O Paradoxo de Condorcet e a Crise Da Democracia Representativa

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  • ESTUDOS AVANADOS 11 (30), 1997 273

    O paradoxo de Condorcet e a criseda democracia representativaISAAC EPSTEIN

    A

    Um costume habitual (entre os persas) o de deliberar sobre assuntosimportantes quando esto embriagados e, no dia seguinte, quando esto s-brios, o dono da casa na qual a deciso foi tomada submete a deliberao sua reconsiderao. Se aprovada novamente, a deciso ser executada, seno, abandonada. s vezes, no entanto, esto sbrios em sua primeira delibera-o, mas nestes casos, sempre reconsideram o assunto sob a influncia dovinho Herdoto (484-425 aC), Livro chamado CLIO

    A Democracia uma forma de governo na qual os cidados distribuem oscargos estatais entre si por sorteio, enquanto na Oligarquia a qualificao por propriedade e na Aristocracia, por educao Aristteles (384-322 aC),Retrica (1365b)

    ...Nas eleies procedia-se da seguinte forma: Algumas pessoas selecionadasda populao eram encerradas num quarto perto do lugar onde se procedia eleio, de tal forma que no eram vistas nem podiam ver ningum, masapenas podiam ouvir o rudo da assemblia que ocorria em local prximo. Adeciso sobre as eleies, assim como sobre outros assuntos, eram tomadasem proporo ao volume dos gritos dos eleitores reunidos em assemblia. Oscompetidores no eram apresentados em conjunto, mas um aps o outro epassavam em silncio pela assemblia. Aqueles encerrados no quarto ao ladopossuam tabuinhas de escrever consigo e iam anotando, sem saber qual ocandidato que estava passando, a intensidade do volume respectivo dos gritosda assemblia. Apenas anotavam quem passava em primeiro lugar, em segun-do, terceiro, quarto etc... Aquele que tinha recebido a aclamao mais ruido-sa era declarado senador devidamente eleito. Plutarco (350-430 dC), AVida de Licurgo (Eleies em Esparta)

    Os membros do conselho dos 500 (de Atenas) eram selecionados porsorteio entre todos os cidados com mais de 30 anos. Seus mandatos eram deum ano e um homem s podia servir no Conselho duas vezes em toda suavida. Quase todos os funcionrios eram tambm escolhidos por sorteio amarca registrada da democracia para os gregos, e estavam limitados a umnico ano no cargo no renovvel com exceo dos estrategos (strategoi) eoutros cargos ad hoc como embaixadores, e possivelmente, alguns dos maisaltos cargos Finlay, M.I., A Poltica no Mundo Antigo (Zahar, 1985:89)

    QUESTO DA aferio das decises de um grupo, de uma comunidade oumesmo da totalidade de uma populao, em funo das preferncias indi-viduais, articula-se intimamente prpria conceituao do que se costu-

    ma chamar de regime democrtico.

    Desde as normas da Carta Magna de um pas, at os regimentos ou regrasexplcitas que regulam a vida das diversas comunidades, como as constitudas por

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    acionistas das sociedades annimas, scios de um clube recreativo, assemblia decondminos ou at mesmo pequenos grupos informais, o voto a instncia derra-deira que pode dirimir de maneira aceitvel, todos os conflitos com relao sdecises a serem tomadas, seno pelo consenso, pelo menos atravs da vontade damaioria dos interessados. Este procedimento de se aferir a vontade coletiva atravsdo cmputo das preferncias individuais, o que se convenciona chamar, emlinguagem comum, de democrtico.

    A partir da teoria clssica ou aristotlica das trs formas de governo a De-mocracia como o governo de todos os cidados distinta da Monarquia comogoverno de um s e da Aristocracia como o governo dos melhores torna-seimprescindvel, no governo democrtico, fundamentar e legitimar os meios de seaferir a opinio ou a vontade da coletividade (1).

    Os procedimentos que orientam a coleta das opinies individuais para acomposio da deciso da coletividade so, em geral, codificados cultural e social-mente e poderiam ser tema da antropologia social ou da histria dos povos mas doqual no ser possvel nos ocuparmos aqui.

    Para Rousseau (no Contrato Social), a Assemblia na qual se renem todosos cidados a nica soberana e a sua deciso a vontade geral. Mas, como o avaldesta vontade geral a unanimidade, que por sua vez bastante rara, necessrioconfiar na vontade da maioria, que, sem ser necessariamente a de todos, estabelecida segundo aquela vontade.

    A noo de deciso coletiva nasce da distino entre as decises provenien-tes de uma coletividade, e as decises individuais, pelas quais o indivduo decidepor si. Mas se uma pessoa decide por todos (como se fosse um ditador), pode sedizer que ocorre uma deciso coletiva, pondo-se parte a questo de se saber se adeciso desta pessoa afere ou no a soma ou mesmo a maioria das prefernciasindividuais.

    Existem, porm, diferenas pragmticas importantes entre as decises indi-viduais e as decises coletivas aferidas a partir das preferncias individuais. Umadelas, que mais conhecida como efeito ou paradoxo de Condorcet (1743-1794),constitui a referncia bsica deste trabalho. Tal efeito, quando ocorre, questiona aracionalidade da deciso coletiva a partir da exibio de uma intransitividade apso cmputo da preferncia coletiva a partir de preferncias individuais transitivas(do mesmo modo que a racionalidade do indivduo questionada quando esteexibe uma intransitividade em suas preferncias).

    Outras diferenas mais visveis existem, como a distoro em proveito pr-prio (2) das decises coletivas executadas pelos representantes eleitos pela comu-nidade. Uma terceira diferena se d pelo fato da informao necessria para atomada da deciso nem sempre estar disponvel a todos os membros da comuni-dade. Uma quarta diferena pode ainda ocorrer quando a efetivao da decisocoletiva carecer de um centro volitivo equivalente ao do indivduo e, por essarazo, ser necessrio um tempo de percurso para o comando referente decisochegar aos rgos executores.

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    Estas e outras diferenas entre as decises individuais e as decises coletivasno sero consideradas neste texto.

    De qualquer modo, o concei-to de democracia representativa, pelaqual os cidados elegem seus repre-sentantes e lhes delegam os poderespara legislar e administrar em seu pr-prio nome, tem sido o paradigma dereferncia para as Cartas Magnas demuitos pases.

    Ora, os eleitores, em vriospases, no esto satisfeitos com osrepresentantes que elegeram. Tal fatoest ocorrendo em vrios pontos doplaneta onde vige a democracia re-presentativa. A capa de uma revistainternacionalmente conhecida ilustrao fato com uma charge que reprodu-zimos.

    Os analistas e comentaristaspolticos constatam e interpretam ofenmeno (3). As reaes dos polti-cos e dos eleitores variada. O can-

    didato Ross Perot, no pleito presidencial de 1992 nos Estados Unidos, orgulhava-sede no ser um poltico profissional antes de retirar a sua candidatura, que se opu-nha tanto ao partido democrtico quanto ao republicano.

    Entre ns, um dos candidatos a governador de So Paulo em 1994, FranciscoRossi, dizia-se apoltico, apartidrio e at sem programa, como se fosse algo louv-vel, porque imaginava que tal aspecto lhe angariaria um nmero maior de eleitores.

    Uma manchete de jornal dizia que Desconfiana levou ao voto de protes-to e acrescentava que 39% dos eleitores votaram em branco ou nulo por noconfiar nos candidatos ao governo de So Paulo (4).

    O eleitor reagiu engrossando os votos dos candidatos de direita que, ma-treiramente, se diziam acima da classe poltica, como Le Pen na Frana, e o nossoprprio Enas, que em 94 obteve 15 vezes mais votos do que em 89 (5), apesar decandidatos e seus correlegionrios do Prona terem feito elogios a Hitler (6).

    Os polticos tentam recuperar a credibilidade do sistema com reformas. Em2 de novembro de 1994, a Cmara dos Deputados do Japo, aprovava a maisampla reforma no sistema eleitoral do pas desde 1925, cujo objetivo era o deencerrar uma era de instabilidade poltica iniciada nos anos 80, na qual diversosgovernos caram em meio a acusaes de corrupo (7). Na Frana, 29 membrosou ex-membros do parlamento foram indiciados ou condenados por corrupo (8).

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    Na Itlia a corrupo derrubou toda uma classe poltica e condenou dois ex-ministros a priso (9).

    Um dos resultados do descontentamento e desesperana dos eleitores oalto grau de absteno nos pases onde o voto no obrigatrio: 50% na ndia,48% no Mxico e 45% nos Estados Unidos (10).

    As reformas propostas para recuperar o entusiasmo dos eleitores pela de-mocracia representativa parecem ser insuficientemente radicais. Uma nova idiaparece ganhar corpo: a democracia direta, to antiga como a plis grega.

    Nos ltimos 200 anos, com exceo da Sua, mais recentemente da Austr-lia e de alguns locais dos Estados Unidos, a democracia representativa tem signi-ficado um sistema pelo qual o povo vota apenas uma vez, em cada perodo dealguns anos, para eleger um punhado de representantes que, nesse intervalo, tomatodas as decises importantes em seu nome. A idia de referendos mais freqentes levantada.

    Um ensaio (11) prope nova emenda constitucional para garantir que qual-quer petio com um milho de assinaturas possa ser capaz de acionar um refe-rendo nacional. O referido ensaio afirma que a democracia direta daria aos gover-nadores maior controle sobre os governantes, promoveria a educao cvica eforaria os polticos a ver os eleitores mais como parceiros do que como meraaudincia.

    A combinao das tecnologias do computador, do telefone e da televiso,cada qual acrescida das capacidades das demais, est criando graas sinergia destaintegrao, uma mudana qualitativa em vrias prticas sociais e culturais. Umadessas alteraes, a substituio da democracia representativa pela democracia di-reta, tem sido anunciada por vrios autores que se dedicam a anlises globais (12),e comentadores que escrevem em revistas conhecidas (13).

    Por que no efetuar os referendos populares acerca de determinados temas jque os recursos da telemtica tornam possvel e agilizam tal procedimento? De qual-quer forma o grande salto eletrnico dos anos 90 dificultar enormemente a conser-vao da operacionalidade dos procedimentos democrticos no seu estgio atual.

    Em 1994, o vice-presidente dos Estados Unidos falou em forjar uma novaidade ateniense da democracia. Resistncias s mudanas certamente ocorrero,sobretudo por parte dos polticos profissionais uma vez que a implantao dademocracia direta erodir o seu poder, mesmo porque nem todos os temas, sobre-tudo os mais carregados emocionalmente so adequados deciso por referendospopulares.

    O mal estar generalizado do eleitor extravasa para a classe de seus represen-tantes, que afinal dele depende. Este fato tem ocasionado uma predisposio eaguado a sensibilidade dos polticos para reformas menos radicais do que aimplementao da democracia direta, como variaes sobre os critrios de escolhados deputados (sistema distrital e proporcional) e controle do financiamento dascampanhas.

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    As mazelas que a democracia representativa tem exposto em vrios pasescomo a corrupo dos representantes eleitos, a existncia de grupos lobistas comgrande poder e disposio para o suborno, sugerem mudanas como a j mencio-nada do Japo.

    Entre ns, polticos de renome tm defendido a mudana do sistema eleito-ral vigente no Brasil: de voto proporcional uninominal, pelo voto distrital, puroou misto (14).

    Um grupo de estudos, tendo como expositores vrios parlamentares e cien-tistas polticos, debateu questes relativas aos partidos polticos e financiamentode campanhas eleitorais (15). Suas sugestes incluem uma frmula de transiopara a introduo do voto distrital e a lista fechada para o voto proporcional.

    Segundo uma manchete de jornal (16), A USP prope que cada eleitorvalha por dois. Esta uma maneira hiperblica de descrever o chamado votoalternativo, no qual, na verso proposta pelo grupo de estudos reunido no IEA,O eleitor teria direito a dois votos por meio dos quais expressar suas primeira esegunda preferncias, que sero computadas com igual valor. S haver segundoturno se nenhum dos candidatos, mesmo neste sistema, obtiver a maioria absoluta.

    Ser possvel detectar, no descontentamento do eleitor, nos comentriosdos estudiosos e nas vrias propostas de reforma dos sistemas eleitorais, algumarazo subjacente inerente ao prprio processo de aferio da vontade coletiva?Afinal, em que se baseia tal aferio a partir do voto dos membros da coletividade?

    Modos de aferir a vontade coletiva

    Quando as formas democrticas de governo procuram um meio de legiti-mar a alocao da posse do poder atravs de sua confirmao por meio do aval davontade coletiva, o voto livre e universal um dos mtodos mais importantes parase atingir esta finalidade.

    Como se pode, no entanto, estabelecer regras que devam ser seguidas parase compor as preferncias pessoais de cada indivduo a fim de se aferir adequada elegitimamente a preferncia coletiva?

    A diversidade das culturas e dos contextos polticos conduziram a uma largavariedade de sistemas de votao. Um dos meios mais simples para aferir a vonta-de coletiva, por meio do voto, o mtodo pluralista, no qual o candidato querecebe o maior nmero de votos, vence. Tal sistema oferece srios inconvenientes.Imaginemos uma disputa entre meia dzia de candidatos: um deles consegue 20%dos votos e os cinco demais obtm aproximadamente 16% dos votos cada um.Neste caso, pelo mtodo pluralista, o primeiro vence apesar de ter alcanado ape-nas 20% da preferncia contra 80% divididos entre os demais, porm contra a suacandidatura. O fato pode provocar instabilidade poltica e constituiu uma dasrazes alegadas pelos golpistas no Chile para depor Allende, que nas eleies de1972 obtivera menos de 40% dos votos contra dois outros candidatos. O sistemado segundo turno adotado em muitos pases para evitar tal inconveniente.

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    Um segundo mtodo o da regra da maioria, o qual requer que o vence-dor tenha mais de 50% dos votos. o sistema brasileiro vigente aps a Constitui-o de 1988 para os cargos executivos. Mas a regra majoritria somente garantemaioria quando existem apenas dois candidatos, da a razo do segundo turnoquando, numa eleio de mais de dois candidatos, nenhum conseguir mais dametade dos votos vlidos (ou totais), conforme a legislao em vigor.

    Existe um sistema perfeito? Estudos realizados nos ltimos 50 anos revelamque resultados indesejveis podem ocorrer qualquer que seja o sistema escolhido.

    A legitimidade das decises coletivas aferidas por procedimentos democr-ticos depende, de modo bvio e fundamental, de um conceito matemtico sim-ples: o conceito de maioria. Eliminando o evento pouco provvel de empate, emqualquer escolha dicotmica, um dos lados deve receber mais da metade dos vo-tos. Quando h trs (ou mais opes), como j vimos, de fora aproximadamenteigual, pouco provvel que a apurao indique uma maioria decisiva.

    Se cada dimenso do espao poltico (17) for representada por uma escalalinear, qualquer que seja a curva de distribuio dos eleitores (18) a posio timapara o candidato a mediana: o ponto que divide o eleitorado em dois campos deigual tamanho.

    Consideremos uma disputa entre dois candidatos aferidos pelo eleitor natradicional dimenso esquerda-direita do espao poltico. Um deles adota a posi-o um pouco a esquerda da mediana e o outro candidato comea com a posiono meio da poro, direita da mesma mediana. Tal configurao ser tpica deum candidato centrista C disputando com um candidato moderadamente dedireita D. Neste caso, lcito se supor que, ao menos nesta dimenso do espaopoltico, os eleitores cuja preferncia estiver esquerda da posio mantida pelocandidato centrista C, votaro em C; os eleitores cuja posio for direita deD, votaro em D. Aqueles cuja posio estiver entre os dois candidatos, divi-diro seus votos entre ambos. Nessas condies, numa pesquisa de inteno devoto, o candidato centrista C receber a maioria dos votos. Tal aspecto de-monstrado graficamente na figura 1a, na qual a rea circunscrita pela curva defreqncia (supostamente normal) proporcional ao nmero de votos.

    O nico modo que D teria de melhorar sua posio (nessa dimenso)seria mud-la em direo ao centro para assegurar mais eleitores sua direita.Mover sua posio para o centro ou para a esquerda seria sempre vantajoso para ocandidato direitista. De modo semelhante, o candidato esquerdista poderia me-lhorar sua posio movendo-se para o centro ou para a direita, desde que evitassea entrada de um terceiro candidato mais a sua esquerda.

    claro que no h nada de novo nesta anlise. Ela faz parte das tticas maisutilizadas por candidatos (19). Os candidatos representando a direita ou a esquer-da tendem a comear sua campanha nitidamente esquerda ou direita e semoverem progressivamente para o centro na medida que tentam conquistar umnmero maior de eleitores, pelo menos em tempos ou situaes em que aindapredomina a dimenso tradicional esquerda-direita no espao poltico.

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    Mas o apelo posio mediana numa disputa entre dois candidatos os tornavulnerveis a um terceiro candidato de um ou de outro lado. Em qualquer disputaentre dois candidatos prximos ao centro, um terceiro candidato entrando es-querda ou direita pode vencer. Em verdade, para praticamente qualquer distri-buio do eleitorado, no existem posies nas quais, numa disputa entre doiscandidatos, pelo menos um deles no possa ser derrotado por um terceiro. Nailustrao da figura 1b h sempre uma posio num continuum unidimensional,na qual um candidato recm-chegado X (mais esquerda de C) ou Y (mais direita de D) pode se colocar numa posio em que consegue deslocar umcandidato mais prximo.

    Uma dimenso nica nem sempre joga papel decisivo numa eleio. Con-formar uma plataforma vencedora em determinado espao poltico pluridimensional tarefa complexa, porque, inclusive, pode ocorrer uma anomalia conhecida pormaioria cclica, percebida desde o final do sculo XVIII como o, j mencionado,efeito Condorcet.

    Tal efeito ou paradoxo est articulado na questo da transitividade das pre-ferncias, condio indispensvel prpria racionalidade do processo de tomadade deciso (20). Se Joo prefere mas a pras e estas a laranjas, conclui-se queprefere mas a laranjas.

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    O efeito de Condorcet, como j dissemos, denuncia uma irracionalidade(intransitividade) da deciso coletiva, apurada do cmputo da somas das decisesindividuais transitivas.

    Imaginemos, num exemplo extremamente simples, trs candidatos a deter-minado cargo eletivo e trs ordens de preferncia:

    Eleitor 1 Eleitor 2 Eleitor 3

    A>B>C B>C>A C>A>B

    Vemos que A ganha de B e B ganha de C por dois votos a um. Aintransitividade est em que C tambm ganha de A por dois a um.

    Em casos semelhantes, situao tambm chamada de maioria cclica, a or-dem da votao (numa disputa dois a dois) pode alterar o resultado. No casomencionado, suponhamos duas disputas seqenciais dois a dois com as trs alter-nativas possveis:

    Ordem da preferncia: Eleitor n1 Eleitor n2 Eleitor n3

    A>B>C B>C>A C>A>B

    Ordem da disputa:

    Primeira AxC BxC AxB

    C ganha B ganha A ganha

    Segunda CxB AxB AxC

    Resultado final B ganha A ganha C ganha

    A determinao do vencedor depender da formatao da agenda, que in-dicar qual a primeira disputa entre as trs alternativas possveis. Em cada caso, avotao resolvida por dois votos a um. Da se constata a importncia da instnciaencarregada de agendar a ordem das votaes.

    Este fenmeno permite o chamado voto til ou voto estratgico. Assim, se oeleitor n 2 prefere o candidato C a A, e a ordem da votao comea com adisputa BxC, o eleitor, sabendo de antemo, que nesta ordem, o candidato Aganha, muda seu voto para C (apesar de preferir B), a fim de que, no final dadisputa ganhe C (evitando a vitria de A).

    O voto til ou estratgico nem sempre perverso. Suponhamos trs candi-datos X, Y e Z a uma vaga no Senado, numa eleio plural de um s turno.Se, por exemplo, X e Y forem de centro esquerda, Z de centro direita e aspesquisas de inteno de voto derem as indicaes: X=25% Y=35% Z=40%,ser vantajoso para os eleitores de X descarregarem seus votos em Y, que osdesagrada menos do que Z, ao menos na dimenso ideolgica. Pode ser de-monstrado (21) que, se uma alternativa derrotar todas as demais, numa votaodois a dois, ela ser necessaria-mente vencedora atravs do voto til.

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    A intransitividade caracterstica do efeito Condorcet pode ocorrer na decisocoletiva, mas no na individual; porque a dimenso predominante no espao deescolha pode variar de eleitor para eleitor, mas invarivel no eleitor individual. Atransitividade nas escolhas do eleitor individual condio indispensvel para atri-buirmos coerncia ao seu processo decisrio.

    Joo pode preferir mas a pras e estas a laranjas, segundo uma equaoprpria na qual predominaria uma dimenso, por exemplo, o sabor. Mas Pedropode preferir laranjas a mas segundo uma outra dimenso, o preo, levandomenos em conta o sabor.

    Suponhamos a dimenso tradicionaldo espao poltico esquerda-direita e, segun-do tal dimenso, trs candidatos: L, C eM. Podemos imaginar que, nesta dimen-so, os esquerdistas teriam a ordem de pre-ferncias L>C>M; os direitistas, a ordemM>C>L; os do centro dividir-se-iam segun-do suas inclinaes entre C>M>L e C>L>M.No ser possvel, porm, imaginar nesta di-menso eleitores que tivessem as escalas depreferncia L>M>C ou M>L>C.

    A eventual ocorrncia dessa ordem depreferncia indicaria que o(s) respectivo(s)eleitor(es) teria(m) votado segundo uma di-menso diversa da dimenso esquerda-direi-ta. No difcil de se verificar tal aspecto,pois o paradoxo desaparece no momento emque se impe uma unidimensionalidade aoexemplo formulado pelo prprio Condorcet(22).

    A intransitividade que pode ocorrerquando se computa a deciso coletiva atra-vs da soma dos votos dos indivduos colocaum rano de irracionalidade no resultado doprocedimento. Como evit-lo?

    Vrios procedimentos de votao tmsido propostos, inclusive com o intuito de evitar o aparecimento do efeito Condorcet.Tal paradoxo (intransitividade da preferncia coletiva apurada a partir da soma depreferncias individuais transitivas) preocupou matemticos, lgicos e cientistaspolticos desde o sculo XIX, inclusive Lewis Carrol, o autor de Alice no Pas dasMaravilhas.

    No voto por aprovao, tambm chamado de voto alternativo, o eleitor mar-ca na cdula cada candidato que tem a sua aprovao. O candidato com o maiornmero de votos eleito. Nesse sistema, nunca vantagem para o eleitor reprimir

    ...

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    o voto para sua primeira escolha, direcionando-o a outro candidato com sua me-nor preferncia (voto til ou estratgico). Se todos os candidatos tiverem igualchance de vitria, o eleitor votar naqueles que preferir. Votar em maior nmerode escolhas dar apoio a candidatos rejeitados; votar em menor nmero, (digamosapenas na primeira escolha), arriscar a vitria de um candidato inaceitvel. Ovoto de aprovao tem sido descrito como: um eleitor, n votos. A descrio ade-quada porque o eleitor pode votar em cada candidato aceitvel. Torna, inclusive,menos freqente a necessidade do segundo turno para garantir a legitimidade damaioria dos votos (23).

    A votao por segundo turno (runoff) seleciona para uma segunda eleioos dois candidatos mais votados na primeira. O sistema garante a maioria de 50% aum dos candidatos e adotado em muitos pases, inclusive no Brasil, nas eleiespara cargos executivos.

    No sistema de votao por pontos, o nmero de votos dados primeiraescolha multiplicado por um coeficiente, digamos n; a segunda escolha porn-1, e assim sucessivamente.

    No sistema por voto plural, o candidato que receber o maior numero devotos eleito, obtenha ou no a maioria de 50% mais um de votos. Tal sistema temo inconveniente de no garantir a legitimidade ao candidato vencedor. Muitospases, para contornar o fato, deixam a deciso final de escolha entre os maisvotados a cargo do Congresso. Em determinados casos, os resultados dos vriossistemas j mencionados no coincidem. Um exemplo didtico pode ilustrar talfato. Suponhamos que 27 vereadores da cmara de uma cidade devam escolherentre trs alternativas para executar melhoramentos em seus municpios: A cons-truir um posto de sade; B edificar uma escola primria; C recapear umaestrada municipal. A ordem de preferncia dos 27 vereadores com relao a essasopes obedeceria ao esquema 11 vereadores = A>B>C; 9 vereadores = B>C>A ; 7vereadores = C>A>B.

    Desse ordenamento conclui-se que: a opo A preferia B por 11+7=18votos contra 9; a opo B preferia C por 11+9=20 votos contra 7; a opoC preferida A por 9+7=16 votos contra 11.

    Ocorre o j mencionado fenmeno da maioria cclica, no qual qualquer dastrs opes obtm a maioria. Consideremos a seguinte decomposio das prefe-rncias:

    Total Apenas 1 escolha 1 e 2 escolhas

    A>B>C 8 4 (Apenas A) 4 (A e B)

    A>C>B 3 (11) 3 (Apenas A) 0 (A e C)

    B>A>C 5 4 (Apenas B) 1 (B e A)

    B>C>A 4 (9) 4 (Apenas B) 0 (B e C)

    C>A>B 2 1 (Apenas C) 1 (C e A)

    C>B>A 5 (7) 4 (Apenas C) 1 (C e B)

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    No sistema de voto plural o resultado seria A = 11; B = 9; C = 7; coma conseqente vitria de A.

    No sistema de segundo turno, A enfrentaria B com a eliminao de C.Nos votos da ordem de preferncia C>A>B, A>B so 2; nos votos da ordem C>B>A,B>A so 5. Portanto, o resultado da votao seria: A: 11+2=13; B: 9+5=14,com a conseqente vitria de B.

    Outro sistema, chamado de Borda, seria o de alocar pesos proporcionais ordem de preferncia. Assim, por exemplo, o primeiro lugar teria o coeficiente 3,o segundo 2, e o terceiro 1.

    A sua aferio computaria: pontos de A: (11x3)+(7x2)+9=56; pontos deB: (9x3)+(13x2)+5=58; pontos de C: (7x3)+(7x2)+13=48, com a conseqentevitria de B.

    Um quarto sistema seria o da aprovao. Nele so aferidas a primeira e asegunda opes. O resultado seria A: 11+1+1=13; B: 9+4+1=14; C: 7 com aconseqente vitria de B.

    Verificamos aqui, que quando ocorre a maioria cclica, os resultados podemeventualmente variar conforme o sistema adotado para a aferio dos votos. Exis-tir um sistema melhor do que os outros?

    Tal problemtica refere-se essencialmente questo de se saber como po-dem ser estabelecidas regras a serem seguidas para se compor as preferncias indi-viduais de cada elemento de um grupo ou coletividade, procedimento essencialpara qualquer regime ser considerado democrtico. Em suma, qual a alquimia quepode transformar, com aceitao geral, as preferncias individuais numa decisocoletiva?

    Esse problema, que a partir da descoberta de Condorcet se tornara aflitivopara os cientistas polticos e sociais, foi formulado com preciso por Keneth Arrow,ganhador do prmio Nobel de economia de 1972. Arrow enunciou cinco condi-es fundamentais (24), essenciais a todo o regime democrtico. Tais condiesso consideradas pela maior parte dos especialistas como exigncias perfeitamenterazoveis para qualquer procedimento de tomada de deciso coletiva que se fun-damente em preferncias individuais expressas por meio do voto.

    Arrow demonstra, todavia, que impossvel fazer prevalecer a vontade damaioria sem infringir uma das cinco condies por ele enunciadas. Tal paradoxoprovocou considervel impasse no seio das cincias polticas, impasse que foi con-siderado por alguns autores (como o economista Paul Samuelson) como equiva-lente aos teoremas de inconsistncia de Kurt Godel, que tinham abalado os fun-damentos da matemtica (25).

    A problemtica de Arrow, cuja origem o paradoxo de Condorcet, preocu-pa sobretudo os estudiosos de cincia poltica. Condorcet acreditava que o desen-volvimento cientfico e os procedimentos democrticos de governo promoveriamo progresso moral e material da sociedade demonstrando, ao mesmo tempo, que

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    a vontade coletiva expressa pelo voto pode se mostrar intransitiva e conter, por-tanto, um elemento de irracionalidade. Condorcet estendeu a crena absoluta narazo e no processo cientfico aos assuntos humanos. A sociedade, para ele, tam-bm deveria ser regida pelo modelo da fsica newtoniana (26): ... Todos os errosna poltica e na moral so baseados em erros filosficos e estes, por sua vez,conectados a erros cientficos .

    este filsofo iluminista, adepto convicto da razo universal como instru-mento da maioridade e liberao do homem que, paradoxalmente, deduz umfator de irracionalidade no processo de transferir as vontades individuais livremen-te dispostas vontade coletiva. a questo da intransitividade. Pode-se indagar seas cinco condies de Arrow, impossveis de serem obedecidas simultaneamente,constituem na prtica um obstculo tangvel transferncia adequada e racionaldo voto individual vontade coletiva.

    Existe uma bem conhecida condio que evita a ocorrncia do paradoxo dovoto: o fenmeno da existncia do chamado pico mximo, apontado por DuncanBlack (27) nos anos 40. Ocorre usualmente quando candidaturas (em eleies) etemas (em comits) so avaliados segundo um nico critrio ou dimenso.

    A condio de pico nico e sua relao com o paradoxo do voto constituiuimportante descoberta. Sugere que o paradoxo do voto ocorre, na prtica, commenor freqncia do que se poderia supor (28).

    Se os eleitores comungam um quadro de referncia comum na anlise dedeterminada questo, suas preferncias se organizaro segundo um pico nico,no importando quanto eles possam diferir no interior dessa dimenso. A existn-cia de uma dimenso nica evita a ocorrncia do paradoxo. Qual a relao destasconsideraes tericas com a j mencionada crise atual da democracia representa-tiva?

    As mudanas do espao poltico

    Como j visto, a freqncia do paradoxo do voto menor quando as esco-lhas so, em sua maioria, unidimensionais, como, por exemplo, as efetuadas se-gundo a dimenso esquerda-direita ou liberal-conservadora que tm prevalecidoem vrios pases desde o sculo passado.

    Com a queda do muro de Berlim e a transformao das repblicas do Lesteeuropeu, onde imperava o socialismo real em repblicas pluralistas, a dimensoideolgica esquerda-direita, eixo da chamada Guerra Fria, tem perdido a intensi-dade que possua e temas mais locais ou limitados a determinados pases tmprevalecido. A tradicional dimenso esquerda-direita perdeu, em muitos pases,parte de sua importncia histrica como divisor de guas entre os eleitores.

    Novas dimenses surgem no espao poltico: polticas relacionadas integrao das minorias nos pases europeus; estatismo versus privatizao (emtermos pragmticos); polticas de partidos verdes; lutas tnicas ou religiosas; te-mas mais paroquiais que substituem os grandes debates ideolgicos.

  • ESTUDOS AVANADOS 11 (30), 1997 285

    Ora, como vimos, a substituio de uma dimenso privilegiada do espaopoltico por outras mais fragmentadas favorece o aparecimento do efeito Condorcet.As caractersticas do eleitor racional, cujo atributo individual a transitividade desuas preferncias pode, ao ser transferida vontade coletiva, resultar em intransi-tividade quando as dimenses do espao poltico se multiplicam em demasia.

    Uma das maneiras de se evitar tal fragmentao do espao poltico em ml-tiplas linhas de fora, algumas incomunicveis entre si ou no redutveis a umdenominador comum e, conseqentemente, favorecendo o aparecimento do pa-radoxo das votaes, a reduo do nmero de partidos polticos. Os partidos (e esta justamente uma de suas funes) devem determinar certas dimenses privi-legiadas no espao poltico. Em torno delas devem ser travados os debates ematrizados os conflitos. Desse modo, reduzida a possibilidade de escolha doeleitor ocorrer segundo dimenses incompatveis.

    Tal problemtica afeta os pases de maneira diversa. Entre ns, sem dvida,h nmero excessivo de partidos. A sua reduo, longe de ser danosa como pre-tendem demonstrar alguns cientistas polticos (29) com argumentos apenasretricos, tornaria os resultados das eleies mais palatveis e compreensveis.

    possvel (esta apenas uma hiptese) que o desengano com o sistemarepresentativo, j mencionado, alm de razes de natureza econmica e social,possa encerrar em seu bojo um sentimento latente de frustrao devido emer-gncia da intransitividade e conseqente fator de irracionalidade na aferio davontade coletiva: a emergncia do efeito Condorcet e, como conseqncia, o para-doxo do voto.

    Se o esvaziamento relativo da dimenso tradicional esquerda-direita ocorreem pases com slida tradio de poltica partidria, no Brasil, onde os partidos,com algumas excees, no possuem clara tradio nessa dimenso, a situao, ascomposies e as alianas em nvel nacional e, mais ainda, em nvel regional, mos-tram (30) a existncia de mltiplas dimenses por meio das quais o eleitor brasileiroescolhe os seus candidatos. Desenhar as principais linhas de fora, diretrizes ecaractersticas de tais dimenses tarefa das mais importantes da pesquisa da cin-cia poltica entre ns.

    Esse dado emprico deve preceder reforma eleitoral j anunciada, pois onmero de partidos polticos deve ter correlao com as principais linhas de forado espao poltico. Como viabilizar um sistema representativo que possa tornarmais adequada e legtima a aferio da vontade coletiva? Como matrizar o espaopoltico em linhas de fora de modo a evitar a emergncia de fenmenos do tipoefeito de Condorcet?

    Essas e outras indagaes e questes devero ser devidamente equacionadaspara que se possa pensar num novo cdigo eleitoral, talvez combinando instnciasde democracia representativa com outras formas, como por exemplo, a de demo-cracia direta.

    possvel que uma nova e mais adequada forma de aferir a vontade coletiva

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    Notas

    1 Devemos distinguir entre a vontade de uma comunidade ou populao, a qual, naGrcia Antiga, era apurada diretamente pelo voto de todos os cidados dados naAssemblia, da distribuio de cargos que, por essa razo, no eram representativos,mas funcionais. Para esta ltima distribuio, Aristteles preconizava a alocao porsorteio e no por votos.

    2 Algumas das distores da representao da vontade coletiva foram descritas porRobert Michels, (Les Partis Politiques, Flammarion, 1971). O autor estudou os par-tidos e sindicatos operrios da Alemanha imperial da primeira dcada deste sculo.Este estudo datado, realizado h 80 anos, precedeu inmeros trabalhos sobre asdistores da representao da vontade coletiva.

    3 The Economist, 29 out. 1994, p.15-16; 17 jun. 1995, p.13-14.

    4 Folha de S. Paulo, 16 out. 1994, 1-19.

    5 Id., Ibid., 1-17.

    6 Id., 30 ago. 1994, Especial-4.

    7 Id., 3 nov. 1994, 2-8.

    8 The Economist, 29 out. 1994, p.16.

    9 Folha de S. Paulo, 8 jul. 1995, 2-10.

    10 Time, 30 maio 1994, p.9.

    11 G. Mulgan & A. Adonis. Lean democracy. Demos Quarterly, jul. 1994.

    12 J. Nasbit. Global paradox. New York, Avon Books, 1994.

    13 B. Beedham. A beter way to vote. The Economist, 11 set. 1993, p. 7-10.

    14 J. Sarney. Meu nome 2518 ou Pipil. Folha de S. Paulo, 14 out. 1994, 1-2.

    A.F. Montoro. O deputado quase um fantasma. Folha de S. Paulo, 23 dez. 1994, 1-3.

    15 Debates realizados nos dias 16, 23 e 30 de outubro de 1993 na sede do IEA-USP.

    16 Folha de S. Paulo, 19 ago. 1993, 1-10.

    17 O conceito de espao poltico tem sido definido como a rea de conflito que consti-tui a base da relao entre eleitores e partidos, num dado local e em determinadomomento histrico. Como todo o sistema poltico caracterizado por certo nmerode conflitos e divergncias que dividem as atitudes e opinies da populao, taisdivergncias constituiro os eixos das dimenses do espao poltico. Nos regimesdemocrticos de massa, o espao poltico identifica-se como o espao de competio

    por meio do voto individual possa reduzir algumas das tenses derivadas do fatode o eleitor se sentir mal representado em seus verdadeiros anseios, opinies eatitudes. Dentro da complexidade das questes que afligem nossa sociedade, umpouco mais de racionalidade nos processos de verificao e aferio da vontadecoletiva s pode ser til para se tentar superar a crise da democracia representativa.

  • ESTUDOS AVANADOS 11 (30), 1997 287

    eleitoral. O eleitor racional deve ser capaz de avaliar o partido cuja posio est maisprxima da sua prpria colocao nesse espao. As dimenses desse espaocorrespondem s principais linhas de conflito numa determinada sociedade e emdeterminado momento. A dimenso mais usual a esquerda-direita, que tem repre-sentado desde o sculo passado importante divisor de guas entre os eleitores dasdemocracias representativas. Recentemente dois textos tratam da dimenso esquer-da-direita do espao poltico: N. Bobbio. Esquerda e direita, Unesp, 1994 e Sader, E.O anjo torto, Brasiliense, 1995.

    18 A curva de distribuio dos eleitores tanto pode ser uma curva normal como qual-quer outra, uma vez que a mediana a linha que, por definio, divide os doiscampos em partes iguais.

    19 Noticirio dos jornais anunciava, quando se aproximava a data das eleies presiden-ciais de 1994, que o candidato Lula deslocava sua posio poltica para o centro emrelao posio anterior. Lula quer moderar programa do PT, candidato acha quepartido precisa flexibilizar suas propostas para ampliar sua penetrao na classe m-dia. Folha de S. Paulo, 3 out. 1994, Especial-5.

    20 A deciso ou escolha considerada lato sensu como a possibilidade de ordenar as pre-ferncias recobre tanto a deciso individual quanto a deciso coletiva. Esta compre-ende a teoria dos votos. J. Piaget & P. Fraisse. Trait de psychologie experimentale, v.VIII, cap. XXIX Les decisions.

    21 Por definio, o vencedor Condorcet aquele capaz de vencer todos os outros concor-rentes em escolhas duas a duas, isto , se n1, n2 ... nm, so candidatos, o vencedor nosistema Condorcet ser nz, se este vencer todas as disputas duais: nz x n1, nz x n2 ...nz x nm.

    22 Consideremos o exemplo dado pelo prprio Condorcet, j descrito, mas com umaescala de preferncia unidimensional com a ordem crescente A>B>C ou C>B>A:

    23 com a preferncia A>B>C 2 com a preferncia B>A>C17 com a preferncia B>C>A 8 com a preferncia C>B>A, no podendo ocorrer as opes A>C>B e C>A>B.

    S1 = S2

    A1Curva Normal

    S1 = S2

    A1Curva Assimtrica

    S1 = S2

    A1Curva Bimodal

    A1 A2= Mediana

  • ESTUDOS AVANADOS 11 (30), 1997288

    Neste caso:

    B>A por (2+17+ 8)=27 contra 23B>C por (23 +2+17)=42 contra 8A=C por (23+2)=25 contra (17+8)=25A ordem vencedora seria B>A=C com ausncia do efeito Condorcet. So aferidos apenas os 50votos a adstritos preferncia unidimensional. A ausncia deste efeito ocorre com qualquerredistribuio dos 10 votos remanescentes nessa escala unidimensional.

    Se a ordem crescente (ou decrescente) fosse, por exemplo, A>C>B ou B>C>A, teramos:

    0 com preferncia A>C>B17 com preferncia B>C>A10 com preferncia C>A>B 8 com preferncia C>B>A, na qual, pela unidimensionalidade no poderiam ocorrer as op- es A>B>C e B>A>C.

    Neste caso:C>A por (10+8+17) a 0B>A por 25 a 10C>B por (10+8) a 17 e a ordem vencedora seria: C>B>A, tambm sem o efeito Condorcet.

    O mesmo poderia ser demonstrado para qualquer das demais ordens crescente ou decrescenteB>A>C ou C>A>B.

    23 O voto por aprovao ou alternativo, j mencionado, foi objeto de uma proposta queo cientista poltico Bolivar Lamounier, coordenador dos estudos IEA-USP, levou Federao das Indstrias de So Paulo. Cf. Folha de S. Paulo, 19 ago. 1993, 1-10.

    24 K.J. Arrow. Social choice and individual values. John Wiley & Sons, Inc. 1963. Arrowformulou alguns axiomas em seu trabalho, constitudos por cinco condies funda-mentais a todo o processo coerente para a determinao da vontade coletiva numregime considerado democrtico. Tais condies deveriam ser respeitadas em todo oregime democrtico, isto , naquele no qual a vontade coletiva deveria representar asoma das vontades individuais:

    I Abrangncia universal: a constituio democrtica deve ser capaz de agregar qualquer con-figurao possvel de votos. No sendo possvel predizer todos os padres de conflitos quepodem surgir na vigncia da constituio, esta no deve ser infringida quando surgem certasconfiguraes de preferncias de votos. A constituio deve, por esta razo, ter abrangnciacapaz de resolver todas as controvrsias possveis. Assim, qualquer que sejam as prefernciasdos membros da coletividade, o procedimento de aferio da vontade coletiva deve ter emconta uma e apenas uma ordem de preferncia.

    II Unanimidade: a vontade coletiva deve estar de acordo com as preferncias de seus membros.Quanto maior o nmero de pessoas que exprimirem uma determinada preferncia, no mes-mo grau, a vontade coletiva deve estar de acordo com tal preferncia.

    III Determinao por pares: a ordenao coletiva de um par de alternativas deve depender apenasdas ordenaes individuais dessas alternativas, significando que se a vontade coletiva preferirX a Y (reflexo da soma das vontades individuais), e se as preferncias individuais mudarem

  • ESTUDOS AVANADOS 11 (30), 1997 289

    com respeito a outros pares de alternativas (U,V), (A,B) etc. mas se mantiver invarivel comrelao a X e Y, a preferncia coletiva deveria respeitar essa invariana. Tal axioma ou condi-o pode ser ilustrado pelo exemplo a seguir, no qual se mostra, na abcissa, a escala depreferncia de um indivduo M, e, na ordenada, de outro indivduo N. Se X preferido a Ypor M em relao a N (que prefere Y a X), esta preferncia no deve ser alterada pela prefe-rncia de M em relao a N em relao a qualquer outro par, por exemplo U e V.

    Ordem crescente de N

    Essa condio pode ser resumida dizendo-se que a escolha de uma coletividade em face auma alternativa fundamentada na escolha dos indivduos diante da mesma alternativa (ede nenhuma outra).

    IV A coletividade no deve prejulgar suas escolhas: para duas escolhas, X e Y, h necessariamenteum certo nmero de preferncias individuais possveis que permitem coletividade preferirX a Y.

    V Para a coletividade, nenhum indivduo prejulga suas escolhas: Arrow admite que as escolhasda sociedade no so idnticas escolha de qualquer indivduo isoladamente.

    Alguns tipos de prticas de aferio das preferncias individuais tm sido propostos paracontornar os impasses oriundos de votaes com mais de dois candidatos, as chamadaseleies plurais e destinadas a contornar o impasse descrito por Arrow.

    25 P. Samuelson., apud M. M. Gardner. On the paradoxical situations that arise fromnontransitive relations. Scientific American, outubro de 1974, p.120: ... A busca dasgrandes mentes, registradas na histria, pela democracia perfeita tornou-se a buscade uma quimera, de uma autocontradio lgica... Agora os estudiosos de todo omundo em matemtica, poltica, filosofia e economia esto tentando salvar o quepode ser salvo da descoberta devastadora de Arrow. Tal descoberta para a matem-tica da poltica o que o teorema de Kurt Godel (1931) da impossibilidade da prova deconsistncia foi para a lgica matemtica...

    26 M.J.N.C. Condorcet. Esquisse dun tableau historique des progrs de lespirit humain,1793.

    27 D. Black. The theory of committus and elections. Cambridge, Un. Press, 1958.

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    28 Uma linha frtil de pesquisa nessa problemtica a de questionar sob que condieso paradoxo da votao seria inoperante. Uma das possveis condies justamente ado pico nico (single peakedness). No obstante os eleitores individuais possam diferiragudamente em sua primeira alternativa, a existncia de uma nica dimenso sob aqual eles avaliam as alternativas implica usualmente preferncias do tipo pico nico.

    Neste caso, o paradoxo no ocorre, uma vez que o eleitor 3 pode vencer cada um dos outrosem competies duais (a existncia de um vencedor Condorcet garante a no-ocorrncia doparadoxo das votaes. G.R. Niemi. & W.H. Riker. The choice of voting systems. ScientificAmerican, jun. 1976, p. 21/27.

    29 E. Lessa, E. A teoria da representao mnima. Folha de S. Paulo, 3 fev. 1995, 1-3.

    30 2 turno aumenta confuso de alianas entre partidos. Folha de S. Paulo, 16 out.1994, 1-14.

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    Isaac Epstein pesquisador da Ctedra Unesco de Comunicao da Universidade Meto-dista de So Paulo (So Bernardo do Campo, SP).

    Trabalho apresentado pelo autor na seco de Poltica da 20th. Scientific Conference ofthe International Association for Mass Communication Research realizada em agosto de1996 em Sydney, Austrlia.