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IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA 1 O LUGAR INCOMUM NO LIVRO MORANGOS MOFADOS DE CAIO FERNANDO ABREU POR ANTÔNIO MARCOS MOREIRA DA SILVA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Caio Fernando Abreu é um dos principais escritores da literatura brasileira pós- moderna do final do século passado. Pós-moderno, século passado? Lugar incômodo este de sua literatura: pós alguma coisa ultrapassada que também já passou. Lugar perturbador como o dos elementos de sua narrativa. Caio Fernando extrapola limitações para revelar a força da criação, registrar o espaço de resistência criativa num mundo de homogeneização e globalização. Sua escrita é marcada pela busca da diferença, pelo lugar da diferença, que é também o lugar da identidade. Lugar que mais do que comunicar, busca revelar a si mesmo, busca acreditar em sua própria existência. Sua escrita busca o lugar incomum, invulgar, utilizando mesmo o lugar comum para isto. Esta busca do incomum questiona os limites - impostos ou não - dos espaços e dos tempos, a prisão naturalizada da comunicação, enfim questiona a própria comunicação literária. Marca-se então por uma vertiginosa destruição de falsos referenciais, por uma desmontagem da linguagem empobrecida de (por) nossa sociedade. Sua escrita é vertiginosa porque revela o abismo sobre o qual o leitor está caminhando. Este abismo pode ser a salvação para a linguagem, para o homem, sua retirada de um lugar reificado. Os personagens do livro de contos Morangos Mofados são vitimas de uma sociedade massificada, dominada pelos símbolos de sua indústria cultural. O Kitsch, o estereótipo, o signo cristalizado freqüentam constantemente os contos deste livro. Muitas vezes, os personagens, rendidos, reificam-se, ficando presos a este sistema de significação. Outras, na tentativa de resistir, atiram-se a um caminho novo, montando suas próprias cartografias, novas e perigosas.

O Lugar Incomum No Livro Morangos Mofados

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Estudo sobre o livro "Morangos Mofados", de Caio Fernando Abreu

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IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA1 O LUGAR INCOMUM NO LIVRO MORANGOS MOFADOSDE CAIO FERNANDO ABREU POR ANTNIO MARCOS MOREIRA DA SILVA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS CaioFernandoAbreuumdosprincipaisescritoresdaliteraturabrasileiraps-moderna do final do sculo passado. Ps-moderno, sculo passado? Lugar incmodo este de sua literatura: ps alguma coisa ultrapassada que tambm j passou. Lugar perturbador como o dos elementos de sua narrativa.CaioFernandoextrapolalimitaespararevelaraforadacriao,registraro espao de resistncia criativa num mundo de homogeneizao e globalizao. Sua escrita marcadapelabuscadadiferena,pelolugardadiferena,quetambmolugarda identidade. Lugar que mais do que comunicar, busca revelar a si mesmo, busca acreditar em sua prpria existncia. Sua escrita busca o lugar incomum, invulgar, utilizando mesmo o lugar comum para isto. Esta busca do incomum questiona os limites - impostos ou no - dos espaos e dos tempos,aprisonaturalizadadacomunicao,enfimquestionaaprpriacomunicao literria.Marca-se ento por uma vertiginosa destruio de falsos referenciais, por uma desmontagemdalinguagemempobrecidade(por)nossasociedade.Suaescrita vertiginosa porque revela o abismo sobre o qual o leitor est caminhando. Este abismo pode ser a salvao para a linguagem, para o homem, sua retirada de um lugar reificado.OspersonagensdolivrodecontosMorangosMofadossovitimasdeuma sociedade massificada, dominada pelos smbolos de suaindstria cultural.O Kitsch, o esteretipo, o signo cristalizado freqentam constantemente os contos deste livro.Muitas vezes, os personagens, rendidos,reificam-se, ficando presos a este sistema de significao. Outras,na tentativa deresistir, atiram-se a um caminho novo, montando suas prprias cartografias, novas e perigosas. IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA2 Interessa-nos entender, na obra de Caio Fernando Abreu,como so os processos de assimilaoeasestratgiasderesistnciadesuanarrativa.Parece-nosqueporum paradoxo, a perspectiva da impossibilidade de resistir, da impossibilidade de comunicao, daimpossibilidadededilogocriamrespectivamentearesistncia,acomunicao,o dilogo. O incomum torna-se o prprio processo de comunicao. O fracasso da escrita, da literatura, passa a ser a fonte da resistncia literria, onde o mundo da cultura de massa devorado e transformado. O sonho acabou, mas retorna de uma nova forma em uma outra utopia.Atualizadanopresentee noato,aliteraturadeCaioFernandoumaao,um movimento, uma sada de um lugar banalizado. Para aqueles a quem a melancolia devasta,escrever sobre ela s teria sentido se o escrito viesse da melancolia. Tento lhes falar de um abismo de tristeza,dor incomunicvel que s vezes nos absorve, em geral de forma duradoura,at nos fazer perder o gosto por qualquer palavra,qualquer ato, o prprio gosto pela vida. J ulia Kristeva, Sol Negro O livro MorangosMofados, dividido em trs partes O Mofo, Os Morangos, MorangosMofados-,marcaummomentodedescrditonasgrandesnarrativas.Sem elas, fica aos personagens a necessidade de retomar um presente sem utopias, por exemplo emcontoscomoOsSobreviventes,ondeoprpriottulosugereumacertarelao anacrnica onde os personagens sobrevivem a si mesmos. Neste conto, os personagens no atualizaramsuas sensibilidades e criam umamemria agradvel para cultuar o passado. Repetemnamargemdasociedadeoquecondenamnoscentros.Ojuzodevalorque IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA3 condenam est dentro deles mesmos e uma relao de poder condenvel se mostra muito mais eficiente quanto mais dissimulada est. Emoutroconto,LuzeSombra,oprotagonistaobcecadopelosentidodas coisas. Obviamente, por no ter mais o claro domnio sobre este sentido. Percebe que h algo de errado no lugar onde est. O personagem em vez de resolver o seu lugar, busca a soluo para o seu niilismo no adiamento: Deve haver alguma espcie de sentido ou o que virdepois?.Osentidoeodepoissoassociadoscomoseofuturorespondesses questesdopresente,comoseomomentoseguintejustificasseoatual,distanciandoo personagem de sua realidade, de seu tempo e espao, e , portanto, de real interferncia no que vive. Assimcomoosentidoeodepoisocupamespaodedestaquenesteconto,a ordenao dos fatos tambm. O personagem acredita que por uma ordenao lgica, tudo seria melhor.Elefalha vrias vezes nesta ordenao lgica,evidenciando afragilidade dela. Isto, porm, no o perturba. Organiza, ordena, para um futuro que salvar. Ele cr de forma ensandecidano poder da linguagem, no poder dos signos, como se o seu discurso pudesse ser mais forte que o mundo, mais forte que os seus sentimentos, e o salvasse de ter que descobrir a si mesmo. O soteriolgico e teleolgico foram unidos. A salvao est no futuro. O futuro a salvao. O presente s angstia.Futuro, salvao, organizao so relacionados com a metforadaluz.Aracionalidadeportantoapareceassociadasalvao,teleologia, desligada do presente. A racionalidade, que pressupe clareza, sanidade, que no suporta o obscuro, a loucura, a mentira, revela toda sua prpria mentira, o seu absurdo: o absurdo da razo,absurdodafaltadeabsurdo.Noconto,aracionalidadesurgecomoumdogma qualquer. Onarradorcontasuahistriasemsabersememriaouumaviso(59), confundindodentroefora.Aodeterminado,Caiorespondecomoambivalente.Eesta IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA4 ambivalnciaquanto a questo temporal serve como estratgia de imploso do raciocnio teleolgico por um processo homeoptico - cura pela doena.J untocomestaambivalnciadasuamemria,temosaambivalnciadesua identidade. O personagem no sabe onde est, quem ele , qual o seu passado ou seu futuro. No capaz de manter sequer qualquer desejo. Ele tem muito poucas razes para si mesmo.Sua nica certeza a da inutilidade de tudo, da falta de finalidade em vez de saltar adiante e, atravs deste niilismo, alcanar a alegria da diferena, do acaso, ele resiste, buscandoaindaalgumsentido,algumautilidade,algumafinalidade,inclusiveparasua prpria loucura. A impossibilidade de um lugar exato - de ter o sentido ou de deix-lo ir emboradevez-criaasensaoangustianteparaopersonagemdequenohuma salvao, nem na compreenso humana. No sei se foi esta a ordem, se esse o sentido, se ser assim o depois. Mas acho que sei com certeza que nem voc nem ningum vai me ouvir.Descrenanacompreensohumanaquetambmpoderamosentendercomo descrenanaprprialiteratura.Abrechaqueopersonagemnosoferecequenemele mesmo considera a sua certeza: acha e tem certeza ao mesmo tempo, de forma ambivalente. A escrita intil, a fala intil, a literatura intil. Quanto a escrever mais vale umcachorrovivo.AepgrafedeClariceapresentabemolivro.Difcildenegara descrena desta frase. Descrena que vai percorrer a primeira parte de Morangos Mofados e que vai ser solucionada com a revalorizao da vida. "No esquecer que por enquanto tempo de morangos", j disse Clarice no final de A hora da estrela, de onde Caio retirou a citao anterior. Afaltadesentidodaliteratura,dacomunicaoestclaranoadinfinitumdo primeiro conto.O personagem "A" busca transmitir uma mensagemque no alcana seu objetivo justamente por causa da multiplicao dos seus significados. O significante Voc IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA5 meu companheiro., dito pelo personagem A rejeitado pelo "B" como uma frase capaz defecharsuaspossibilidadessignificativas.Afrasenolheparececlara,nolhe suficiente. Parece que deveria lhe dizer algo, mas lhe diz mais. Ratifica Derrida: Falar mete-me medo porque, nunca dizendo o suficiente, sempre digo tambm demasiado.i O que quer dizer Voc meu companheiro? B - Tem alguma coisa atrs, eu sinto. / A No. No tem nada. Deixa de ser paranico.. O primeiro conto do livro a porta de entrada e/ou de sada: o exerccio literrio. Existe alguma coisa por trs do que se diz? No se diz nada por trs do que se diz? A busca da compreenso normal ou paranica? Ou a parania a normalidade? Lendo o discurso psictico de Todorov, reconhecemos na psicose um comportamento parecido com a da anlise literria.E esta obsesso pelo significado exato nos parece to intil e vazia quanto a falta de sentido que ela tanto teme. Omundoumjogodemalentendidos,pareceseramensagemdoconto.A literatura, idem. Vivemos e lemos com a condio bsica do erro, parafraseamos Nietzsche. Ou desconsideramos esta ampliao, considerando leitura e vida como o mesmo processo, porconselhodeHutcheon.Ento,selereviverumatentativadealcanaralgoque sempre nos foge, camos de novo em Derrida, ao considerar a linguagem um jogo. O signo completo nos escapa a cada momento em que nos aproximamos dele pois o signo completo o signo morto, ineficaz, que j no nos diz nada. E o signo que nos diz incompleto, fugaz, ambguo, incerto - incomum e incomunicvel. O que falamos fala de ns muito mais do que desejamos, muito menos do que planejamos.A busca de um sentido signo morto do qual a literatura e a crtica literria devem fugir. EmPelaNoite,contodeumoutrolivro,Tringulodasguas,umdos personagens fala sobre uma ma que ele tenta alcanar, alongando ao mximo o corpo que sempre lhe escapa ao se aproximar. A imagem a mesma. Caio sabe da fragilidade da IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA6 escritura, da vida. No alcanamos o que procuramos. O nosso obscuro objeto de desejo nonos pertence, nem pode nos pertencer porque deixaria de s-lo. Isto, no entanto, no querdizerqueeleestnadistncia,comosugeriaoromantismo.Nohnenhuma escapatria. Nenhuma salvao. Espacial, temporal, qumica. Nenhuma. O narrador de Os sobreviventes quer escapar para outro lugar e recebe a ironia da outrapersonagem,comparando-ocomRimbaud.Osdoisrebeldeslongedacivilizao. Rimbaud- como amodernidade - tambm vtima desta ironia. Em Fotografias, uma personagem tenta reconstruir o mundo do sculo XIX, como se neste outro tempo, outro lugar,pudesse viver melhor. Suas leituras, seus desejosso em funo deste objetivo. J a outrapersonagemqueresquecersuaidade,esquecendosuamemria,suaidentidade. Entende a juventude, o novo, como desconhecimento de um passado. Engano no qual o autor no cai. Seu livro marcado por uma significante histria do pensamento, criticando e recolhendo o que lhe serve. No tenta viver no sculo XIX, mas tambm no tenta omiti-lo. A prpria protagonista de Os Sobreviventes descreve fugas, que revelam sempre momentosdahistriadohomemquedizemsobreolugaremqueest:manifestaes pblicas,Freud,Marx,Marcuse,RelatrioHite,algicadotrabalhocotidiano,entre outras. Eu acredito que tm razo, absoluta razo aqueles que acham que uma plena compreenso da condio humana levaria o homem loucura.(...) Quem que querenfrentar plenamente com coragem a criatura que ns somos, a criatura que tem de usar suas garras e luta pelo ar que respira, num universo alm do nosso entendimento? Acho que essas coisas ilustram o IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA7 significado da assustadora observao feita por Pascal: (Ernest Becker40) Os homens so to necessariamente loucosque no serloucos seria uma outra forma de loucura.Necessariamente porque o dualismo existencialtorna sua situao impossvel, um dilema torturante Louco porque tudo que o homem faz em seu mundo simblico procurar negar e superar sua sorte grotesca.Literalmente entrega-se a um esquecimento cegoatravs de jogos sociais, truques psicolgicos, preocupaes pessoais to distantes da realidade de sua condio que so formas de loucura loucura assumida -loucura compartilhada, loucura disfarada, mas de qualquer maneira loucura um personagem de CFA, citando EB Oprotagonistade"OdiaqueUranoentrouemEscorpioestenfrentandoum morte simblica. Pelo seu mapa astrolgico, ele estava saindo de um perodo no qual corria risco de vida. O conflito criado num mundo do simblico fez com que ele reagissecom excessivo entusiasmo diante de um grupo de amigos como se estivesse escapando de um risco"real,ouseja,umriscoqueparticipassedosmesmosreferenciaisdosdemais.O grupo foi indiferente a seu comportamento. Assim como o personagem de "Luz e sombra, ele acreditou que ningum o compreendia, que no valia mais pena, que no apostava umputonofuturo.Porestafala,percebemosaassociaodecompreenso,sentidoe futuro.A incompreenso, portanto, provoca a falta de sentido da vida, a falta de utopia. Incompreenso, obviamente, na linguagem. A linguagem como jogo transforma o mundo tambmcomojogo-edesestabilizaasutopias.Ele,ento,preferetentarseatirarpela janela. A janela, representando uma morte biolgica, aparece a como sada da linguagem e do mundo. No entanto, tentando se atirar para fora do mundo por causa da incompreenso IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA8 do mundo; tentando extrapolar os limites da linguagem, o personagem recolhido ao centro dela.Margemecentroseconfundem,pordistanciamentoeaproximao,demodo paradoxal, criando uma possibilidade de encontro com o Outro, possibilidade de respeito a alteridade, possibilidade de rever foras para uma defesa da diferena. Esta mesma diferena que precisa ser defendida em "Tera-feira gorda", onde uma relao homossexual percebe seus limites, onde o autor verifica os limites do respeito alteridade. Atravs da metfora do carnaval, o texto revela o grau de hipocrisia dos jogos sociais,denunciaafantasiacomolocaldeaprisionamento,comoumapedagogiadasproibies.Ospersonagensestonoltimodiadecarnaval,noltimomomentoda fantasia, no instante em que os personagens esto tentando transformar seus desejos em realidade. Esto no limite e no podem atravess-lo.Em "Transformaes", o tema justamente o ultrapassar o limite. A personagem enfrenta uma limitao internalizada, uma violncia simblica. Uma febre, um toque, enfim um mundo que o narrador considera complicado e real retira a personagem de um processo de reificao. Ela sente o choque, o desafio, a vertigem da diferena, do outro, do mundo, e a esta multiplicidade chama de real. Neste mundo, ela reconhece a existncia de seu corpo, doseulugarnomundo.Seucorpopassaaserumaafirmaodesuaexistncia,eno apenas moldura, como ela mesma diz. O conflito do corpo com a cultura tambm se mostra nesta obra. Cultura demais mata o corpo, como o diz um dos personagens, no quer dizer oposio entre os dois. Isso s acontece aparentemente. Caio utiliza a palavra cultura, nesse conto, associando-a com o penso, logo existo. O corpo no pensa, mas tambm existe e exige. Toda cultura, para ele, tem que estar ligada a este corpo presente. Penso, sinto,desejo, s assim existo. Sem dualidades.Otextoviveaeradadescobertadocorpo,diriaGerdBornheim.A fragmentao na obra representa a dificuldade da produo potica. Esta dificuldade no eliminadacomaexclusodafragmentao,masrevelandosuaintensidadena IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA9 contemporaneidade.Somosmltiplos,somostrezentos,somostrezentosecinqenta, parafraseando Mrio de Andrade.Reconhecer esta multiplicidade, esta fragmentao, individual e social, o primeiro passo para impedir o domnio de uma das partes,. Caio nos apresenta esta fragmentao maisclaramenteemEu,tu,eleePra,Uva,Ma.Noprimeiroopersonagem dividido em trs partes, uma espcie de id, ego e superego. Este Ele seria a representao de toda polidez social, aquela delicadeza pela qual o eu lrico de Rimbaud perdeu a vida. OEurepresenta os desejos, asemoes e o medosescondidos. O Tu seria o espao da possvelconciliao,dopossveldilogo.Estejogodentrodaprpriaidentidade,estas variaes deidentidade esto buscando o outro, mas qual delas isoladas pode apontar o caminho?Creio que somente unidas conseguiro um dilogo. A protagonista de Pras, Uva, Ma reavalia sua vida a partir da morte. Ela ope ameixas morte, a cor do vinho ao espetculo da morte. Vrios so os significantes para a morte neste conto. Como sabemos, o signo paralisado o signo morto. Quem est do lado do signo morto no conto o psicanalista, que no consegue fazer qualquer interpretao peloquepodeperceber,somentepelacinciaqueadquiriunafaculdade.Assimo psicanalista um smbolo da morte com suas interpretaes vazias e pr-fabricadas. Tudo que pode provocar a reificao. Em oposio ao signo exato do psicanalista, a protagonista prefere o jogo infantil: pra, uva, ma. O jogo fica como sinnimo de vida, de alegria. A incertezadojogo,dosignificadosugerevitalidadeemoposiointerpretaodo psicanalista. Caio Fernando tenta recuperar o poder do incerto na vida, do imprevisvel num mundo de pensamento nico, de consensos. Contraotempoexato,contraaordenaoquebuscouopersonagemdeLuze sombra,Caioprope a desordenao, o equvoco, o obscuro como composio dos fatos cronolgicos.Nestecontomesmo,aprocurapelaordenaosexistenafalado personagem,aestruturadocontodemonstraocontrrio.Estarecusaaumaordenao IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA10 cronolgica tradicional fica muito evidenciada tambm em Caixinha de Msica, quando uma histria contada e interrompida trs vezes para finalizar com seu incio, como um eternoretornosempreincompleto.Umeternoretornoqueimpedeotextodeser teleolgico. E em O dia que J piter encontrou Saturno, no qual a vida das personagens respeitaumorganizaocsmica,relativiza-seotempo,quemudaepermanece, aporeticamente. A morte de sua ltima quimera ( porque uma concluso impede o devir) Alm do ponto um dos mais belos contos do livro e um dos mais significativos. Nele, Caio discute mais diretamente as utopias, soteriologias, teleologias. Estuda os limites de nossos lugares incomuns. O prprio ttulo j uma preocupao com o limite, com as fronteiras, com o ultrapassar desses limites. Seu incio brinca com os limites da linguagem. Parece falso dito desse jeito, mas bemassimeuianomeiodachuva,umagarrafadeconhaqueeummaodecigarros molhados no bolso. A chuva faz o cenrio clich para um personagem em busca de um amorclich.Umpersonagemqueultrapassavaseuslimitesemnomedesteamor.Uma histria tipicamente romntica, no fosse o homossexualismo. Caio recupera a tradio do amorplatnicodentrodeumdeseuslimites,naseparaodosgneros.Todasas identidadespassamaserconfusas.Eunoqueriaqueelepensassequeeuandava bebendo, e eu andava. Semidentidade, com medo do outro o ver de fato, o personagem procura criar uma outra identidade para si mesmo e para o outro. Era preciso um esforo toterrvelquepreciseisorrireinventarmais.Omundodestepersonagemvaisendo construdocom sentidos que no podem ser testados na realidade. Esse era meu nico sentido. Este Outro que ele procura era engano. Ele termina o conto batendo na porta de IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA11 quem deveria receb-lo, reconhecendo que no lembra o seu nome e que a porta na qual bate no abre nunca. Ele forjou uma identidade para algo que no possui identidade. O seu centro produtor de sentido no existe. Onde est ento o sentido que procurava? Onde est a porta, onde est a entrada ou a sada? O personagem no consegue descobrir sua identidade. Ele se imagina um quebra-cabeaquesermontadopeloOutro.Acrisedeidentidadedelenoprovocaumauto questionamento, mas sim uma busca pela resposta que viria de outro lugar comum porque no suporta o seu prprio lugar. Ele quer ouvir algum dizer algo sobre ele, perceber algo comum/comunicvel por medo do desespero de se reconhecer incomum, nico, mltiplo. O Outro nada pode me dizer sobre mim porque simplesmente este Outro no existe, nem eu mesmo. Ela um devir. Alteridade e suas discusses s se justificam ao perceber a fraude que a identidade do outro. Que ele tambm no um salvao.Nem a prpria identidade do personagem salvao paraele mesmo. No hsentido nemfora,nem dentrodele. Identidadenoumasalvao,nosebusca,noumlugar.Eabuscaporuma identidade, como sugere o conto "Alm do ponto" v. A soteriologia se infiltra por todos os campos. Quando a teoria parecia escapar dela, ela surge por um outro caminho. Atento a estas estratgias, Caio alerta ao leitor da sua busca intil, do vcuo no presente quando buscamos a soluo no outro lugar, no outro espao. O giro de cento e oitenta graus do protagonista do ltimo conto do livro, Morangos Mofados, sugere uma modificao do ponto de vista, do ponto de discusso de tudo. Com amosobreseucorpo,elereorganizasuaidentidade.Vasculhaaspossibilidadesde utopias,pesquisando:serpossvelplantarmorangosaqui?Ousenoaqui,procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vermelhos. No mais os mofados. Mas o sol estava nascendo. Ele termina como uma sinfonia: Achava que sim./ Que sim./ Sim, num afirmao de vida como resistncia a tudo que possa pretender reific -la. IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA12 BIBLIOGRAFIA: BECKER, Ernest. A negao da morte. 2a edio. Rio de J aneiro: Record, 1995. DERRIDA, J acques. A Escritura e a Diferena. 2aedio. So Paulo: Perspectiva, 1995. GIDDENS, Anthony. As consequncias da Modernidade. So Paulo: Edusp, 1991. HUTCHEON, Linda. Potica do Ps-modernismo.Rio de J aneiro: Imago, 1991. KAPLAN, E. Ann (org).O mal-estar no ps-modernismo. Rio de J aneiro: J orge Zahar, 1993. ROSSET, Clement. A lgica do Pior. Rio de J aneiro: Espao e tempo, 1989.

iDerrida, p. 21