo,to inevitavelmente como a noite se segue ao dia. Umguarda aferrou o brao de Phillipe e, no momento em queMarquet chegava atrs dele, torceu-o com fora. A mo livrede Phillipe, empunhando a adaga, desferiu um amplo arcono ar...e a ponta da lmina raspou o rosto de Marquet.Marquet parou diante de seu prisioneiro, implacvel, orosto enrijecido em uma mscara de dio. O sangue gotejoudo arranho em sua face. Ele ergueu a mo lentamente e to-cou o sangue, confirmando a realidade do ferimento.Phillipe ficou flcido entre os dedos crispados doguarda, igualmente consternado ao perceber o que fizera eo que aquilo significava para ele.- Lamento... eu... sinto muito...- balbuciou, sem saber oque dizia.Marquet fez um gesto para seus homens. Dois delesempurraram o prisioneiro contra um esteio de sustentaodo teto e o firmaram ali. Um terceiro ergueu sua larga es-pada acima do indefeso Phillipe. Marquet sorriu, erguendoa mo. Phillipe virou o rosto e apertou os olhos com fora.- Que Deus me ajude! - gritou.Vinda de lugar nenhum, uma flecha de balista acertou obrao do guarda e, com um grito de dor, ele deixou cair aespada.- Marquet!Marquet ficou hirto, ao reconhecer a voz que o chamarapelo nome. Virou-se lentamente e seus homens se viraramao mesmo tempo, para verem a figura de Navarre de p entrada do ptio, como uma sombra mortal. Sua espada defolha larga oscilava na mo direita, pronta para entrar em

  • ao, e uma balista carregada descansava na dobra de seubrao esquerdo.Os olhos de Marquet arregalaram-se, ao confirmarem oque os ouvidos lhe tinham dito. Phillipe deslizou para ocho quando os guardas o soltaram, atordoado demais atpara se mover. O ptio sua volta ficara mortalmente silen-cioso.- Um de meus homens me disse que voc tinha voltado.Resmungou Marquet, com os olhos fixos em Navarre.- Eu quis cortar-lhe a lngua pela mentira, porque sabiaque voc no seria to imbecil. Olhou para Jehan:- Desculpe-me, Jehan. Est reintegrado a seu antigoposto.Navarre moveu-se ligeiramente e fez um gesto paraPhillipe.- Voc. V embora daqui!- Sim, senhor - murmurou Phillipe. - Obrigado, senhor.Conseguiu recompor-se, ficou em p aos tropees e correupara fora do ptio.

  • CAPTULO 5

    Navarre permaneceu como uma esttua de pedra, bloqueando a en-trada do ptio, enquanto o jovem ladro passava correndo ao seu lado esaa para a rua. Ento, gritou abruptamente:- Olhe para mim, Marquet!Marquet deixou de olhar o rapazinho que fugia e tomou a fixar-seem Navarre. O dio queimava como gelo em suas pupilas - um dioquase to glido quanto o que Navarre sentia por ele.Navarre fitou o homem que roubara a vida que era sua por direito,que ajudara a destruir tudo quanto j tivera qualquer significado paraele: Marquet, o sdico, fanfarro covarde; o prestimoso capanga doBispo.- Prometi a Deus que meu rosto seria a ltima coisa que voc veria.Entretanto, quando ele ergueu sua balista, um guarda levantou-seatrs de uma mesa derrubada, fez pontaria com sua prpria arma e dis-parou. Navarre captou o movimento pelo canto do olho e, virando-se,atirou quase simultaneamente. A flecha do guarda sibilou junto dele, acentmetros de seu rosto. Seu disparo, entretanto, no errou o alvo. Ohomem desmoronou atrs da mesa, com um grito.Navarre se virou, buscando Marquet - e viu-se face a face com outroguarda, um homem que reconheceu. O outro ergueu a espada, mastornou a baix-la quando seus olhos se encontraram, o rosto mostrandoincerteza e profundo arrependimento.- Capito - murmurou para Navarre. - Eu...A pesada bota de Marquet caiu violentamente nas costas do guarda,empurrando-o para diante e empalando-o na espada de seu antigocomandante. Marquet saltou de lado, rugindo a seus homens que ata-cassem. Como se fossem um s... Todos obedeceram.Navarre lutou com a furiosa intensidade de algum obcecado, comose aquela luta fosse o nico motivo para o qual tinha vivido. No entanto,apesar de seus reflexos quase inumanos, era apenas um nico homem,armado com uma espada, enfrentando mais de doze. Os guardas

  • atacavam duramente por todos os lados, cortando qualquerretirada e empurrando-o, atravs da massa de aldees emfuga, na direo do fogo. Navarre eliminou outro homem- desta feita, um que no conhecia. As fascas saltavam dochoque de ao contra ao. Seu brao armado com a espadadoa pelas centenas de golpes que levara, mas sua percianunca falhou. Ele ganhou terreno lentamente e, de um emum, eram menos os atacantes que o cercavam.Marquet, no entanto, era um homem igualmente ob-cecado. Sua nmese voltara e libertara o prisioneiro, cujavida valia mais para o Bispo do que a sua prpria. Navarrevoltara, a fim de reclamar tudo o que era seu por direito.E o dio de Marquet duplicava-se com seu medo secreto.Abriu caminho a cotoveladas por entre a multido tomadade pnico, quando Navarre foi forado a recuar at a bordado braseiro, agora quase sem chamas.Navarre ergueu os olhos e viu Marquet avanando, como homicdio nos olhos.Matou outro homem quase instintivamente, atirando-ona direo de Marquet, quando este empunhou a espada.Continuando o arco de seu movimento, volteou a espadacontra a cabea de Marquet. A espada deslizou ao longo docapacete do capito, arrancando as asas douradas de guia,o distintivo de seu posto. O rosto de Marquet contorceu-sede fria, ao perceber que Navarre fizera aquilo intencional-mente.Navarre sorriu cruelmente. Esticando o brao para trs,pegou uma acha de lenha que ardia no braseiro e a atirouao rosto de Marquet. Marquet pulou de lado, perdeu oequilbrio e caiu no braseiro. Os guardas correram em suaajuda, levantando-o dali e batendo em sua capa para apagaras chamas. Aproveitando aquele momento de confuso,Navarre comeou a abrir caminho em direo sada.Do lado de fora, na rua, Phillipe afastou-se da parededa casa mais prxima e obrigou os ps entorpecidos a semoverem, tropeando por causa do susto e da exausto. Ol-hou para trs, para a taberna, ainda mal acreditando no queacabara de acontecer e viu que no havia guardas vista.Dobrando a esquina s cegas, ele foi ao encontro dos cavalos

  • arreados que os guardas haviam escondido na estrebaria aolado da taberna. Parou de supeto, firmando os ps comum esforo de vontade; tivera a sbita inspirao de queum daqueles cavalos provavelmente aumentaria em um porcento suas agora incertas chances de fuga.Entretanto, ele jamais montara um cavalo na vida.Cavalos aterrorizavam-no. To macios mesmo compara-dos a um homem grande e robusto, aqueles animais pare-ciam pairar acima dele como montanhas. Em circunstnciasnormais, ele nem mesmo consideraria tal insanidade, masno momento, dificilmente elas seriam normais. Phillipe de-satou as radias do cavalo mais prximo, com mos nervo-sas. Firmando-se na sela, tentou enfiar o p no estribo. Oanimal pressentiu seu nervosismo e levantando as orelhas,afastou-se dele.- Vamos, cavalinho - tentou tranqilizar o animal, semconvico. - Bom cavalinho...O cavalo recuou de repente e disparou pela rua abaixo.Tenso, Phillipe olhou na direo da taberna. Os bradose gritos, o retinir do metal, disseram-lhe que a luta con-tinuava. Sozinho, Navarre continha toda a companhia deguardas. Por um fugaz instante, ocorreu-lhe que deveriavoltar e ajudar o homem que salvara sua vida pela segundavez. Com a mesma rapidez, percebeu que a idia no eraapenas suicida, mas totalmente absurda. Libertou as rdeasdo cavalo seguinte e enfiou o p no estribo.Segurou-se sela e procurou iar o corpo, sem ver quea correia da cilha estava frouxa. A sela escorregou pela tra-seira do cavalo e caiu ao cho, em cima dele.Praguejando de frustrao e humilhao, Phillipe correupara o animal seguinte.No ptio, Navarre vergastou o brao armado de maisum homem, viu o sangue jorrar e a espada do outro voarpelos ares. Seu corpo acusava a dor dos muitos golpes re-cebidos, mas nenhum deles era srio. Sua rapidez de re-flexos diminua, mas somente dois guardas e poucos metroso separavam do porto de sada do ptio. Intensificou oataque, com revigorada determinao, ganhando caminhocentmetro a centmetro para a liberdade.

  • Marquet continuava vivo, porm Navarre conseguira oque tinha vindo fazer, a coisa realmente vital - salvara ojovem ladro.Navarre derrubou um ltimo guarda com um tiochamejante e correu a toda velocidade para fora do ptio.Olhando para o fim da rua, quando um cavalo sem ca-valeiro passou por ele a meio galope, viu, com incrdulaconsternao, que Phillipe Gaston continuava vista. Orapaz se achava em meio a um bando inquieto de cavalos,tentando inutilmente agarrar um aps outro. Phillipe er-gueu os olhos quando Navarre surgiu vista e agora foi elequem ficou consternado. Dando meia-volta, comeou a cor-rer.Praguejando furiosamente para si mesmo, Navarre cor-reu para seu garanho e saltou para a sela. O falco, esper-ando sobre o aro, abriu as asas e elevou-se no ar. Agit-ando as rdeas, Navarre galopou rua abaixo, atrs do rapaz. sua retaguarda, um dos guardas deu um toque de avisoem uma corneta. Navarre olhou para diante, de boca aper-tada, sabendo o que aquilo significava. Esse maldito idiota! -pensou, olhando o rapaz que corria diretamente para outraarmadilha.A muralha da cidade alteou-se diante deles. O altoporto de madeira estava aberto, no fim da rua, mas oguarda ali estacionado ouvira a cometa soar. EnquantoNavarre olhava, ele comeou a empurrar o porto, a fim defech-lo.O garanho de Navarre aproximava-se rapidamente dePhillipe. O rapaz olhou para trs enquanto corria, com umamistura de pnico e terror no rosto.- No! No! No! - gritou ele.Atrs deles, Navarre ouvia o galope de mais cavalos emperseguio. Olhou por sobre o ombro e viu que Fornac eoutro guarda vinham chegando em rpida galopada.Tornou a olhar para diante, n tempo exato de ver opesado porto frente ser fechado com rudo. Inclinando-se na sela, estirou o brao e agarrou Phillipe, erguendo-ono ar. O corpo mido e rijo do pequeno ladro mal lhepesava no brao e ele o jogou frente da sela como um saco

  • de alimento, enquanto fincava as esporas nos flancos dogaranho. Os fortes msculos do cavalo negro retesaram-se quando ele se preparou e deu um salto em pleno ar. Ogaranho passou por cima do porto como se tivesse asas ecaiu com impacto do outro lado. O guarda do porto arre-metera contra eles no instante em que passavam voando aseu lado, mas Navarre atingiu-lhe o rosto com um soco.Navarre olhou para trs, firmando o corpo gemebundode Phillipe com a mo. Seus dois perseguidores saltaramo porto com menos graa. Ele pegou a funda que pendiada sela e enfiou-lhe uma pedra. Girando-a acima da cabea,deixou a pedra voar e ela atingiu o cavaleiro ao lado de For-nac, na cabea, derrubando-o ao cho. Contudo a desajeit-ada carga que era Phillipe entravava a velocidade do garan-ho e Fornac estava cada vez mais prximo.Navarre olhou para o cu. O falco revoluteava nas al-turas azuis acima dele, sua silhueta assemelhando-se a umabalista distendida.- Hoi! - gritou.O falco grasniu e arremeteu para baixo, fendendo oar, seus espores cintilando como facas, ao mergulhar paraFornac. O guarda levantou o brao, com um berro. Ento,seu cavalo empinou-se e ele escorregou da sela, caindopesadamente, escarrapachado no cho. Navarre prosseguiuem seu galope, sem olhar para trs, quando o falco pairoutriunfalmente sobre sua cabea.De p na rua lamacenta diante da taberna, Marquetapertava os olhos, por sob as sobrancelhas chamuscadas,enquanto Navarre e o ladro desapareciam na floresta. Seurosto escurecido pela fumaa parecia petrificado. Virando-se, olhou para os homens que lhe restavam, todos eles cuid-ando dos ferimentos recebidos. Nenhum ousou encar-lo.O falco circulou preguiosamente nas clidas correntesascendentes de ar que se erguiam com a muralha damontanha. As compridas e sensveis penas primrias dasextremidades das asas e do amplo leque de sua causaalargavam-se, torciam-se ou estreitavam-se, como se fossemmanipuladas com a delicada preciso de dedos em umamo. Muito abaixo, o homem de negro seguia lentamente

  • em seu cavalo, atravs das chamejantes cores da florestaoutonal, seguindo o espinhao da montanha. Encarapitadana garupa estava a figura diminuta de um segundo ca-valeiro, cujas vestes andrajosas de aldeo harmonizavam-seperfeitamente com o solo da floresta. O falco estudou osdois cavaleiros por longo tempo, atravs de seus inexpress-ivos olhos dourados. Por fim, manobrando as asas, intens-ificando sua resistncia, comeou a descer mais e mais, atempoleirar-se no punho enluvado de Navarre. Ento agit-ou as asas uma vez, olhando para ele. Navarre sorriu debil-mente, em reconhecimento.Por sobre o ombro largo de Navarre, Phillipe espioupara a ave, grato por alguma coisa que lhe distrasse amente daquela viagem a cavalo. Agora que sua vida nocorria o perigo imediato de terminar, pela primeira vezem dias, vira-se com tempo de sobra para refletir sobresua nova situao. Infelizmente s conseguia ser capaz depensar no quanto ainda odiava cavalo. Cochilara de exaus-to e acordara sobressaltado a tarde toda, sempre que cadasolavanco inesperado sobre o cho irregular o assustava,enquanto o estmago vazio suportava um mal-estar pro-vocado pelo movimento, algo que ele nunca antes experi-mentara. Decidiu que, nesse ano, desistiria de cavalos pelaQuaresma.Estudou a ave de rapina, admirando o sutil matizadode castanho e diva nas penas lisas e uniformes do dorso,o peito macio, em listras cor de canela, e a cauda raiadade negro. Apesar das circunstncias, estava impressionadocom a beleza do falco e por sua feroz lealdade ao dono.Navarre no usava quaisquer peias ou correias para mant-lo sempre atento ao seu comando. O falco ia e vinhasempre que queria, e sempre voltando ao brao do amo.- Esta uma ave realmente admirvel senhor - disse,procurando manter conversa, pela primeira vez em horas.Navarre era um homem de poucas falas, e em sua sisudapresena, Phillipe agira obedientemente da mesma forma. -Eu juraria que ela voou para aqueles homens por vontadeprpria!Navarre virou o rosto para trs, a fim de fit-lo.

  • - Temos viajado algum tempo juntos. Acho que ela senteuma certa... - ele vacilou -...lealdade por mim.O falco experimentou sobre Phillipe um olho semel-hante a uma conta e sibilou desafiadoramente, batendo asasas pintalgadas. De repente, ele percebeu que a ave noera, em absoluto, propriedade daquele homem... que os doisviajavam como iguais. E que ele no era, em definitivo, umaadio bem-vinda ao relacionamento de ambos, pelo menosno tocante ave. E quanto a Navarre? O homem que se tra-java como se estivesse de luto e que lutava como um anjoda morte, evidentemente tinha algum rancor em relao Guarda do Bispo. Entretanto, isto no alterava o fato de quearriscara a vida duas vezes para salvar a de um absoluto es-tranho, caado por eles. Da primeira vez, poderia ter sidouma feliz coincidncia, mas coincidncias no costumavamrepetir-se.Era quase como se o homem o estivesse seguindo...Phillipe pigarreou.- Se... no se incomoda, senhor, talvez pudesse explicar-me certa lealdade que parece ter por mim. - Navarre norespondeu desta vez e nem olhou para trs. Phillipeprosseguiu, ansiando por uma resposta que, de repente, eramuito importante para ele. -Acontece apenas que o senhor salvou minha vida duasvezes e... bem, eu no sou ningum! - Percebendo comoaquilo soava, acrescentou: - Claro, sou algum, natural-mente...Navarre prosseguiu em silncio por outro longo mo-mento, refletindo cuidadosamente. Meditava na verdade eno motivo por que necessitava daquela notvel massa decontradies, colada garupa de sua montaria. Avaliava oque vira at agora sobre o potencial de Phillipe Gaston, con-tra a possibilidade de contar-lhe essa verdade.As palavras brotaram dentro dele - a sbita, terrvel ne-cessidade de partilhar sua carga com algum... Mas no es-ta. Ainda no. Forou-se a recordar que o rapaz era apen-as um ladro comum, um mentiroso de lngua rpida, semhonra e, provavelmente, tambm sem futuro. J vira gente

  • demais, assim, para saber que no devia confiar em nen-huma, mesmo com semelhante ndole.Fechou a boca e meditou por um momento mais, record-ando o primeiro encontro dos dois. Sorriu para si mesmo,sem que Phillipe visse.- Estive pensando no que voc me disse outro dia, l naponte.- Ah! - exclamou Phillipe. - Compreendo. - Houve um in-stante de silncio, - E o que foi que eu disse?- Que eu estaria precisando de um bom homem para mevigiar os flancos.Sentiu que Phillipe se empertigava atrs dele, subita-mente surpreso e orgulhoso.- A gente faz o que pode - murmurou Phillipe, comaceitvel imitao de modstia.Aps outro momento, perguntou, com desinteresse: -Por acaso reparou naquele feio talho no rosto do CapitoMarquet?Navarre girou na sela e olhou para trs, curioso.- Ele estava pedindo.Os olhos de Navarre ficaram glidos, quando pensouno quanto mais Marquet merecia. Contudo, notando a ex-presso do rapaz, apenas assentiu gravemente - um guer-reiro reconhecendo os mritos de outro. Tornou a olhar paradiante, a fim de esconder o sorriso que, de repente, suav-izava a linha dura e comprimida de sua boca.

  • CAPTULO 6

    Fornac estava na rua diante da taberna, com a mo pressionando acabea dolorida e envolta em ataduras, enquanto fiscalizava a sangui-nolenta tarefa de colocar os cadveres de seus companheiros em umcarro de bois. Marquet partira para quila, a fim de dar a notcia aoBispo. Jehan reunira o punhado de homens ainda capazes de montar epartira em perseguio de Navarre e Gaston. Fornac ficara incumbidode comandar os invlidos e os mortos, algo que ele percebeu ser maisuma reprimenda do que um cumprimento.Gritou uma ordem para o condutor, quando o ltimo corpo foi colo-cado no carro de bois. O homem estalou o chicote e o veculo avanouvagarosamente, em sua longa jornada para quila. Ao v-lo afastar-se, Fornac reparou que uma figura inesperada vinha em sua direo.Um homem gordo e ofegante trajando as vestes marrons de um mongeparou, para persignar-se, quando o carro de bois passou a seu lado. De-pois seguiu pela alameda lamacenta, em passos incertos, mas decididos.Fornac deu meia-volta e saiu em busca de seu cavalo. Naquele dia jestivera bem perto de necessitar dos ltimos sacramentos, para quereruma conversa com um homem santo.A rua estava vazia quando o Irmo Imperius alcanou o ponto emque o guarda estivera parado. Fez alto ali, enxugando o cenho e obser-vando as runas do ptio da taberna. Por um momento, a culpa trans-pareceu em seus olhos cansados e injetados de sangue. Depois meneoua cabea, fez deslizar do ombro o odre de vinho e bebeu at esvazi-lo. Quando se encaminhou para a taberna, tinha os passos incertos dohomem que j bebeu demais.O taberneiro estava agachado no ptio, vasculhando entre osdestroos quebrados, procura de algo que ainda valesse a pena salvar.No houve grande recompensa a seus esforos. Ouviu o som chocal-hante de canecas de estanho s suas costas e se virou, gritando furi-osamente:

  • - Deixem o vinho em paz, seus bastardos fedorentos! -Tarde demais, viu que era um monge, o homem em p at-rs de uma mesa chamuscada, servindo-se de generosa dosede bebida. Seu rosto ficou vermelho. - Desculpe-me, padre -murmurou.A expresso chocada do monge amenizou-se.- Deus j o perdoou, meu filho - disse Imperius, comgentileza. Ergueu a caneca, esgotou seu contedo e acres-centou: - Disseram-me que Charles de Navarre esteve aquino faz muito tempo.- Pode-se dizer que sim - respondeu acidamente otaberneiro, refletindo que as notcias corriam depressa.- Por acaso viu a direo que ele tomou? muito import-ante que eu o encontre.- Eu lhe direi o que vi, padre - replicou o taberneiro. -Espadas, flechas, fogo e sangue!Aps falar, atirou um prato quebrado contra a parede econtemplou-o estilhaar-se.Imperius assentiu tristemente e serviu-se de mais umadose. Esvaziou a segunda caneca e enxugou a boca.- Que Deus tenha piedade de voc e daqueles desesper-ados o bastante para beberem este vinho!Largando a caneca, o monge saiu do ptio em passos va-cilantes e voltou rua. Otaberneiro meneou a cabea.Bem no alto das montanhas e j tarde naquele dia, umaherdade isolada em uma clareira coberta de ervas daninhas,no meio da floresta, recebeu dois visitantes inesperados. Ocasal de meia-idade que dali arrancava penosamente o seusustento ergueu os olhos de sua srie interminvel de tare-fas quando dois homens montados em enorme cavalo negroemergiram lentamente do meio das rvores.Varrendo com uma vassoura desmantelada uma nuveminsignificante de poeira pela porta da entrada, a mulherparou o que fazia e espiou, enxugando a testa com mosengorduradas. Seus olhos apertaram-se, ao ver os dois ho-mens. O que montava frente e que ela podia ver commais nitidez parecia perigoso... mas no tinha aparncia depobre.

  • - Pitou! Pitou! - gritou estridentemente pelo marido, cor-rendo pelo quintal.De onde estava, no campo ao lado do estbulo, Pitouestudou os estranhos. Seus olhos lhe contavam mais oumenos a mesma histria. Sua mo ainda segurava a foiceque estivera afiando e uma sombria especulao lhe encheuos olhos. Passou um dedo ao longo da afiada lmina emcurva, at que uma pequena linha de sangue lhe surgiuna polpa. Levando o dedo boca, ele o chupou pensativa-mente.Phillipe relanceou os olhos pelo terreiro da herdade, en-quanto Navarre guiava o garanho negro. O estbulo emrunas, o terreiro imundo, a cabana com paredes descasca-das e o teto de colmo apodrecido - aquele no era o tipode lugar onde esperara passar a noite. Entretanto, era difcilencontrar alguma habitao humana em um ponto to altodas montanhas - e Phillipe sabia que Navarre era agora umhomem to perseguido como ele prprio. A julgar pelasmaneiras de seu companheiro e pelas armas que levava,Phillipe desconfiou que ele talvez fosse fugitivo h muitomais tempo. No momento, tinham que aceitar o que lhesaparecia. Por outro lado, quela altura ele passaria a noitegostosamente no inferno, desde que pudesse descerdaquele cavalo.Navarre no fez comentrios, mas Phillipe observouduvidosamente seus anfitries em potencial para aquelanoite, enquanto eles caminhavam ao seu encontro. J viramuita gente assim - envelhecida antes do tempo, acabadapela dureza da vida. O corpo escanifrado do homem estavaencurvado pelo trabalho de muitos anos dobrando as cost-as, em um regime quase de fome. A gorda e desleixada mul-her do avental sujo, os fitou com olhos embaados e semvida, seu rosto duro, um mapa de sofrimentos. Phillipe jvira muita gente como aquela...e muita gente que tentaratransform-lo em um deles. Cnscio de si mesmo ajeitounos ombros a tnica roubada e mal-ajustada ao corpo.Navarre girou na sela e desmontou. Phillipe deslizouaps ele, mal conseguindo suster-se nos ps, ao tocar o cho.

  • Seu corpo doa em tantos lugares que, a esta altura, as dorespareciam anular-se umas s outras.- Bom dia - cumprimentou Navarre cortesmente. -Gostaria de pedir-lhes abrigo por esta noite. Para mim e - ol-hou para Phillipe -meu companheiro de armas.Phillipe ficou extasiado e endireitou os ombros. Ohomem examinou Navarre de alto a baixo, como se tent-ando decidir o quanto era perigoso ou a quantidade que po-deria comer.- No temos comida para partilhar, - respondeu - mas hpalha na estrebaria... por um preo.Seus olhos nunca pousaram em Phillipe. Irritado, orapaz puxou sua bolsa roubada de dinheiro, fazendo comque as moedas tilintassem tentadoramente.- Muito bem dito, meu caro amigo, mas no se preocupe.No estamos acima da compaixo por aqueles na misria...Interrompeu-se. Seu gesto no fizera nos Pitous o efeitoque pretendera. Em vez de o reconhecerem como algumem companhia de Navarre, e no na deles, limitaram-se aficar olhando a bolsa de dinheiro, como que hipnotizados.Navarre olhou bruscamente para Phillipe. Depois deuum passo, ficando frente dele, de maneira a cortar a visodos Pitous.- Seu jantar ser o pagamento que recebero por nossasacomodaes - declarou. -Estas noites, ambos se empanturraro de coelho! -Virando-se, fez sinal para o falco, com um brao estendido.- Hoi!O falco disparou da sela e logo pairava nos ares, ao solda tarde que findava.Uma hora depois eles tiveram no um, mas dois coelhosmortos pouco antes, para o festim do jantar. Phillipe recol-heu madeira e fez uma fogueira no terreiro, seguindo or-dens de Navarre, enquanto o homem mais velho esfolava oscoelhos e os enfiava em espetos. Navarre parecia no sen-tir vontade de entrar na casa dos Pitous, preferindo fazersua refeio ao ar livre. Phillipe concordava inteiramente,bastante familiarizado com os parasitas e o fedor queprovavelmente encontrariam l dentro.

  • Os Pitous juntaram-se a eles, quando o cheiro do coelhoassado impregnou o ar.Phillipe mal podia controlar-se, enquanto os coelhos noficaram prontos; o cheiro da carne recm-assada deixava-o tonto de fome. Os Pitous, no entanto, empurraram-nopara um lado e apoderaram-se da carne primeiro; comeramvoraz e ruidosamente, como animais selvagens. Aoobserv-los, Phillipe procurou fazer sua refeio com pelomenos uma aparncia de calma e indiferena. Foi mais fcildo que esperava. Seu estmago vazio havia encolhido aponto de conter bem menos do que ele recordava.Navarre comeu a esmo, embora nada houvesse ingeridodurante toda a tarde, inclusive aps sua batalha na taberna.O falco empoleirou-se na cumeeira da estrebaria, acimadele. Grasniu uma vez, agitou as asas incessantemente e ol-hou para o sol poente.Navarre ergueu a cabea ao ouvi-lo grasnir e olhou nadireo do horizonte, como se seguisse sua indicao.Jogando um osso ao fogo, levantou-se sem pressa.Phillipe ergueu os olhos para ele. Enquanto olhava, amo ossuda de Pitou apoderou-se de um pedao meio com-ido de carne em seu prato. O rapaz baixou os olhos, quandoo movimento o alertou. Deu de ombros, com a mais naturalindiferena.- Ns comemos isto todas as noites - disse.A certeza de que doravante comeria daquela maneiracada noite tornou sua mentira mais convincente. Tornou afitar Navarre, que continuava de p. O rosto do homem,avermelhado pelo sol que se punha e a claridade dafogueira, era a face hirta de quem espera a execuo. Umatristeza infinita lhe toldava os olhos. Passou em silncio aolado do fogo e afastou-se, seu vulto alto e escuro silhuetadocontra os raios sanguinolentos do sol.Phillipe olhou para Navarre, mostrando uma mescla decuriosidade e preocupao.Absorto nisso, no percebeu o olhar especulativo de Pit-ou para seu prprio rosto perplexo. Pitou ento fitou Nav-arre e depois sua esposa, assentindo de maneira quase im-perceptvel. As feies da mulher ficaram tensas.

  • Em largas passadas, Navarre caminhou para trs dadesconjuntada estrebaria, onde o garanho negro pastavapacientemente entre as ervas. Ali, comeou a remexer nosalforjes da sela, esquecido dos outros ou do que poderiampensar. Suas mos encontraram a fluida maciez de tecido ea glida curvatura de metal polido com a facilidade de umalonga familiaridade. Puxou uma veste feminina em sedaazul-pervinca e o capacete ornado de asas douradas que umdia usara em seu legtimo posto de Capito da Guarda.Contemplou-os por um longo momento, perdido em re-cordaes, antes de erguer os olhos para o sol que se punha.- Um dia...Navarre repetiu a promessa que fizera a si mesmo - e aela - antes de tantos sis poentes; ela, que lhe infundia foraspara suportar a noite que tinha pela frente.Phillipe levantou-se de junto da fogueira, abandonandoos restos do coelho para os Pitous, e seguiu Navarre silen-ciosamente, atravs do terreiro. Parou a um metro de dis-tncia das costas de seu companheiro. Navarre nem o ouviuchegar. O rapaz estacou, indeciso, espiando sobre o ombrodo outro. Pestanejou de surpresa, ao ver uma fina veste fem-inina de seda, arrumada com esmero entre os suprimentos.As mos de Navarre largaram o tecido e afundaram-se noalforje, procurando algo mais no fundo. Seus dedos encon-traram um surrado pedao de pergaminho, que desdobroucom cuidado. A escrita estava to apagada que Phillipe de-cifrou apenas uma nica letra, um "I" maisculo. Viu asmos de Navarre tremerem.- Senhor? - sussurrou Phillipe.Navarre girou sobre si mesmo com a velocidade de umacobra atacando. Phillipe viu lgrimas brilhando em seus ol-hos, na frao de segundo antes que os mesmos olhos se en-chessem de furiosa raiva.Phillipe recuou um passo, sentindo o corao comprim-ido pelo mesmo terror de quando vira Navarre pelaprimeira vez. Abriu a boca, mas, por um momento, no con-seguiu emitir som algum.- Se...