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O PROCESSO CIVILIZADOR E AS FRONTEIRAS:
FRONTEIRAS PARA CIVILIZAR OU CIVILIZAR AS FRONTEIRAS?
Jones Dari Goettert
Adáuto de Oliveira Souza
Silvana de Abreu
Universidade Federal da Grande Dourados
Laboratório de Planejamento Regional
Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas1
Resumo
O processo civilizador moderno-contemporâneo é um processo de fronteiramento territorial e
étnico. As bases de seu desenvolvimento estão assentadas na formação e expansão do Modo de
Produção Capitalista e do Estado-nação – corresponde à configuração espacial, temporal,
política, cultural e identitária hegemônica. A articulação entre essas bases sustenta as relações
estabelecidos/outsiders, que envolvem tanto os princípios do Capitalismo (trabalho e
acumulação) como os princípios de cada Estado-nação (ordem, progresso, integração,
desenvolvimento). No entanto, as fronteiras inter-nacionais são apenas parte dos processos de
fronteiramento civilizacional, pois junto a elas são construídas fronteiras civilizacionais trans-
nacionais (entre Ocidente e Oriente, por exemplo) e intra-nacionais (entre “brancos” e indígenas
no Brasil, por exemplo). Todas as fronteiras, entretanto, como parte do processo civilizador,
definem práticas, discursos e representações que emolduram sujeitos, grupos, comunidades e
sociedades em espaços divisados entre, sempre, “Nós” e “Eles”.
Palavras-chave: Processo Civilizador; Espaço; Fronteiras.
THE CIVILIZING PROCESS AND THE BORDERS: BORDERS TO CIVILIZE OR
CIVILIZING THE BORDERS?
Abstract
The modern-contemporary civilizing process is a territorial and ethnic “bordering process”. The
bases of its development are settled in the formation and expansion of the Capitalist Mode of
Production and of the Nation-State, which corresponds to a spatial, temporal, political, cultural
and identity hegemonic configuration. The articulation between these bases supports the
relationships established/outsiders, involving both the principles of Capitalism (work and
accumulation) and the principles of each Nation-State (order, progress, integration,
development). However, the inter-national boundaries are just part of the “bordering process” of
civilization, because they are built along the borders of civilization trans-national (between
Western and Orient, for example) and intra-national (between “whites” and indigenous in Brazil,
for example). All boundaries, however, as part of the civilizing process, define practices,
discourses and representations that frame individuals, groups, communities and societies within
envisioned spaces between, always, “We” and “They”.
Keywords: Civilizing Process; Space; Frontiers.
1 Grupo que integra o Projeto Imagens, Geografias e Educação – Processo CNPq 477376/2011-8.
2
EL PROCESO CIVILIZADOR Y LAS FRONTERAS: ¿FRONTERAS PARA
CIVILIZAR O CIVILIZAR LAS FRONTERAS?
Resumen
El proceso civilizador moderno-contemporáneo es un proceso de fronteramiento territorial y
étnico. Las bases de su desarrollo están asentadas en la formación y expansión do Modo de
Producción Capitalista y del Estado-Nación, que corresponde a la configuración espacial,
temporal, política, cultural y de la identidad hegemónica. La articulación entre esas bases
sustentan las relaciones establecidas/outsiders, que envuelven tanto los principios del
Capitalismo (trabajo y acumulación) como los principios de cada Estado-Nación (orden,
progreso, integración, desarrollo). Sin embargo, las fronteras inter-nacionales son apenas parte
de los procesos de fronteramiento civilizacional, pues junto a ellas son construidas fronteras
civilizacionales trans-nacionales (entre Occidente y Oriente, por ejemplo) e infra-nacionales
(entre “blancos” e indígenas en Brasil, por ejemplo). Todas las fronteras, no obstante, como parte
del proceso civilizador, definen prácticas, discursos y representaciones que encuadran sujetos,
grupos, comunidades y sociedades en espacios divisados entre, siempre, “Nosotros” y “Ellos”.
Palabras clave: Proceso Civilizador; Espacio; Fronteras.
“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A
princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me
sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à
esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa
uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a
ratoeira para a qual eu corro”. – “Você só precisa mudar de direção”,
disse o gato, e devorou-o.
(Franz Kafka, “Pequena fábula”, in Modesto Carone, 2009)
Introdução
O mundo moderno-contemporâneo está dividido, segundo Michel Foucher (2009, p. 10),
por 248 mil quilômetros de fronteiras políticas terrestres inter-nacionais, divididas em 332
fronteiras entre Estados (por ele definidas de “díades, limites comuns a dois Estados contíguos”).
Nunca, em toda a história humana, pelo que sabemos, construiu-se tantas fronteiras efetivamente
delimitadas e demarcadas – limitada2, portanto – como nos últimos cinco séculos. Poderíamos
objetar aludindo ao recente processo de globalização, tendente, como seus ideólogos têm
proposto, à anulação e até ao fim das fronteiras; no entanto, se em 1945 contava-se com 51
Estados independentes, já eram 159 em 1990 e 193 em 2007 (FOUCHER, 2009, p. 10). Ou seja,
2 Segundo Benedict Anderson (2008, p. 33): “Imagina-se a nação limitada porque mesmo a maior delas, que
agregue, digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem
outras nações. Nenhuma delas imagina ter a mesma extensão da humanidade”. E, para André Roberto Martin (1994,
p. 36 e 38), a partir do século XVII, “[...] a „problemática das fronteiras‟ confunde-se com a questão das
nacionalidades. [...] essa nova forma de institucionalização do poder político – o Estado nacional – é a responsável
pelo estabelecimento de limites rígidos e precisos, tanto quanto possível, entre as sociedades „nacionais‟. [...] desde
então, firmou-se a noção de que a fronteira marca o limite territorial onde o Estado-nação exerce a sua soberania”
3
o processo de globalização em curso coincide com o aumento surpreendente de novas fronteiras
políticas inter-nacionais, portanto, de novos Estados-nações.
O movimento de formação do mundo atual (ocidental, sobretudo) foi pensado por
Norbert Elias (1993; 1994) como (um) “Processo Civilizador”. Nele, as relações de
interdependência suscitadas na passagem do Feudalismo para o Capitalismo fizeram-se
concomitantemente a um conjunto de monopólios (da força, da tributação, da economia, da
política, da língua, da identidade) engendrando, de um lado, a própria formação do Modo de
Produção Capitalista e dos Estados-nações, e, de outro, o desenvolvimento de sociogênese e
psicogênese correlatas, em processo profundo de controle e autocontrole das emoções. Mas, se a
formação dos monopólios coincidiu com a formação dos Estados-nações e de um maior controle
sócio-psicogenético, qual foi (e é) o papel da formação das fronteiras nesse processo? Ou, de
outra forma, a formação das fronteiras inter-nacionais foi/é condição para o processo civilizador
moderno-contemporâneo ou foi/é tal processo que produziu um tipo específico de fronteira?
Afinal, como compreender a fragmentação do mundo [a “criação do espaço métrico” (SANTOS,
D., 2002, p. 30) a partir de “uma mensuração sistemática do mundo” (FOUCHER, 2009, p. 10)],
pelo processo civilizador em curso, e qual o seu papel sobre o controle e o autocontrole das
emoções?
Por outro lado, a profunda correlação entre processo civilizador e formação dos Estados-
nações e fronteiras inter-nacionais, ao definir também uma nova forma das pessoas se
perceberem no mundo em comunidades de pertencimento nacionais (com o papel das fronteiras
inter-nacionais como dispositivos identitários, precisando o “meu” e o “teu” país), não aboliu a
constante criação e recriação de fronteiras étnico-espaciais tanto no interior dos Estados-nações
(como os bascos na Espanha) como trans-nacionalmente (os muçulmanos na Europa, por
exemplo). Nesse sentido, outra questão que se coloca na relação entre fronteiras e processo
civilizador é a que se desdobra da criação/recriação da condição estabelecidos/outsiders: por que,
simultaneamente à maior interdependência das relações engendradas pelo processo civilizador
em curso, construídas desde a escala do local à global, condições do tipo estabelecidos/outsiders
têm se mantido e até se aprofundado? Qual a correspondência dessas condições com o processo
civilizador? Seguindo Norbert Elias e John L. Scotson (2000, p. 208-209):
Trata-se da questão de por que a necessidade de se destacar dos outros homens, e com
isso de descobrir neles algo que se possa olhar de cima para baixo, é tão difundida e
enraizada que, entre as diversas sociedades existentes na face da Terra, não se encontra
praticamente nenhuma que não tenha encontrado um meio tradicional de usar uma outra
sociedade como sociedade outsider, como uma espécie de bode expiatório de suas
próprias faltas.
O Processo Civilizador e as Fronteiras
Se, como apontado por Renato Janine Ribeiro (1993, p. 9-10) na apresentação de “O
Processo Civilizador: formação do Estado e civilização” de Norbert Elias, a “civilização [deve
ser] entendida como processo, como verbo que se substantiva, o civilizar dos costumes”, as
fronteiras que lhe dão forma e conteúdo (à civilização) também podem ser entendidas como parte
do processo temporal-espacial de modelação civilizacional, tanto do tempo como do espaço de
cada parte do mundo moderno-contemporâneo . As fronteiras de cada Estado-nação emolduram3
3 Para André Roberto Martin (1994, p. 46), “[...] as fronteiras aparecem como as molduras dos Estados-nações”.
4
as formas e os jeitos de pensar e de fazer de cada nacionalidade, assim como as ansiedades e os
medos de cada nova fragmentação no interior dessa configuração ensejam outras fronteiras,
muitas delas mais étnico-culturais que propriamente territoriais.
O processo de formação das fronteiras modernas (entre Estados-nações) é abordado
indiretamente por Norbert Elias (1993) em “O Processo Civilizador”, em especial na “Formação
do Estado e Civilização”. Sua compreensão se desdobra da análise sobre a “Feudalização e
Formação do Estado” e as “Sugestões para uma Teoria de Processos Civilizadores”. Na primeira
parte, sugere que a “configuração4 medieval de poder” se processou em movimentos “cíclicos”
de centralização e descentralização (tendências centrífugas), mas que aos poucos foram
suplantados pela formação de monopólios da força e da tributação (tendências centrípetas). Na
segunda parte, aponta que na formação dos monopólios, mas também na vertiginosa
concentração de população e de atividades nas cidades, concomitante à proliferação de vias e
meios de mobilidade e de comunicação propiciadas pelo aumento das relações comerciais,
processa-se o aprofundamento do controle social (sociogênese) e do autocontrole (psicogênese).
As relações de interdependência sempre maiores e mais profundas impedem a reprodução
“instintiva” das pulsões medievais – no que as relações nas Sociedades de Corte europeias
absolutistas tiveram papel decisivo.
Aqui [nas Sociedades de Corte dos Estados absolutistas] se criaram os modelos de
intercâmbio social mais pacíficos de que, em maior ou menor grau, todas as classes
precisavam, depois da transformação da sociedade europeia ocorrida ao fim da Idade
Média; aqui os hábitos mais rudes, os costumes mais soltos e desinibidos da sociedade
medieval, com sua classe guerreira superior e o corolário de uma vida incerta e
constantemente ameaçada, são “suavizados”, “polidos” e “civilizados”. A pressão da
vida de corte, a disputa pelo favor do príncipe ou do “grande” e depois, em termos mais
gerais, a necessidade de distinguir-se dos outros e de lutar por oportunidades através de
meios relativamente pacíficos (como a intriga e a diplomacia), impuseram uma tutela
dos afetos, uma autodisciplina e um autocontrole, uma racionalidade distintiva de corte,
que, no início, fez que o cortesão parecesse a seu opositor burguês do século XVIII,
acima de tudo na Alemanha mas também na Inglaterra, como o supra-sumo do homem
de razão (ELIAS, 1993, p. 18).
As tendências centrífugas, típicas de relações nas quais os comandos transitavam entre a
nobreza e a Igreja Católica, começam a se dissipar no momento em que a burguesia penetra nos
círculos de poder legitimada pelo papel que desempenha nas relações comerciais que se
desenvolvem. Se até então os movimentos “cíclicos” de centralização e descentralização de
poder se desdobravam de disputas entre “senhores territoriais” – que se enfrentavam
militarmente por controles sobre a terra e sobre senhores territoriais menores, em alternância de
4 “Dizer que os indivíduos existem em configurações significa que o ponto de partida de toda investigação
sociológica é uma pluralidade de indivíduos, os quais, de um modo ou de outro, são interdependentes. Dizer que as
configurações são irredutíveis significa que nem se pode explicá-las em termos que impliquem que elas têm algum
tipo de existência independente dos indivíduos, nem em termos que impliquem que os indivíduos, de algum modo,
existem independentemente delas” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 184). Ou, para Roger Chartier (2001, p. 13), com
base em “O que é Sociologia”, de Norbert Elias, “[...] uma Figuration é uma formação social, cujas dimensões
podem ser muito variáveis (os jogadores de um carteado, a sociedade de um café, uma classe escolar, uma aldeia,
uma cidade, uma nação), em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de
dependências recíprocas e cuja reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões”. (A ideia de “campo” de Pierre
Bourdieu [1998] tem aproximação à de figuração, de Norbert Elias.)
5
momentos de tensão, disputa e conflito para momentos de supremacia de um, afrouxamento do
controle territorial e novamente tensão, disputa e conflito –, os séculos XII e XIII delineiam um
conjunto de relações no qual a necessidade dos monopólios da força e da tributação é exigência
de um novo arranjo das relações econômicas, centradas dali em diante menos na terra e mais
sobre o território de atividade e expansão comerciais.
A intermitência de estados de paz entre os momentos de tensões, disputas e conflitos já
não atendia os interesses de uma nova configuração socioespacial que necessitava de um
controle mais efetivo sobre o território, e que fosse um território cada vez mais amplo na medida
em que a atividade comercial se expandia. O comando sobre o território se deu quando se
efetivaram os monopólios da força e da tributação, que possibilitaram também a formação de
monopólios econômicos, políticos, linguísticos, identitários e, fundamental e especialmente,
territoriais. Diferentemente das relações assentadas sobre a terra, nas quais o seu ritmo era dado
pelo tempo predominante da natureza e pelo espaço das trocas simples, as relações comerciais
passaram a depender de um controle extremamente mais efetivo sobre o tempo e sobre o espaço
das trocas para acumulação. O monopólio territorial amplo que possibilitou tal controle foi
correlato à formação dos monopólios da força e da tributação: o primeiro, ao reunir sob um único
comando o poder da força que até então se dispersava entre diversos senhores e domínios
territoriais, impingiu um controle físico-territorial (militar e policial) mais amplo e homogêneo,
neutralizando resistências e impedindo assim a inconstância de relações comerciais e de
interdependências que se expandiam; e a segunda, correlata à primeira, tanto foi primordial para
a sustentação do monopólio da força ao assegurar a formação de um exército militar-policial
permanente, como para empreender esforços na produção de um território cada vez menos
“amarrado” por obstáculos físicos e disputas territoriais, possibilitando maior mobilidade e
comunicação – basilares para o desenvolvimento e expansão do comércio.
À medida que cresciam as oportunidades financeiras abertas à função central, o mesmo
acontecia com seu potencial militar. O homem que tinha à sua disposição os impostos
de todo um país estava em situação de contratar mais guerreiros do que qualquer outro;
pela mesma razão, tornava-se menos dependente dos serviços de guerra que o vassalo
feudal era obrigado a prestar-lhe em troca da terra com a qual fora agraciado. [...] A
supremacia militar que acompanhava a superioridade financeira constituiu, por
conseguinte, o segundo pré-requisito decisivo que permitiu ao poder central de uma
região assumir um caráter “absoluto”. [...] Esse aumento de oportunidades de poder em
mãos da função central constituía assim mais uma condição prévia para a pacificação de
um dado território, maior ou menor, conforme fosse o caso, a partir de um único centro
(ELIAS, 1993, p. 20-21).
Desse modo, a formação dos monopólios da força e da tributação se estabelece
rigorosamente como monopólio territorial, pois a extensão e a profundidade de ambos têm
sentido apenas quando afirmada sobre uma base espacial rígida. Os monopólios (ou os processos
de unificação política e econômica a partir dos séculos XII e XIII, sobretudo) se constituíram
sincrônica mas sobretudo diacronicamente na Europa (mas também em todo o mundo), como os
extremos dados pela formação de Portugal (século XIII em diante) e da Alemanha e Itália
(segunda metade do século XIX). No entanto, todos eles apresentaram um movimento que se
“concluiu” sobre uma base territorial com fronteiras lineares e “fechadas” (o que vale tanto para
as bases nacionais na Europa como para as coloniais fora dela). Os monopólios da força e da
tributação, como monopólios e controles territoriais, necessitam de uma base de atuação
6
extremamente delimitada e demarcada, definindo assim tanto o “dentro” como o “fora” como o
“nós” e o “eles”.
Mas se atualmente parece “natural” a existência dos Estados-nações formados a partir dos
monopólios da força e da tributação, e que definem o monopólio territorial (nacional), seu
processo foi marcado por tensões, avanços e recuos e pela constituição de Sociedades de Corte,
que só lentamente foram se distanciando e definindo seus perfis nacionais. Inicialmente, as
sociedades de corte europeias (francesa, inglesa e italiana, especialmente) comunicavam-se mais
entre si que as mesmas com suas áreas de influência, falando a mesma língua (primeiro o italiano
e mais tarde o francês), lendo os mesmos livros, tendo os mesmos gostos, as mesmas maneiras e
o mesmo estilo de vida (cf. ELIAS, 1993, p. 18).
Os monopólios da força e da tributação asseguraram a formação material dos territórios e,
portanto, das fronteiras que os delineavam. No entanto, foi necessário também a formação
“imaterial” dos espaços, isto é, a construção de imagens, imaginações, imaginários e
representações que redefinisse simbolicamente o que se processava materialmente. O mundo
material (da economia, das trocas, do trabalho, do espaço e tempo físicos etc.) tem sua
humanidade calcada sobre uma correlata dimensão simbólica, que no mundo moderno-
contemporâneo se assenta sobre a formação do Estado territorial que tem na Nação seu duo
constitutivo. A formação de uma entidade do “nós” nacional foi processual e teve o monopólio
da língua como um de seus pressupostos.
[Apenas] Mais tarde, de meados do século XVIII em diante, mais cedo em um país e um
pouco depois em outro, mas sempre se conjugando com a ascensão da classe média e o
gradual deslocamento do centro de gravidade política e social da corte para as várias
sociedades burguesas nacionais, os laços entre as sociedades aristocráticas de corte de
diferentes nações são lentamente afrouxados, mesmo que nunca cheguem a se romper
de todo. A língua francesa cede lugar, não sem lutas violentas, às línguas nacionais
burguesas, mesmo na classe alta. A própria sociedade de corte torna-se cada vez mais
diferenciada, da mesma maneira que acontece com as sociedades burguesas, sobretudo
quando a velha sociedade aristocrática perde, de repente e para sempre, seu centro, com
a Revolução Francesa. A forma nacional de integração substitui a que se baseava na
situação social (ELIAS, 1993, p. 18).
Uma pretensa Europa “unificada” pelas Sociedades de Corte, que se comunicavam a
partir da “supremacia” da língua francesa, dá lugar à fragmentação pela “forma nacional”. Toda
língua é também uma forma de dizer, pensar, inventar, imaginar e viver o mundo, e as Nações
moderno-contemporâneas são, mais que inventadas, imaginadas, como condição profunda para
que sejam vividas, “[...] no sentido de que fazem sentido para a „alma‟ e constituem objetos de
desejos e projeções” (de acordo com Lilia Moritz Schwarcs, 2008, p. 10).
Nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no vazio e com base
em nada. Os símbolos são eficientes quando se afirmam no interior de uma lógica
comunitária afetiva de sentidos e quando fazem da língua e da história dados “naturais e
essenciais”; pouco passíveis de dúvida e de questionamento. O uso do “nós”, presente
nos hinos nacionais, nos dísticos e nas falas oficiais, faz com que o sentimento de
pertença se sobreponha à ideia de individualidade e apague o que existe de “eles” e de
diferença em qualquer sociedade (SCHWARCS, 2008, p. 16).
7
A unificação linguística amalgama o que tendia à dispersão, devendo o idioma “nacional”
ser ensinado e aprendido como condição necessária para a construção de um sentimento de
pertencimento também nacional – uma comunidade inventada, imaginada e vivida –, de um lado,
e como relação de poder5 das elites que detêm a forma do bem e do bom falar e escrever.
As pequenas elites podem operar com línguas estrangeiras, mas a língua
nacional se impõe uma vez que o quadro de pessoas instruídas tenha-se tornado
suficientemente grande (como testemunha a luta por um reconhecimento
linguístico nos Estados indianos desde a década de 1940). Daí, o momento em
que livros didáticos e jornais são impressos pela primeira vez em língua
nacional, ou quando essa língua é usada pela primeira vez para algum fim
oficial, marca um passo importantíssimo na evolução nacional (HOBSBAWM,
2010, p. 222-223).
O inventado, o imaginado e o vivido em uma Comunidade Nacional são correlatos à
formação de uma “consciência nacional” que se faz em forma de “irmandade”, emanada sob os
mesmos interesses, origem e destino6. O Processo Civilizador moderno-contemporâneo, calcado
em monopólios basilares da formação do Estado-nação, define uma comunidade na qual e sobre
a qual os sujeitos do território esquadrinhado, limitado e emoldurado por fronteiras rígidas
devem fazer parte. Ou seja, os monopólios sobre o território definem um monopólio
comunitário-identitário sobre os sujeitos, e, incorporado, torna-se lócus de inclusão dos de dentro
mas também de exclusão daqueles que estão fora de seus limites. Assim, é sobre tal configuração
territorial hegemônica que as identidades/comunidades nacionais se estabelecem, em processo
central e dominante de novas relações estabelecidos/outsiders. Mas tais relações devem ser
pensadas sempre como parte do novo Modo de Produção que se constitui, no qual as relações de
mercado, ao encapsularem sob nova lógica a materialidade das relações, também o fazem em
relação à imaterialidade identitária e de pertencimento. Em outras palavras: todo sujeito já nasce
marcado pelos monopólios que fundam e que foram fundados junto ao Estado-nação a que
“pertence”, como marca indelével da vida competitiva à qual, mesmo sem o saber, pertence. O
monopólio identitário-comunitário dado pela condição nacional passa a se constituir como
linguagem de poder, como construção discursiva do Estado-nação.
Segundo Benedict Anderson (2008, p. 71 e seguintes), a nação moderno-contemporânea
tem o capitalismo como a sua principal razão de existência. O autor sustenta que o
desenvolvimento da imprensa em seu processo “da reprodutibilidade e da disseminação” foi uma
das “primeiras formas de empreendimento capitalista”. Inicialmente forjado sobre o latim, o
setor editorial foi paulatinamente se tornando uma multiplicidade “monoglota”, isto é, se
5 Segundo Álvaro José de Souza (2001, p. 48), “[...] o idioma tem se mostrado, em múltiplos casos, causa e efeito de
unificação nacional, ora servindo para aglutinar populações, ora sendo imposto em nome da unificação de uma
população em território nacional. Por isso mesmo é que, no processo de formação das nações, seja a do Estado
Moderno europeu, seja o da organização das nacionalidades nos continentes atingidos pela colonização europeias –
Ásia, África, América e Oceania – o idioma adotado é normalmente aquele falado pelos grupos que passam a deter o
poder e a organizar o processo de unificação nacional”. 6 Uma “família”, como apontado por Frantz Fanon (2008, p. 126-127): “A família, na Europa [e certamente não só
ali], representa uma maneira que tem o mundo de se oferecer à criança. A estrutura familiar e a estrutura nacional
mantêm relações estreitas. A militarização e a centralização da autoridade de um país conduzem automaticamente a
uma recrudescência da autoridade paterna. Na Europa, e em todos os países ditos civilizados ou civilizadores, a
família é um pedaço da nação”.
8
especializando nas diversas línguas faladas mais que em apenas uma língua lida, o latim (mesmo
com a reação da Contra Reforma que buscou uma retomada das edições nessa língua). Além
disso, Benedict Anderson (2008) salienta três “fatores externos” para o “revolucionário impulso
vernaculizante do capitalismo”: (1) a nova forma pela qual o latim é escrito, agora mais próximo
das “realizações estilísticas dos antigos” (gregos, principalmente); (2) a Reforma protestante, que
com a tradução da Bíblia (especialmente para o alemão) provoca a massificação de leitores e da
leitura – criando uma “aliança entre o protestantismo e o capitalismo editorial”; e (3) “[...] a
difusão lenta, geograficamente irregular, de determinados vernáculos como instrumentos de
centralização administrativa”.
[...] a ascensão desses vernáculos à condição de línguas oficiais, onde elas, em certo
sentido, concorriam com o latim (o francês em Paris, o médio-inglês em Londres),
contribuiu para o declínio da comunidade imaginada da cristandade. [...] O que tornou
possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi uma interação mais
ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de
produção (o capitalismo), uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da
diversidade linguística humana (ANDERSON, 2008, p. 77-78).
Especificamente, as “línguas impressas lançaram as bases para a consciência nacional de
três maneiras diferentes”: (1) “criaram campos unificados de intercâmbio e comunicação abaixo
do latim e acima dos vernáculos falados”; esses campos, formando “companheiros de leitura”,
“constituíram, na sua invisibilidade visível, secular e particular, o embrião da comunidade
nacionalmente imaginada”; (2) “o capitalismo tipográfico conferiu uma nova fixidez à língua, o
que, a longo prazo, ajudou a construir aquela imagem de antiguidade tão essencial à ideia
subjetiva de nação”; e (3) “o capitalismo tipográfico criou línguas oficiais diferentes dos
vernáculos administrativos anteriores”, e, de forma inevitável, “alguns dialetos estavam „mais
próximos‟ da língua impressa e acabaram dominando suas formas finais”. Nesse sentido, “[...] a
convergência do capitalismo e da tecnologia de imprensa sobre a fatal diversidade da linguagem
humana criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada, a qual, em sua
morfologia básica, montou o cenário para a nação moderna” (ANDERSON, 2008, p. 79-82).
A “comunidade imaginada” hegemônica moderno-contemporânea teve sua formação
amarrada em movimentos materiais e imateriais concomitantes. O Capitalismo se fez como
modo de produção material e modo de produção simbólico, no qual processos de objetivação
correspondem a determinados processos de subjetivação7. A Nação é o espaço central de
celebração simbólica do Modo de Produção Capitalista e, como todos os demais (da casa, do
bairro, da cidade, do mercado, do mundo), “[...] exigem uma forma ritual de comportamento, um
modo particular de vestir, maneira de falar, padrão de movimento” (COSGROVE, 2010, p. 129).
Desse modo, a fragmentação do mundo em Estados-nações é correlata, paradoxalmente, à
homogeneização dada pela própria universalização dessa configuração monopolística, da força e
da tributação à cultural-simbólica.
A formação e a consolidação dos Estados Absolutistas na Europa definiram a
constituição de um controle militar (monopólio da força) e de um controle sobre os recursos em
impostos e taxas (monopólio da tributação) praticamente “absoluto” sobre um território, que
7 Para Denis E. Cosgrove (2010, p. 123), “Se toda a produção humana é simbolicamente constituída, podemos
reafirmar os modos de produção como modos de produção simbólica. [...] Na sociedade capitalista, a produção
simbólica ocorre na economia como produtora de mercadorias”.
9
também começava a ser monopolizado para esse fim definindo “princípio[s] de política interna”.
Se, de um lado, era necessário lidar com um “equilíbrio instável no território” internamente,
pelas tensões entre nobreza remanescente e burguesia ascendente, por outro lado as formações
socioespaciais novas avançavam com “crescente interdependência de maiores áreas e
populações”, controlando-as e definindo também tensões inter-nacionais, que se constituiam e
que deviam se dar em equilíbrio mínimo, como “balança de poder”, pois “Já não havia espaços
vazios na Europa” (cf. ELIAS, 1992, p. 20-47).
As crescentes relações internas de interdependência, forjadas pelas novas demandas de
uma economia cada vez mais calcada no comércio (e no capitalismo em geral), fez com que,
como no caso da produção de vinho na região de Borgonha (França), “[...] lentamente, os vários
distritos [se tornassem] interligados, as comunicações [fossem] desenvolvidas, expandiram-se a
divisão do trabalho e a integração de áreas maiores e de populações, bem como aumentou
correspondentemente a necessidade de meios de troca e unidade de cálculo que tivessem o
mesmo valor num extenso território, ou seja, a moeda” (ELIAS, 1993, p. 34).
Essas novas condições apontavam para “mudanças na estrutura dos relacionamentos
humanos” (ELIAS, 1993, p. 38). O controle social e o autocontrole se aprofundaram pari passu
às novas estruturas (sociais) de tempo e espaço, redefinindo, nesse sentido, tanto as relações
ensejadas por uma inaugural “tecnoesfera” (um novo modo de produzir: desenvolvimento
comercial, dos transportes e das comunicações, primeiro, e “revolução industrial”, depois),
como, também, por sua “psicoesfera” correspondente (um novo modo de pensar:
interdependência cada vez mais acentuada pela divisão do trabalho, sociedades de corte e
etiqueta etc.) (as ideias de “tecnoesfera” e de “psicoesfera” são de empréstimo de Milton Santos,
2004).
A universalização do “trabalho livre”, em contraponto ao trabalho escravo ou servil,
redefiniu tanto uma nova concepção de trabalho como o aumento das relações de
interdependência, não apenas entre os próprios trabalhadores de um país mas também entre esses
e as classes mais altas e, cada vez mais, entre o conjunto de sujeitos coprodutores de todos os
outros espaços nacionais – em um mundo que passa a ser, por isso, inter-nacional. Da mesma
forma, o trabalho livre redefiniu a relação entre as pessoas e o poder, donde o direito hereditário
e religioso é sobreposto por “formas legais” marcadoras (ideologicamente) da sociedade
comercial primeiro e da sociedade industrial depois.
A cristalização de normas legais gerais por escrito, que é parte integral das relações de
propriedade na sociedade industrial, pressupõe um grau muito alto de integração social e
a formação de instituições centrais capazes de dar à mesma lei validade universal em
toda a área que controla, e suficientemente fortes para exigir o cumprimento de acordos
escritos. [...] o surgimento de novas unidades de integração (e de governo) sempre é
expressão de mudanças estruturais na sociedade, ou seja, nas relações humanas. [...] Em
todos os casos, a rede de dependências que se cruzam no indivíduo tornou-se mais
ampla e mudou de estrutura; em todas as ocasiões, numa correspondência exata com
essa estrutura, a modelação do comportamento e de toda vida emocional, a estrutura da
personalidade, mudou também. O processo “civilizador” visto a partir dos aspectos dos
padrões de conduta e de controle de pulsões é a mesma tendência que, se considerada do
ponto de vista das relações humanas, aparece como um processo de integração em
andamento, um aumento na diferenciação de funções sociais e na interdependência e
como a formação de unidades ainda maiores de integração, de cuja evolução e fortuna o
indivíduo depende, saiba disso ou não (ELIAS, 1993, p. 56, 62 e 83).
10
A sociedade moderno-contemporânea, em sua “unidade fragmentada” dada pelos
diversos Estados-nações, o é em uma integração contínua, “[...] relativamente íntima e uniforme
de pessoas que efetua um maior controle de violência, pelo menos dentro de suas fronteiras” (cf.
ELIAS, 1993, p. 84), monopolisticamente. O “mecanismo monopolista” da força e da tributação
se define sobre um dado território “fechado”, um “Estado em que todas as oportunidades são
controladas por uma única autoridade: um sistema de oportunidades abertas transforma-se num
de oportunidades fechadas”, definindo também um “estado de equilíbrio” tanto interno quanto
externo8. Ao mudarem as relações de poder, criando oportunidades diferentes, mudam também
“[...] a modelagem dos afetos, a estrutura das pulsões e consciência, em suma, toda a estrutura
social da personalidade e as atitudes sociais das pessoas mudam necessariamente com o tempo”
(ELIAS, 1993, p. 97-100).
[...] graças à centralização e à monopolização, oportunidades que antes tinham que ser
conquistadas por indivíduos com emprego de força militar ou econômica tornam-se
passíveis de planejamento. A partir de certo ponto do desenvolvimento, a luta pelos
monopólios não visa mais à sua destruição. É uma luta pelo controle do que eles
produzem, por um plano de acordo com o qual seus ônus e benefícios sejam mais
divididos, numa palavra, pelas chaves para a distribuição. A distribuição em si, a tarefa
do governante monopolista e da administração, passa, assim, de uma função
relativamente privada para pública. [...] Só quando um monopólio centralizado e
público de força existe numa grande área é que a competição pelos meios de consumo e
produção se desenvolve de modo geral sem intervenção da violência física; só então
existem, de fato, o tipo de economia e de luta que estamos acostumados a designar pelos
termos “economia” e “competição” em sentido mais específico (ELIAS, 1993, p. 105 e
132).
A delimitação e a demarcação das fronteiras lineares [sempre tensas porque definidas
politicamente entre grupos em tensão, e, por isso, “manipulada[s] como um instrumento para
comunicar uma ideologia” (cf. RAFFESTIN, 1993, p. 166)], em linhas rígidas e pretensamente
fixas, teve papel central nos processos de centralização, monopolização e planejamento policial-
militar e fiscal-tributário sobre um determinado território (o território nacional), na formação dos
Estados-nações.
Para Nicos Poulantzas (1990, p. 120, 121 e 131):
[o] território é apenas um dos elementos da nação moderna [...] esse espaço-território
serial, descontínuo e segmentado, se implica as fronteiras, levanta também o novo
problema de sua homogeneização e de sua unificação: seria também o papel do Estado
na unidade nacional. [...] O Estado capitalista não se limita a aperfeiçoar a unidade
nacional, ele se constitui quando fundamenta essa unidade, ou seja a nação moderna.
[...] pelo mesmo movimento que o Estado estabelece as fronteiras nacionais e unifica o
interior, é também por esse movimento que ele se volta para o exterior dessas fronteiras
neste espaço irreversível, delimitado embora sem fim, sem horizonte último: extensão
de mercados, do capital, dos territórios. [...] Essas fronteiras só são portanto
estabelecidas como as de um território nacional a partir do momento em que se trata
exatamente (para o capital, para as mercadorias) de franqueá-las. [...] O Estado
8 De acordo com Delgado de Carvalho (1939, p. 104 e 106), em leitura-síntese de “Geografia das fronteiras” de
Jacques Ancel, “[...] A gênese dos Estados atuais resultou num equilíbrio entre as forças internas das nações e a
pressão periférica [externa]. [...] Certos Estados dotados cedo de um espírito nacional, fixaram suas fronteiras em
quadros que não foram mais sensivelmente modificados, tal o equilíbrio interno ao qual tinham chegado”.
11
capitalista estabelece as fronteiras ao constituir o que está dentro, o povo nação, quando
homogeneiza o antes e o depois do conteúdo desse enclave. A unidade nacional, a nação
moderna, torna-se assim a historicidade de um território e territorialização de uma
história [...].
É curioso constatar, nessa direção, que concomitantemente à afirmação dos Estados-
nações como unidades básicas da configuração territorial (mas também temporal) do Modo de
Produção Capitalista, desenvolvem-se as teorizações que fundam o “liberalismo econômico”,
especialmente a partir de Adam Smith. Podemos dizer que Adam Smith também admitia a
necessidade de constituição de monopólios da força e da tributação [como em passagens
importantes em que trata da maior importância dos exércitos em comparação com as milícias, e
do comércio com as colônias (SMITH, 1985, p. 63 e 161)], juntamente com importante atuação
do Estado nas funções que lhe eram absolutamente necessárias para o desenvolvimento
econômico. O pensador entendia a necessidade de atuação do Estado com a defesa como “o
primeiro dever do soberano, o de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros
países independentes”, com exército permanente e não milícias temporárias (SMITH, 1985, p.
151 e seguintes).
Assim como é somente por meio de um exército efetivo bem organizado que uma nação
civilizada consegue defender-se, da mesma forma é somente com tal exército que um
país bárbaro pode ser civilizado com rapidez e de modo razoável. Um exército efetivo
implanta, com força irresistível, a lei do soberano pelas províncias mais longínquas do
império e mantém, até certo ponto, um governo regular em regiões que, caso contrário,
não admitiria lei alguma (SMITH, 1985, p. 162).
Em seguida, Adam Smith aponta a necessidade de “gastos com a Justiça”. Já nos “gastos
com as obras e as instituições públicas”, o autor é explícito em apontar que essas devem ser
destinadas a facilitar o comércio, a educar a juventude e a instruir a todos. Junto aos gastos,
Adam Smith acentua a ordem das receitas do Estado, com tributação sobre a terra, o capital e o
trabalho (cf. SMITH, 1985, p. 163 e seguintes, 173 e seguintes e 247 e seguintes).
Sobretudo, diz o autor:
O comércio e as manufaturas raramente podem florescer por muito tempo em um país
que não tenha uma administração de justiça normal, no qual as pessoas não se sintam
seguras na posse de suas propriedades, no qual a fidelidade nos contratos não seja
garantida por lei e no qual não se possa supor que a autoridade do Estado seja
regularmente empregada para urgir o pagamento das dívidas por parte de todos aqueles
que têm de pagar. Em suma, o comércio e as manufaturas raramente podem florescer
em qualquer país em que não haja um certo grau de confiança na justiça do Governo
(SMITH, 1985, p. 316).
“Segurança, território, população”: para que as relações de troca e intercâmbio
disponibilizassem de um espaço adequado à sua realização, era preciso que as pessoas se
sentissem “seguras” em seu país [a passagem de um “Estado territorial” para um “Estado de
população” foi fundamental, como observado por Georgio Agamben [2010, p. 11] em relação a
análises de Michel Foucault]. A garantia de segurança para pessoas de um determinado território
devia ser “dada” pelo Estado (e a confiança nele como atributo de uma comunidade de
pertencimento em formação e consolidação, a Nação). O controle do território passa a ser um
12
controle sobre a população, controlada devidamente por um poder disciplinar correspondente [as
inferências aproximativas entre Adam Smith e Michel Foucault (2008) obviamente são apenas
provocativas, mas ajudam a pensar o quanto para um mundo “liberal” que se formava era crucial
uma ordem da segurança em torno da população e sobre o território, ensejando controles sociais
e autocontroles específicos]. Segundo Georgio Abamben (2010, p. 11), “[...] o desenvolvimento
e o triunfo do capitalismo não teria sido possível [...] sem o controle disciplinar efetuado pelo
novo biopoder, que criou para si, por assim dizer, através de uma série de tecnologias
apropriadas, os „corpos dóceis‟ de que necessitava”.
Se nas Sociedades de Corte (cf. ELIAS, 2001) o controle social e o autocontrole se
constituíam como elementos basilares para o progressivo aumento da “espiação” sobre o outro (e
sobre si), em olhares, modos de cumprimento, de falar, de ajustar o corpo, de se portar à mesa,
embalados por manuais de bons costumes e de etiqueta, nos territórios nacionais que se
formavam a fronteira passa a marcar o ponto até onde podia se manifestar o controle tanto sobre
a terra e seus recursos (monopólio da tributação – cartorial, fiscal, fundiário etc.) como sobre as
gentes (monopólio da força – exército, polícia, prisões, manicômios, hospitais, escolas etc.)9. No
primeiro caso, a terra e tudo o que está sob e sobre ela vira recurso e “meio de produção”; e, no
segundo, todas as gentes viram recurso e “força de trabalho”, racionalizadas e manipuladas
através da “invenção da população”. Na mesma medida em que o espaço e o tempo são
linearizados, esquadrinhados e mensurados, o são também as relações socioespaciais e suas
gentes, enquadradas no processo de “contabilização” moderno-contemporâneo. A lógica
Capital/Trabalho encontra na formação dos Estados-nações o seu correlato, como fórmula
“perfeita” entre economia e política.
Para Hervé Le Bras (2000, p. 24):
[Sobre a necessidade de contabilização da população] É mais fácil representar o
conjunto de habitantes de uma ilha como um todo [referência à Inglaterra], do que o de
um país como a França com fronteiras ainda flutuantes e mal definidas [no contexto da
formação dos dois Estados-nações; a ênfase contábil da população impõe-se
definitivamente na Inglaterra no final do século XVII, enquanto na França se consolida
apenas mais de um século depois].
Para Claude Raffestin (1993, p. 67-68):
[Pelos recenseamentos a população] é uma representação abstrata e resumida, mas já
satisfatória para permitir uma intervenção que busca a eficácia. O recenseamento
permite conhecer a extensão de um recurso (que implica também um custo), no caso a
população. Nessa relação que é o recenseamento, por meio da imagem do número o
Estado ou qualquer tipo de organização procura aumentar sua informação sobre um
grupo e, por consequência, seu domínio sobre ele. [...] os primeiros recenseamentos
modernos frequentemente coincidem com o fortalecimento do Estado ou com a
formação de um novo Estado [o Estado-nação].
9 Para Roger Chartier (2001, p. 18 e 19): “O monopólio fiscal, o monopólio militar e a etiqueta de corte são portanto
os três instrumentos de dominação que, conjuntamente, definem essa forma social original que é a sociedade de
corte. [...] No Ocidente, entre os séculos XII e XVIII, as sensibilidades e os comportamentos efetivamente se
modificaram profundamente por dois fatos fundamentais: a monopolização, pelo Estado, da violência que obriga ao
controle das pulsões e assim pacifica o espaço social; e o estreitamento das relações interindividuais, que implica
necessariamente um controle mais severo das emoções e dos afetos”.
13
Para Benedict Anderson (2008, p. 233):
A verdadeira inovação dos recenseamentos dos anos 1870, portanto, não constitui na
construção de classificações etno-raciais, e sim na sua quantificação sistemática [o
autor perscruta o contexto da penetração inglesa no Sudeste Asiático a partir do século
XIX]. Os dirigentes pré-coloniais no mundo malaio-javanês já tinham tentado efetuar
uma série de estimativas dos povos sob o seu controle, mas por meio de relações de
impostos e listas de recrutamento. Os objetivos eram concretos e específicos: manter um
rastreamento daqueles que realmente poderiam ser tributados e recrutados para o
exército – pois esses dirigentes estavam interessados apenas em lucros e potenciais
soldados.
E para Norbert Elias (1993, p. 106, 108 e 118):
Sem a organização monopolista da violência física e da tributação, limitada no presente
às fronteiras nacionais [“monopólio dentro dos limites de um território” proporcionando
“estabilidade às fronteiras” ou “as fronteiras do monopólio”], a restrição dessa luta
[“lutas econômicas de nossos dias”] por vantagens “econômicas” ao emprego do poder
“econômico”, bem como a observância de suas regras básicas, seriam impossíveis em
qualquer época, mesmo em Estados isolados.
A “organização monopolística” controla territórios e populações, e conhecer a sua
“exatidão” se constitui como instrumento eficaz e eficiente de poder10
. Formação dos Estados-
nações e consolidação do Modo de Produção Capitalista compõem, assim, o duo central da
armação espaço-temporal moderno-contemporânea. A interdependência cada vez mais acentuada
entre as partes do mundo a partir da arquitetônica capitalista, fazem refluir para um mesmo
enlace as relações internas e externas dentro e entre os Estados-nações e o mercado inter-
nacional – ele mesmo cada vez mais global mas extremamente arrumado pela configuração de
mercados nacionais11
.
De acordo com Norbert Elias (1993, p. 144, 146 e 147):
Na realidade histórica, esses dois processos – mudanças de poder entre classes dentro de
uma mesma unidade, e deslocamentos no sistema e tensões entre unidades diferentes –
constantemente se entrelaçam. [...] [Todo Estado-nação] Pode conquistar possessões
coloniais, proceder à revisão de fronteiras, obter mercados de exportação e vantagens
econômicas ou militares, em suma, pode promover o aumento geral de seu poder. Mas,
exatamente porque nas lutas de sociedades bastante complexas cada rival e adversário é,
ao mesmo tempo, um parceiro na linha de produção da mesma maquinaria, toda
mudança súbita e radical num setor dessa rede inevitavelmente provoca perturbação e
10
O “Estado territorial” é transformado em “Estado de população”, segundo Michel Foucault (1988, p. 131): “As
disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a
organização do poder sobre a vida. [...] A velha potência da morte que simbolizava o poder soberano é agora,
cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. [...] Abre-se, assim, a era
do bio-poder”. 11
Vejamos o que aponta Michel Foucault (2008, p. 390 a 392): “[...] a pluralidade [moderno-contemporânea] de
Estados é a própria necessidade de uma história agora inteiramente aberta e que não é temporalmente polarizada
para uma unidade última. Um tempo aberto, uma espacialidade múltipla [...] É nessa que se articula o princípio de
que se está num tempo que é [politicamente] aberto e num espaço que é estatalmente múltiplo. [...] essas unidades se
afirmam [...] num espaço que é agora o dos intercâmbios econômicos ao mesmo tempo multiplicados, ampliados e
intensificados [espaço da concorrência]. [...] fio condutor da razão de Estado”.
14
mudanças em outro. Para sermos exatos, não deixa de operar, por essa razão, o
mecanismo da competição e do monopólio. Mas os conflitos inevitáveis tornam-se cada
vez mais arriscados para o precário sistema de nações. [...] Da mesma maneira, as
relações entre diferentes classes sociais dentro de um domínio tornam-se, com o avanço
da divisão das funções, cada vez mais ambivalentes.
A acentuada interdependência concomitante à aceleração das trocas (produção,
circulação, distribuição e consumo) definiram a “alocação exata do tempo” aliada ao “espírito de
previsão” (ELIAS, 1993, p. 208), o que correspondeu também à alocação exata do espaço, no
sentido de formação de “mesmos padrões de conduta” e de emoções e de seu devido controle
(ELIAS, 1993, p. 212).
Como modo de produção global, o Capitalismo definiu o modelo Estado-nação como a
configuração temporal-espacial hegemônica no mundo, não impedindo, no entanto, que “[...] de
acordo com a estrutura da história de cada país, variedades muito diferentes de controle das
emoções emergem no contexto da conduta civilizada” (ELIAS, 1993, p. 214). Assim, cada povo
e também cada indivíduo, pertencente a um país, conduz a sua conduta de acordo com princípios
nacionais próprios: mitos de origem e de destino, projetos, representações de passado e de futuro,
artes, esportes etc.
Nesse sentido, podemos afirmar, sempre em aproximação a Norbert Elias (1993, p. 234),
que o Estado-Nação é parte de um “processo histórico de racionalização”. O “abrandamento das
pulsões” se dá por um processo de “psicologização e racionalização” em cada país e no Ocidente
em geral:
A reflexão contínua, a capacidade de previsão, o cálculo, o autocontrole, a regulação
precisa e organizada das próprias emoções, o conhecimento do terreno, humano e não-
humano, onde agia o indivíduo, tornaram-se precondições cada vez mais indispensáveis
para o sucesso social. [...] O que mudou foi a maneira como as pessoas se ligavam umas
às outras. [...] a racionalidade e os padrões de sentimentos, a auto-imagem e a economia
pulsional dos alemães, ingleses, franceses e italianos se diferenciam, de acordo com
suas diferentes histórias de interdependência, e a modelação social da pessoa no
Ocidente, como um todo, difere da dos orientais (ELIAS, 1993, p. 225, 226, 230, 231-
232).
Tanto nas relações próximas (inter-pessoais) como nas relações distantes (inter-
nacionais), a racionalização moderno-contemporânea fez com que “as pessoas passa[sse]m a se
observar mais” (ELIAS, 1993, p. 246).
Nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções do indivíduo,
sem um controle muito específico de seu comportamento. Nenhum controle desse tipo é
possível sem que as pessoas anteponham limitações umas às outras, e todas as
limitações são convertidas, na pessoa a quem são impostas, em medo de um ou outro
tipo. [...] As tensões entre Estados, criadas pela dinâmica irresistível de suas lutas pela
supremacia sobre domínios cada vez maiores, encontram expressão na constituição
psicológica da pessoa, em frustrações e restrições específicas. Impõem a esses
indivíduos uma pressão de trabalho e uma insegurança profunda que nunca cessam.
Tudo isso, as frustrações, a inquietação, a pressão do trabalho, não menos que a ameaça
que nunca termina à vida inerente às tensões entre Estados, gera ansiedades e medos. O
mesmo se aplica às tensões dentro de cada sociedade e Estado (ELIAS, 1993, p. 270).
15
Mas, então, como saber o dentro e o fora de “cada sociedade e Estado”? Toda intenção
de controle, segurança e disciplina (e racionalidade correspondente) deve se ajustar a um espaço
conhecido, delimitado e demarcado. A marcação das fronteiras definiu esse saber, constituindo-
se na armadura territorial sobre a qual o poder pode e deve se impor, assegurando a segurança e
impondo a disciplina12
. Os monopólios e os poderes moderno-contemporâneos articulam-se
definindo a “exatidão” do território e da população. De modo semelhante, as relações entre
populações, comunidades, grupos e pessoas tendem a se desenvolver também a partir de uma
racionalidade “exata” (“nós somos isto e eles são aquilo”), na qual as práticas discursivas
hegemônicas são impostas como relações de normalidade – automaticamente criando o seu
Outro, o anormal, a anomia. Nessa exatidão, inevitavelmente, relações estabelecidos/outsiders se
propagam, se criam, de recriam e se desfazem, marcando fronteiras em um processo civilizador
que é ele mesmo estruturado em lógicas fronteiriças. Seja para classificar espaços e gentes, para
produzir comunidade de pertencimento ou seja para a imposição de controles do espaço, as
fronteiras territoriais ou étnicas (cf. BARTH, 1998) definem suas territorialidades13
e delas
emergem relações estabelecidos/outsiders correspondentes.
O Processo Civilizador como Processo de Fronteiramento
Civilizar não pode ser compreendido como o processo de tornar melhor, melhorar. Antes,
deve ser compreendido como movimento modelador de uma dada formatação de condutas,
ajustada no que definimos hodiernamente por relações moderno-contemporâneas. Tais relações
definem um jeito de pensar e praticar o mundo, ou seja, uma forma de viver. Essa forma de viver
é definida por um processo civilizador que articula e é articulado por duas linhas centrais
básicas: politicamente, pela fragmentação do mundo em Estados-nações; e, economicamente,
pela homogeneização do Modo de Produção Capitalista. Uma e outra, no entanto, articulam-se
em “processos de fronteiramento”14
inevitáveis, a partir de competitividades materiais e
12
“Modernamente foi o príncipe que sentiu a necessidade de materializar os limites de sua contestada autoridade.
Foi o Renascimento que lhe forneceu os meios de chegar a isso: o mapa, a exploração topográfica, o interesse
estratégico. As primeiras fronteiras traçadas no mapa são as da autoridade do soberano, da monarquia
administrativa. O que ainda está impreciso e indeterminado na realidade, aparece exato na carta geográfica”
(CARVALHO, 1939, p. 109). 13
“Sean cuales sean sus orígenes específicos, sin embargo, la territorialidad por lo general se pone en práctica en
varias formas diferentes aunque a menudo complementarias: (1) mediante la aceptación popular de las
clasificaciones de espacio (e.g. “nuestro” frente a “tuyo”); (2) a través de la comunicación de un sentido de lugar
(donde las señales y fronteras territoriales evocan significados); y (3) mediante la imposición del control sobre el
espacio (mediante la construcción de barreras, la interceptación, la vigilancia, la disposición de cuerpos de policía, la
guerra, y la revisión judicial)” (AGNEW; OSLENDER, 2010, p. 196). 14
Tomamos a ideia de “processo de fronteiramento” de empréstimo de Thiago Rodrigues Carvalho (2010, p. 85-86),
para quem “A fronteira como construção em permanente desenvolvimento deveria ser uma palavra conjugada no
gerúndio: fronteirando. O movimento que atribui sucessivas significações às fronteiras constituem processos de
fronteiramentos. São significados atribuídos ao fenômeno/conceito, a fim de fazer valer uma acepção motivadora, da
relação de quem julga a manifestação, inteligível e total em sua relação com ele. São construções que também
participam da trama de constante re-construção/identificação do fenômeno/conceito, não o esgotando, apenas elenca
alguns de seus dispositivos e os usa em suas estratégias de consumação territorial. [...] Os processos de
fronteiramento na formação, consolidação e constituição do fenômeno territorial fronteira são estratégias políticas
de apropriação dos poderes espacializados nas frentes do fenômeno fronteira. Frentes manifestas de forças que
tencionam diversas formas de encontros, desencontros, dispersão e expansão ou fechamento e choques, disputas e
transgressões, ou até mesmo, conexões integradoras (legais e ilegais), contiguidades e permeabilidades, que estão
16
simbólicas que lhes são inerentes: para as primeiras, a ênfase na acumulação; paras as segundas,
a ênfase no status.
A fórmula é “simples”: dividir para multiplicar. A constituição dos monopólios da força e
da tributação define o monopólio territorial sobre os recursos materiais e humanos. A sustentação
dos monopólios se afirma com a soberania do Estado-nação, desenvolvendo uma comunicação
que propõe (e impõe) a unificação linguística, da narrativa temporal única e da integração
territorial, de um sentimento identitário e de pertencimento hegemônico em uma “comunidade”
nacional inventada, imaginada e vivida. Passamos a ser, então, primeiro e sobretudo, brasileiros,
colombianos, argentinos, peruanos, equatorianos, venezuelanos, paraguaios, espanhóis, russos,
angolanos... Para cada nacionalidade, as suas fronteiras; para cada fronteira, os de dentro e os de
fora, os estabelecidos e os outsiders [ora, uma das “características essenciais da biopolítica
moderna (...) é a sua necessidade de redefinir continuamente, na vida, o limiar que articula e
separa aquilo que está dentro daquilo que está fora” (AGAMBEN, 2010, p. 127)].
“Ordem e Progresso” riscam o centro da bandeira nacional brasileira. Tributários da
filosofia positivista emanada no século XIX, a ordem e o progresso se firmam como ideologia da
nação, definindo, imediatamente, a repulsão: fora e abaixo a desordem, fora e abaixo o atraso. A
ordem geométrica da bandeira é a ordem nacional: o verde da natureza exuberante; o amarelo
das riquezas espalhadas pelo solo; e o azul límpido da paz. A ordem (a paz) levará ao progresso.
Toda desordem e todo atraso devem ser rechaçados, banidos... Na bandeira nacional colombiana
mudam as cores e seus significados, mas o espírito da nação nela se reproduz: a riqueza do solo,
o mar e o território e o sangue do heroísmo... Na bandeira nacional argentina a paz na imensidão
brilha em sol se irradiando sobre o branco e o azul-celeste... Ordem, progresso, tradição e futuro:
de uma ou de outra forma, todo arquétipo nacional se imiscui à lógica da acumulação, em uma
interpenetração aviltante entre sentidos de ser e estar (pertencer) e de ter e acumular (des-
envolver). Os sentidos de todo Estado-nação são os sentidos do Modo de Produção Capitalista. A
acumulação se funda em processos avassaladores de competitividade e de ameaça em que
sociogêneses e psicogêneses são retroalimentadas, formando-se relações estabelecidos/outsiders
entre comunidades nacionais mas também transnacionais (a relação entre Ocidente e Oriente,
conforme Edward W. Said, 2007) e intra-nacionais (os preconceitos contra a origem geográfica e
de lugar no Brasil, conforme Durval Muniz de Albuquerque Jr., 2007).
„Nós, ocidentais, somos completamente diferentes dos outros‟, este é o grito de vitória
ou a longa queixa dos modernos. A Grande Divisão entre Nós, os ocidentais, e Eles,
todos os outros, dos mares da China até o Yucatán, dos inuit aos aborígenes da
Tansmânia sempre nos perseguiu. Não importa o que façam, os ocidentais carregam a
história nos cascos de suas caravelas e canhoneiras, nos cilindros de seus telescópios e
nos êmbolos de suas seringas de injeção. Algumas vezes carregam este fardo do homem
branco como uma missão gloriosa, outras vezes como uma tragédia, mas sempre como
um destino. Jamais pensam que apenas diferem dos outros como os sioux dos
algonquins, ou os baoulés dos lapões; pensam sempre que diferem radicalmente,
absolutamente, a ponto de podermos colocar, de um lado, o ocidental, e de outro, todas
as outras culturas, uma vez que estas têm em comum o fato de serem apenas algumas
culturas em meio a tantas outras. O Ocidente, e somente ele, não seria uma cultural, não
apenas uma cultura (LATOUR, 1994, p. 96).
em constante estado de manifestação, pelo território que se adensa em incomensuráveis territorialidades de produção
e reprodução de relações de poder”.
17
Os processos de fronteiramento moderno-contemporâneos são a articulação “natural” da
contradição heterogeneidade-fragmentação/homogeneidade-unidade do mundo. A civilização
projetada nos últimos séculos, mais que nos tornar bons e melhores, é um processo de
configuração socioespacial inter-nacional/capitalista (sociogenético) interiorizado como
“subjetividade capitalística” (em empréstimo de Félix Guattari e Suely Rolnik, 2010)
(psicogenético) [ou, para Giorgio Agamben (2010, p. 13), “o processo de subjetivação que leva o
indivíduo a vincular-se à própria identidade e à própria consciência e, conjuntamente, a um poder
de controle externo”]. Se em um primeiro momento a formação capitalista em um mundo em
expansão “fronteirizou” os civilizados e os incivilizados, a civilização e a barbárie, dizimando ou
escravizando outsiders (povos indígenas da América e povos africanos e asiáticos), em seguida a
própria ordem do Capital definiu sua “ética e espírito” com base no trabalho e na acumulação,
“dignificadores” da condição humana moderna. Progresso, des-envolvimento, acumulação e
trabalho migram para a formação dos Estados-nações, e nele e a partir dele toda “desordem”,
“atraso”, reprodução simples e “preguiça” devem desaparecer.
Como processo de fronteiramento, o processo civilizador define um jeito de viver pelos
controles e autocontroles dos impulsos e das emoções (o outro será sempre, por isso, um
“descontrolado”, “instintivo”, “animal”, “selvagem”). A exacerbação das relações de
interdependência requer que todos e cada um sejam controlados e se controlem. Define-se a
condição normal, que será o parâmetro para a condição anormal, constituindo-se como a base das
relações estabelecidos/outsiders. O normal e a normalidade são normatizadas (em aproximação a
Michel Foucault, 1996 e 2001). A normatividade é dada pelos pressupostos “éticos e espirituais”
do Capitalismo: controle para o trabalho (ordem) e trabalho para a acumulação (progresso). As
fronteiras inter-nacionais emolduram a ordem interna (nacional) que por sua vez é emoldurada
pela ordem global (capitalista). O encontro entre as duas ordens define um sujeito normal (aquele
que trabalha) e uma comunidade ajustada (aquela que progride).
Nesse sentido, não é estranho que no Brasil tem se produzido, por exemplo, um “leve”
desdém e até estigma (com base em Erving Goffman, 1988) em relação aos paraguaios, podendo
ser constatado mais facilmente em espaços fronteiriços com o Paraguai. “Os paraguaios
trabalham pouco e o que vem de lá é tudo falsificado, é um país atrasado”. Em outra escala, a
interna, outro estigma é produzido em relação, por exemplo, aos povos indígenas. No momento
em que processos de identificação e de demarcação de terras indígenas se intensificam, buscando
cumprir a Constituição de 1988, é comum em espaços de conflito ouvir que “os índios não
precisam de mais terra porque não trabalham” (em outros contextos, ainda poder-se-ia aludir aos
estigmas em relação aos caboclos, nordestinos, baianos etc.). Enquanto isso, com a agudização
da crise mundial, “bem longe dali”, na Europa, os movimentos de extrema direita se fortalecem e
uma das bandeiras é a ofensiva contra os imigrantes, os estrangeiros... Em todas as situações a
produção da distinção, pois como observou Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 33 e 39), “O
pensamento abissal moderno salienta-se pela sua capacidade de produzir e radicalizar
distinções”, em um mundo no qual “A humanidade moderna não se concebe sem uma
subhumanidade moderna”.
O Modo de Produção Capitalista produz sua materialidade e imaterialidade e ambas se
incrustam nos fundamentos de cada Estado-nação. Como participantes concomitante e
indissoluvelmente desse Modo de Produção e de suas nacionalidades, cada sujeito, grupo,
comunidade ou mesmo sociedade – em suas hegemonias – procuram se estabelecer sociogenética
e psicogeneticamente sob tais materialidade e imaterialidade (“ética e espírito” capitalistas).
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Coesos internamente, controlamo-nos como “iguais” pois injetamos no outro nossas repulsas e
aversões. Fronteiras territoriais lineares e “fechadas” (nacionais) se fundam e se desdobram em
um conjunto de outras fronteiras étnicas (territoriais e não territoriais), em nome dos
fundamentos da nação e da acumulação e em constante confronto com sujeitos, grupos,
comunidades e sociedades concorrentes ou “incômodas” à nação e à acumulação. Assim, não
parece ser aleatório que algumas das imagens mais emblemáticas desses conflitos e tensões
venham justamente do centro germinal do processo civilizador.
(“Partido do Povo Suíço” – www.google.com.br – acessado em 26/01/2012)
O processo civilizador como processo de fronteiramento define o “Nós” e o “Eles”. As
fronteiras inter-nacionais são a materialidade definidora de quem pode ficar dentro e de quem
deve permanecer fora. Indesejáveis, desajustáveis, incivilizados, desordeiros e incômodos, como
“ovelhas negras”, podem e devem ser expulsos, mancham a ordem e o progresso, ou, caso
contrário, deverão, quando for possível, tornarem-se “brancos”, ordeiros e trabalhadores. Mas em
um mundo marcado pela competitividade e acumulação, os fronteiramentos cada vez mais
excludentes são a regra, pois os espaços de acumulação e apropriação são também cada vez mais
seletivos [como diz Zygmunt Bauman (2005, p. 24), “No carro do progresso, o número de
assentos e de lugares em pé não é, em regra, suficiente para acomodar todos os passageiros
potenciais, e a admissão sempre foi seletiva”]. Nem todos podem se “naturalizar” como sujeitos,
grupos, comunidades ou sociedades “dignas” do mundo do trabalho, da acumulação e do
progresso, fazendo desse mesmo mundo um espaço de tal maneira “fronteirizado” que já não há
mais para onde escapar [como aponta o mesmo Zygmunt Bauman (2005, p. 87) em diálogo com
Ulf Hedetoft: ao mesmo tempo em os “espaços vazios” já não mais existem, “as fronteiras entre
Nós e Eles estão sendo retraçadas de modo mais rígido” que nunca, e tais fronteiras, também
segundo Andreas e Snyder, transformaram-se em “membranas assimétricas” permitindo a saída,
mas protegendo “contra o ingresso indesejado de unidades provenientes do outro lado”].
O processo civilizador constrói fronteiras. As fronteiras, dialeticamente, civilizam os
sujeitos, os grupos, as comunidades e as sociedades, os tempos e os espaços moderno-
contemporâneos. O processo de fragmentação e divisão do mundo capitalista é a forma de
civilizar os espaços a partir de controles e monopólios materiais (da força, da tributação, da
economia) e simbólicos (imaginários, sentidos de pertencimento, identitários, de coesão e de
projetos comuns). Articuladas tanto pelos imperativos do Modo de Produção Capitalista como
pelos do Estado-nação, as fronteiras civilizam comportamentos, condutas e emoções, ao mesmo
tempo em que comportamentos, condutas e emoções hegemônicas civilizam fronteiras,
marcando, delimitando, demarcando e definindo os de dentro e os de fora. E atualmente o
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processo é de tal jeito avassalador que não parecem restar mais espaços de indistinção, estando e
sendo todos marcados pelas lógicas da competitividade e pertencimento dominantes.
Seria, então, essa a expressão real da “Pequena fábula” de Franz Kafka, apontada no
início do texto? Talvez. Há vastidão, caminhos, paredes, partes, cantos e mais cantos. Corremos
para um lado e logo em seguida corremos para outro. Paramos em silêncio. Olhamos de novo e
avançamos mais um pouco. Agora sim, uma saída? Ainda não... A fronteira se fecha mais uma
vez, outras vezes, todas as vezes. Se na fábula o gato devora o rato, talvez seja preciso recuar e
insistir, outra vez e cada vez mais, que o processo civilizador que engendramos deve ser
drasticamente repensado, para que o “fim” nem seja “The Wall”, como cantou Pink Floyd, nem a
boca do gato, como escreveu Franz Kafka.
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