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 1  Economia & T ecnologia - Ano 07, V ol. 25 - Abril/Junho de 201 1 Reflexões sobre O Império do Efêmero, de Gilles Lipovetsky Igor Zanoni Constant Carneiro Leão *  RESUMO - Este artigo-resenha apresenta um dos mais importantes livros do filósofo francês Gilles Lipovetsky, marcado por uma ambiguidade entre uma compreensão mais acurada dos conceitos de comportamento , cultura e consumo e um esquecimento de conflitos reais nas s o- ciedades modernas, que esses conceitos não podem e não devem mascarar . Palavras-chave: Pós-modernidade. Democracia. Liberalismo. O filósofo francês Gilles Lipovetsky começou como um pensador do luxo acessível às camadas crescentes da população nas sociedades europeias na era do apogeu do estado de bem-estar , passando logo a um pensador de temas correlatos, como a moda, a publicidade e a mídia, para em seguida estudar a política e as relações do indivíduo consigo mesmo e com essas esferas no final do século XX. Dentro de sua obra, O Império do Efêmero - A moda e seu destino nas sociedades modernas , publicado na França em 1987 e no Brasil em 2009, destaca-se como um pai- nel de um pensamento ao mesmo tempo rebelde às tradições críticas clássicas e uma defesa do individualism o democrático daquelas sociedades. Seu objetiv o não é estudar as camadas sociais situadas no topo da pirâmide de renda e propriedade, os 10% mais ricos, mas o acesso do bem- estar e do luxo a g randes camadas da população logo abaixo destes. Sua tese pode ser resumida como a afirmação moderna de uma descontração das atitudes, gosto pela intimidade e pela ex- pressão de si, ligados à galáxia dos valores democráticos - autonomia, hedonismo, psicologismo - impulsionados pela cultura de massa e pela moda na sua expressão mais recente. O autor retoma a análise de Veblen, segundo a qual a moda liga-se à rivalidade social, ou seja, o consumo das classes superiores obedece em essência ao esbanjamento ostentatório , a fim de atrair a estima e a inveja dos outros. As classes superiores, para conquistar e conser-  var honra e prestígio , devem fazer exibições de riqueza e de luxo, manifestar por suas boas maneiras, seu decoro, seus adereços, que não estão sujeitas ao trabalho produtivo e indigno. O consumo conspícuo, ao qual a moda, com suas variações rápidas e suas inovações inúteis, está particularmente adaptada, é um instrumento de obtenção de honorabilidade social. Para o nosso autor, há aí um reducionismo sociológico, pois para Veblen os entusiasmos delirantes traduzem apenas nossa aspiração à estima social, ou seja, os gêneros em voga são estimados apenas na medida em que permitem tirarmos deles uma distinção . * Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas. É professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná. Endereço eletrônico: igorzaleao@yahoo .com.br.

o Imperio Do Êfemero

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  • Economia & Tecnologia - Ano 07, Vol. 25 - Abril/Junho de 2011

    Reflexes sobre O Imprio do Efmero, de Gilles Lipovetsky

    Igor Zanoni Constant Carneiro Leo

    RESUMO - Este artigo-resenha apresenta um dos mais importantes livros do filsofo francs Gilles Lipovetsky, marcado por uma ambiguidade entre uma compreenso mais acurada dos conceitos de comportamento, cultura e consumo e um esquecimento de conflitos reais nas so-ciedades modernas, que esses conceitos no podem e no devem mascarar.

    Palavras-chave: Ps-modernidade. Democracia. Liberalismo.

    O filsofo francs Gilles Lipovetsky comeou como um pensador do luxo acessvel

    s camadas crescentes da populao nas sociedades europeias na era do apogeu do estado de

    bem-estar, passando logo a um pensador de temas correlatos, como a moda, a publicidade e a

    mdia, para em seguida estudar a poltica e as relaes do indivduo consigo mesmo e com essas

    esferas no final do sculo XX. Dentro de sua obra, O Imprio do Efmero - A moda e seu destino nas

    sociedades modernas, publicado na Frana em 987 e no Brasil em 2009, destaca-se como um pai-

    nel de um pensamento ao mesmo tempo rebelde s tradies crticas clssicas e uma defesa do

    individualismo democrtico daquelas sociedades. Seu objetivo no estudar as camadas sociais

    situadas no topo da pirmide de renda e propriedade, os 0% mais ricos, mas o acesso do bem-

    estar e do luxo a grandes camadas da populao logo abaixo destes. Sua tese pode ser resumida

    como a afirmao moderna de uma descontrao das atitudes, gosto pela intimidade e pela ex-

    presso de si, ligados galxia dos valores democrticos - autonomia, hedonismo, psicologismo

    - impulsionados pela cultura de massa e pela moda na sua expresso mais recente.

    O autor retoma a anlise de Veblen, segundo a qual a moda liga-se rivalidade social,

    ou seja, o consumo das classes superiores obedece em essncia ao esbanjamento ostentatrio,

    a fim de atrair a estima e a inveja dos outros. As classes superiores, para conquistar e conser-

    var honra e prestgio, devem fazer exibies de riqueza e de luxo, manifestar por suas boas

    maneiras, seu decoro, seus adereos, que no esto sujeitas ao trabalho produtivo e indigno.

    O consumo conspcuo, ao qual a moda, com suas variaes rpidas e suas inovaes inteis,

    est particularmente adaptada, um instrumento de obteno de honorabilidade social. Para

    o nosso autor, h a um reducionismo sociolgico, pois para Veblen os entusiasmos delirantes

    traduzem apenas nossa aspirao estima social, ou seja, os gneros em voga so estimados

    apenas na medida em que permitem tirarmos deles uma distino. Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas. professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paran. Endereo eletrnico: [email protected].

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    A questo que Lipovetsky levanta saber por qual mecanismo a norma do consumo

    ostensivo chega a engendrar as novidades em sucesso que fazem a moda, ou seja, por que,

    durante milnios, no desencadeou, de algum modo, a loucura dos artifcios. Para Veblen, o

    que separa as eras de moda das eras de estabilidade depende apenas da obrigao de despen-

    der ocasionada pelas condies prprias cidade grande, onde as classes superiores so mais

    ricas, mais mveis e menos homogneas do que nos tempos tradicionais. Nestas condies, o

    esbanjamento ostentatrio e a corrida pela estima impem-se de modo a provocar a mudana

    permanente das formas e dos estilos. Para o nosso autor, o imperativo de exibir riqueza no

    aumentou no Ocidente moderno, mas manifestou-se de modo diferente, aliando-se busca da

    diferena individual e da inovao esttica. A moda est relacionada com uma exigncia esttica

    que no poderia ser reduzida apenas ordem da superfluidade aberrante para a cotao social.

    A moda se define pela mira do refinamento, da elegncia, da beleza, mesmo que, ao longo dos

    sculos, tenha havido extravagncias, excessos e mesmo mau gosto eventuais.

    Assim, ao contrrio do que se pensa, as rivalidades de classe no so o princpio de

    onde decorrem as variaes incessantes da moda. A questo da moda deve ser deslocada da

    seguinte forma: a moda no uma consequncia do consumo conspcuo e das estratgias de

    distino de classes, mas a decorrncia de uma nova relao de si com os outros, do desejo de

    afirmar uma personalidade prpria que se estruturou nas classes superiores ao final da Idade

    Mdia. Longe de ser um fenmeno perifrico, a conscincia de ser um indivduo com destino

    particular, a vontade de exprimir uma identidade singular, a celebrao cultural da identidade

    pessoal, foram uma fora produtiva e o motor da moda. Houve a uma revoluo na represen-

    tao das pessoas e no sentimento de si, modificando profundamente as mentalidades e valores

    tradicionais, desencadeando a exaltao da unicidade dos seres e a promoo social dos signos

    da diferena pessoal.

    Juntamente com a proliferao, nas obras poticas, das confidncias ntimas, o apa-

    recimento da autobiografia, do retrato e do autorretrato realistas, revelam a nova identidade reco-

    nhecida naquilo que singular ao homem, ainda que de forma muito codificada e simblica.

    As inovaes permaneceram um privilgio de classe, mas o fundamental est em que os mais

    altos na hierarquia agora personalizam sua aparncia, demonstrando uma infiltrao de uma

    nova representao da individualidade no universo aristocrtico. H uma penetrao nas classes

    superiores dos novos ideais da personalidade singular. Em suma, a legitimidade da renovao e

    do presente social combinou-se com a afirmao da lgica individualista-esttica como lgica

    da diferena e da autonomia.

    Pode-se periodizar a moda, mas o importante que a afirmao da sociedade burguesa

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    Economia & Tecnologia - Ano 07, Vol. 25 - Abril/Junho de 2011

    existe junto com a amplitude sociolgica e miditica de uma tendncia positiva para fazer da

    moda um objeto a ser mostrado, analisado, registrado, como manifestao esttica. No sculo

    XIX assiste-se a um interesse sem precedentes pelas questes relacionadas ao parecer, pelas no-

    vidades, que podem ser vistas como paixes democrticas, que fazem a glria da gente de moda

    e dos grandes costureiros. A pretenso artstica e mesmo a insolncia da gente de moda liga-se

    a uma corrente de ambio, de suficincia, de vaidade prpria entrada das sociedades na era

    da igualdade. O culto heroico feudal e a moral crist tradicional, que considera as frivolidades

    como signos do pecado do orgulho, cedem lugar, a partir do sculo XVIII, ao crdito dado ao

    prazer e felicidade, s novidades e facilidades materiais, liberdade entendida como satisfao

    dos desejos e ao abrandamento das convenincias rigoristas e interdies morais, dignificando

    as coisas humanas e terrestres de onde sai o culto moderno da moda.

    Ainda segundo nosso autor:

    A ideologia individualista e a era sublime da moda so assim inseparveis; culto da expanso individual, do bem-estar, dos gozos materiais, desejo de liberdade, vontade de enfraquecer a autoridade e as coaes morais: as nor-mas holistas e religiosas, incompatveis com a dignidade da moda, foram minadas no s pela ideologia da liberdade e da igualdade, mas tambm pela do prazer, igualmente caracterstica da era individualista. (LIPOVETSKY, 2009, p. 02).

    Insistindo na mesma ideia, o autor atesta um rebaixamento do sentido do sublime, a

    humanizao dos ideais, a primazia dos pequenos prazeres acessveis a todos. Observa-se ao

    mesmo tempo a vitria do ideal democrtico da seduo, dos sucessos rpidos, dos prazeres

    imediatos, fazendo com que a moda aparea como uma manifestao democrtica, ainda que

    seja no interior do mundo dos privilegiados e em nome da diferena distintiva que ela tenha

    nascido.

    Todavia, na atualidade, a moda j no encontra seu modelo no sistema que encarnou

    na poca dos grandes costureiros ou da alta costura. Entre os anos cinquenta e sessenta do s-

    culo XX, transformaes organizacionais, sociais e culturais alteraram a tal ponto a construo

    anterior, que se pode afirmar que uma nova fase da histria da moda surgiu. Para o autor, essa

    segunda fase da moda moderna generaliza uma produo burocrtica orquestrada por criado-

    res profissionais, uma lgica industrial serial, colees sazonais, desfiles de manequins com fim

    publicitrio. Ao mesmo tempo, a configurao hierarquizada e unitria anterior rompeu-se, a

    significao social e individual mudou, embora preserve a face burocrtico-esttica da moda,

    sua face industrial e sua face democrtica e individualista. Assiste-se a uma moda prt--porter que

    se desliga da imitao das formas inovadas da alta costura e concebe roupas com um esprito

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    mais voltado audcia, juventude, novidade, do que perfeio classe. Esta a origem do

    sportswear, do vesturio livre de esprito jovem. A prpria alta costura volta-se para o prt--porter,

    e a era do vesturio sob medida termina, substituda por uma produo industrial de essncia

    homognea, quaisquer que sejam as variaes de preo e de inovao que nela se encontrem.

    Agora, a alta moda apenas uma fonte de inspirao livre, sem prioridade, ao lado de muitas

    outras, como estilos de vida, esportes, filmes e assim por diante, dotadas de igual importncia.

    O vesturio industrial chega era da criao esttica e da personalizao. O produto de grande

    difuso agora uma sntese especfica dos imperativos da indstria do estilismo, concretizada

    num vesturio que combina, de acordo com a clientela visada, o clssico e o original, o srio e

    o leve, o sensato e a novidade.

    Neste ponto, a moda de massa passa para uma era de superescolha democrtica, das

    pequenas peas e coordenados baratos, da seduo mediana do bonito e barato e da rela-

    o esttica-preo. Assim: A indstria do prt--porter no conseguiu constituir a moda como

    sistema radicalmente democrtico seno sendo ele prprio sustentado pela ascenso democr-

    tica das aspiraes coletivas da massa. (LIPOVETSKY, 2009, p. 2). A legitimao e a demo-

    cratizao das paixes da moda ligam-se elevao do nvel de vida, cultura do bem-estar,

    do lazer e da felicidade imediata. A moda torna-se uma exigncia de massa, em uma sociedade

    que sacraliza a mudana, o prazer e as novidades. Alm da cultura hedonista, o surgimento da

    cultura juvenil, ligada ao baby boom e ao poder de compra dos jovens, liga-se mais profunda-

    mente a uma manifestao ampliada da dinmica democrtica individualista.

    Trata-se agora de um inconspicuous consumption, no qual figura um ideal igualitrio ligado

    arte moderna, aos valores esportivos e ao novo ideal individualista do look jovem. Neste mo-

    mento h um eclipse no imperativo do vesturio dispendioso, todas as formas, todos os estilos,

    todos os materiais, ganham uma legitimidade de moda: o descuidado, o tosco, o rasgado, o

    descosturado, o desmazelado, o gasto, o desfiado, o esgarado, so incorporados ao campo da

    moda. H uma continuidade da dinmica democrtica que dignifica jeans dlavs, os pulls pu-

    dos, os tnis gastos, os trastes retr, os grafismos comics nas t-shirts, os andrajos, o look clochard,

    as derivaes high tech. Ao mesmo tempo, assiste-se, nos anos oitenta, ao neodandismo, no qual

    se registra, na ordem da moda, da tica hedonista e hiperindividualista, gerada pelos ltimos

    desenvolvimentos da sociedade do consumo, a embriaguez dos artifcios do espetculo da cria-

    o em uma sociedade cujos valores culturais primordiais so o prazer e a liberdade individuais.

    O que valorizado o desvio, a personalidade criativa, a imagem surpreendente, e no mais a

    perfeio do modelo. Ao mesmo tempo, h uma maior independncia e expresso de si, um

    neonarcisismo alrgico aos imperativos padronizados e s regras homogneas.

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    Economia & Tecnologia - Ano 07, Vol. 25 - Abril/Junho de 2011

    Uma caracterstica marcante da civilizao moderno-democrtica a confuso entre

    as fronteiras fora de moda/na moda. Para o autor, varrida a depreciao e a culpa ligada ao

    fora de moda, a democratizao da moda entrou em sua fase final; os indivduos adquiriram

    uma liberdade de vesturio muito grande; a presso conformista do social cada vez menos

    pesada e homognea. Isso traduz uma pacificao da moda e faz parte da suavizao e tolern-

    cia crescente dos costumes. Outras caractersticas similares so a alergia profunda em relao

    violncia e crueldade, a nova sensibilidade em relao aos animais, a importncia da escuta do

    outro, a educao compreensiva, o apaziguamento dos conflitos sociais.

    Esta sociedade est menos tributria do imperativo de subjugar. Trata-se agora de

    agradar estando vontade; a seduo conquistou uma autonomia maior concedendo uma prio-

    ridade ao conforto e ao prtico. Esta a moda do descontrado, que torna cada dia mais discre-

    tas as estratgias da seduo vista como uma escolha e um prazer. uma sociedade na qual, a

    um tempo, existe uma privatizao das existncias e um impulso aos valores individualistas e,

    por outro lado, um menor individualismo do que nos sculos anteriores, nos quais a busca de

    diferenciao social e pessoal era febril, fonte de rivalidade e inveja. O individualismo mais

    livre e menos decorativo, mas mais opcional, mais autnomo e sujeito autonomia pessoal.

    A partir da entra-se em uma era chamada pelo autor de moda consumada, a extenso

    do processo da moda a instncias cada vez mais vastas da vida coletiva. Ela deixa de ser um

    setor especfico e perifrico para tornar-se uma forma geral em ao no todo social. Estamos

    imersos na moda que exerce, um pouco em toda parte, e cada vez mais, a trplice operao de

    definir o efmero, a seduo e a diferenciao marginal. No dizer do autor:

    Uma nova gerao de sociedades burocrticas e democrticas faz sua apa-rio, com dominante leve e frvola. No mais a imposio coercitiva das disciplinas, mas a socializao pela escolha e pela imagem. No mais a Revo-luo, mas a paixonite do sentido. No mais a solenidade ideolgica, mas a comunicao publicitria. No mais o rigorismo, mas a seduo do consumo e do psicologismo. [...] A moda consumada no significa desaparecimento dos contedos sociais e polticos em favor de uma pura gratuidade esnobe, formalista, sem negatividade histrica. Significa uma nova relao com os ideais, um novo investimento nos valores democrticos e, ao mesmo tempo, acelerao das transformaes histricas, maior abertura coletiva prova do futuro, ainda que nas delcias do presente. (LIPOVETSKY, 2009, p. 80-8).

    O autor segue por esse caminho para fazer uma crtica do estigma do imprio da se-

    duo e da obsolescncia: racionalidade da irracionalidade (Marcuse), organizao totalitria da

    aparncia e alienao generalizada (Debord), condicionamento global (Galbraith), sociedade

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    terrorista (Henri Lefebvre), sistema fetichista e perverso prorrogando a dominao de classe

    (Baudrillard), esquemas que viram a supremacia da moda luz do esquema da luta de classes e

    da dominao burocrtico-capitalista. Todos esses autores denunciavam por trs da ideologia

    da satisfao das necessidades o condicionamento da existncia, a racionalizao e a extenso

    da dominao. Entretanto, estes autores esquecem, segundo Lipovetsky, de que a seduo opera

    subordinando a razo, a escalada do ftil persegue a conquista plurissecular da autonomia dos

    indivduos. Assim, nosso autor coloca-se contra quase todas as vertentes ideolgicas ligadas

    denncia da dinmica da dominao de classes e s suas formas contemporneas, partindo do

    primado do indivduo para estudar a vida material e sua produo fabril, a publicidade e a cul-

    tura propagada pela mdia.

    Olhando a fbrica, a forma moda, que a forma especfica da mercadoria na poca

    ps-moderna, ou melhor, hipermoderna, manifesta-se na cadncia acelerada das mudanas de

    produtos, na instabilidade e na precariedade das coisas industriais, governadas pela regra do

    efmero, na produo e no consumo dos objetos. Assim, uma firma que no cria regularmente

    novos modelos perde em fora de penetrao no mercado e enfraquece sua marca de qualidade,

    numa sociedade em que a opinio espontnea dos consumidores se traduz na superioridade do

    novo sobre o antigo. a poca da inovao grande ou pequena, mas contnua, onde o desuso se

    acelera e reina a seduo insubstituvel da mudana, da velocidade, da diferena. O que importa

    j no a utilidade da mercadoria, mas a seduo dos jogos que permite. Ao mesmo tempo,

    aumenta o desejo j aumentado de funcionalidade e de independncia individual.

    Recorrendo outra vez ao autor, a caracterstica da produo industrial contempornea

    faz com que a nossa sociedade no seja dominada por uma lgica kitsch da mediocridade e da

    banalidade:

    O que faz a diferena cada vez menos a elegncia formal e cada vez mais as performances tcnicas, a qualidade dos materiais, o conforto, a sofisticao dos equipamentos; o estilo original no mais privilgio do luxo, todos os produtos so doravante repensados tendo em vista uma aparncia sedutora, a oposio modelo/srie turvou-se, perdeu o seu carter hierrquico ostenta-trio. (LIPOVETSKY, 2009, p. 89).

    Da mesma forma, h uma incorporao sistemtica da dimenso esttica na elabora-

    o dos produtos sociais, a expanso da forma moda encontra seu ponto de realizao final.

    O sucesso de um produto depende em grande parte de seu design, de sua apresentao, de sua

    embalagem e acondicionamento. Nesse ponto, o autor volta a uma teoria cara a Veblen, a do

    consumo ostentatrio como instituio social encarregada de significar a posio social. Nesta

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    teoria, o valor de uso das mercadorias no o que motiva profundamente os consumidores;

    visa-se antes a posio e a diferena social. Os objetos no passam de signos de mobilidade e de

    aspirao social e a efemeridade e inovao sistemtica reproduzem a diferenciao social.

    Para o nosso autor, essas teorias esquecem a verdadeira funo histrica do novo tipo

    de regulao social base de inconstncia de seduo e de hiperescolha. A grande originali-

    dade histrica do impulso das necessidades o desencadear de um processo que vai do valor

    estatutrio dos objetos em favor do valor dominante do prazer individual. cada vez menos

    verdadeiro que adquirimos objetos para obter prestgio social. Ao contrrio, o que se busca

    atravs dos objetos uma satisfao privada cada vez mais indiferente aos julgamentos dos

    outros, manifestando-se em vista do bem-estar, da funcionalidade, do prazer para si mesmo.

    Consumimos, atravs dos objetos e das marcas, dinamismo, elegncia, poder, renovao dos

    hbitos, virilidade, feminilidade, idade, refinamento, segurana, naturalidade e assim por diante,

    muito alm de fenmenos de vinculao social estatutria. H uma individualizao das pessoas

    no consumo dos objetos. No a continuao da distncia social.

    Nesse contexto se recoloca um outro status para o espao pblico, no qual as paixes

    individualistas, a moda consumada, tm como tendncia a indiferena pelo bem pblico, a pro-

    penso ao cada um por si, a prioridade atribuda ao presente sobre o futuro. A ascenso dos

    particularismos e dos interesses corporativos, a desagregao do senso do dever ou da dvida

    em relao ao conglomerado coletivo. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a moda consu-

    mada gera uma atitude positiva diante da inovao, enrijece as tendncias mobilidade social.

    Ela ao mesmo tempo impulsiona e congela o modernismo.

    Outro ponto associado moda consumada diz respeito s metamorfoses da publici-

    dade. Com esta, a comunicao presa nas malhas da forma moda; bem longe da lgica tota-

    litria da propaganda, comunicao no se atribui controle, mas empreende um efeito pro-

    fundamente democrtico s relaes entre razo comercial e poltica. A publicidade seduo,

    logo, originalidade, espetculo, fantasia, suspenso das leis do real e do racional, da retirada da

    seriedade da vida, do festival dos artifcios. Os publicitrios so valorizados socialmente, reco-

    nhecidos como criativos; o negcio ganhou um suplemento de alma, e as atividades lucrativas

    elevam-se dimenso expressiva e artstica.

    Na anlise clssica, as necessidades so dirigidas e manobradas, a autonomia do con-

    sumidor se desfaz em favor de uma demanda condicionada pela tecnoestrutura. A demanda

    globalmente planificada, e a publicidade permite programar o mercado na medida em que

    modela os gostos e aspiraes, condicionando as existncias privadas, concluindo o advento de

    uma sociedade de essncia totalitria. Entretanto, para o autor, essa assimilao da ordem pu-

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    blicitria lgica totalitria falsa: Nada igual publicidade: ao invs da coero minuciosa, a

    comunicao; no lugar da rigidez regulamentar, a seduo; no lugar do adestramento mecnico,

    o divertimento ldico (LIPOVETSKY, 2009, p. 22). Dessa forma, a publicidade integra, dentro

    de si, a livre disponibilidade das pessoas e o aleatrio dos movimentos subjetivos. Ela se exerce

    sobre a massa, no sobre o indivduo; seu poder no mecnico, mas estatstico; seu modo de

    ao no invade o universo do minsculo.

    A publicidade procura menos reconstituir o homem do que utilizar pragmaticamente

    os gostos existentes de gozos materiais, de bem-estar, de novidades. O impacto da publicidade

    sempre moderado. Embora vital para as empresas, insignificante para os indivduos em suas

    vidas e escolhas profundas. Reafirma-se, dessa forma, seu sentido e seu trabalho democrtico,

    em benefcio de um espao mais mvel e menos ortodoxo:

    Para alm das manifestaes reais de homogeneizao social, a publicidade trabalha, paralelamente promoo dos objetos e da informao, na acen-tuao do princpio da individualidade. No instantneo e no visvel, produz massificao; no tempo mais longo, e de maneira invisvel, despadronizao, autonomia subjetiva. uma pea no avano do Estado Social Democrtico. (LIPOVETSKY, 2009, p. 229).

    O mesmo processo da moda reestrutura tambm a comunicao poltica, na qual

    ningum entra se no for sedutor e tranquilo, fazendo a competio democrtica passar pelo

    aliciamento, pelo entretenimento, a aparncia, a personalidade miditica. Nos estados demo-

    crticos, os cidados passam a identificar-se de maneira cada vez menos fiel com um partido, o

    comportamento do eleitor e do consumidor pragmtico e indeciso tendem a aproximar-se. A

    mdia age apenas sobre a categoria dos eleitores que so os hesitantes, os indivduos pouco mo-

    tivados pela vida poltica. Contrariamente aos que acusam o Estado-espetculo, a informao e

    o divertimento se confundem, a seduo permite aos cidados escutar, estarem mais informa-

    dos sobre os diferentes programas e crticas dos partidos. antes um instrumento de uma vida

    poltica democrtica da massa do que um novo pio do povo.

    Ao mesmo tempo h uma aproximao entre Estado e sociedade, na qual aquele deve

    parecer-se cada vez mais com esta; o poder j no tem muita altivez, est prximo dos gostos e

    dos interesses cotidianos dos homens comuns.

    Da mesma forma, a cultura de massa tornou-se uma mquina formidvel comandada

    pela lei da renovao acelerada, do sucesso efmero, da seduo, da diferena marginal. Nela, as

    paixonites culturais so formas sutis de transgresso, que despertam uma loucura que no in-

    comoda, na maioria das vezes, nenhuma instituio, nenhum valor, nenhum estilo. Ela exprime

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    uma emoo ligada novidade reconhecvel, no forma de subverso. Assim, coexiste um pro-

    cesso de humanizao das estrelas dessa cultura, que se tornam reflexos das pessoas comuns,

    no mais seus modelos. H uma democratizao do estrelato. Diante da estrela h um culto da

    personalidade, mas no um culto do sagrado; um culto esttico, mas no um culto arcaico; um

    devaneio ntimo, mas no um misticismo transcendente.

    Para o nosso autor,

    Toda cultura de massa trabalhou no mesmo sentido que as estrelas: um ex-traordinrio meio de desprender os seres de seu enraizamento cultural e fa-miliar, de promover um ego que dispe mais de si mesmo. Pelo ngulo da evaso imaginria, a cultura frvola foi uma pea na conquista da autonomia privada moderna: menos imposio coletiva, mais modelos de identificao e possibilidades de orientaes pessoais; a cultura miditica no fez seno difundir os valores do universo pequeno burgus, foi um vetor da revoluo democrtica individualista. (LIPOVETSKY, 2009, p. 20, grifo do autor).

    De forma semelhante, a informao na era da cultura de massa liberta os espritos dos

    limites de seu mundo particular, mquina de pr em movimento as conscincias, de multipli-

    car as oportunidades da comparao. Portanto, o consumo da mdia no o coveiro da razo, o

    espetacular no abole a formao da opinio crtica e reduz o impacto dos discursos profticos

    e dogmticos, distanciando-se das longas narrativas.

    O autor continua ainda algumas pginas nessa linha, mas para ns penso que ele est

    suficientemente esclarecido. Passemos, portanto, a uma breve apreciao desse livro algo in-

    quietante, porque anda na contramo de todas as correntes crticas da nossa modernidade ou

    ps-modernidade. preciso notar, desde logo, que essa inquietude sentida porque o texto

    traduz, de modo bastante interessante, a vida dos indivduos comuns neste momento em que o

    autor escreve, que coincide com o auge do pensamento neoliberal entre as dcadas de oitenta e

    noventa. Quase se pode ouvir, sob o texto, a provocao feita por Margareth Thatcher aos seus

    crticos: No h sociedade, h apenas indivduos. Desse forma, o livro pode ser lido como

    uma histria das pretenses neoliberais verdade.

    certamente plausvel essa amplificao da moda sobre instncias diversas, como a

    poltica e a cultura, exaltando, ao invs de lamentar, a sociedade-espetculo ou a poltica como

    espetculo. Perguntamos, entretanto, se isto leva a pensar em um respeito ou uma dignificao

    do indivduo comum, dos seus gostos e peculiaridades, ou seja, de um viver democrtico final-

    mente atingido nessa etapa de mundializao do capital. claro que a liberdade desse indivduo

    acentuada pela cultura de massa e pela forma moda da mercadoria, inclusive porque essa mun-

    dializao conduz a uma uniformizao crescente de gostos e apreciaes sobre a vida, desde

  • Igor Zanoni Constant Carneiro Leo

    0

    Economia & Tecnologia - Ano 07, Vol. 25 - Abril/Junho de 2011

    que permaneam no campo do consumo, onde mais limitada a possibilidade de interveno

    crtica sobre o capital.

    Toda interveno crtica relacionada s malfadadas metanarrativas supostamente su-

    peradas pela nossa modernidade. Aparentemente, encontramos de novo a ideia do fim da his-

    tria, como ao dos homens, como sua interao e sua luta, para usar uma palavra inexistente

    no livro, de classe. Todavia, o autor permanece sobre uma superfcie que esconde essa luta, em

    primeiro lugar porque no observa indivduos e classes no campo fundamental da produo e

    da relao entre o capital e o trabalho assalariado. fcil mostrar que a a produo de mercado-

    rias atinge um novo grau de despotismo, entrelaando-se desemprego tecnolgico, destruio

    de profisses politicamente consagradas, atingindo o cerne de partidos polticos de massa, que

    conduziram uma ampliao substancial da democracia nos pases avanados do ps-guerra. Se

    o indivduo um longo produto maturado desde o final da Idade Mdia, os anos de ouro do

    capitalismo fizeram com que essas democracias liberassem os indivduos, em grande medida, da

    insegurana na renda, no trabalho e na vida, com a expanso do estado de bem-estar social las-

    treado no conflito leste versus oeste e na competio ideolgica entre capitalismo e socialismo.

    A desconstruo parcial desse estado de bem-estar aps o colapso do leste europeu le-

    vou a um individualismo forado e produzido pelo avano tcnico, a iluso de que o mundo est

    aberto para todos, ao mesmo tempo em que a interioridade, o narcisismo, a busca de si mesmo,

    se impem em um panorama de declnio poltico das massas. Assim, Lipovetsky trabalha com

    uma descrio do real bastante factvel e atraente, mas que esconde os conflitos que provoca-

    ram a crise da modernidade e que continuam a manter o futuro aberto. De fato, as grandes nar-

    rativas no esto soterradas. No apenas os discursos religiosos radicais tomam a cena violenta

    e claustrofbica do cotidiano falando em nome de um protesto contra os valores descartveis e

    incuos da produo de mercadorias e de capital girando em torno de si mesma, como tambm

    o socialismo sempre reaparece como um horizonte algo nebuloso, mas promissor, contra a

    hegemonia da uniformidade do pensamento liberal reposto no final do sculo XX.

    precisamente nesse quadro que a democracia parece pertencer aos indivduos e que

    a sua opinio parece prevalecer. Pode-se perguntar, por outro lado, se essa situao no esconde

    um esvaziamento dos pontos tradicionais em que o poder era decidido com as eleies ou o

    debate poltico entre agentes como sindicatos, partidos e outros, passando a uma situao de es-

    tabilidade do poder em que ele est em mos seguras, que nunca o colocam em jogo em algo

    to instvel como a poltica em uma sociedade de massas, uma vez que h coisas mais impor-

    tantes que a democracia e suas implicaes. No por outro motivo, a mdia se torna andina e

    a principal aliada do poder, na medida em que nunca discute o fundamental, mas apenas aquilo

  • Reflexes sobre O Imprio do Efmero, de Gilles Lipovetsky

    Economia & Tecnologia - Ano 07, Vol. 25 - Abril/Junho de 2011

    que o cidado comum pode perceber, e nunca o que ignora, o verdadeiro jogo dos interesses

    presentes.

    Os maiores avanos econmicos e sociais que se observam em sociedades fora da

    Europa, nos chamados BRICs e mais especificamente na Amrica Latina, vm precisamente

    da confluncia, na cena poltica, de matrizes social-democrticas, utopias ecolgicas, luta por

    espaos de liberdade civil e de segurana em meio a um mundo que desfalece sob os dogmas

    da austeridade fiscal e do poder e da cultura do dinheiro. Tambm as sociedades europeias no

    ps-guerra, assim como a americana, beneficiaram-se de correntes populistas e social-demo-

    cratas que, aliadas ao humanismo keynesiano, procuravam fazer do mundo um lugar onde o

    melhor da vida pudesse ser buscado quando a preocupao com ganhar dinheiro se tornasse

    suprflua.

    Por outro lado, a relao entre essas sociedades avanadas e o capital financeiro deve

    ser lembrada no sentido de que este ltimo est no comando. difcil chamar esta situao de

    narcsica ou democrtica. As crises das ltimas dcadas comandadas pela busca de valorizao

    do capital financeiro, sancionada pelos Estados nacionais em rede, deixaram um rastro de po-

    breza, conflitos blicos que passam como ponto essencial para manuteno das democracias

    ocidentais e um futuro que poucos gostariam de ver, mas j esto vendo.

    Nesse sentido, o sopro de alento nas sociedades que chegam agora a uma maioridade

    democrtica efetiva ou esto em seu rumo, como muitas sociedades antes perifricas, no pode

    ser abafado pelas doutrinas conservadoras do pensamento econmico e poltico que se origi-

    na dos grandes centros. Este o regresso da ideologia: se a ps-modernidade parece avessa

    ideologia, esta nunca esteve to presente. Basta ver os conflitos cercando a eroso do estado de

    bem-estar e a austeridade intil das polticas econmicas voltadas para as grandes finanas e as

    grandes corporaes, para que se perceba toda dificuldade da luta contra o capital.

    REfERnciaSLIPOVETSKY, G. O imprio do efmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. So Paulo: Cia das Letras, 2009.