O Retorno do Sagrado

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Antônio Teixeira Fernandes

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  • O retorno do sagrado

    Antnio Teixeira Fernandes

    A humanidade tem sido campo, designadamente nos ltimos sculos, de um generalizado processo de secularizao. O desencantamento do mundo adquire uma particular visibilidade, a partir do incio da poca moderna, mas aparece em aco desde tempos bem recuados. contemporneo, por um lado, da crescente afirmao de autonomia do homem no universo e, por outro, da perda de influncia das Igrejas, que veiculam e anunciam a trans-cendncia de Deus. O Cristianismo, nas sociedades ocidentais, anda associ-ado a este longo trabalho de secularizao na histria, na sua laicizao do mundo e na sua preocupao de concentrao do sagrado num Deus universal e invisvel-abstracto, ainda que pessoal. medida que os fenmenos de ordem natural vo perdendo o seu carcter hierofnico, o sagrado liberta-se das suas roupagens de paganismo. O desencantamento do mundo afirma-se como eliminao dos procedimentos mgicos e como esgotamento do dom-nio do invisvel. A marcha do tempo parece fazer-se sempre no sentido de uma maior distino e clarificao da relao sacro-profano. O homem emerge, no decurso histrico, atravs de um movimento de autonomizao.

    O processo de laicizao, segundo alguns, ter encontrado, em tempos recentes, uma certa infleco. O tema do retorno do sagrado aparece ultima-mente de forma recorrente, quer em anlises sistemticas da especialidade, quer como observao perifrica ou ocasional em diversos estudos de socio-logia sobre as sociedades modernas. Em contextos confessionais, surge mesmo, no raro, com a euforia prpria de um fenmeno de restaurao ou de reanimao. como se as instituies religiosas, aps uma longa travessia no deserto, avistassem, de repente, ao longe terras de abundncia. Esta ques-to do retorno, consciente ou inconscientemente, assume uma dimenso

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    quantitativa, e entende a diminuio das taxas de prtica como compensada, porventura aumentada, pela manuteno dos nveis de crena.

    A recorrncia do tema do retorno aparece, contudo, com alguma fre-quncia, de maneira enviezada. Para uns, trata-se simplesmente de uma sim-ples transmutao. O sagrado teria abandonado a esfera do religioso, onde historicamente sempre se concentrara, para emergir nos diferentes domnios do profano. No obstante esta deslocao espacial, manter-se-ia na sua natureza de sagrado. Para outros, teria havido uma situao conjuntural de abandono, seguida de uma actual progressiva recuperao. Nem sempre se ter em conta o que este sagrado recuperado apresenta de qualitativamente diferente. A quantidade dos fenmenos muda inevitavelmente a sua quali-dade. Mesmo no interior do sistema religioso, o sagrado, vivenciado nas con-dies actuais, tender a revestir-se de particularidades prprias. Se h outras maneiras de se ser homem e de se estar no mundo, lgico ser esperar que existam outras modalidades de se viver a religio ou de se sentir o sagrado.

    1. Para se compreenderem fenmenos como este, ser necessrio aten-der ao seu carcter ondulatrio. Os factos sociais so caracterizados por uma relativa reversibilidade. Existe, por um lado, uma circularidade e, por outro, uma recorrncia. V. Pareto chama a ateno para o movimento rtmico que se observa em todos os fenmenos sociais. Tal movimento desenvolve-se em torno de uma linha recta e traduz o grau de intensidade que os fenmenos apresentam. Parece que, em todos os tempos, os homens tiveram alguma ideia da forma rtmica, peridica, oscilatria, ondulada dos fenmenos natu-rais, compreendidos neles os fenmenos sociais. pocas h em que se manifestam pequenas oscilaes, enquanto noutras ocorrem grandes oscilaes. Estas ondulaes aparecem de forma mais durvel ou mais ef-mera e so indicadoras da orientao ascendente ou descendente dos fen-menos. O movimento tem estreita correspondncia com o estado geral da sociedade e deve ser tido em conta na anlise das relaes e na busca das explicaes. Os fenmenos seguem, na verdade, uma curva ondulada, com amplitude e durao diferentes K No caso vertente, como adiante se mos-trar, quanto mais se afirma o sagrado religioso, menos se tornar visvel o sagrado profano ou naquele tende a converter-se e vice-versa. Nem sempre este ltimo constitui uma hierofania do maravilhoso religioso.

    A concepo ondulatria dos fenmenos aplicada por V. Pareto religio. Segundo ele, vem-se suceder, num mesmo pas, numerosos pero-

    1 Vilfredo Pareto, Trait de Sociologie Gnrale, Genve-Paris, Droz, 1968,

    pp. 1021, 1056, 1421, 1491, 1542, 1544, 1549, 1550, 1592, 1711 e 1714.

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    dos de f e de descrena. Uma vez que o movimento social ocorre segundo uma curva ondulada, de forma que difcil prever, de acordo com os factos do passado, o sentido futuro desse movimento, essencial no confundir o sentimento religioso existente nos homens com as formas de que ele se reveste. Assim, no ser acertado, quando se v declinar uma forma religiosa, concluir que o prprio sentimento est em decadncia, ele pode nem sequer ter mudado de intensidade e manifestar-se sob outras formas. As crenas e as prticas religiosas oscilam atravs da histria. Acontece que quando certas formas religiosas perdem terreno, outras formas religiosas ganham terreno2. H perodos ascendentes e descendentes nos sentimentos religiosos e nas suas manifestaes.

    Alexis de Tocqueville havia j aplicado este tipo de anlise ondulatria a conduta religiosa das classes sociais em Frana, no tempo da Revoluo francesa. Segundo ele, a antiga nobreza, que era a classe mais irreligiosa antes de 1789, torna-se a mais fervorosa depois de 1793. De facto, a irreli-gio estava espalhada entre os prncipes e os pretensiosos; ela no penetrara ainda no seio das classes mdias e do povo. O mesmo viria a acontecer com a burguesia. Em seu entender, pouco a pouco, o respeito da religio pene-trou em toda a parte onde os homens tinham qualquer coisa a perder na desordem popular, e a incredulidade desapareceu3. A ondulao feita em funo da conjuntura histrica e das experincias vividas. A religio entra tambm no clculo da boa fortuna do aqum e do alm.

    A ideia do eterno retorno, familiar ao pensamento grego, reaparece, em finais do sculo XIX, em F. Nietzsche, ligada a uma concepo do tempo como infinito e aos acontecimentos como ciclos peridicos onde tudo volta a repetir-se, num processo indefinido. Segundo este autor, tudo o que recto mente, pois toda a verdade curva, o prprio tempo um crculo. Se existe uma repetio contnua dos actos do homem, atrs de si h uma eter-nidade. F. Nietzsche torna-se o profeta do eterno retorno das coisas, ensi-nando que todas as coisas retomam eternamente e que ns prprios retorna-mos com elas4. Mircea Eliade reassumir esta mesma concepo para analisar os fenmenos religiosos.

    2 Vilfredo Pareto, Les Systmes Socialistes, Genve-Paris, Droz, 1978, I, pp. 30,

    31 e32. 3 Alexis de Tocqueville, L 'Ancien Regime et Ia Rvolution, Paris, Gallimard, 1982,

    pp. 242, 243 e 249. 4 F. Nietzsche, Ainsi Parlait Zarathoustra, Paris, Gallimard, 1963, pp. 184, 254 e

    255; Mircea Eliade, Le Mythe de Vternel Retour, Paris, Gallimard, 1969.

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    Se se traz colao o movimento ondulatrio ou oscilatrio dos fen-menos sociais para salientar que as variaes das condutas tm a ver com variveis contextuais e com os seus correspondentes universos de representa-o. A explicao dos factos em causa, ao estabelecerem-se relaes de cor-respondncia e de causalidade, no poder ignorar ou esquecer o seu carcter ondulatrio, indissocivel da natureza do homem e da sociedade. Dizer que um fenmeno ondulatrio significa afirmar que ele recorrente e que tal recorrncia apresenta uma estreita relao com a prpria vivncia do homem em sociedade. De harmonia com esta perspectiva, tender a variar na sua intensidade, podendo mesmo metamorfosear-se, mas permanecer constante.

    A anlise do problema do retorno do sagrado ser, de seguida, enfo-cada neste quadro de compreenso. As oscilaes que existem em alguns fenmenos sociais derivam da mtua dependncia que tm com outros fen-menos, tambm eles mesmos oscilantes. Sero consideradas tais relaes de concomitncia.

    2. As dimenses do sagrado aparecem patentes, ao longo do tempo, nas coisas, tornadas hierofnicas, e nas prticas e nas representaes sociais, em que os homens procuram transcender-se. Inicialmente com diversas fun-cional idades, em estreito relacionamento com os mais diversos fenmenos, a sacralidade assume depois uma autonomia crescente, localizando-se em espaos restritos do mundo existencial. A religio surge como o grande esquema de compreenso do mundo e de normalizao da vida social.

    No seio da religio, desenvolvem-se, na verdade, os primeiros sistemas de explicao da natureza e do homem, e as instituies sociais. De facto, as realidades a que se aplica ento a especulao religiosa so as mesmas que serviro mais tarde de objectos reflexo dos sbios: so a natureza, o homem, a sociedade. Entre a lgica do pensamento religioso e a lgica do pensamento cientfico no existir, nesta perspectiva, uma diferena essen-cial. Haver apenas uma desigualdade de desenvolvimento. Pensamento reli-gioso e pensamento cientfico prosseguem o mesmo fim: O pensamento cientfico no mais do que uma forma mais perfeita do pensamento reli-gioso5. A filosofia e a cincia, sadas da religio, tenderiam a substituir e a incrementar as suas funes cognitivas, no a sua capacidade de aco.

    5 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religiense, Paris, PUF, 1968, pp.

    338, 340, 342, 612, 613, 614, 623 e 625. Assim entre a lgica do pensamento religioso e a lgica do pensamento cientfico no h um abismo. Um e outro so feitos dos mesmos elementos essenciais, mas desigual e diferentemente desenvolvidos. . Durkheim, O. c, p. 342.

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    Da religio, teria surgido o pensamento racional (filosofia) e, deste, o pensamento cientfico (nova forma de racionalidade). As mentalidades do homem primitivo e do homem moderno seriam, no entanto, segundo Lucien Lvy-Bruhl, impenetrveis entre si. primeira corresponderia uma pr-lgica e civilizao actual uma lgica. Uma e outra mentalidade produ-ziriam universos de representao adequados compreenso dos respectivos mundos existentes. Haveria uma relao entre ontognese e filognese, com a recapitulao desta por aquela. A tese de Lucien Lvy-Bruhl que parece carecer de suficiente fundamento criticada pelo prprio . Durkheim, quando declara que dizer que os conceitos exprimem a maneira como a sociedade representa as coisas dizer tambm que o pensamento conceptual contemporneo da humanidade. Em seu entender, pois que o pensa-mento lgico comea com o conceito, segue-se que ele existiu sempre; no houve perodo histrico durante o qual os homens teriam vivido, de uma maneira crnica, na confuso e na contradio. A lgica, no entanto, evo-lui com as prprias sociedades6. Com a complexificao destas, o pensa-mento foi-se diferenciando e autonomizando. Mais recentemente, tanto Roger Bastide como Claude Lvi-Strauss tendem a reduzir a diferena entre o conhecimento das sociedades arcaicas e o nosso. Existiro apenas sociali-zaes e aculturaes diferentes. O esprito humano ter permanecido idn-tico em todas as pocas, embora, na construo das estruturas operatrias do conhecimento no indivduo, se opere, como tenta mostrar Jean Piaget, uma lenta evoluo at aquisio da racionalidade formal, no alcanvel, em todas as pocas, por importantes segmentos da populao.

    Os antroplogos no tm certamente razo quando extremam as posi-es, opondo a racionalidade de hoje racionalidade de outrora. O que parece ter ocorrido um crescente desenvolvimento e complexificao desse mesmo esprito. Nas sociedades arcaicas os espaos estariam cheios de obs-tculos ocultos e os tempos dividir-se-iam em momentos fastos e nefastos.

    6 J. D. Bernal, Cincia na Histria, Lisboa, Livros Horizonte, 1975, Vol. I, pp. 58--

    90; Lucien Lvy-Bruhl, Les Fonctions Mentales dans les Socits Infrieures, Paris, F. Alcan, 1910; Lucien Lvy-Bruhl, L'Exprience Mystique et les Symboles chez les Primitifs, Paris, F. Alcan, 1938; Lucien Lvy-Bruhl, Les Carnets de Lucien Lvy-Bruhl, Paris, PUF, 1949; J. Piaget, La Psychologie de 1'Intelligence, Paris, Armand Colin, 1967, pp. 137, 160 e 161; Jeant Piaget, Psicologia e Epistemologia, Lisboa, Dom Quixote, 1977, pp. 70 e 77; . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 626 e 627; R. Bastide, Contribution 1'tude de Ia participation, in Cahiers Internationnaux de Sociologie, 14, 1953, pp. 30-40; Georges Gurvitch, Os Quadros Sociais do Conhecimento, Lisboa, Moraes, 1969; Claude Lvi-Strauss, La Pense Sauvage, Paris, Plon, 1962.

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    A maneira de tratar o numinoso (o que o homem no pode controlar) expri-mir-se-ia essencialmente de forma religiosa7. A angstia do homem provm^ ao contrrio do que ocorre no animal, do facto de ele ter conscincia de viver num mundo no perfeitamente regulado. Procura enquadrar tudo em regras bem ordenadas. O seu ser e a realidade que o circunda fogem sempre a essas regras. Face a tal numinoso incontrolvel, recorre-se, ora ao tabu (procu-rando fugir-lhe, no tocar-lhe), ora magia (tentando meter-se nele prprio, manipulando-o), ora religio (estabelecendo relaes pessoalizadas com ele, adaptando-se e submetendo-se). A religio tenta superar a angstia cri-ada pela existncia do numinoso, no atravs da fuga (tabu) ou da manipula-o (magia), mas por meio da submisso. O homem estaria diante de situa-es para as quais no encontra no tem encontrado solu-es racionais. A religio constituiria a resposta no racional, no cientfica, a tais questes. Muitos problemas que hoje so resolvidos mediante meios tcnicos e racionais tendem a ser solucionados, entre as populaes menos desenvolvidas, por ritos religiosos. Esta atitude de esprito no se encontra somente nas sociedades arcaicas e nas sociedades tradicionais. Mesmo no mundo moderno, quando faltam as respostas racionais ou carecem de sufi-ciente eficcia, tende a recorrer-se a procedimentos religiosos ou para-reli-giosos.

    A religio uma fonte de conhecimento e um potente gerador de espe-rana. Na histria da humanidade, passou-se de uma poca em que tudo era hierofnico, a natureza e a sociedade, a um tempo em que o sagrado se reco-lhe em domnios restritos ou se metamorfoseia em outras realidades portado-ras de sentido para uma vida que em si o no tem.

    A busca do sagrado ento, antes de mais, um problema antropolgico e at mesmo ontolgico. Ser aquele capaz de erradicar do homem a dvida e a incerteza? Trazem quiescncia ao esprito as verdades fornecidas por uma ordem de sacralidade?

    Se a religio responde a reas acrescidas de inquietao humana, no ser unicamente porque fornece conhecimentos, mas porque uma particular forma de esperana. No quotidiano existencial, esta modalidade de esperana consegue oferecer a alguns uma relativa satisfao. O problema levanta-se, para todos, quando surgem situaes-limite. O homem sente-se a radical-mente incapaz e faz a experincia do limite para alm do qual no h ques-tionamento possvel face ao impossvel das respostas, nem existe capacidade

    7 Jean Cazeneuve, Les Rites et Ia Condition Humaine, Paris, PUF, 1958; Rodolf

    Otto, // Sacro, Milano, Feltrinelli, 1966.

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    alguma para orientar de outro modo os acontecimentos. Essas so as situa-es em que se perde o controlo dos fios que conduzem a existncia.

    O homem, incansvel no seu questionar e insacivel nas respostas que alcana, essencialmente um ser feito de imperfeio e de dvida, mesmo quando uma ordem transcendente de realidade lhe proporciona um suple-mento de vida e lhe abre outros horizontes 8. Ser que duvida e que, por isso, vacila nas mais diversas situaes, ainda que envolvido no halo do entusi-asmo e da esperana, no deixa nunca de hesitar. limitado na sua nsia ili-mitada de conhecer e de dominar o mundo.

    Mas se as religies nascem de um aceno de verdade, dirigido a quem quer fugir dvida ou a quem deseja obter a paz, uma vez constitudas, ten-dem a converter-se em repouso em si mesmas. As Igrejas institucionalizam-se fortemente e, ao tornarem-se guardis do depsito da f, do origem a uma crescente intransigncia. A inclinao para a intolerncia aparece, no caso concreto do Cristianismo, desde o sculo V, altura em que comea a esboar-se a teoria hierocrtica, que encontrar a sua expresso mais acabada na tardia Idade Mdia9. Aparecem, no incio dos tempos modernos, os arau-

    8 Nem sequer os personagens centrais da religio escapam a tal limitao. Se se

    atender, por exemplo, ao Cristianismo, v-se que Cristo, na agonia do Getsmani, acabru nhado pelo sofrimento que prev, que sempre maior do que o que se sofre, sente em si mesmo a dvida porque Me abandonaste {Mateus, 27, 46) , que radicalmente humana: Pai, se quiseres, afasta de Mim este clice {Lucas, 22, 42). A obedincia a um desgnio no se faa, contudo, a Minha vontade, mas a Tua (Lucas, 22, 42) no far sentir menos a dor. Pedro, que havia de ser um elemento central na formao e funcio namento da Igreja Tu s Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a Minha Igreja (Mateus, 16, 18) muito menos resiste ao assdio da dvida. A uma simples criada do sumo sacer dote, que o identifica como seguidor de Cristo, que estava a ser julgado, responde: No conheo esse homem que dizeis (Marcos, 14, 71). Numa hora de particular dificuldade e de disperso, no bastam as promessas nem so suficientes as confisses e os protestos de adeso total.

    9 Santo Agostinho advoga a utilizao do mtodo do dilogo e da persuaso e, embora oferecendo argumentos aos defensores da teoria hierocrtica haja em vista o seu pessimismo em relao natureza humana sob um certo fundo de maniquesmo , nomeadamente face ao cisma donatista, jamais sustenta o uso da fora, em particular, a aplicao da pena de morte. Com o decorrer do tempo, a intolerncia cresce na Cristandade europeia. No sculo XIII, So Toms de Aquino defende abertamente o recurso pena de morte contra os herticos, argumentando que muito mais grave per verter a f, vida da alma, do que falsificar o dinheiro, ajuda da vida temporal. Ora, se os prncipes seculares logo condenam justamente morte os falsificadores de moeda ou outros malfeitores, com maior razo os herticos. Estes podem ser entregues com toda a justia pena de morte (So Toms de Aquino, Summa Theologica, II-II, Q. XI, A. 3 e

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    tos da liberdade de conscincia. Erasmo de Roterdo, cidado do mundo, v na tolerncia a condio necessria busca da verdade e pacificao social. Tal o grande objectivo sonhado pelo humanismo renascentista, voltado para os valores humanos universais. Idntica finalidade partilhada pelo racionalismo 10. A sombra do grande inquisidor pairava, porm, sobre o mundo ocidental. Mas alguns responsveis polticos da poca davam-se conta de que o desenvolvimento econmico aparecia, ao mesmo tempo, como causa e efeito da tolerncia. Do mesmo modo que John Locke que havia encontrado na Holanda, para onde tinham fugido os judeus expulsos, no sculo XV e XVI, de Portugal e de Espanha e onde ele mesmo se refu-giara, as condies propcias ao florescimento destas ideias , J . -J . Rousseau dir no sculo XVIII que uma religio m quando, ao tornar-se exclusiva e tirnica, cria um povo sanguinrio e intolerante que vive para a violncia e para o extermnio, cuidando cometer uma santa aco ao matar todo aquele que no reconhea os seus deuses1J. A intolerncia associada

    TIII, Q. LXIV, A. 2). Santo Agostinho, Oeuvres de Saint-Augustin, Paris, Dscle de Brouwer, 1968. De Santo Agostinho, veja-se especialmente: Contra Cresconium, Les Rvisions, Retractationum, Cartas e De Trinitate. A Igreja parece conservar ainda hoje alguma intransigncia, ao admitir a pena de morte, embora apenas em casos de extrema gravidade {Catecismo da Igreja Catlica, Coimbra, Grfica de Coimbra, 1993, pp. 483-484). Mas, quando se mata um homem, no se defende uma doutrina, nem se pro-tege uma sociedade, atenta-se simplesmente contra a dignidade humana.

    10 Expoente da corrente racionalista particularmente John Locke. Este filsofo ingls, terico do contrato social, torna-se um dos principais lutadores, no sculo XVII, pelos ideais de liberdade e de tolerncia social e religiosa. No entender de John Locke, qualquer igreja ortodoxa para si prpria, errada ou hertica para as outras; cada qual julga que aquilo em que acredita verdadeiro e condena como um erro o que dela difere. Ser necessrio, ento, praticar a mtua tolerncia. Afirma a este propsito: Nenhum caminho que eu siga contra a minha conscincia me conduzir alguma vez morada dos bem-aventurados. Posso enriquecer numa profisso que detesto, posso curar-me graas a remdios em que no confio, mas no posso salvar-me por uma religio de que duvido, por um culto que abomino John Locke, Carta sobre a Tolerncia, Lisboa, Edies 70, 1987, pp. 98 e 105. De Spinoza, outro expoente da defesa da tolerncia, confira-se: Trait Thologico-Politique, Paris, Flammarion, 1984.

    11 Jean-Jacques Rousseau, Du Contra Social, Paris, Seuil, 1977, p. 307. A intole rncia faz parte dos cultos que ele exclui. Em seu entender, todo aquele que se atreva a dizer: fora da Igreja no h salvao deve ser expulso do Estado, a no ser que o Estado seja a Igreja e prncipe, o pontfice. O. c, pp. 312-313. Confira-se tambm Voltaire, Trait sur Ia Tolrance, Paris, Flammarion, 1989. Convir, no entanto, ter presente que, alm de Plato, tambm J.-J. Rousseau, I. Kant e G. W. F. Hegel sustentam que a pena de morte um dever que cabe ao Estado. O Iluminismo desencadeia uma campanha abolicio nista.

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    defesa de uma rgida ortodoxia. A convico da posse da verdade absoluta no deixa espao liberdade de conscincia. No sem muita dificuldade que as Igrejas conseguem reconhecer a liberdade de conscincia como um direito inalienvel da pessoa humana12. Pela sua fora interna, em resultado de uma crescente maturao doutrinal, e por aco de um conjunto de cir-cunstncias histricas, que constituem o contexto imediato dos documentos, foram-se, pouco a pouco, rasgando outros horizontes de liberdade de pensa-mento.

    Contra todas as formas de controlo e de tutela, fervilha na vida humana uma permanente inquietude que a leva a lutar contra tudo o que no se move com ela. O homem sempre um mendigo da verdade, tentando dissipar as sombras e os fantasmas que povoam o seu imaginrio. Hoje, assim como em todos os tempos, duvida-se e buscam-se nveis suficientes de confiana, por-que se convive com a constante pergunta.

    Mas, quando as religies se instalam na certeza, deixam paradoxal-mente de atrair os homens 13. A certeza um amortecedor de dinamismos. As religies podem ser depositrias de certezas, mas os homens sero sem-pre seres insatisfeitos, e sede de questionamentos. Elas so, na vida humana, um processo de povoamento de maravilhoso dos espaos ridos da dvida, em busca do absoluto da verdade.

    Perante a dvida, o homem, no domnio religioso, ou se acomoda a uma apagada aceitao, ou cria outras seguranas, ou se lana na busca con-tnua do sentido. A vida um indefinido que se vai materializando em reali-zaes sucessivas. Mas se, em tempos recentes, o colapso da religio na soci-edade era, para muitos, a crise da certeza que se procurava e se oferecia, actualmente , para alguns, a crise da prpria dvida. No mar das suas

    12 Gregrio XVI considera, em 1832, a liberdade de conscincia como um perfeito

    delrio e, em 1864, Pio IX volta a conden-la no Syllabus (Gregrio XVI, Mirari Vos, 15 de Agosto de 1832; Pio IX, Quanta Cura, 8 de Dezembro de 1964, encclica seguida do Syllabus dos Erros). O reconhecimento do direito de liberdade de conscincia aparece com Joo XXIII (Pacem in Terris) e o Conclico Vaticano II (Declarao sobre a Liberdade Religiosa).

    13 A dvida parece ser inerente vida humana. No ter dvida quem no tem f. Esta a ausncia de certeza, ainda que, para o esprito religioso, a f seja a suprema segurana. O crescimento humano sempre contnua escolha, opo, isto ruptura com algumas fidelidades, no perptuo reconhecimento de fdelidades fundamentais: Conhe cereis a Verdade e a Verdade vos tornar livres (Joo, 8, 32). A religio lana, de facto, o homem numa aventura, em que conhecimento e libertao se implicam mutuamente (Lucas, 11,46).

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    saciedades, h hoje quem j no duvide. Cados na indiferena, no procu-ram mais, isto , deixam de duvidar. Instalados na dvida, no conseguem ou no sabem duvidar de mais nada. A vida, na trama do seu quotidiano, basta-se a si mesma.

    A certeza da existncia de Deus constitui uma exigncia para o prprio homem no domnio religioso. A dvida, sem aquela certeza, ser insustent-vel. Na verdade, de que duvidar, se no existem mesmo mais razes para se pensar para alm do nosso prprio pensamento, pergunta Jean Cazeneuve 14. Se pretende ser cincia e resposta s inquietaes do homem, a teologia no ter outra via a no ser a de colocar o seu saber em estado de mobilizao permanente, como constante busca de sentido para todas as situaes de no sentido em que, nas diferentes pocas histricas, se colocado, em consonncia com os dinamismos e os ritmos da existncia.

    3. Abordando o retorno do sagrado, a questo que se levanta, antes de mais, a de saber se o conceito de sagrado se confina esfera do religioso. No falta quem pense que a sacralidade, na actualidade, se tem vindo a trans-ferir para reas mais vastas do social. Poder perguntar-se se pertinente dis-tinguir entre o sagrado estritamente religioso e o sagrado que no religioso. A verificar-se uma tal diferenciao, subsistir ainda o problema da univoci-dade do conceito de sagrado. No ser aconselhvel utilizar a mesma noo para designar realidades diversas.

    Reveste-se, por isso, de alguma relevncia, logo partida, a definio de sagrado e de religioso. A consulta de autores clssicos, que se debruam sobre esta matria, perspectiva vrias vias de aproximao.

    Embora entenda que a primeira dmarche do socilogo deve ser a de definir as coisas de que trata e, que ao estudar as formas elementares da religio, necessrio, antes de mais, definir o que convm entender por uma religio, . Durkheim reconhece que no h nada mais fluido e mais difuso como a religiosidade. Se no facto religioso tudo confuso, porque a sociedade colora de religiosidade as coisas 15. A exigncia de ordem metodolgica contrasta com o carcter diludo do fenmeno. O con-traste tanto mais acentuado, quanto mais se concebe a religio no s como

    14 Jean Cazeneuve, Et si plus rien n 'tait sacr..., Paris, Parrin, 1991, p. 232.15 mile Durkheim, Les Rgles de Ia Mthode Sociologique, Paris, PUF, 1981,

    p. 34; Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, p. 31; Textes, 2, Paris, Minuit, 1975,pp. 9e 143.

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    um facto que corresponde a algo de real, mas ainda como uma mera fantas-magoria.

    Por causa desta mesma diluio do fenmeno religioso, Max Weber toma uma posio bastante idntica. Para o socilogo alemo, impossvel oferecer uma definio do que a religio no incio de uma investigao como a que empreendemos; em todo o caso, pode dar-se no fim. Partindo das vivncias, representaes e fins subjectivos do indivduo, isto , de uma aco dotada de sentido, entende tambm, a exemplo de . Durkheim, que o seu curso externo demasiado polimorfo 16. Esta ser a razo pela qual a definio anunciada por Max Weber, no incio da sua pesquisa, jamais oferecida. A religio , efectivamente, um fenmeno de extrema complexi-dade, dadas as mltiplas dimenses de que se reveste.

    A dificuldade em encontrar uma definio adequada do que sejam a religio e o sagrado no constitui uma questo menor para as prprias Igrejas. Elas tendem a consider-los como algo de inefvel, de misterioso, por isso, fora do alcance da cincia. Os procedimentos racionais no pode-ro, em seu entender, alcanar a essncia da religio. Mas os profissionais das coisas religiosas defendem que a teologia uma cincia, por mais que o objecto desta cincia o Thos lhes escape. Porque qualquer teo-logia racionalizao intelectual do contedo escatolgico da religio, sus-tenta Max Weber que ela no pode dar a f (ou o estado sagrado de que em cada caso se trate) a quem dela carece. To-pouco a pode dar qualquer outra cincia. Apoiando-se na mxima augustiniana credo non quod, sed quia absurdum est, afirma que a capacidade para chegar at este virtuoso sacri-fcio do intelecto o sinal que distingue o homem verdadeiramente reli-gioso. Outro no o entendimento de Georg Simmel ao afirmar que quando o homem religioso diz creio em Deus, ele entende por isso qual-quer coisa mais do que um certo acto de sustentar, com certeza, a sua exis-tncia como verdadeira. Alguns autores, por causa desta dificuldade, vo ao ponto de negar ao cristianismo o seu carcter de religio. A sua converso com o mistrio e o seu carcter de sacramental idade do mundo so feitos custa do seu apagamento como realidade visvel e social. Em tal perspectiva, parece colocar-se Dietrich Bonhoeffer quando sustenta que o Deus que est connosco o que nos abandona. P. Tillich dir mesmo que a coragem de se ser enraza-se no Deus que aparece quando Deus desapareceu na angstia da dvida. Compreende-se que Mareei Gauchet afirme, assim, que o cristi-

    16 Max Weber, Economia y Sociedad, I, Mxico-Buenos Aires, Fondo de Cultura

    Econmica, 1964, p. 328.

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    anismo ter sido a religio da sada da religio 17. A religio transforma-se em campo da relao do sagrado com a transcendncia divina. Nesse campo, constitui-se uma dualidade tensional cuja opacidade apenas poder ser que-brada pela crena. Quanto maior a f, menos reivindicada passa a ser a visibilidade da divindade.

    Como a presente anlise se centra sobre o sagrado e no sobre a reli-gio propriamente dita, a exigncia de uma noo prvia do que vamos abor-dar faz aumentar as dificuldades. Para superar este escolho, procede-se dis-tino das diversas ordens e nveis de sagrado. Este apresenta-se, de facto, sob vrias modalidades.

    3.1. O sagrado configura-se, antes de mais, como uma questo reli-giosa. As religies eram, no passado, depositrias nicas do sagrado e os padres apareciam como os seus gestores. Neste caso, bastar recorrer a um simples dicionrio de teologia para o definir. Se, na histria das religies, a noo de sagrado utilizada para designar tudo o que venerado pelo homem, tudo o que para o homem objecto de culto, principalmente as hie-rofanias, a teologia catlica considera o sagrado como um atributo de Deus, de que participa o homem pela revelao. A definio dada por . Durkheim parece reunir os elementos indispensveis a este objectivo. Segundo o soci-logo francs, uma religio um sistema solidrio de crenas e de prticas relativas a coisas sagradas, isto , separadas, interditas, crenas e prticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos aqueles que a ela aderem 18. As categorias fundamentais dos fenmenos sagrados, enquanto religiosos, so as crenas e os ritos, sendo estes factos inseparveis da ideia de Igreja.

    Embora . Durkheim sustente que existem grandes religies onde a ideia de deuses e de espritos est ausente, onde, ao menos, no desempenha a no ser um papel secundrio e apagado, como o caso do Budismo, na acepo acima referida, as ideias de divindade e de sobrenatural so cen-

    17 Max Weber, O Poltico e o Cientista, Lisboa, Editorial Presena, s/d, pp. 184,

    185 e 186; Georg Simmel, Philosophie et Socit, Paris, Vrin, 1987, p. 54; Dietrich Bonhoeffer, Rsistance et Soumission, Genve, Labor et Fides, 1987, p. 162; P. Tillich, Le Courage d 'tre, Tournai, Casterman, 1947, p. 184; Mareei Gauchei, Le Dsenchantement du Monde, Paris, Gallimard, 1985, p. II; Gustave Thils, Christianisme sans Religion?, Tournai, Casterman, 1968.

    18 Jean Cazeneuve, Et si plus rien n'tait sacr..., p. 8; Karl Rahner e Herbert Vorgrimler, Petit Dictionnaire de Thologie Catholique, Paris, Seuil, 1970; . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, p. 50 e 65; A. Teixeira Fernandes, A Religio na Sociedade Secularizada, Porto, Civilizao, 1972, pp. 155-179.

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  • O Retorno do Sagrado

    trais19. No se trata apenas do que incompreensvel ou misterioso. A exis-tncia de um Deus mais ou menos pessoalizado -lhe essencial. No existe verdadeira religio onde aquela ideia no esteja presente.

    O sagrado, enquanto questo religiosa, aparece como uma relao de dependncia face a um Alm. O homem um ser-no-mundo-e-em-Deus. Desde ento, o sagrado ocupa uma posio intermdia, mas enquanto rela-o que exige os dois plos, o divino e o humano. Constitui uma dialctica, dialctica da separao e da relao, que tende a uma consagrao total das coisas. Nesta ptica, tambm analisada por Y. Congar, nada profano para o cristo. Aquele no constitui um domnio separado, pois prprio do sagrado, em situao crist, ser esta abertura da pessoa humana a Deus pes-soal. Mediante tal sagrado, o homem apreende-se e coloca-se numa situa-o relacional com uma realidade transcendente. Este sagrado universal, envolve todos os seres. Na verdade, no h sagrado autenticamente reli-gioso sem uma real profanidade do uso dos bens terrestres e a sua relao com o seu destino ltimo 20. O sagrado da ordenao das coisas a um ser--outro que a divindade e necessariamente secularizante, contrrio a todo o pantesmo e paganismo. A relao necessria a Deus insere a criao num processo de divinizao, na sua transformao tanto csmica como humana. Sagrada toda a divinizao do humano e do terrestre, atravs da conscienci-alizao do seu princpio e da sua finalidade ltima.

    3.2. O sagrado pode ser tambm concebido como uma questo meta-fsica. A filosofia da religio analisa a experincia religiosa enquanto estado de precaridade na existncia histrica e encontra no mistrio o fundamento sagrado do ser. Quando o homem perde o sentido e a referncia ao transcen-dente divino e limita os seus horizontes existencialidade do mundo vivido, confronta-se com interrogaes sem fim. A situao criatural do homem leva-o a descobrir o sagrado no seu universo prprio, nas diversas hierofa-nias. Segundo G. Bachelard, o azul do cu sugere ao homem um alm puro. Do mesmo modo, Mircea Eliade afirma que sem recorrer mesmo

    19 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 9, 33, 40 e 41.

    Mesmo no interior de religies destas, encontra-se um grande nmero de ritos que so completamente independentes de toda a ideia de deus ou de seres espirituais O. c, p. 47. . Durkheim, De Ia dfinition des phnomnes religieux, in Journal Sociologique, Paris, PUF, 1969, pp. 140-165.

    20 Jacques Grand'Maison, Le Monde et le Sacr. Tomo 1. Le Sacr, Paris, Les ditions Ouvrires, 1966, pp. 139, 157, 163, 190 e 200; Yves M.-J. Congar, Jalones para una Teologia dei Laicado, Barcelona, Editorial Esteia, 1963.

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    efabulao mtica, o cu revela directamente a sua transcendncia, a sua fora e a sua sacralidade. A simples contemplao da abbada celeste pro-voca na conscincia primitiva uma experincia religiosa21. Assim se foi constituindo a realidade do cu. O inferno nascer do contraste que o sagrado necessariamente cria, como sua oposio radical. O purgatrio parece ter sido a soluo, na relao dos opostos, que ter emergido em ambiente de sacralidade da Idade Mdia.

    O homem moderno tentado a fazer de Deus uma simples projeco do ideal humano. Deus tender a ser apenas o seu excesso, aquilo que o esp-rito cria no alm de si mesmo. Por este processo, acaba por se divinizar. A cincia e a tcnica habituaram-no a passar sem Deus, na sua: actividade di-ria, de forma que, como afirma Jacques Grand'Maison se a Igreja est mis-teriosamente presente na histria dos homens, no o est no campo da cons-cincia da maior parte dos homens 22. Estes no encontram, no quotidiano das suas vidas, o sagrado transcendente.

    As interrogaes inquietantes da maioria das pessoas so, nesta pers-pectiva, meramente metafsicas. Perguntas sobre o destino assediam a mente humana, que quer saber o porqu das coisas e encontrar o sentido e a finali-dade de todo o existente. Esta preocupao, de orientao metafsica, por vezes angustiada a angustiante, deixa o homem na sua radical insatisfao. As respostas originam novas perguntas, que se multiplicam indefinidamente.

    A ideia de destino aparece recorrentemente como resduo de uma Providncia. Quando esta Providncia perde o seu carcter de referncia da aco humana na histria, procura-se saber qual o papel de cada um na con-flitual trama da sociedade. No destino terminam as interrogaes que no terminam. Se antes, no dizer de Henri Bergson, a inteligncia era uma mquina de fazer Deuses, hoje em dia, esta mesma inteligncia no vai mais alm do destino: destino abstracto e impessoal, como fora csmica que atrai todos os seres e os conduz para uma finalidade pr-determinada.

    Para alguns autores, a misria interior e exterior, estar na origem do aparecimento dos deuses. Tal ser a perspectiya nomeadamente de Karl Marx e do marxismo. Georg Simmel sustenta que um facto certo que mui-

    21 Gaston Bachelard, L'Air et les Songes, Paris, J. Corti, 1992, p. 218; Mircea

    El iade, Trait d 'Histoire des Rel igions, Paris , Payot , 1968, p . 46; Jacques Le Goff , O Nascimento do Purgatrio, Lisboa, Estampa, 1993.

    22 Jacques Grand'Maison, Le Monde et le Sacr, Tomo I, p. 203; Henri Bergson, Les Deia Sources de Ia Morale et de Ia Religion, Paris, PUF, 1967, p. 338; Immanuel Kant, A Religio nos Limites da Simples Razo, Lisboa, Edies 70, 1992.

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  • O Retorno do Sagrado

    tos homens no se teriam jamais prosternado ao p da cruz, se no tivessem faltado todos os recursos da vida, uma vez que o que o destino no o sabemos verdadeiramente seno na infelicidade. O homem tende, na ver-dade, a confrontar-se com o seu prprio destino, ao trilhar os caminhos da vida semeados de escolhos. Segundo Daniel Bell, o mundo moderno prope um destino que vai sempre alm: alm da moral, alm da tragdia, alm da cultura23. Encontra-o normalmente onde possa morar o sagrado, no neces-sariamente na religio.

    Mas o homem que matou Deus para se fazer, ele mesmo, divindade continua a ter dificuldade em conciliar esse destino com a sua prpria liber-dade. Se um Deus pessoal dotado de vontade podia ser concebido como res-peitador de outras vontades, as dos homens, um destino aparece associado a um determinismo, porque por ningum escolhido24. Ao ser humano resta a descoberta do seu prprio papel em tal destino, confinando-se a ele o sagrado.

    3.3. O sagrado entendido ainda como uma questo esttica. Na situa-o anterior, o homem pretende ir alm das aparncias de liberdade, bus-cando os fios que conduzem a sua existncia e, na inveno de um ser supremo, o absoluto, encontra deuses ou um mero destino determinstico. No caso vertente, transfere-se o sagrado para o domnio da arte.

    Se alguns encontram na razo o absoluto, outros buscam o sublime na obra artstica. Para Mareei Gauchet, a arte a continuao do sagrado por outros meios. Parece que quando os deuses desertam o mundo, quando deixam de vir significar a sua alteridade, o prprio mundo que se pe a aparecer outro, a revelar um profundo imaginrio que se torna o objecto de uma busca especial, dotado, nele mesmo, do seu fim e no remetendo a no ser para ele mesmo25. Na msica, na poesia ou na criao plstica, se

    23 Georg Simmel, Philosophie et Socit, Paris, Vrin, 1987, pp. 72 e 73; Daniel

    Bell, Les Contradictions Culturelles du Capitalisme, Paris, PUF, 1979, p. 59. 24 Segundo Mareei Gauchet, o paradoxo fundamental da histria das religies: a

    subida em poderio dos deuses qual no seria absurdo reduzi-la no feita em detrimento dos homens, acentuando a sua submisso, mas em seu proveito. O pensamento religioso um pensamento, por isso, que, ao contrrio do nosso, visa produzir uma inteligibilidade do mundo no em vista do seu controlo global. Sendo assim, a morte de Deus no o homem tornando-se Deus , reapropr iando-se da absolu ta d ispos io consc iente de s i mesmo que lhe havia emprestado; , ao contrrio, o homem expressamente obrigado a renunciar ao sonho da sua prpria divindade. Mareei Gauchet, Le Dsenchantement du Monde, pp. 23 e 291.

    25 Mareei Gauchet, Le Dsenchantement du Monde, pp. 297.

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  • Antnio Teixeira Fernandes

    revela a sublimidade. A criao do esprito humano, onde o homem revela o excesso de si mesmo, aparece, na modernidade, para muitos, como a expres-so maior da divindade. Deste modo se metamorfoseia o maravilhoso e o transcendente.

    A sociologia no pode deixar de atender ao que, actualmente, surge como mistrio por excelncia, espao onde tende a situar-se o sagrado, e que a cultura. O grito de apelo a Deus no significa mais a misria do sujeita individual, mas a da criatura, a da existncia em si, de modo que a religio no aqui o que serve para colmatar um vazio, mas a super-abundncia da vida, o excesso do homem. A origem da religio est tambm no excesso de vida, na exaltao at ao infinito das prprias foras. , numa palavra, a coincidentia oppositorum a coincidncia dos contrastes, a unidade do que foi desunido 26. Nascendo do excesso humano, a religio opera a recon-ciliao do homem consigo mesmo, com Deus, com os outros homens e com a prpria natureza.

    3.4. O sagrado manifesta-se, por ltimo, como uma questo social. A expresso do divino social aparece particularmente expressa em Max Weber e em . Durkheim. Segundo o socilogo francs, a fora religiosa no mais do que o sentimento que a colectividade inspira nos seus mem-bros, mas projectado fora das conscincias que o experimentam, e objecti-vado. Para se objectivar, fixa-se num objecto que se torna assim sagrado; mas todo o objecto pode desempenhar este papel. Os fenmenos sociais adquirem assim uma significao hierofnica. Em todas as religies se opera a sacralizao de objectos, de instituies e de pessoas. So sacralizados valores e realidades capazes de promover no esprito das pessoas o senti-mento de devotamento e de exaltao. A ideia de sociedade aparece como a alma da religio, porque ela que gera tudo o que existe de essencial na sociedade. No homem, radica uma faculdade natural de idealizar, isto , de substituir o mundo da realidade por um mundo diferente para onde ele se transporta pelo pensamento. Este processo de idealizao algo de natu-ral ao homem e uma caracterstica essencial das religies27. O homem cria

    26 Georg Simmel, Philosophie et Socit, pp. 65, 73 e 75; Daniel Bell , Les

    Contradictions Culturelles du Capitalisme, p. 165. 27 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 327, 598, 599 e

    602. A religio uma coisa essencialmente social. As representaes religiosas so repre sentaes colectivas que exprimem realidades colectivas. A causa objectiva, universal e eterna destas sensaes sui generis de que feita a experincia religiosa a sociedade. O. c, pp. 13 e 597; mile Durkheim, L 'ducation Morale, Paris, PUF, 1974, p. 59.

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  • O Retorno do Sagrado

    uma contra-sociedade, uma sociedade ideal contraposta que realmente existe, onde deposita o melhor da criao dos seus sonhos.

    Tornam-se coisas sagradas as que o profano no deve, no pode impu-nemente tocar, j que as coisas sagradas so as que os interditos protegem e isolam. Para . Durkheim, o sagrado o social hipostasiado e a religio o conjunto de crenas e de prticas pelas quais o conjunto social se coloca como superior aos seus membros e se adora a si mesmo. As coisas sagradas no possuem nada, em si mesmas, que lhes d esse carcter. A sacralidade vem-lhes do grupo, que lhes confere, por contgio, esta virtude. Se o deus no mais do que a expresso figurada da sociedade, ou a sua expresso simblica, o sagrado e a religio reduzem-se essncia do fenmeno social28. Ambos se exprimem na efervescncia social, nomeadamente na efervescncia da festa.

    De harmonia com a anlise durkheimiana, as foras religiosas so, por isso, foras humanas, foras morais. O sagrado encontra-se no divino social, criado por um estado de efervescncia, j que o estado colectivo que suscita a religio a comunho das conscincias, a sua fuso numa conscin-cia resultante que as absorve momentaneamente. Na verdade, se a vida colectiva, quando atinge um certo grau de intensidade, pe de sobreaviso o pensamento religioso, porque ela determina um estado de efervescncia que muda as condies da actividade psquica. D-se um processo de trans-mutao da vida psquica individual, e cria-se uma conscincia colectiva, enquanto conscincia de conscincias, essa forma mais alta da vida ps-quica. A formao de um mundo ideal um produto natural da vida social. A sociedade no pode criar-se nem recriar-se sem, ao mesmo tempo, criar ideal. Esta criao o acto pelo qual ela se faz e se refaz peri-odicamente. Consequentemente, uma sociedade possui tudo o que neces-srio para despertar nos espritos, unicamente pela aco que exerce sobre eles, a sensao do divino. Em estado de efervescncia, o homem trans-portado para um mundo povoado de foras excepcionalmente intensas que o invadem e o metamorfoseiam29. Se a sociedade real se contrape socie-dade ideal, no significa que esta ltima esteja fora daquela. A sociedade ideal a prpria sociedade real enquanto se cria e se recria por um processo de idealizao, sem o qual seria incapaz de existir.

    -8 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 25, 55, 56, 323

    e496. 29 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 295, 312, 495,

    496, 599, 603, 604 e 633. Textes, 2, Paris, Minuit, 1975, pp. 40 e 41; L 'ducation Morale, p. 59.

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    As mudanas ocorridas nas sociedades ocidentais tm vindo a dar razo anlise durkheimiana. O religioso indissocivel do social. Isolado, per-dido na selva do mundo de hoje, o homem tende a no perceber tambm o sentido da hierarquizao das coisas, do absoluto e da transcendncia. No entender de . Durkheim, os deuses no so outra coisa que foras colecti-vas incarnadas, hipostasiadas sob forma material. No fundo, a sociedade que os fiis adoram; a superioridade dos deuses sobre os homens a do grupo sobre os seus membros. Os primeiros deuses foram os objectos materi-ais que serviam de emblemas colectividade e que, por esta razo, se toma-ram as representaes, sendo da que veio a divinizao. H nesta afirma-o um forte carcter reducionista. A religio no se converte com o divino social. Mas no deixa de ser verdade que a ruptura, em cadeia, dos ligames sociais desencadeia um processo de crise generalizada da religio. a posi-o defendida por Daniel Bell, ao sustentar que, se a religio declina, por-que o domnio do sagrado se reduziu e porque os sentimentos e os ligames afectivos dos homens entre si se enfraqueceram. Consequentemente, dizer que Deus morreu, implica afirmar que os ligames sociais se romperam e que a sociedade morreu. Mareei Gauchet dir que a entrada na idade indi-vidualista , no seu mais profundo, sada da idade do religioso. A crise do modelo holista de sociedade e da sua estrutura hierrquica desarticula todo o universo de representaes herdado do passado. Esta crise tem a ver com o estado geral da sociedade, isto , com a decomposio do prprio universo social. De facto, afirma Jean Baudrillard que o fim das grandes representa-es colectivas significa tambm o seu esgotamento, com a sua desintegra-o e disperso. Na sociedade do fragmento, o valor irradia em todas as direces, em todos os interstcios, sem referncia ao que quer que seja, por pura contingncia. No quer dizer que os valores tenham desaparecido. O que tem vindo a ocorrer uma espcie de epidemia do valor, de metstase geral do valor, de proliferao e de disperso aleatria30. Esta desordem metastsica, que grassa nas sociedades actuais, invade a vivncia religiosa.

    4. O sagrado qadoch (hebreu), hagios (grego), sacer (latino) um conceito polimrfico. Reveste-se, na sua multiformidade, de modalidades e de significaes diversas. No incio da histria da humanidade, estava em

    30 . Durkheim, Leons de Sociologie, Paris, PUF, 1969, p. 189; Jean Baudrillard,

    La Transparence du Mal, Paris, Galile, 1990, pp. 13 e 15; . Durkheim, L'ducation Morale, p. 89; . Durkheim, De Ia dfinition des phnomnes religieux, O. c, pp. 161, 162 e 165; Daniel Bell, Les Contradictions Culturelles du Capitalisme, p. 164; Mareei Gauchet, Le Dsenchantement du Monde, pp. 18 e 19.

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  • O Retorno do Sagrado

    toda a parte. Rodeada de perigos, a existncia humana era um campo de per-manentes hierofanias. O sagrado vai-se progressivamente separando e auto-nomizando do profano, que constantemente se alarga. Se o sagrado era, no passado, depositado na religio, hoje aparece difuso e diludo. . Durkheim sustenta que h, em toda a sociedade, crenas e prticas dispersas, individu-ais ou locais, que no esto integradas em algum sistema determinado. Mas a disperso atinge actualmente a sua mxima expresso, de forma que, no entender de Pierre Bourdieu, a fronteira do campo religioso tornou-se vapo-rosa. A racionalidade foi eliminando-o ou diluindo os seus contornos. O sagrado que no ousa dizer o seu nome desloca-se para outras realidades que se tornam hierofnicas. As relaes sociais e a conduta quotidiana esto impregnadas de uma certa referncia inconsciente ao sagrado, que se dis-persa31. Este anda mistura com o profano, no se podendo deixar, na an-lise, de buscar as suas mltiplas manifestaes actuais.

    Se o profano o que corrente e banal, o sagrado ser o que no habitual. A sacralidade adquire um valor superior, mas, simultaneamente, tende a possuir, nas sociedades actuais, um grau elevado de subjectividade. Continuam a ser, como no passado, as situaes reveladoras dos limites da existncia que se mostram mais hierofnicas. Mas, nos pases liberais e democrticos de hoje, cada indivduo livre de delimitar, ele prprio, o seu campo pessoal do sagrado, de o cultivar, de o deixar sem cultura ou de no querer dele a menor parcela. Segundo T. Luckmann, no se pode identificar religiosidade e religiosidade orientada eclesiasticamente, pois a religio de tipo eclesistico tornou-se um fenmeno marginal na sociedade moderna 32. As formas de sociabilidade assumem dimenses de religiosi-dade profana. A deidade tende a dissolver-se no divino social, fazendo das sociedades, sociedades politestas em que tudo acaba por participar do divino. O reencantamento do mundo processa-se atravs do politesmo dos valores, na imanentizao de toda a realidade.

    31 . Durkheim, De Ia dfinition des phnomnes religieux, O. c, p. 140; Pierre

    Bourdieu, Choses Dites, Paris, Minuit, 1987, p. 107; Jean Cazeneuve, Et si plus rien n'tait sacr..., pp. 8, 9, 12 e 219; Pierre Bourdieu, Gnese et structure du champ reli gieux, in Revue Franaise de Sociologie, 3, 1971, pp. 295-334; Mareei Gauchet, Le Dsenchantement du Monde, pp. 7, 10, 11 e 18; . Durkheim, Textes, 2, p. 9.

    32 Jean Cazeneuve, Et si plus rien n'tait sacr.. . , p. 221; T. Luckmann, La Religione Invisibile, Bologna, II Mulino, 1963, pp. 24 e 41; Michel Maffesoli, Aux Creux des Apparences, Paris, Plon, 1990, pp. 27, 30, 33, 180 e 190; Patrick Tacussel, Le Renchantement du Monde. La Mtamorphose Contemporaine des Systmes Symboliques, Paris, L'Harmattan, 1994.

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    A alterao do conceito de sagrado e a sua extenso indefinida levam redefinio da prpria noo de religio. A Escola sociolgica francesa, desde . Durkheim a H. Hubert e M. Mauss, concebe a religio como a administrao do sagrado33. Este constitudo por uma substncia (o numi-noso), uma relao e uma hierofania. Com a difuso e a metamorfose do sagrado, no ser mais possvel defender uma concepo essencialista de religio, como realidade em si. Ele condicionado pela sensibilidade e pelo meio ambiente social. No haver, do mesmo modo, uma forma unvoca de entendimento do que seja o seu retorno.

    4.1. Se, por retorno do sagrado, se entende a religio, ser necessrio atender s diversas dimenses do religioso, para se ver qual delas se consi-dera. A religio um fenmeno dotado de caractersticas variadas. Na pers-pectiva durkheimiana, os fenmenos religiosos so constitudos por duas categorias fundamentais: as crenas e os ritos e, na sua capacidade de dina-mizao, so determinados por duas valncias, a produo de conhecimento e a produo de sentido. . Durkheim distingue, na verdade, duas funes muito diferentes que a religio desempenhou na histria. Umas so vitais, de ordem prtica: ela ajudou os homens a viver, a adaptar-se s suas condies de existncia. Mas, por outro lado, ela foi tambm uma forma de pensamento especulativo, um sistema de representaes unicamente destinado a exprimir o mundo, uma cincia antes da cincia, e uma cincia concorrente com a cincia medida que esta se estabelecia. As religies, nas sociedades de hoje, deixaram de ser cosmologias, para se tornarem unicamente disciplinas morais. Se se deu um retrocesso incontestvel da sua dimenso especulativa, a outra funo, a funo vital e prtica, permanece inteira. Vive-se numa civilizao onde o conhecimento cientfico aparece como prottipo de toda a verdade, mas onde o homem busca novas fontes de sentido que aquele no capaz de oferecer. Segundo . Durkheim, a verdadeira funo da religio no consiste em nos fazer pensar, em enriquecer o nosso conhecimento, em juntar s representaes que devemos cincia representaes de uma outra origem e de um outro carcter, mas em nos fazer agir, em nos ajudar a viver 34. O processo por que tem passado a humanidade, de desenvolvi-mento da cincia e da tecnologia, retira religio o papel que desempenhava,

    33 . Durkheim, De Ia dfinition des phnomnes religieux, O. c, pp. 140-165;

    Les Formes Elmentaires de Ia Vie Religieuse. 34 . Durkheim, Les Formes Elmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 12, 50, 378,

    495 e 595; Textes, 2, p. 144; L 'ducation Morale, pp. 89, 98 e 102.

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  • O Retomo do Sagrado

    de sistema geral de conhecimento. No ser, por certo, religio que os homens recorrem para desvendar os mistrios do mundo. A cincia e a tec-nologia exercem hoje essa funo.

    Para alm do seu aspecto cognitivo e intelectual, h uma funo vital que faz com que exista na religio qualquer coisa de eterno que est desti-nado a sobreviver a todos os smbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se envolveu. Na medida em que aco, enquanto um meio que faz viver os homens, a cincia no poder tirar-lhe o lugar, porque se esta exprime a vida, no a cria. A presena de qualquer coisa de eterno na religio reside precisamente na f e no culto. Esta razo leva . Durkheim a afirmar que o fiel que comunicou com o seu deus no somente um homem que v verdades novas que o descrente ignora; um homem que pode mais. Sente em si mais fora, quer para suportar as dificul-dades da existncia, quer para venc-las35. Inerente a toda a religio, existe uma fora capaz de gerar dinamismos vitais, no promovidos pela cincia. A efervescncia religiosa produz naqueles que participam nos seus ritos e no seu culto, um sentimento que os transpe para uma ordem de maravilhoso e de sublime. Esta ser uma dimenso do retorno do sagrado.

    4.2. O estudo da religio aparece, deste modo, como a forma mais apta para fazer compreender a natureza religiosa do homem, vista como um aspecto essencial e permanente da humanidade36. Produzida pela sociedade e sendo, em si mesma, um fenmeno essencialmente social, a religio corres-ponde a situaes concretas da existncia e exprime necessidades fundamen-tais da vida colectiva. A sua variedade uma funo tambm das condies de vida humana.

    Se as formas religiosas tm que ser consideradas na sua relao com a natureza religiosa do homem, esta tem a ver com as condies scio-hist-ricas. Dividir o mundo em domnios separados, um sagrado e outro profano, no s um procedimento de ordenao e de hierarquizao das coisas, como ainda um modo de vivenciar a experincia. A dimenso sacral da exis-tncia constitui-se em fonte de subjectividade. A tendncia, h dcadas atrs, expressa em alguns autores de orientao estruturalista, ia no sentido de uma extrema objectivao do homem e do radical apagamento do sujeito. L.

    35 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 595, 609, 610,

    6 1 4 e 6 1 5 . 36 . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Rel igieuse, pp. 2 , 3 e 57.

    A alma o elemento divino da nossa natureza, e este elemento que temos que desenvol ver. . Durkheim, L 'ducation Morale, p. 88.

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    Althusser advoga uma posio anti-humanista, rejeitando a prpria noo de homem. Para este autor, a histria um processo, e um processo sem sujeito, sendo, por isso, necessrio desembaraar-se da ideologia burguesa do homem como sujeito da histria. O ser humano dessubjectivizado, na medida em que os homens reais so o que deles fazem as condies de classe. Idntica posio adoptada por Michel Foucault. Tambm J. Habermas, numa outra perspectiva, parece querer romper com a filosofia do sujeito, substituindo-a por uma teoria do agir comunicacional, propondo a passagem de uma filosofia da conscincia anlise da aco de comunica-o. O homem, no entanto, no desapareceu. Face s tendncias actuais, as pessoas buscam a forma de se constiturem como sujeitos. Um processo geral de subjectivao atravessa as sociedades. O crescimento da individuali-dade trouxe ao homem um nmero crescente de problemas. Na verdade, segundo Mareei Gauchet, o declnio da religio paga-se em dificuldade de se ser. A sociedade ps-religio tambm a sociedade onde a questo da loucura e da perturbao ntima de cada um toma um desenvolvimento sem precedentes 37. Nas mos dos indivduos entregue o seu destino. Tal situa-o no pode ser imputvel unicamente ao ocaso da religio e ao crepsculo dos deuses. Haver que atender igualmente crescente complexidade que rodeia a vida social. Mas no h dvida de que o declnio religioso poder contribuir para o incremento deste fenmeno.

    Como dimenso subjectiva da religio, a religiosidade apresenta graus diversos de intensidade, em relao com as condies existenciais e a fre-quncia das celebraes religiosas. A esta dimenso procura reduzi-la Georg Simmel, quando afirma que ela um acontecimento que se produz na cons-cincia humana, e nada mais. Identificada com a atitude subjectiva do homem, transforma-se inteiramente numa maneira humana de sentir, de crer, de agir, como o lado imanente a ns de uma relao com um princ-pio superior. Entendida como funo subjectiva e humana, a religiosi-dade uma disposio irredutvel e fundamental da alma 38. Para este autor alemo, a religio uma atitude subjectiva, qualquer que seja o con-

    37 Louis Althusser, Rponse John Lewis, Paris, Franois Maspero, 1973, pp. 31,

    32 e 34; Jiirgen Habermas, Thorie de VAgir Communicationnel, Paris, Fayard, 1987; Mareei Gauchet, Le Dsenchantement du Monde, pp. 300 e 302.

    38 Georg Simmel, Philosophie et Socit, pp. 45, 46, 47 e 50. Segundo G. Simmel, todo o misticismo uma fuso do eu com a divindade. Toda a multiplicidade da vida interior encontra uma unidade na elevao religiosa da alma. Na atmosfera religiosa convergem todos os contrastes da sua alma. O. c, pp. 65, 67 e 68.

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    tedo religioso em que se cr. Compreende-se que, luz desta ptica, Georg Simmel entenda que o homem tem religio, no porque creia em Deus, mas cr em Deus porque tem na sua alma o sentimento religioso39. Mas se a religio e, consequentemente, a religiosidade so dimenses permanentes da situao criatural do homem, ainda que subjectivas, no podem desaparecer. Conhecem apenas fases de intensidade e momentos de apagamento. Estas so as situaes em que aparece ou desaparece o sentimento religioso da alma das pessoas. O retorno do sagrado ser aqui um fenmeno de aviva-mento da religiosidade, seguido ou no de intensificao das prticas religio-sas. Dado o processo de rotinizao a que esto sujeitas as coisas, pode con-ceber-se o sagrado em termos de um movimento ondulatrio de intensidades variveis, de acordo com as sensibilidades individuais.

    4.3. Entendendo a religio como expresso da situao criatural do homem no mundo, o retorno do sagrado manifesta-se ainda como um recurso ao maravilhoso. Existem formas de sagrado que no pertencem necessaria-mente a uma religio histrica. So fenmenos que se revelam fora de qual-quer sistema religioso.

    Situaes h em que se desencadeiam no homem sentimentos de exal-tao e de transcendncia. Essas so, antes de mais, as vivncias produzidas pela sacralidade csmica. Segundo Peter Berger, a religio a empresa humana que cria um cosmos sagrado ou, por outras palavras, uma cosmici-zao sob a forma de cosmos sagrado40. Produzindo uma cosmicizao, supera o caos da natureza, e, promovendo a numinizao, forma reas de sagrado no extenso mundo profano das actuais sociedades. Abertos a tal cos-micizao, os indivduos deparam, na sua quotidianeidade, com expresses variadas do sagrado. A sensibilidade em relao natureza faz com que alguns novos movimentos religiosos, que envolvem particularmente a juven-tude, associem a religio natureza.

    Esta mesma busca do maravilhoso exprime-se tambm na redescoberta da festa. Em meios sociais efervescentes, em estados de exaltao, a socie-dade, segundo . Durkheim, capaz, pela comunho que propicia, de criar divino. A festa popular, enquanto oposta religio erudita, exprime, sua maneira, o sentimento do sagrado. S. Freud define a festa como um excesso permitido, at mesmo ordenado, uma violao solene de uma proibio.

    39 Georg Simmel, Sociologia, I, Madrid, Alianza Editorial, 1986, p. 280.40 Peter Berger, La Religion dam Ia Conscience Moderne, Paris, Centurion, 1971,

    pp. 56, 58, 59 e 60; T. Luckmann, La Religione Invisibile, p. 77.

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    Traduzir, deste modo, o sagrado da transgresso41. H, em toda a festa, um excesso e um desejo de desordem, desordem que restabelece a normali-dade do quotidiano, libertando-o das suas tenses. Mas a festa ainda um mundo de encantamento e de maravilhoso, com a sua sacralidade positiva prpria.

    A cincia e a tcnica tm vindo a desencadear um processo crescente de desencantamento do mundo. O sculo XIX toma conscincia, de uma forma aguda, deste facto. Dostoiewski, fazendo-se eco da mentalidade da poca, pe na boca de Rogojine a seguinte afirmao: A ns -nos mais fcil ser ateus porque estamos mais avanados do que eles os habitantes de outros pases da Europa. Sensvel, no entanto, profundidade de tal senti-mento, que os ventos da histria no conseguem varrer, faz dizer ao prncipe Myschkine que a essncia do sentimento religioso escapa a todos os racio-cnios, nenhuma falta, nenhum crime, nenhuma forma de atesmo tem poder sobre ela. H e haver eternamente nesse sentimento algo de inantingvel e de inacessvel argumentao dos ateus. A concepo do mundo , na ver-dade, um sistema de significado global que desenvolve uma funo essencialmente religiosa42. A decomposio da cultura, a perda da sua uni-dade, tem feito da identidade pessoal uma modalidade de religiosidade indi-vidual. No sero somente a sacralidade csmica, que a ecologia hoje des-perta, nem a sacralidade da festa, em reanimao constante como busca da perenidade do efmero ou do maravilhoso de que carece a banalidade do quotidiano, que fazem despoletar o sagrado. O homem, no seu projecto inte-rior de afirmao identitria, hoje, ele mesmo, factor do despertar e da manifestao do sagrado.

    Retomo do sagrado ser, ento, toda a exploso de maravilhoso na vida dos homens, ao abrigo da racionalidade formal ou material de que a cincia e a tcnica tendem a rodear a existncia. Vem-se assistindo a um geral reen-cantamento do mundo. O homem no somente razo, ainda sentimento e sensibilidade.

    4.4. mistura com esta busca de maravilhoso, encontra-se hoje o flo-rescimento de supersties, que sobrevivem na mentalidade e so activadas

    41 Franois-Andr Isambert, Le Sens du Sacr, Paris, Minuit, 1982, pp. 14 e 15;

    Sigmund Freud, Totem e t Tabou, Par is , Payot , 1968, pp . 161-162; Roger Cai l lo is , L'Homme et le Sacr, Paris, Gallimard, 1963, pp. 121-162; . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieuse, pp. 312, 313, 323 e 324.

    42 Fedor Dostoievski, O Idiota, Lisboa, Crculo de Leitores, 1976, pp. 218, 220 e 221; T. Luckmann, La Religione Invisibile, pp. 67, 71 e 93.

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  • O Retorno do Sagrado

    em contextos prprios. O Cristianismo, atravs de uma persistente aco de evangelizao, fez recuar prticas religiosas que vinham do passado. Em alguns casos, as festas tradicionais foram substitudas por celebraes crists, do mesmo modo que os templos pagos passaram a ser lugares do novo culto. Mas a evangelizao no transformou sempre, nas camadas populares, os sentimentos religiosos, nelas bem enraizados. A cultura era de predomnio rural, mesmo quando vivida nos centros urbanos.

    Sob o novo culto, continuavam a subsistir as crenas pags estreita-mente associadas ao mistrio csmico. Ainda hoje existe em meios campesi-nos uma forte ligao natureza, e s foras e aos mistrios que ela encerra.

    Segundo Max Weber, a concepo dos poderes supra-sensveis como deuses, e at como um deus sobre-humano, no elimina de modo algum as velhas representaes mgicas (nem sequer no cristianismo), abre porm uma dupla possibilidade de relao com eles. Na religio, sobretudo popular, h graus elevados de antropomorfismo que fazem assemelhar os deuses a seres humanos poderosos. Parece que a religio se associa estreita-mente magia. No entender do socilogo alemo, o culto das missas e san-tos do catolicismo est, de facto, muito prximo do politesmo43. As con-cepes de Deus nesses meios sero, em grande medida, projeces da prpria psicologia do homem.

    O retorno do sagrado aparece, muitas vezes, como redescoberta e vivncia de crenas e de prticas que permaneceram presentes na memria colectiva, recalcadas durante sculos. O Cristianismo constitui, nestes casos, uma patine que reveste superficialmente as conscincias das pessoas. Estalada a patine, afloram essas supersties.

    O regresso ao oculto e ao misterioso vai-se generalizando pela Europa. Umberto Eco diz, a este propsito, o seguinte: Se entrarmos nas livrarias italianas, at naquelas que dantes eram conhecidas como de esquerda, podemos encontrar nas estantes onde apareciam os textos de Lenine e de Mao as obras das casas editoras especializadas em hermetismo, cabala, tarots e espiritismo44. O enigmtico e o irracional tornam-se objecto de uma espe-

    43 Max Weber, Economia y Sociedad, I, pp. 343, 344, 345, 376, 390, 391 e 412;

    Georges Sorel, Rflexions sur Ia Violence, Paris-Genve, Ressources, 1981, pp. 271, 272 e 273.

    44 Umberto Eco, O irracional, o misterioso, o enigmtico, in Balano do Sculo, Ciclo de Conferncias Promovidas pe lo Pres idente da Repbl ica , Lisboa , Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, pp. 105 e 108; Jean Cazeneuve, Et siplus rien n'tait sacr..., p. 16.

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    ciai procura. Encontram-se no exotismo outras dimenses da vida que a civi-lizao materialista recalca. O triunfo da razo no se manifesta somente na eliminao da irracionalidade.

    Se o cristianismo no consegue suprimir as supersties, o equilbrio da resultante instvel, facilmente rompido a favor de um dos elementos. A intensidade na vivncia do Cristianismo apaga as formas de paganismo. Estas tendero a desenvolver-se desde que aquele se anemize e se torne tbio. As pessoas, no que se refere religio, entram normalmente num certo jogo, colocando uma vela acesa a Deus e outra ao diabo. Estabelecem um com-promisso, que lhes d sempre a vantagem, sem riscos demasiados. Esta uma religio semi-mercantilizada.

    4.5. O sagrado para a vida humana tende a configurar-se, no mundo moderno, atravs de sistemas simblicos portadores de sentido. Os sistemas simblicos mais carregados de significao so tradicionalmente os religio-sos. Mas aqueles extravasam, cada vez mais, para o domnio secular. G. Balandier afirma que o sagrado valida simbolicamente as experimenta-es culturais, sociais e polticas que se querem justamente criadoras de sen-tido45. O desencantamento do mundo, operado na poca moderna, reduz os horizontes existenciais do homem. Sem mais alm, a experincia humana fica contida nos limites da temporalidade. A cincia e a tcnica, por outro lado, podem oferecer conhecimentos e controlo do mundo, mas no a vida e o encanto. Privados destas dimenses, os indivduos lanam-se na busca de outros universos de sentido.

    Retorno do sagrado, mais do que uma exigncia de explicao para tudo o que existe, ser uma necessidade de finalidade e de sentido. Segundo Mircea Eliade, o sagrado e o profano constituem duas modalidades de estar no mundo46. Esta mesma diviso do mundo em dois domnios radicalmente distintos e qualitativamente diferentes aparece tambm para . Durkheim como algo caracterstico do pensamento religioso. Reduzida a existncia a um nico domnio, a pura mundaneidade, o homem fica privado da outra dimenso.

    Pode demonstrar-se que o enfraquecimento das crenas religiosas e dos sentimentos colectivos com base no desenvolvimento da racional idade, no ter nada de anormal. Parece que, medida que o meio social se torna mais

    45 G. Balandier, Le Dtonr. Pouvoir et Modernit, Paris, Fayard, 1985, p. 205.46 Mircea Eliade, Lo Sagrado y Io Profano, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1967,

    p. 22; . Durkheim, Les Formes lmentaires de Ia Vie Religieitse, pp. 50 e 51.

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  • O Retomo do Sagrado

    complexo e mais mvel, as tradies, as crenas se abalam, tomam qualquer coisa de mais indeterminado e de mais flexvel47. Mas imerso nas suas dvidas, o homem no pode viver sem certezas. Atirado para um pntano de objectos de consumo, tem necessidade de algo que lhe aponte um rumo na viagem. Encerrado num espao de coisas, busca razes para existir.

    O retorno do sagrado que se vai manifestando no mundo ocidental tem a ver, em muitos casos, com esta necessidade de sistemas de sentido. Haver certamente seres que vivem em mundos de total claridade. Os mistrios do universo no se lhes tero sido todos desvendados, mas, dotados de generosi-dade de esprito, descansam na confiana oferecida por alguma promessa. Mais do que inteligilidade, vem no mundo poesia e beleza e uma mo semi-invisvel que conduz todas as coisas para o seu destino. Mas existem tambm pessoas que so permanentemente assediadas pela dvida. Se a verdade dvida superada, igualmente o princpio de uma outra dvida. Estes espri-tos inquietos interrogam-se e interrogam tudo, na nsia de respostas para as suas constantes perguntas e de saciedade para as suas inquietaes. Trata-se de vidas interiormente sofridas, mesmo que bafejadas pela fortuna. No entender de Jean Cazeneuve, h certamente espritos fortes que so insens-veis, inacessveis a tudo o que no explicvel pelo raciocnio. Existem outros, no necessariamente menos fortes, que esto procura de algum princpio que os ultrapasse e exceda mesmo o seu entendimento 48. Entre estes dois tipos, est a maioria, que no pensa, que vive simplesmente com a satisfao que o quotidiano lhe oferece. No se encontra nela nem a clari-dade prpria dos espritos optimistas, nem a preocupao metafsica dos que tudo querem compreender, nem a nsia dos que buscam por toda a parte os sinais dos tempos, mas a calma apagada daqueles que no questionam a vida no seu milagre de ser. Nem do estar sendo, tm perfeita conscincia. So for-mas de ser e de estar, umas mais fechadas sobre si mesmas, outras mais aber-tas ao uni- verso em que se encontram e mais questionantes sobre o sentido da vida e da histria.

    4.6. O sagrado para muitos continua a estar confinado no interior de sistemas religiosos. Que o procurem a ou o encontrem sua margem, a reli-gio para eles o lugar central e exclusivo da sacralidade. Esta mantm-se ligada a um mistrio insondvel, mais ou menos pessoalizado. A sensibili-dade e a percepo no esto voltadas para outros lados.

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    47 . Durkheim, Les Rgles de Ia Mthode Sociologique, pp. 62 e 96.48 Jean Cazeneuve, Et siplus rien n 'tait sacr..., p. 219.

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    O sagrado , para R. Otto, um elemento inefvel, irracional, isto , uma categoria afectiva. O mysterium tremendum Q fascinam est na origem da religio e, com ela, dos mitos, dos ritos e das divindades. Estas caractersti-cas do numinoso conferem-lhe uma dimenso de transcendncia.

    No Cristianismo, o sagrado no se confunde com a sacralidade ima-nente aos seres e aos acontecimentos que a revelam, embora neles se espe-lhe. Ser, antes, o mundo da relao com um Deus dotado de vontade. A reli-gio no definida pela mera funcionalidade de que possa ser dotada. O sagrado a relao entre a condio humana e algum radicalmente dife-rente.

    Aps uma poca de abandono generalizado das prticas cultuais, o retorno do sagrado pode aparecer para alguns como uma busca de sentido nos corpos teolgicos prprios das diversas religies. Tal preocupao vai-se encontrando no seio da Igreja Catlica, assim como no mbito de outras reli-gies. O retorno do sagrado surge, noutros casos, como restaurao ou revi-valismo de prticas religiosas. Que estes procurem a Igreja por necessidade de encontro com um Deus pessoal, de quem pensam dependem as suas vidas, que encontrem a o nico sistema simblico capaz de dar sentido sua exis-tncia, ou que, esgotadas outras possibilidades, joguem, nas suas dvidas, a favor de algo que lhes parece mais certo, isso depende de idiossincracias pes-soais e de situaes histrico-sociais prprias.

    Se se atende s tendncias verificadas no desenvolvimento das sensibi-lidades e das atitudes, adquire especial relevo a afirmao de Jean Cazeneuve de que se a Igreja se dessacralizasse para melhor se integrar na vida social moderna, cometeria um deplorvel contra-senso. Muita gente que, aps um perodo de abandono da prtica religiosa, tenta regressar, movida por um misto de nostalgia das origens e de insatisfao criada pela vida nas sociedades de hoje, no deixa de sentir um certo desapontamento ou mesmo frustrao, porque no encontra a Igreja como a deixou. No entender de Daniel Bell, nas coisas da cultura, h sempre um retorno s preocupa-es e s questes que so as angstias existenciais dos seres humanos. As respostas podem mudar, mas as formas que elas tomam so, por vezes, influ-enciadas pelas outras mudanas da sociedade49. A religio feita, para muitos, medida dos seus desejos, sem se compreender que ter de ser adap-tvel e adaptada ao crescimento do homem.

    49 Jean Cazeneuve, Et si plus rien n'tait sacr..., p. 8; Daniell Bell, Les

    Contradictions Culturelles du Capitalisme, p. 23.

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  • O Retorno do Sagrado

    Quando a racionalidade das suas doutrinas ou a burocratizao dos seus ritos no satisfazem quer a nsia de conhecimento quer a comunho com o transcendente, enquanto algo que est para alm do simples quotidi-ano, tende a recorrer-se a outras formas mistricas. Para alm da revivescn-cia das supersties, florecem tambm hoje, com grande vigor, as seitas reli-giosas. At h algum tempo fenmeno minoritrio e marginal, as seitas encontram actualmente um enorme sucesso. No entender de Jean Cazeneuve, se religies estabelecidas no do satisfao a esta procura de princpios transcendentes, inviolveis, incontestveis, a esta necessidade de bases sli-das, ento nascem e desenvolvem-se Igrejas exigentes que podem ser chama-das seitas na medida em que no so reconhecidas como religies pelo con-junto da sociedade 50. Com o processo geral de desinstitucionalizao que afecta a famlia, a escola e a religio, e a perda da sua funo socializadora, as Igrejas so marginalizadas. Deixando de ser instituies que apontam valores e produzem normais sociais, a regulao da vida social passa-lhes margem e as seitas transformam-se em factores de subjectivao e, nessa medida, de integrao social. A afirmao do religioso pode ser assim posta ao servio da renovao das identidades. Enquanto umas so dotadas de grande rigor e tendem a praticar uma religiosidade extra-mundana, outras pretendem transformar-se em Igrejas. Numa sociedade que muda rapida-mente, h quem experimente a necessidade de princpios estveis, ao lado de outros que buscam respostas mais emotivas e pessoalizadas para as suas inquietaes interiores ou para os seus problemas existenciais.

    Alm disso, a Igreja Catlica debate-se actualmente, em vrias regies da Europa, com o problema da passagem dos catlicos para as Igrejas Protestantes, ao mesmo tempo que se verifica o processo inverso. Este mesmo movimento tem sido vivido, desde h longo tempo, no contexto norte-americano. A fronteira entre as Igrejas torna-se extremamente fluida e a passagem constante. As seitas e os novos movimentos religiosos atraem hoje largas camadas da populao procura de uma religio emocional que lhes traga um suplemento de alma s suas vidas de privao e de sacrifcio.

    Ao lado das preocupaes ecumnicas, parece assistir-se igualmente ao retomo em fora, na igreja Romana, da questo da identidade catlica, que pode abrir uma nova fase de exclusivismo comunitrio. Segundo Jean-Louis Schlegel, se nos anos 1950 e 1960, o problema era o da subida do

    50 Jean Cazeneuve, Et siplus rien n'tait sacr..., pp. 15 e 228; Michel Wieviorka,

    L'Espace dn Racisme, Paris, Seuil, 1991, pp. 215 e 216; Daniel Bell, Les Contradictions Culturelles du Capita lis me, pp. 176 e 177.

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    atesmo e da indiferena das massas, a situao a partir de 1980 alterou-se e o inimigo das religies no mais ao menos no discurso o atesmo mas... as outras religies51. Um certo fundamentalismo emergente pre-tende substituir os consumidores passivos de religio por militantes. Os movimentos religiosos e as seitas aparecem, neste contexto, como factor que faz despertar a conscincia das Igrejas. Aqueles surgem medida que estas declinam.

    Para alm da resposta que oferea s novas buscas de sagrado e de reli-gioso, a actual efervescncia das seitas est em vias de introduzir profundas alteraes na situao religiosa em Portugal. O pluralismo entretanto criado neste domnio conduzir, a curto prazo, a uma reivindicao de igual digni-dade e tratamento para todas as denominaes religiosas, que o Estado democrtico dificilmente ter possibilidade de contrariar. No existe sequer imunidade em relao emergncia possvel de certos fundamentalismos. As deficincias em cultura religiosa, e no menos em cultura democrtica, pro-piciam-lhes contextos favorveis. A vontade de arregimentao de adeptos e de recolha de fundos econmicos leva, com frequncia, adopo de proce-dimentos de presso psicolgica atentatrios das liberdades individuais. Se o enriquecimento rpido de algumas seitas, com ostentao pblica de poderio, convida a intervenes do fisco, com progressivo alargamento a todas as confisses, o crescente pluralismo tender a gerar, com grande probabili-dade, um ambiente generalizado de relativismo e de indiferena. Tais fen-menos parecem propiciar perspectivas de abordagem susceptveis de forne-cerem o conhecimento de algumas contradies da sociedade e dos seus eventuais desenvolvimentos.

    5. O fenmeno do retorno do sagrado , assim, profundamente poli-morfo. Apresenta uma srie infindvel de modalidades e pe em aco mecanismos diversos. Nuns casos, memria. Em situaes existenciais concretas regressam ao pensamento os conhecimentos incorporados durante o processo de socializao religiosa. O conhecimento o elemento dotado de maior perenidade, mais difcil de erradicar. Tende a enformar ou a rodear os valores fundamentais da vida e oferece os princpios normativos da conduta.

    51 Danile Hervieu-Lger, Peuple de Dieu, entre exclusivisme communautaire et

    universalisme, in Michel Wieviorka, Racisme et Modernit, Paris, ditions Ia Dcouverte, 1993, p. 104; Jean-Louis Schlegel, Le retour du religieux? Quelques inter-prtations, in Gilles Ferreol, Intgration et Exclusion dans Ia Socit Frana is e Contemporaine, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1994, pp. 418 e 419.

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  • O Retorno do Sagrado

    Casos h ainda, em que o calor do culto, o sentir-se comunidade em comu-nidade, numa solidariedade abrangente, fazem despertar esse retorno. A gra-tuitidade do encontro e a partilha de sentimentos tornam-se importantes e esto na base do sucesso de algumas seitas.

    Mas se o retorno , muitas vezes, uma questo de simples regresso, actuado pela memria, noutras apresenta a forma de transmutao do sagrado. O homem no se contenta, mesmo quando expressamente parece afirm-lo, com um mundo totalmente profano. Sente, em todos os tempos, a necessidade de colocar pessoas, instituies e objectos fora da ordem comum. Esta separao do profano constitui o sagrado e uma observao mais atenta da sociedade moderna mostrar que a necessidade do sagrado, a necessidade de no colocar tudo no mesmo plano, no desapareceu, apenas se deslocou ou camuflou 52. No se trata, efectivamente, do reencontro do sagrado, como foi conhecido e vivido num passado mais ou menos remoto. um sagrado numa outra ordem de coisas. Nas sociedades secularizadas contemporneas, o sagrado apresenta-se sob vrias hierofanias.

    Sob que formas se configura o retorno do sagrado nos nossos dias? As distines anteriormente introduzidas permitem uma resposta mais precisa.

    5.1. Uma transformao profunda, em curso actualmente, era j obser-vada por . Durkheim no incio deste sculo: parece, de toda a evidncia, que assistimos dissoluo de uma forma religiosa. a que foi constituda e organizada nas sociedades europeias no decurso da Idade Mdia: to impossvel restaur-la como as formas sociais correspondentes53. Deu-se, de facto, a passagem da cristandade ps-cristandade e desta ao ps-cristia-nismo, medida que secularizao sucedeu o secularismo. No s a estru-tura social se transformou, como ainda as crenas religiosas passaram a ter uma tnue ligao s conscincias.

    Mas as religies no perderam todas as suas funes. Algumas perma-necem constantes. Ao exprimir-se sobre o futuro da religio, . Durkheim sustenta que contrrio a toda a verosimilhana que as causas que suscita-ram as religies no passado cessem totalmente de ser actuantes. Quanto a saber quais sero as formas religiosas do futuro uma profecia que o estado actual dos nossos conhecimentos no nos permite fazer. Tudo o que se pode presumir que sero ainda mais penetradas de racionalidade do que mesmo

    52 Jean Cazeneuve, Et siplus rien n 'tait sacr..., pp. 7 e 8.53 . Durkheim, Textes, 2, p. 169. A. Teixeira Fernandes, Secularizao e secula

    rismo, in Economia e Sociologia, 49, 1990, pp. 97-117.

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    as religies mais racionalizadas de hoje, e que o sentido social, que foi sem-pre a alma das religies, se afirmar mais directa e mais expressamente do que no passado, sem se cobrir de mitos e de smbolos54. Para o socilogo francs, a cincia da religio no implica, nem pode implicar, a negao desta em nome da razo. A cincia estuda a religio como um facto social. A fazer f no que pensa . Durkheim, se as religies tendem a revestir-se de um carcter cada vez mais racional, sendo a prpria teologia, como a entende Max Weber, a racionalizao de um dado irracional, o retorno do sagrado deveria fazer-se hoje mais nas religies histricas, domnio onde essa racio-nalidade mais visvel, do que nos novos movimentos religiosos, nas seitas e no campo das supersties, onde o carcter afectivo, a emotividade e a irraci-onalidade so mais acentuados. Ora o retorno que se revela actualmente faz-se sobretudo no sentido da busca do emotivo.

    A fora das religies histricas grande quando aparece como operante a capacidade de integrao das ideologias, ou a estrutura social se apresenta estvel e subordinada a valores espirituais. As ideologias entraram em crise, fragmentando-se, e a religio, como as demais instituies sociais, foi atin-gida por algum descrdito. Pulverizaram-se os espaos de vivncia do sagrado. O prprio clero tradicional no conserva o seu monoplio a no ser sobre o ritual social: ele tende a no ser mais que o ordenador de cerim-nias sociais enterros, casamentos, etc. A vida das pessoas desenrola-se noutros espaos e na luta pela imposio da boa maneira de viver e de ver a vida e o mundo, o clero religioso, de dominante, tende a tornar-se dominado, em proveito de cleros que tomam a autoridade da cincia para impor verda-des e valores dos quais claro que no so frequentemente nem mais nem menos cientficos que os das autoridades religiosas do passado55. Os gesti-onrios do sagrado perdem a sua importncia social, e a arte e o maravilhoso csmico passam a ser vividos como mundos de transcendncia.

    No se poder aceitar, no entanto, que o sagrado, na sua acepo mais clssica, isto , na sua referncia ao sobrenatural, ter desaparecido ou estar em vias de desaparecer das nossas civilizaes industriais, pois, se tem diminudo a prtica religiosa, no ter crescido o nmero dos que se decla-ram totalmente ateus. Parece que a sociedade moderna est longe de dis-pensar o sagrado. Demonstram-no a importncia ou mesmo a necessidade de se lhe encontrar substitutos mais ou menos laicizados e tambm de manter viva uma religiosidade que no poder ser aferida simplesmente pela medida

    54 . Durkheim, Textes, 2, p. 170.55 Pierre Bourdieu, La dissolution du religieux, in Choses Dites, pp. 122 e 123.

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  • O Retorno do Sagrado

    da prtica religiosa 56 Mantm-se constante na humanidade a exigncia de se terem como referentes valores de absoluto, ainda que variem as expres-ses da necessidade e do absoluto.

    A sociologia da religio tem sido dominada pela problemtica da des-cristianizao e da secularizao, enquanto abandono generalizado da reli-gio e das suas prticas. O retorno do sagrado tende a ser visto como um fenmeno episdico e momentneo. Mas h tambm quem encontre nos fenmenos de retorno, no interior das Igrejas, nas seitas, nas supersties e nos movimentos religiosos, um forte indicador de que a secularizao ter chegado ao seu fim. Observa Jean Cazeneuve que o futuro no vai necessa-riamente no prolongamento das tendncias presentes. Vrios socilogos, entre os quais um observador to prevenido como Mareei Mauss, notaram sobretudo o balanceiro nas variaes das mentalidades colectivas. Quando se apercebe que se foi demasiado longe num sentido, toma-se, sem mesmo se dar sempre conta disso, a direco inversa. De acordo com o movimento pendular, acaba por se desviar de tudo o que excessivo. Parece que a natureza humana oscilar sempre entre a procura da segurana e o desejo de ultrapassar as determinaes, entre o medo do inslito e a atraco pela reno-vao 57. o movimento circular e ondulatrio prprio dos fenmenos soci-ais, com aplicao especial ao domnio religioso.

    O sentimento do sagrado anda associado a comportamentos em que se produz uma certa exaltao. As suas hierofanias revelam-se nas formas mais variadas, de harmonia com os nveis de transcendncia que manifestam, e as sensibilidades prprias de cada estado civilizacional.

    5.2. Desde que os fundamentos do que era sagrado foram abalados e as religies estabelecidas no satisfazem a busca de transcendncia, ao mesmo tempo que a cincia no pode resolver os grandes dilemas existenciais, assiste-se a um retorno do sagrado. Esta parece ser uma constante humana, porque se nada mais fosse sagrado, se cada indivduo no colocasse nada acima de si mesmo, se todo o lan para o absoluto fosse desqualificado, ento viria o reino dos falsos deuses e dos pequenos senhores que se fariam sagrar em espectculos, enquanto os gurus se alimentariam das nossas nos-talgias e os negociantes de parasos artificiais proporiam outros meios de

    56 Jean Cazeneuve, Et siplus rien n 'tait sacr..., pp. 15 e 16.57 Jean Cazeneuve, Et siplus rien n'tait sacr..., pp. 226 e 232; Yves Barel, La

    Socit du Vide, Paris, Seuil, 1984; Gilles Repel, La Revanche de Dieu, Paris, Seuil, 1991.

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  • Antnio Teixeira Fernandes

    evaso. Na verdade, se nada mais fosse sagrado, sobre que coisa repousa-riam as foras da reflexo?58. Nesta perspectiva, se colocam as principais buscas do sagrado.

    Se, no passado, a religio constitua um campo, onde o padre era detentor do monoplio da manipulao legtima dos bens de salvao, actualmente existe um conjunto de campos e todos fazem parte de um novo campo de lutas pela manipulao simblica da conduta da vida privada e pela orientao da viso do mundo, manipulando a estrutura da percepo do mundo. Nas sociedades contemporneas, assiste-se a uma redefinio dos limites do campo religioso, dissoluo do religioso num campo mais largo, campo mais abrangente de manipulao simblica. A Igreja, na sociedade tradicional, possua o monoplio da manipulao legtima dos bens de salvao, hoje, ao contrrio, o campo religioso encontra-se dissol-vido num campo de manipulao simblica mais larga59. Uma vez operada a dissoluo do religioso, introduz-se a concorrncia na oferta de sentido. Nas buscas de significao para a existncia, correspondentes quelas ofer-tas, se converte, em grande parte, o retorno do sa