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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html ARTIGOS ____________________________________________________________________________________ O SAGRADO NA SOCIEDADE DO SABER Renato Somberg Pfeffer * RESUMO: A partir da ilustração acreditava-se que o destino estava nas mãos do homem. Este era visto como criador das ciências e como dominador do universo. O processo de secularização foi conseqüência dessa transformação. O otimismo ilustrado previa, de forma geral, uma sociedade sem a necessidade de referenciais religiosos. Os ideais do Iluminismo acabaram demonstrando sua insuficiência ao deixar em segundo plano as questões últimas do ser humano, o que acabou se traduzindo na atual sociedade do saber em uma busca do sobrenatural. Esse artigo busca discutir a persistência e diversidade religiosa na sociedade contemporânea que colocaram em xeque a tese da secularização. São esses fenômenos religiosos marginais ou permanentes? Como explicar/compreender esse retorno á religiosidade? Está realmente o mundo contemporâneo em processo de reencantamento ou o desaparecimento do sagrado nas sociedades humanas sempre é uma impossibilidade radical? Palavras chave: sociedade do saber, secularização, reencantamento . THE SACRED IN THE KNOWLEDGE SOCIETY ABSTRACTS: From the illustration it was believed that fate was in the hands of man. The man was seen as the creator of science and as ruler of the universe. The secularization process was a consequence of this transformation. The illustrated optimism provided, in general terms, a society without the need of religious referentials. The Enlightenment ideals ended up demonstrating their failure when they didn’t give importance to the ultimate questions of human being. Such fact turned out to be translated into the actual society of knowledge in search for the supernatural. This article aims to discuss the religious persistence and diversity in contemporary society which put into check the secularization thesis. Are these religious phenomenal marginal or permanent? How to explain/understand this return to the religiosity? Is the contemporary world in process of re-enchantment or the disappearance of the sacredness in human societies has always been a radical impossibility? Keywords: knowledge society, secularization, re-enchantment A sociedade do saber, a questão das identidades e a religião O final do segundo milênio tem sido marcado por grandes transformações. A revolução tecnológica, centrada em tecnologia da informação, está remodelando a base material da sociedade. Llano (2000) afirma que vivenciamos uma sociedade do conhecimento na qual a energia dos talentos humanos é incomparavelmente superior à força da matéria e a todas as suas transformações. O colapso dos regimes totalitários marxista-leninistas gerou o fim da Guerra Fria. O próprio capitalismo tem passado por um processo de reestruturação: * Doutor em Filosofia pela Universidade Complutense de Madri com título revalidado pela UFJF em Ciência da Religião, mestre em Sociologia pela UFMG, pós-graduado em História do Brasil pela Pucminas, graduado em Jornalismo pela UFMG e História pela FAFI-BH. Professor Adjunto do Ibmec- MG. E-mail: [email protected]

O SAGRADO NA SOCIEDADE DO SABER Renato Somberg Pfeffer · da atual sociedade a economia interconectada, a transformação do trabalho e da organização da produção, a destruição

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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html

ARTIGOS ____________________________________________________________________________________

O SAGRADO NA SOCIEDADE DO SABER

Renato Somberg Pfeffer*

RESUMO: A partir da ilustração acreditava-se que o destino estava nas mãos do homem. Este

era visto como criador das ciências e como dominador do universo. O processo de secularização

foi conseqüência dessa transformação. O otimismo ilustrado previa, de forma geral, uma sociedade sem a necessidade de referenciais religiosos. Os ideais do Iluminismo acabaram

demonstrando sua insuficiência ao deixar em segundo plano as questões últimas do ser humano,

o que acabou se traduzindo na atual sociedade do saber em uma busca do sobrenatural. Esse artigo busca discutir a persistência e diversidade religiosa na sociedade contemporânea que

colocaram em xeque a tese da secularização. São esses fenômenos religiosos marginais ou

permanentes? Como explicar/compreender esse retorno á religiosidade? Está realmente o mundo contemporâneo em processo de reencantamento ou o desaparecimento do sagrado nas

sociedades humanas sempre é uma impossibilidade radical?

Palavras chave: sociedade do saber, secularização, reencantamento

.

THE SACRED IN THE KNOWLEDGE SOCIETY

ABSTRACTS: From the illustration it was believed that fate was in the hands of man. The man

was seen as the creator of science and as ruler of the universe. The secularization process was a

consequence of this transformation. The illustrated optimism provided, in general terms, a society without the need of religious referentials. The Enlightenment ideals ended up

demonstrating their failure when they didn’t give importance to the ultimate questions of human

being. Such fact turned out to be translated into the actual society of knowledge in search for the supernatural. This article aims to discuss the religious persistence and diversity in contemporary

society which put into check the secularization thesis. Are these religious phenomenal marginal

or permanent? How to explain/understand this return to the religiosity? Is the contemporary world in process of re-enchantment or the disappearance of the sacredness in human societies

has always been a radical impossibility?

Keywords: knowledge society, secularization, re-enchantment

A sociedade do saber, a questão das identidades e a religião

O final do segundo milênio tem sido marcado por grandes transformações. A

revolução tecnológica, centrada em tecnologia da informação, está remodelando a base

material da sociedade. Llano (2000) afirma que vivenciamos uma sociedade do

conhecimento na qual a energia dos talentos humanos é incomparavelmente superior à

força da matéria e a todas as suas transformações.

O colapso dos regimes totalitários marxista-leninistas gerou o fim da Guerra

Fria. O próprio capitalismo tem passado por um processo de reestruturação:

* Doutor em Filosofia pela Universidade Complutense de Madri com título revalidado pela UFJF em

Ciência da Religião, mestre em Sociologia pela UFMG, pós-graduado em História do Brasil pela

Pucminas, graduado em Jornalismo pela UFMG e História pela FAFI-BH. Professor Adjunto do Ibmec-

MG. E-mail: [email protected]

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flexibilidade de gerenciamento, descentralização e organização das empresas em rede,

enfraquecimento dos movimentos sindicais, esfacelamento do welfare state e a

integração global de mercados. Magallón (2000) aponta como câmbios mais relevantes

da atual sociedade a economia interconectada, a transformação do trabalho e da

organização da produção, a destruição e criação de empregos que exigem novas

competências. O coroamento dessas mudanças bruscas é o sentimento de ameaça que

paira sobre o ser.

Corbí (1992) afirma que a atual sociedade vive da inovação. A princípio esse

movimento é científico e tecnológico; aos poucos, ele atinge o campo organizativo,

social e axiológico. Dentre as principais características da atual sociedade da inovação,

ele destaca as transformações científico-tecnológicas que modificam o tipo de trabalho,

as organizações, os valores sociais, as estruturas político-sociais e a religião. A

sociedade move-se em um sistema complexo no qual ainda intervém a liberdade do

indivíduo e a dos grupos. Esse novo sistema social com seu sistema de valores

(globalidade, simbiose, interdependência entre pessoas) é gerado por forças que partem

do velho sistema (exploração, dominação, intolerância). Onde estamos e para onde nos

pode conduzir a nova Revolução Industrial? Que impacto podem ter as novas

tecnologias na vida social?

As grandes transformações sociais da atual sociedade têm aumentado as

oportunidades individuais de acesso à informação e ao saber. Isso implica a necessidade

de modificar competências e sistemas de trabalho. Aumenta a incerteza de todos e cria

situações de exclusão intoleráveis. As mudanças não são homogêneas. Ao contrário,

acentua-se o desenvolvimento desigual entre os setores dinâmicos e os estagnados da

sociedade. Assiste-se a uma discussão permanente sobre o advento da sociedade da

informação, a globalização dos intercâmbios e a aceleração da revolução técnico-

científica. O fomento à cultura científica e a busca de normas éticas para o novo mundo

são assuntos permanentes no meio acadêmico e político. Dentre os desafios que são

apontados, destaca-se a necessidade de capacitar o indivíduo para compreender

situações complexas. Do contrário, existe o risco de divisão entre os que sabem e os

que não sabem.

A desestruturação das organizações, o enfraquecimento de movimentos sociais e

a efemeridade cultural têm ocorrido de forma paralela à formação de redes globais.

Paradoxalmente, a tendência de nossos tempos é a construção da ação social e das

políticas em torno de identidades primárias, em uma busca ansiosa por significado e

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espiritualidade. Nesse contexto, a busca da identidade religiosa está se tornando uma

das principais fontes alternativas de significado. Os indivíduos sentem-se perdidos neste

mundo de intensa flexibilidade e mudança. A simultaneidade entre globalização e

fragmentação levanta a questão da conciliação entre o global e a identidade.

Em um mundo de fluxos globais de riqueza poder e imagens, a busca

de identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se

a fonte básica de significado social. (CASTELLS, 1999, p. 35).

Numa sociedade pós-industrial em que os serviços culturais substituíram os bens materiais no cerne da produção, é a defesa da

personalidade e cultura do sujeito contra a lógica dos aparatos e

mercados que substitui a ideia de classe. (TOURAINE, apud CASTELLS, 1999, p. 35).

Esse fato relaciona-se à falência de um projeto ilustrado que transformou o ser

em ter. Tecnologia, progresso e racionalismo eram vistos de forma inseparáveis e como

solução para todos os problemas da humanidade. Já as questões éticas e sociopolíticas

eram colocadas em segundo plano. Do ponto de vista da economia e da produtividade, o

projeto ilustrado foi um sucesso, ao menos para os integrados na rede global. Seu

malogro se dava quando a ciência se mostrava incapaz de responder às grandes questões

existenciais do ser humano. A própria filosofia ocidental também fracassou ao

enveredar-se por ideais políticos que se esfacelaram. Outro ramo dessa mesma filosofia

se afundou em uma angústia existencialista. Em suma, as teodicéias religiosas que

orientavam a humanidade no período pré-moderno sucumbiram e não encontraram

substitutos à altura.

A modernidade nos deu a ciência, mas não a sabedoria para controlar os riscos

da tecnologia, os perigos ecológicos, os grupos de poder, a desigualdade social ou a

manipulação consumista. “El fruto de todas estas contradicciones es el sujeto robotizado

y heterodirigido, que a la postre se siente estafado, y que ha perdido su identidad.”

(RIESGO, 1997, p. 282). A reação desse sujeito é o individualismo e o narcisismo pós-

moderno.

Ao contrário das sociedades estáticas que fazem sempre o mesmo, e para as

quais o futuro é sempre a repetição do passado, a sociedade dinâmica vive de inovar, e o

futuro se decide no presente. É preciso que se avalie qual futuro é possível construir em

uma sociedade dinâmica. A falência do projeto ilustrado nos deixou órfãos e sem um

projeto toda inovação perde o sentido. Corbí (1992) levanta três questões básicas para

se delinear o futuro: 1) O que se poderia construir? 2) O que seria desejável? 3) O que

se deveria evitar?

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As novas tecnologias nos tornaram gestores do planeta Terra, mas não nos

proporcionaram princípios morais para sabermos o que fazer com a humanidade e com

o planeta. Os princípios do velho sistema – exploração para proveito imediato e

sobrevivência dos mais fortes – não valem mais em um mundo em que a tecnologia

dotou o homem de tanto poder. Se somos cientes do nosso poder de destruição,

devemos também admitir que podemos criar nossos próprios valores. “Nuestra

naturaleza es decidir por nosotros mismos nuestro propio destino, nada ni nadie nos

evita o nos mitiga esa responsabilidad” (CORBÍ, 1992, p. 13). Conhecemos e

controlamos as forças físicas e biológicas. Resta a tarefa de controlar as forças sociais

que comandam nosso sistema de valores. A necessidade de reconstrução de uma outra

identidade, outro projeto, outro sistema de valores se torna premente para o homem se

situar no mundo. Nessa busca, uma nova religiosidade tem-se tornado uma das maiores

forças de segurança pessoal e mobilização coletiva. Os desconectados passam a negar a

racionalidade oferecida pela tecnologia. Novos universos simbólico-religiosos têm sido

construídos ou se mantido sobre a civilização da tecnologia. Na atual sociedade

marcada pelo alto índice de desumanização, essa reação paradoxal de reencantamento é

uma busca de respostas para as perguntas últimas. A crise da razão instrumental faz o

homem buscar em uma dimensão sagrada um norte orientador.

Ao contrário daquilo que os pensadores do século XIX imaginavam que

aconteceria, o mundo contemporâneo não está assistindo ao fim do sagrado, nem a

morte da religião. O mundo de hoje não é menos religioso que o de ontem. A religião,

na verdade, é um pré-requisito funcional sem o qual as sociedades humanas não

existiriam. Um dos aspectos que diferencia o homem dos demais animais é a pintura e a

sepultura como signos de espiritualidade, de vida interior. A sepultura e os ritos

constituem o processo de humanização, o amanhecer da consciência que enfrenta a

realidade. Este é o momento em que o homem questiona seu destino biológico. Esta

autoconsciência de si e a noção de futuro permitem ao ser humano fazer projetos a

longo prazo, de ter esperança. Por outro lado, significa ter medo ao ter consciência de

suas limitações, de nossa finitude. Como disse Arsuaga: “La capacidad mental superior

era un regalo envenenado” (ARSUAGA, 1999, p. 301). Apesar de fascinante, a aventura

humana torna-se dramática ao tornar inevitável o enfrentamento do homem com o mal.

Na tarefa de fazer-se a si mesmo, o ser humano se revela como inconcluso e

sempre por terminar. A cada verdade alcançada, novos interrogantes se colocam. Ao

procuramos ser melhores, constatamos nossas incoerências morais. Somos seres

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desajustados e, porisso, insatisfeitos. Ricoeur chamou a isso de “in coincidencia”

(RICOEUR, 1982, p. 25) que tem por fundamento a desproporção entre a finitude de

nosso ser e o infinito de felicidade que aspiramos. Riesgo levanta o seguinte

questionamento:

La causa de ese estado de no plenitud, de esa situación de exilio, de

desproporción intrínseca entre lo que es y lo que desea ser, que

caracterizan al ser humano, no será la presencia oculta y convocante

de Dios mismo? Esa insaciabilidad humana no tendrá como causa oculta la presencia de lo Absoluto en lo más profundo de su ser, que le

convoca y le llama a través de todos los proyectos y mediaciones que

asume? (RIESGO, 2002, p. 98).

Esta desproporção interior do ser humano origina uma atitude transcendente que

é a essência da atitude religiosa. Esta atitude, por sua vez, é expressa de formas

diferenciadas: a atitude teológica cristã, a submissão total do fiel islâmico, na realização

da identidade com o absoluto do bramanismo, a entrega de si em correntes personalistas

hinduístas, na extinção do sujeito que representa a libertação budista.

Na vida dos indivíduos aparecem situações e experiências atípicas, onde a ordem

e o sentido da vida cotidiana parecem desaparecer. Emerge aí a ameaça do caos. Esta

ameaça se origina do descompasso entre nossos desejos e a realidade da experiência.

“El mal es esa experiencia que nos parece sin sentido y rechazable, aunque alcancemos

una explicación científica de la misma”. (RIESGO, 1997, p. 37). Cabe ao universo

simbólico religioso enfrentar esta experiência buscando interpretações que nos ajudem

assumir o mal com um mínimo de coerência. As teodicéias religiosas objetivam um

cosmos sagrado tentando manter o indivíduo em um mundo com sentido ao explicar as

desgraças, catástrofes, mortes... Berger (1971) afirma que a religião legitima situações

marginais em termos de uma realidade sacra. Sem isso, seria impossível ao indivíduo

continuar existindo ao passar por situações limites. Em síntese, o universo simbólico da

religião proporciona sentido para a vida nos remetendo a uma instância sagrada que nos

transcende.

A religião nos ensina, mesmo com suas diferentes manifestações, quais os

problemas humanos fundamentais. Sejam verdadeiras ou não, as crenças religiosas

tentam responder perguntas que o homem se faz mais cedo ou mais tarde.

Independentemente da existência de Deus, a religião continuará a existir, pois ela

responde a necessidades humanas. “Así como la economía enfoca el problema de la

escasez, podemos decir que la religión enfoca el problema del mal: sin mal no hay

religión” (PARSONS, 1968, p. 94).

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O que é, afinal, o sagrado?

Durkheim (1985) buscava a origem da religião na distinção entre o profano e o

sagrado. Uma religião seria um sistema solidário de crenças e práticas relativas às

coisas sagradas, quer dizer, separadas, proibidas, crenças e práticas que unem em uma

mesma comunidade moral, chamada Igreja, a todos os que aderem a ela. A definição

durkheimniana aponta para dois elementos básicos em uma religião: 1) uma crença no

sagrado que não implica, necessariamente, em uma referência a fatos sobrenaturais ou a

uma divindade; 2) o aspecto social desta crença, seu compartilhamento por uma

coletividade. A religião, portanto, não é uma ilusão ou neurose. A força religiosa é

sentimento que a coletividade inspira em seus membros e é objetivado em algo

considerado sagrado.

O’Dea (1969) afirmava que a experiência religiosa era uma resposta a eventos

experimentados como sagrados. O sagrado é radicalmente distinto e superior em poder e

dignidade ao profano. Esta distinção está na origem das formulações teológicas que

dizem como o mundo visível se relaciona com o sagrado. A crença na existência do

sagrado se mantém mediante práticas rituais que mantém vivo o sentimento religioso.

Os rituais ainda fazem o indivíduo aderir a certas normas de conduta e renovam o

sentido de pertencer a um grupo. Ou seja, a religião possui uma função de coesão social.

A fenomenologia da religião, por sua vez, procurou uma interpretação

globalizante capaz de desvelar o caráter específico do religioso a partir de suas

multifacetadas manifestações históricas. Esta compreensão exigiu uma metodologia

hermenêutica do fato humano religioso. Observação e dedução lógica deveriam ser

complementadas pela intuição para compreensão da intenção dos sujeitos envolvidos.

Esta metodologia utilizada de forma comparativa seria capaz de eliminar os elementos

espúrios e destacar os elementos genuínos das manifestações religiosas.

Os fenomenólogos entendem o sagrado como âmbito da realidade em que se

inscrevem todos os fatos religiosos singulares. Ou então, a matriz da qual procedem as

manifestações originárias das intenções e fins da religiosidade. O sagrado abarca as

mediações materiais e subjetivas das atitudes religiosas. Ele compreende atos e objetos

religiosos. “Lo sagrado como orden de realidad implica no sólo una peculiar referencia

del hombre a lo real, sino también un ‘clima’, una ‘atmósfera’ de significación y de

valor” (RIESGO, 1997, p. 55). O âmbito do sagrado supõe uma ruptura com a vida

cotidiana. Esta ruptura de nível necessária para se experimentar o sagrado se expressa

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por disposições interiores e por ações exteriores que dão acesso ao sobrenatural.

Rudolf Otto (1980) tenta justificar a religião a partir da vivência religiosa,

entendendo-a como uma predisposição interior para experimentar o numinoso, que é

descrito como o santo, temível e fascinante. Esta vivência religiosa seria condição de

possibilidade e lugar onde o santo se manifesta. A teoria de Otto desafia a percepção

meramente antropológica e centra a reflexão sobre a possibilidade de apreender a

essência da religião através da razão. Indo além de Kant que havia declarado que os

limites de sua filosofia crítica abriam caminho para fé, Otto considera a existência do

sentimento entre o saber e a fé. Através do estudo deste sentimento que ele busca

aprender a essência da religião. O sentimento religioso baseado na noção do sagrado é

um a priori que não pode fazer referência à experiência. O numinoso é a categoria do

sagrado aparecendo como sentimento específico que nos remete a condição de nos

sentirmos criados. A experiência do sagrado é um sentimento de espanto, terrível e

irracional frente a este poder superior. Tal experiência não pode reduzir-se a esquemas

racionais ou expressar-se em linguagem discursiva.

O sagrado se define por esta transcendência que é captada por um sentimento

específico de caráter não racional. Este sentimento se expressa no temor, na entrega de

si mesmo, na admiração. Por outro lado, a partir da razão pura, os fenomenólogos

concebem-no como uma disposição originária do espírito. Em síntese, o

desenvolvimento religioso da humanidade tem por base um complexo jogo de

elementos racionais e irracionais. A estas experiências e manifestações que dão

testemunho desta ruptura de nível chamamos de sagrado. O que determina o

estabelecimento deste âmbito é o mistério. “El misterio es lo que tienen en común todas

las formas de divinidad, es decir, todas las configuraciones que el sujeto ha dado de lo

que es el término de su actitud religiosa” (VELASCO, 1982, p. 112). O mistério é

santidade augusta que deixa o homem ciente de seus pecados. Ao mesmo tempo que

assusta, o mistério maravilha a humanidade por ser sublime.

O sagrado designa tudo aquilo que é venerado pelos homens e deixa patente a

consciência de que o ser humano é finito. O sagrado exige uma resposta que é

concretizada nos cultos. No culto são manifestos atitudes de submissão,

reconhecimento, reverencia, temor frente ao sagrado. O sagrado remete a algo último e

secreto, algo de índole divino ou sobrenatural. A origem do termo comporta uma noção

de separação, transcendência. Heidegger (1972) assinala que o sagrado não o é por ser

divino, senão que o divino é divino pelo fato de ser sagrado, quer dizer, separado. Esta

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separação do sagrado é o que o opõe ao profano. O templo é o lugar do sagrado, o que

está fora dele é profano. O sagrado ainda dá origem a objetos, a um espaço e tempo

distintos do profano. O sagrado seria para Otto uma “categoria composta” (OTTO,

1980, p. 113): um aspecto racional e outro metarracional. O numinoso (o aspecto

metarracional) seria institucionalizado no devir histórico. O terror que o sagrado inspira

transforma-se em devoção e em comportamento moral.

O sagrado tem proliferado desordenadamente em um cenário internacional

marcado por sociedades multiculturais cada vez mais complexas. Como

explicar/compreender a trama proporcionada pelo sagrado na atual sociedade? No esteio

da corrente iluminista, Weber (1967) defendeu uma racionalização progressiva da

humanidade, um processo de desencanto do mundo. A sensibilidade humana ao sagrado,

nessa perspectiva, estaria em via de desaparecimento. A persistência e diversidade

religiosa na sociedade contemporânea colocou em xeque essa hipótese. Seriam os atuais

fenômenos religiosos marginais ou permanentes? Como explicar esse “retorno” ao

religioso? Estaria o mundo em processo de reencantamento ou o desaparecimento do

sagrado nas sociedades humanas seria uma impossibilidade radical? A sensibilidade ao

sagrado é algo intrínseco ao ser humano ou condicionada pela História sendo passível

de desaparecimento?

O projeto protestante e a racionalidade contemporânea

Os pensadores iluministas, em sua maioria, acreditavam que as religiões

desapareceriam por não passarem de crenças irracionais. A ciência e o racionalismo

provocariam um processo de secularização. Na época moderna, esse termo designava

processos de laicização, fenômeno histórico verificável. Indicava a passagem de um

clérigo regular ao estado laical ou a perda de um território por parte do poder eclesial.

Do campo político-jurídico, o termo se transformou em filosófico-ideológico no século

XIX e passou a significar uma ação política que visava reduzir a influência da Igreja na

vida social. Dadas às ambigüidades que o termo suscita, Weber (1956, 1982) preferiu a

expressão desencanto do mundo para explicar esse processo de racionalização.

Weber acredita que o processo de desenvolvimento do capitalismo, desde o

início, teria sido um processo de racionalização que promoveu formas racionais de

organização da vida política, religiosa, jurídica, educacional e outras. Um processo

contínuo de burocratização visando ao aumento da produtividade e do lucro. O

desenvolvimento científico-tecnológico revela-se como condição e produto desse

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processo mais amplo de racionalização. “O que o capitalismo criou, em definitivo, foi a

empresa duradoura e racional, a contabilidade racional, a técnica racional, o direito

racional; a tudo isso haveria que acrescentar a ideologia racional, a racionalização da

vida, a ética racional na economia” (Weber, 1956, p. 298). Esse padrão burocrático

racional legal salta da Europa aos Estados Unidos e se estende, de forma bastante

contraditória, ao restante do mundo.

A expansão desse padrão de dominação em sociedades não capitalistas acaba

provocando uma convivência com outras formas de dominação. À medida que se

expande, o capitalismo transforma as formas tradicionais de organização produtiva e da

vida sociocultural. As formas de dominação tradicional e carismática vão sendo,

paulatinamente e num processo sujeito a retrocessos, substituídas pela racional legal. O

que parecia exclusivo do projeto protestante europeu e norte-americano revela-se

compatível com o resto do mundo. A empresa, o mercado, o planejamento, as técnicas

de produção e controle, a lucratividade, tudo articulado à racionalidade capitalista.

Todas as tribos, nações e nacionalidades do mundo foram envolvidas pelo processo de

organização da produção e da vida social do capitalismo.

Nesse contexto, o contraponto religião-capitalismo, estudado por Weber (1967),

passa a interessar. Essa relação não é abstrata; desenvolve-se no bojo de relações que

constituem a sociedade. Weber considera a religião uma dimensão privilegiada da

cultura, seu elemento nuclear. O estilo de vida envolvido na religião corresponde às

dimensões essenciais da cultura. Por meio da religião poder-se-ia vislumbrar os projetos

humanos.

Weber se perguntava em que medida as concepções religiosas têm influenciado o

comportamento econômico das diferentes sociedades. Para responder essa questão, ele

buscava demonstrar em primeiro lugar que a conduta dos homens nas diversas

sociedades só pode ser compreendida dentro da concepção geral que esses homens têm

da existência. A interpretação dos dogmas religiosos é parte integrante da visão de

mundo e esses dogmas são fundamentais para compreensão da ação dos indivíduos e

dos grupos. Ou seja, os projetos moldam as ações; Em segundo lugar, Weber defendia

que as concepções religiosas são um dos determinantes da conduta econômica e,

portanto, uma das causas da transformação social. A hipótese aventada por Weber é que

certo projeto protestante - o ascetismo calvinista - teria favorecido a formação do

capitalismo. Dentre as características da visão religiosa calvinista que teriam favorecido

o capitalismo, ele destaca: 1. O calvinismo excluía o misticismo e era anti-ritualista. Era

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favorável, portanto, ao desenvolvimento da investigação científica; 2. A predestinação

provoca angústia já que a salvação é incerta. A inclinação do calvinista é procurar no

mundo sinais da escolha divina, em especial, o êxito econômico; 3. A teologia calvinista

favorece o individualismo. Cada um de nós está só perante Deus. O trabalho racional e

constante passa a ser visto como um mandamento divino; 4. A ética calvinista convida o

crente a adotar uma atitude ascética.

O capitalismo poderia ser visto inicialmente como uma singularidade européia,

influenciada pelo projeto protestante. Posteriormente, a civilização capitalista ocidental

mundializa sua racionalidade e elimina a possibilidade de qualquer outro sistema. Tal

projeto teria possibilitado a formação de organizações sistêmicas que expressam a

racionalidade instrumental predominante no capitalismo.

O sistema econômico capitalista, com sua calculabilidade, levou o

controle burocrático ao seu mais extremo desenvolvimento. Max

Weber observou que quanto mais desumanizada se torna a burocracia, melhor desenvolve as características valorizadas pelo capitalismo. As

suas técnicas tornam-se mais refinadas, quanto mais eliminam das

ocupações oficiais o amor, o ódio e todos aqueles elementos puramente pessoais, irracionais e emocionais que desafiam o cálculo.

(JACOBY, 1976, p. 148-149).

O pensamento de Weber, em síntese, tem como base o conceito de racionalidade.

Ele é a matriz de sua teoria da História. Essa é uma história universal, construída a

partir da singularidade do Ocidente.

No estudo de qualquer problema da história universal, um filho da moderna civilização européia sempre estará sujeito à indagação de

qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de na

civilização ocidental, e somente na civilização ocidental, haver

aparecido fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e significado. (WEBER,

1967, p.1).

Nesse universo predomina o princípio da quantidade; um paradoxo, se

lembrarmos o princípio da qualidade, presente no ascetismo protestante do capitalismo

inicial. Ao longo da História, o projeto ascético protestante parece perder lugar para o

hedonismo consumista. As novas relações sociais e as forças de mercado exigem uma

secularização dos ideais fundadores do capitalismo. Uma reestruturação do projeto

inicial que se consolidará com a ilustração.

Weber afirmava que o ponto de partida da história religiosa da humanidade é o

mundo povoado de sagrado. Seu ponto de chegada, nos dias de hoje, é o

desencantamento do mundo. O mundo capitalista é feito de matéria destinada a ser

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utilizada, transformada, consumida. Um mundo sem carisma. “Neste mundo material,

desencantado, a religião tem que se retirar para a intimidade da consciência, ou escapar

para além de um Deus transcendente e um destino individual depois da existência

terrena”. (ARON, 1999, p. 487). Esse processo de racionalização irreversível é visto por

Weber como resultado de processos contraditórios, sujeitos à estagnação e ao declínio.

A secularização, da mesma forma, seria irreversível e estaria sujeita aos mesmos

processos.

A crítica da irreversibilidade da secularização

Apesar de Weber prever momentos de declínio ou estagnação no processo de

secularização, ele não abandona a ideia central de sua obra: o capitalismo estaria

consolidando, de forma irreversível, um mundo racionalizado e sem magia. Seguindo o

paradigma weberiano, Acquaviva (1971) acredita que a secularização é uma

conseqüência da racionalização, que representava o triunfo da racionalidade

instrumental no Ocidente. O desaparecimento do sagrado é um fenômeno que não pode

ser detido.

Bell (1996) discorda dessa posição ao afirmar que o termo secularização

mistura processos diferentes: a mudança nas instituições e nas crenças. Seria correto

afirmar, segundo ele, que a religião perdeu boa parte de sua autoridade institucional na

atualidade, já que ela não pode mais impor limitações à vida privada. Por outro lado, a

modernidade tem apresentado muitos caminhos às religiões estabelecidas. Elas se

multiplicam e renovam. Novos cultos e novas crenças são uma característica destes

tempos. O homem continua buscando respostas e significados para questões existenciais

que estão além do mundano, como a morte, a tragédia, o sofrimento.

Bell (1976) ainda ressalta a existência de duas grandes eras axiais. Nos milênios

que antecederam Cristo surgiu a primeira que foi a sede de sentido espiritual e religioso

no homem, criando ideais e promessas permanentes. A segunda era teve início nos

últimos dois séculos e foi marcada por um substrato tecnológico capaz de criar bens e

serviços. A tecnologia e todos os seus poderes não pôde, no entanto, substituir os

deuses.

O futuro incerto do homem continua a angustiá-lo. A crise das religiões

tradicionais, aliada à da ciência e à da tecnologia, deixou o homem saudoso do absoluto.

Uma alternativa à angústia, buscada pelo homem ocidental na última década, parece ter

sido o que Steiner chama de “los cultos de la insensatez, las histerias organizadas, el

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obscurantismo” (2001, p. 87). Ele considera que essa alternativa representa uma

ausência de maturidade trágica e não consegue “mantener la calma” (2001, p. 87)

perante ela.

A existência desses cultos são inegáveis no mundo contemporâneo em termos de

dinheiro, de pessoas envolvidas, de literatura produzida. Vivemos num mundo infectado

de magia: astrologia, crença em OVNIS, estudo de fenômenos telepáticos, grafologia,

quiromancia, jogos de tarô, fenômenos mediúnicos, percepção extra-sensorial, vozes do

Espírito Santo... Ergueu-se sobre esses temas uma pretensão pseudocientífica para

explicar esses fenômenos considerados por muitos misteriosos. O homem moderno está

envolvido em uma rede de forças sobrenaturais. Steiner afirma que tais movimentos

exploram os medos e as misérias humanas.

Além dos fenômenos sobrenaturais e das provas supostamente científicas de sua

existência, outra esfera que domina o mundo ocidental é o orientalismo. Idealizam-se

valores estranhos à tradição ocidental: uma teosofia do eterno retorno toma o lugar de

uma teodicéia do progresso histórico; o transe meditativo substitui o raciocínio lógico.

Tal atitude caracteriza uma espécie de crítica aos próprios valores históricos do

ocidente.

Essas correntes mágicas são sintomas da contemporaneidade. Quais suas causas?

Steiner (2001) busca a origem desses movimentos na crise de confiança da cultura

ocidental no século XX, o que teria provocado um ataque de nervos generalizado. Um

fracasso, originado na crise da religião organizada e nos erros das predições

racionalistas. A volta à religiosidade parece ser uma tentativa de encher um vazio. Por

trás do sobrenatural, está a nostalgia do absoluto, a fome do transcendente. Essas

teologias pós-religiosas são alternativas que o homem ocidental encontrou para saciar

sua fome de absoluto. Ao considerá-las apenas ilusões, porém, Steiner deixa se levar

pelo preconceito.

Martelli (1995) afirma que o conceito de secularização varia conforme a

valoração que se dava à religião e à irreversibilidade do processo. Ele aponta uma

tipologia, partindo dos usos correntes do conceito: secularização como libertação da

alienação religiosa como descristianização da sociedade e como purificação da fé cristã

a fim de conciliá-la com a modernidade. Essas três concepções do termo secularização

têm como pressuposto a existência de um processo histórico unilinear e irreversível da

modernidade, que implica o declínio da religião. Martelli coloca em questionamento

esse “mito moderno” (MARTELLI, 1995, p. 278) e aponta para a possibilidade da

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reversibilidade da secularização como um quarto tipo. A contemporaneidade estaria

assistindo a um retorno ao sagrado.

Esses movimentos religiosos, no entanto, poderiam ser considerados fenômenos

marginais que tenderiam a desaparecer com a modernização e a racionalização. Por esse

prisma, eles seriam encarados como uma reação à modernidade. Nessa linha de

raciocínio, a obra de Wilson (1981) defende a tese de que o despertar do sagrado não

desafia a secularização e é uma forma marginal em setores limitados do sistema social.

Mas como explicar o fato de que esses movimentos têm surgido até mesmo nas

sociedades avançadas do Ocidente?

Para explicar essa questão, Wilson difere os movimentos de caráter messiânico

típicos do Terceiro Mundo surgidos como reação ao imperialismo, dos novos

movimentos religiosos, característicos das sociedades avançadas. O messianismo porta

uma nova ética social que é interiorizada pelo crente graças ao seu apelo emocional.

Essa ética favorece o avanço do racionalismo e seria benéfica para a ordem econômica,

em um processo semelhante ao papel desempenhado pelo ascetismo protestante no

desenvolvimento do capitalismo, estudado por Weber (1967). Os movimentos religiosos

da sociedade ocidental desenvolvida, por outro lado, encaram a salvação como fruto de

um conhecimento secreto, místico, que libera as potencialidades do eu. Esses

movimentos misturam a tradição e a modernidade e fascinam por seu exotismo. São

formas de adaptação à sociedade secularizada, que oferecem aos sujeitos mais

segurança que as Igrejas tradicionais. Em suma, o despertar religioso, do Terceiro ou do

Primeiro Mundo, não se opõe ao processo de secularização. No Primeiro Mundo, ele

representa uma adaptação da religião à sociedade moderna; no Terceiro, favorece a

racionalização.

Se contrapondo a teses com a de Wilson e defendendo o despertar religioso

como desafio à secularização estão diversos autores: Westley (1983) sublinha as funções

integradoras da religião numa perspectiva durkheimniana; Bellah e Glock (1976)

sustentam que esses movimentos preenchem os espaços abertos pela crise da civil

religion dos Estados Unidos; Stark e Baindridge (1985) apontam para as necessidades

não satisfeitas após a crise das religiões tradicionais que teriam sido preenchidas por

seitas; Greeley (1975) sustenta que a secularização nada mais é que a busca de uma

religião mais purificada na sociedade secular; Filoramo (1986) propõe um processo

pendular entre sacralização e dessacralização como característica intrínseca da história

das religiões.

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Para esses pensadores a concepção unilinear e progressiva da secularização

como decorrência de uma racionalização oniabrangente no mundo ocidental hoje está

ultrapassada. O despertar religioso das sociedades contemporâneas – inclusive as de

Primeiro Mundo - falsificou essa teoria. Teses como a de Wilson esbarram na

unilinearidade e no evolucionismo, quando analisam o processo de secularização.

Formas seculares e sacras convivem no mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em

que formas religiosas tradicionais convivem com movimentos de caráter mais esotérico.

O ponto de vista weberiano parece sucumbir ante os fatos históricos.

Explicando a religiosidade contemporânea

Partindo do princípio de que o renascer religioso é uma constatação empírica da

contemporaneidade, a Sociologia tem produzido uma série de trabalhos que buscam

explicar esse fenômeno. Beckford (1990), por exemplo, estuda os movimentos

religiosos de forma interligada às mudanças sociais sob uma perspectiva

macrossociológica. Ele defende que a religiosidade prolifera em períodos de mudanças

aceleradas. Buscando esse nexo, ele aponta o papel desempenhado pelos novos meios

de comunicação para dar visibilidade aos movimentos religiosos e analisa as mudanças

demográficas, sociais e culturais do pós-guerra, que constituíram um tipo de audiência

disposta a ser adepta, bem como o papel desempenhado pelos EUA para o crescimento

desses movimentos na Europa. Beckford não consegue, no entanto, estabelecer

adequadamente a relação entre o plano macro e o microssociológico. Fatores

macrossociológicos, por si sós, são insuficientes para explicar as mudanças em uma

sociedade tão diferenciada.

A partir de uma leitura microssociológica, Baechler (1996) defende que a

religiosidade pode ser concebida como resposta a determinadas necessidades subjetivas

humanas; algumas de natureza material, pois todo projeto humano está sujeito a

incertezas, e outras de natureza cognitiva, na medida em que o ser humano sempre se

pergunta por que as coisas são do jeito que são. Esta segunda necessidade se relaciona

também à busca da identidade em um mundo de intensa flexibilidade e mudança. O

sentimento de impotência diante do destino estaria criando a necessidade de

reconstrução de outra identidade na qual o indivíduo possa se situar no mundo. A

religião se reforça quando essas questões não são respondidas pela via racional. Uma

terceira necessidade humana apontada pelo autor é afetiva e não concorre com a ciência

na medida em que não existem respostas racionais para ela: o homem experimenta um

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tipo de mal que é ontológico. Esse mal existencial se diferencia da necessidade material,

que significa perder algo, ou da cognitiva, que quer compreender alguma coisa. A

angústia, o medo e a insegurança não são apaziguados pela reflexão racional. O homem

continua buscando respostas e significados para questões existenciais que estão além do

mundano.

Por outro lado, Baechler afirma que a religiosidade-misticismo também pode se

originar da busca do ser humano para se lançar no desconhecido. Esse fundamento

positivo do fenômeno religioso é definido por ele como um impulso que “impele o ser a

superar sua condição humana para se abrir a algo, imanente ou transcendente, que o

supera ao mesmo tempo em que o engloba” (BAECHLER, 1996, p. 452).

As reflexões de La Taille (2000) sobre o atual estado do espírito humano podem

servir de complemento às explicações de Beckford e Baechler para o reencantamento do

mundo. Para ele, o homem parece hoje senhor da natureza sem ser senhor de si mesmo,

de seu futuro. Essa crise de valores se associa ao fato de não termos mais tempo de

perguntar sobre o sentido da vida. Qual a raiz dessa crise? O autor afirma o fracasso da

parte não científica da filosofia ocidental. A ciência, sempre pragmática e utilitária,

conseguiu verdadeira revolução tecnológica. A Filosofia, por sua vez, teria enveredado

por ideais políticos, que acabaram fracassando total ou parcialmente: ela foi incapaz de

cumprir seu papel fundamental que é o de dar ao homem a lucidez para compreender o

momento atual.

Em seu livro “Nostalgia del absoluto”, Steiner (2001) vai além. Ele afirma que

os sistemas religiosos formais da sociedade ocidental entraram em crise nos últimos

dois séculos. As origens desse fato podem se situar no desenvolvimento do racionalismo

científico do Renascimento, no secularismo da ilustração ou, ainda, na tecnologia

moderna, oriunda da Revolução Industrial. Por essas e por outras razões, os sistemas

religiosos acabaram perdendo o controle sobre a sensibilidade e existência humanas.

Esse esgotamento das religiões tradicionais deixou imenso vazio, que foi campo para

novas energias e realidades substitutas. A história política e filosófica do Ocidente, nos

últimos dois séculos, poderia ser entendida como uma série de intentos de superar o

vácuo deixado pela Teologia. A “morte de Deus” (STEINER, 2001, p. 21-22), que

significou a decomposição de uma doutrina cristã globalizadora, deixou em desordem

as percepções de justiça social, de sentido da vida, de relações mente e corpo, de

conduta moral. Essas questões precisavam de novas respostas. Nesse contexto, os

séculos XIX e XX assistem ao nascimento de teologias substitutas ou mitologias.

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Steiner busca na Filosofia política de Marx, na Psicanálise de Freud e na

Antropologia de Levy-Strauss características dessa Teologia substituta. Marx anuncia a

redenção; Freud, o regresso à casa com a morte; Lévi-Strauss, o apocalipse provocado

pelos homens. Mitologias racionais, partindo da metáfora do pecado original (a

propriedade, o parricídio, o rompimento do homem com a natureza, respectivamente).

Intentos falidos de dar resposta universal à crise de sentido que afeta o homem

moderno. As promessas marxistas sobre o futuro da condição humana se mostraram

ilusórias e suas predições não se cumpriram. Pior, onde alcançou o poder com

promessas de liberação, o marxismo desembocou em terror burocrático. A Psicanálise

retrocedeu e não conseguiu eliminar as ilusões da religião tradicional, sendo hoje um

movimento dividido em dezenas de “igrejas”. A Antropologia de Lévy-Strauss nos

condena à extinção, o que ainda não ocorreu. O que Steiner tenta provar é que essas

teorias que se autodenominam científicas,

Reflejan directamente las condiciones establecidas por la decadencia de la religión y por una nostalgia del Absoluto profundamente

arraigada. Esa nostalgia, tan profunda, yo creo, en la mayor parte de

nosotros, fue directamente provocada por la decadencia del hombre y la sociedad occidental, por la decadencia de la antigua y magnífica

arquitectura de la certeza religiosa. (STEINER, 2001, p. 21-22).

A fome de mitos, de explicações totais, estaria na origem da busca de profecias

que dessem garantias. As supracitadas teriam fracassado. A ciência, em especial, não

saciou a fome do absoluto. Hoje percebe-se que progresso humano e ciência não são

sinônimos. Na verdade, sempre existiram vozes dissonantes em relação ao poder

absoluto da ciência: A tradição mística frequentemente insistiu na busca da verdade

além do alcance racional; a Igreja sempre afirmou que a verdade lhe pertencia; a Escola

de Frankfurt argumentou que a lei científica não era neutra porque expressava a visão de

mundo e os ideais políticos da classe dominante. A busca desinteressada da verdade –

sujeita à falsificação, à prova experimental, ao imperativo da lógica – nunca foi um fato

universal. Estas três forças citadas que contestam a verdade científica – a mística, a

religiosa e a político-dialética – se somam ao “pastoralismo anárquico de los

movimientos contraculturales de la actualidad” (STEINER, 2001, p. 120) na rebelião

contra a ciência.

Outra perspectiva de análise da crise moral pela qual passa a sociedade

contemporânea seria a marxista. Essa corrente de pensamento afirma que na atual

sociedade somos o que temos, não o que somos. O mercado transformou o ser em ter.

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Marx (1986) alertava para o fato de que, no mundo capitalista, valores antes

inalienáveis – amor, opinião, consciência, ciência, virtude – passaram a ser objeto de

troca. As relações se mercantilizaram. Todas as relações sociais passam a ser vistas

como troca, perdendo seu caráter de cooperação.

O “eterno presente” talvez seja um dos principais causadores da crise dos nossos

tempos. Hobsbawn afirmou em a Era dos extremos:

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que

vinculam nossa experiência pessoal às gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgrubes do final do século XX.

Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente

contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. (HOBSBAWN, 1995, p. 13).

A revolução tecnológica atual originou-se e difundiu-se em um período histórico

de reestruturação global do capitalismo, para qual foi uma ferramenta básica. Vive-se

em uma sociedade capitalista, da informação e do conhecimento. A busca da identidade,

em especial através da via religiosa, é tão poderosa neste novo mundo quanto a

transformação econômica e tecnológica. A condenação de Galileu pela Igreja, no início

dos tempos modernos, não se deveu apenas à teoria do heliocentrismo. Galileu fez

dúbias certezas que os homens cultivavam há séculos. Ele substituiu o dogma pelo

experimento, deixando o homem sem um norte. Paradoxalmente, o homem atual parece

abandonar a ciência em busca de certezas no campo da fé.

Fica a questão: qual o futuro da religião em uma época de secularização?

Falsificações empíricas e desmentidos históricos negaram a hipótese que afirmava ser a

modernidade geradora de um declínio irreversível da religião. O próprio conceito da

secularização parece estar em crise. As crenças religiosas são respostas contemporâneas

às dúvidas e aos problemas humanos. Todas elas possuem algum grau de validade ao

servirem como orientação para os indivíduos em algum momento de sua vida. Também

são dignas de interesse, pois aprendemos com elas acerca de quem somos. A

religiosidade não camufla as perguntas últimas do homem como a morte e o significado

da vida. Ela vai atrás de soluções e alternativas que garantam a dignidade do homem. A

modernidade com suas mudanças aceleradas tenta escamotear essas questões.

É nesse contexto que o universo da religião está readquirindo uma função

ordenadora. A Filosofia não ofereceu respostas satisfatórias à questão do mal; menos

ainda a sociedade do ter. O ser humano busca uma identidade, um sentido, um motivo e

uma maneira para a vida ser vivida. O homem se sente inconcluso, um ser insatisfeito e

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inseguro em busca de superação. A consciência dessa inadequação, ou privação, é a

experiência do mal. Na busca da religiosidade, o homem se pergunta sobre o sentido da

vida, da história, da validez das éticas absolutas. O universo simbólico da religião

enfrenta a ordem do mal. Remete ao místico, ao transcendente, tentando manter o

indivíduo e a comunidade em um mundo com sentido. A injustiça social é remetida à

vida do futuro. Ante essa experiência do mal, a religião tem produzido suas teodicéias.

A crença religiosa tem estado presente nas sociedades modernas, apesar de todo

o seu desenvolvimento científico e racional. A religiosidade é recurso construído

socialmente na busca de entender, de alguma maneira, o mundo que nos cerca.

Apelando para processos mentais e intuitivos, a religião tenta entender a conexão entre

as coisas, dar sentido à vida e fornecer identidade aos indivíduos. Ela responde às

perguntas que a modernidade considera inúteis, mas que afligem o homem. “Somos

huéspedes en un universo vastísimo e incomprensiblemente poderoso cuyas relaciones,

no fueron cortadas a nuestro tamaño o a la medida de nuestras necesidades” (STEINER,

2001, p. 132). O futuro incerto do homem cria a nostalgia do absoluto.

A expectativa dos sociólogos do século XIX de que a religiosidade

desaparecesse devido à racionalização do mundo não se concretizou. A ciência positiva

tentou expulsar o sagrado do mundo ao torná-lo utilizável. Faltou aos cientistas dar

sentido ao universo. Essa tentativa frustrada da ciência levou a humanidade a uma crise

de identidade e espiritual. A concepção religiosa do mundo dava um significado aos

seres, aos acontecimentos, ao destino individual. A ciência jamais encontrou substitutos

à altura. A sociedade moderna tem assistido a um reencantamento, que se manifesta de

formas extremamente variadas.

Há, portanto, uma contradição fundamental entre o saber positivo,

demonstrado mas inacabado, e o saber nascido das religiões, que não pode ser provado mas dá respostas às questões essenciais. (...) Cada

um de nós deve escolher seu Deus ou seu demônio. (ARON, 1999, p.

491).

Da impossibilidade do desaparecimento do sagrado

Trabalhou-se até agora com a premissa de um processo de secularização,

seguido por um retorno ao sagrado. Tal premissa, no entanto, pode ser falaciosa. Teria o

sagrado desaparecido para depois reaparecer? Ou se poderia afirmar a impossibilidade

radical de seu desaparecimento em sociedades humanas? Durkheim (1985) declara que

o sagrado não desaparece com a secularização. As instituições religiosas podem

declinar, mas a necessidade do sagrado permanece. Os vínculos, os valores e as normas

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sociais que mantêm a sociedade unida dependem do sagrado. Ele analisou sociedades

pré-modernas que legitimavam seus valores pela religião, assegurando a estabilidade do

sistema. A função da religião seria garantir a ordem e a integração social dos indivíduos.

O agir criativo é relegado a um segundo plano, dando-se prioridade à adequação do

indivíduo ao todo social. Seria a análise durkheimniana da permanência do sagrado

válida nas sociedades modernas em que a mudança é um paradigma?

Durkheim acreditava que a religião tradicional está prestes a desaparecer. Por

outro lado, acreditava que o aspecto de coesão gerado pelos rituais religiosos ainda seria

necessário na modernidade. As sociedades modernas, portanto, promoveriam

modificações nos rituais tradicionais para manter sua unidade. Sem deixar claro quais

seriam esses novos rituais, Durkheim parece estar se referindo “à celebração de valores

humanistas e políticos, como a liberdade, a igualdade e a cooperação social” (Giddens,

2001, p. 432).

A obra funcionalista de Parsons (1968, 1972) tenta suprir a lacuna deixada por

Durkheim na análise da religião nas sociedades contemporâneas. Ele mantém a

preocupação durkheimniana sobre a ordem e a estabilidade do sistema. A religião teria

um papel de integração social e asseguraria significados de vida, reduzindo a

discrepância entre expectativas e realidade. Essa contribuição da religião é

insubstituível porque ela se funda na capacidade humana de transcender a realidade

cotidiana. O ser humano teria a necessidade de algo supramundano.

Parsons concorda com Weber sobre o paradoxo ocorrido no processo de

racionalização do mundo: o espírito do capitalismo abandonou sua inspiração religiosa

original. Isso não significa, para Parsons, o desaparecimento da religião ou mesmo seu

declínio. O que teria acontecido foi uma redefinição das relações entre religião e

sociedade. A religião teria abandonado a esfera pública e se restringido à esfera pessoal

e privada. Nesse âmbito, a religião continuaria assegurando o equilíbrio emotivo do

indivíduo e orientando-o de acordo com os valores da sociedade. Ele se recusa a admitir

a decadência religiosa e aponta o surgimento da religião sob novas formas: o

ecumenismo, a santificação do amor humano, a ênfase na comunidade. Os valores do

cristianismo teriam se incorporado às instituições modernas: uma nova religião de

“amor secular em escala planetária” (PARSONS, 1972, p. 309). Esse otimismo se baseia

na raiz da escola funcionalista que não acredita no desaparecimento da religião, apenas

em sua adaptação.

Na trilha aberta por Parsons, O’Dea (1969) aprofunda o tema da religião como

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necessidade humana de transcender o cotidiano. Sendo a existência humana limitada

universalmente, a religião se torna necessária. Ele aponta como limites da existência

humana: as incertezas das condições de vida, os limites para controlar o ambiente em

que se vive e o limite de recursos necessários à sobrevivência estabelecidos pela

contingência, impotência e penúria.

O funcionalismo identifica o papel da religião com a assistência fornecida aos homens em sua adaptação às três realidades brutais da

contingência, impotência e da penúria (e, conseqüentemente da

frustração e da privação)... Nessa formulação, a religião é o

mecanismo mais importante de adaptação aos elementos aleatórios e frustradores da existência. (O’DEA, 1969, p. 15).

Depois de identificar a necessidade permanente da religião, O’Dea ainda

distingue a contribuição dessa necessidade em três níveis: a manutenção do sistema no

nível institucional, a formação de um significado para a vida ser vivida e a adaptação

emotiva do indivíduo ao ambiente. Ele individua as seis funções básicas da religião e,

superando Parsons, aponta seus elementos disfuncionais:

FUNÇÕES DA RELIGIÃO DISFUNÇÕES DA RELIGIÃO

1) adaptação emotiva do indivíduo fornecendo consolação às frustrações.

1) a consolação pode inibir o protesto social que permitiria melhoras sociais.

2) a função sacerdotal forneceria através dos ritos segurança individual e estabilidade.

2) a sacralização de ideias e comportamentos poderia inibir o progresso.

3) legitimação de normas e valores garantindo o controle social e a integração do indivíduo ao grupo.

3) a sacralização de normas e valores poderia servir para manter privilégios no campo econômico e social.

4) fornece modelos de valor para examinar criticamente as normas sociais insuficientes sendo fonte de mudança social.

4) Esta “função profética” poderia impedir qualquer compromisso com a ordem existente favorecendo o extremismo.

5) estabilização da identidade 5) criação de divisões internas na sociedade gerando conflitos religiosos.

6) amadurecimento individual 6) o amadurecimento pode ser bloqueado por uma dependência das instituições religiosas.

Durkheim, Parsons e O’Dea defendem a impossibilidade do desaparecimento

radical da religião nas sociedades humanas. O’Dea chega a afirmar que a religião é uma

necessidade humana de transcender o cotidiano. A religiosidade não seria gerada apenas

por fatores externos; ela é algo intrínseco ao ser humano.

Pensamento iluminista e fé religiosa são antagônicos

A revolução copernicana, no início dos tempos modernos, vai modificar de

forma radical a maneira de pensar Deus. O homem moderno não mais aceita o acesso

imediato do real e passa a pensar a realidade através da mediação da subjetividade. São

desenvolvidos métodos de investigação apoiando-se na razão e investigação científica.

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Buscando as regularidades da natureza que permitissem seu domínio, o homem deixa de

lado a hipótese da causa primeira. A questão de Deus passa a ser tematizada não mais a

partir do cosmos como entre os gregos, e sim da mediação do homem e de suas relações

com o mundo. A partir de sua subjetividade.

Os princípios da autonomia racional e da pesquisa científica foram propostos, no

século XVII, por Galileu, Descartes e Spinoza. A fé na razão transformou o universo em

um sistema matemático. A partir do século XVIII, em especial, o homem vai tomando

posse de sua liberdade e o pensamento torna-se consciente e crítico acerca de si mesmo.

O Iluminismo representou um processo de emancipação onde o homem liberta-se do

domínio da autoridade e tradição. No campo político, todos os homens são reconhecidos

como iguais. A velha ordem hierárquica e patriarcal entra em uma profunda crise com a

democratização. No campo do conhecimento, a ciência moderna conduz o homem a um

comportamento racional perante a realidade. Esta secularização tendia a despir a

humanidade da presença divina. A fé se tornava suspeita já que representava a ordem

ultrapassada. O ocidente assiste a ruptura do mundo judaico-cristão e o mundo profano.

A razão crítica e a subjetividade passam a buscar a verdade da religião. As concepções

religiosas mitificadas caíram por terra com o progresso da ciência. Cresce neste

momento a tensão entre a subjetividade crítica e as instituições religiosas tradicionais.

Os valores tradicionais e instituições do século XVIII se viram influenciados por tais

princípios.

Generalizar o pensamento iluminista na sua relação com a religião, no entanto, é

perigoso. Zilles (1991), por exemplo, divide o pensamento iluminista em três posições

unilaterais a respeito da religião: 1) A religião como falsa consciência ou simples

ideologia e, portanto, passível de negação: a ciência desmascararia a alienação religiosa

e obteria a transformação da consciência humana. Marx, Feuerbach, Freud e outros

confiavam exageradamente na ciência, no progresso e na razão. O desaparecimento da

religião, no entanto, tornou-se uma ilusão. Ainda hoje, percebe-se a busca de

fundamentos para fé e para a crença em Deus. 2) Os esforços apologéticos para

justificar a religião no mundo técnico-científico: com diferentes estratégias, os seus

representantes tentavam mostrar a profunda solidariedade entre razão e religião. Era

impossível para eles, porém, enfrentar o problema da historicidade. 3) A descrição

empírica e análise das diferentes concepções e instituições religiosas: Weber, Durkheim,

Lévy-Bruhl e outros buscavam estudar a religião empiricamente interpretando o mundo

atual, geralmente, como resultado da secularização. Contentavam-se com afirmações

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formais sobre o processo da religião.

No mesmo caminho de buscar um conceito mais amplo do iluminismo, que

abarcasse suas diferenças, Gay (1966) propõe entendê-lo como uma “coalizão solta,

informal, totalmente desorganizada, de críticos culturais, céticos religiosos e

reformadores políticos que defendiam um programa político cosmopolita e humanitário,

reivindicando a extensão da liberdade em todos os níveis, para que a humanidade

prosseguisse seu aperfeiçoamento moral através da razão”. (GAY, 1966, p. 3). Na

Inglaterra e França ele foi, de forma geral, radical em suas opiniões políticas,

marcadamente secular e enfatizava as ciências naturais. Voltaire representava a era da

razão sem fé religiosa. Bacon e Condorcet confiavam cegamente na razão. Hobbes

transformou o racionalismo em um ateísmo inflexível. A revolução francesa, enfim,

personificou a deusa razão em uma encantadora mulher nua.

Na medida em que progredia a razão, a fé parecia chegar a seu ocaso. Céu e

inferno tornaram-se contos de fada e os velhos dogmas declinavam. A fé, no entanto,

estava arraigada nos corações europeus. Ela não sucumbiria tão facilmente à razão.

Seria a razão infalível? Na Alemanha, ao contrário da tradição francesa e inglesa, o

iluminismo conservou o interesse nas implicações religiosas da metafísica clássica.

Coube, especialmente, a Kant (1977) fazer a crítica da razão.

O caminho para esta crítica foi aberto por Locke, Berkeley e Hume que, no

entanto, também tinham chegado a resultados contrários à religião. Locke afirmara que

todos os nossos conhecimentos vem através dos sentidos, portanto, só as coisas

materiais podem ser conhecidas. Berkeley criticava o materialismo ao afirmar que a

própria matéria não existe, a não ser como uma modalidade da mente. Ele dizia que a

única realidade que conhecemos é a mente. Para Hume, nem a mente existia, pois ela

não passava de um amontoado de memórias, sensações e sentimentos. Não existiria uma

alma por trás da mente. Além de questionar a religião, Hume também voltou sua crítica

à Ciência. Esta deveria se limitar à matemática e ao experimento direto e não confiar em

deduções baseadas em leis.

As críticas feitas à razão levavam à conclusão que esta não é um teste definitivo.

Rousseau, uma das poucas vozes francesas a combater veementemente o materialismo e

o ateísmo, afirmava que, nas grandes crises da vida, nem sempre a razão é a melhor

guia. O instinto e o sentimento, às vezes, devem ter prioridade sobre a razão teórica.

Como salvar a religião da razão e a ciência do ceticismo? Kant (1977) propôs

enxergar o conhecimento originado na razão pura de forma distinta daquele que nos

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chega através dos canais deformadores dos sentidos. Existiria um conhecimento a priori

que tornaria possível a verdade e a ciência absolutas. Caberia à nossa mente coordenar

as sensações e percepções transformando-as em ideias situadas pelas categorias de

espaço, tempo e causalidade.

O grande paradoxo percebido por Kant foi que as generalizações da lógica e

ciência são limitadas ao campo da experiência real e relativas ao nosso modo humano

de experiência. Ele conclui, então, a impossibilidade da metafísica como conhecimento

científico. Qualquer tentativa da ciência de compreender as coisas em si – de dizer o

que a realidade é – não passa de hipótese, pois a compreensão não pode ultrapassar o

limite da sensibilidade. A razão nos força a fazer perguntas sobre questões últimas para

as quais não temos material sensorial para processá-las. Pontos de vista opostos

parecerão sempre prováveis nestas questões tornando-as questões de fé. A ciência

perde-se, assim, em antinomias. Kant limitara a ciência a um mundo de superfície e

aparência. Existe, no entanto, outra via para os objetos da metafísica além do

conhecimento científico, existe a consciência moral. As premissas para a ação moral do

homem são a imortalidade da alma, existência de Deus, livre arbítrio. Estes são

postulados práticos não provados e necessários à moral humana. Em outros termos,

existiria algo fora do mundo dos objetos a conhecer.

Em relação à religião, Kant conclui que os objetos da fé – alma imortal e um

criador benevolente – não podem ser provados pela razão teórica. A religião deveria ser

baseada na consciência moral, não na ciência. Esta base moral não deve ser derivada das

duvidosas experiências sensoriais, e sim do eu interior através da intuição e percepção

direta. A base da religião deve possuir um imperativo moral absoluto, categórico. Estes

princípios são universais e necessários, caso não existissem, a vida social seria

impossível.

A humanidade deve ser tratada como um fim, nunca como um meio. Este é um

dos imperativos Kantianos fundamentais para criar uma comunidade ideal de seres

racionais. O dever deve ser colocado acima da beleza, a moralidade acima da felicidade.

Esta ordem absoluta ao dever prova a liberdade de nossa vontade. Da mesma forma,

sentimos nossa imortalidade. Como o senso do correto sobreviveria se não sentíssemos

que os desequilíbrios desta vida seriam corrigidos posteriormente? Este raciocínio nos

leva, finalmente, a Deus: se o senso de dever envolve a crença em recompensas futuras,

deve haver uma causa para este efeito. Deus deve ser postulado. Kant tenta provar a

existência de Deus não pela razão, pois esta lida somente com fenômenos sensoriais.

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Rousseau tinha razão ao afirmar que acima da lógica está o coração.

Riesgo (2002) afirma ser quase uma impossibilidade matemática o surgimento e

continuidade do universo, o que tem provocado em muitos cientistas um sentimento de

assombro e veneração. O pensamento iluminista, como foi afirmado, deixou espaço

para que o crer em Deus seja razoável. A crença em Deus como explicação da origem e

significado para o mundo não é falsificável ou demonstrável, portanto, não é científica.

Não é possível negá-Lo ou afirmá-Lo a partir de dados históricos. A incapacidade da

ciência de responder questões metafísicas abre espaço para crença em Deus. Trias

(1997) chega a afirmar que o que está mais além do âmbito de nossa existência, só pode

ser pensado a partir do conceito de mistério que nos circunda. A experiência religiosa dá

conta desta ligação entre o homem e o mistério. Ela não pode ser explicada, apenas

compreendida.

Em síntese

A partir da ilustração, acreditava-se que o destino estava nas mãos do homem.

Este era visto como criador das ciências e como dominador do universo. O processo de

secularização foi consequência dessa transformação e significou a subtração de alguma

coisa das instituições religiosas. O otimismo ilustrado previa uma sociedade mais justa e

homens mais felizes e, de forma geral, sem a necessidade de referenciais religiosos.

O ideal ilustrado acabou demonstrando sua insuficiência ao deixar em segundo

plano as questões éticas. O que termina imperando é o homem econômico e sua sede de

riqueza. O sonho da racionalização integral de toda sociedade foi submetida à

unilateralidade da racionalidade econômica. A ausência de respostas para as questões

últimas se traduz na atual sociedade do saber em busca do sobrenatural. A atual

sociedade desumanizada produz uma reação paradoxal: um reencantamento, uma busca

do transcendente.

Na medida em que a religião tradicional não satisfaz e a racionalidade moderna

não dá sentido para vida, o indivíduo busca substitutos funcionais no ocultismo, na

magia, na astrologia... Angustiado e em busca de segurança, o homem procura conhecer

o futuro através de artes adivinhatórias. Outros movimentos como os ecológicos, os

pacifistas, os nacionalistas... também podem ser analisados nessa perspectiva. “En el

fundo se trata de la búsqueda de valores para procurar saciar la sed de identidad, de

orientación y de salvación de unos ciudadanos perdidos en la vorágine de la sociedad

compulsiva e anónima.” (RIESGO, 1997, p. 291)

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Está ultrapassada hoje a concepção unilinear e progressiva da secularização

como decorrência de uma racionalização oniabrangente no mundo ocidental. O

“despertar religioso” das sociedades contemporâneas falsificou essa teoria. A

contemporaneidade assiste a um “retorno ao sagrado”, ao “mágico”. Formas seculares e

sacras convivem no mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que formas religiosas

tradicionais convivem com movimentos de caráter mais esotérico.

Teorias recentes admitem que a tendência de nossos tempos é a construção da

ação social e das políticas em torno de identidades primárias, em uma busca ansiosa por

significado e espiritualidade. A busca da identidade religiosa está se tornando uma das

principais fontes alternativas de significado. A necessidade de reconstrução de outra

identidade, de outro projeto, torna-se premente para que o homem possa situar-se no

mundo. Nessa busca, a religião tem-se tornado uma das maiores forças de segurança

pessoal e mobilização coletiva.

A análise weberiana sobre a secularização é contestada na medida em que na

modernidade as religiões se renovam e multiplicam. O homem continua buscando

respostas para questões existenciais que estão além do mundano. Steiner (2001)

conjectura que a magia na sociedade contemporânea tem origem na crise de confiança

da cultura ocidental no século XX, que teria provocado um ataque de nervos

generalizado. A volta do sagrado é tentativa de encher um vazio. Uma espécie de

banalização do mistério tem ocorrido nesse processo. O clima pós-moderno parece ter

afetado esse renascer religioso que vem tingido de subjetivismo e atomização. As

Igrejas tradicionais retrocedem enquanto outras religiões avançam. A religiosidade atual

não se orienta para as Igrejas e sim para o indivíduo. Nesse contexto de mercantilização

religiosa, cada indivíduo cria sua religião privada.

O ser humano caminha em busca de uma identidade, de um sentido, de um

motivo e de uma maneira para a vida ser vivida. Na busca da religiosidade, pergunta-se

o sentido da vida, da história. A ciência positiva tentou expulsar do mundo o sagrado e

acabou deixando o universo utilizável, mas sem sentido. Esse reencantamento da

sociedade moderna deixa no ar a pergunta: será que a humanidade, algum dia, assistiu a

um real desencantamento?

Os modelos explicativos da religiosidade no mundo contemporâneo trabalham

com a premissa de um processo de secularização, seguido por um retorno ao sagrado.

Podemos, no entanto, estar diante de uma falácia. Teria o sagrado desaparecido para

depois reaparecer? Ou se poderia afirmar a impossibilidade radical de seu

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desaparecimento em sociedades humanas? Durkheim (1985), Parsons (1972) e O’Dea

defendem a impossibilidade radical do desaparecimento da religião. Nessa perspectiva,

a religiosidade no mundo contemporâneo pode ser compreendida como algo inerente ao

ser humano e não gerada por fatores externos.

A experiência religiosa possui natureza pré-reflexiva; é inevitável, pois pertence

ao próprio ser que somos. A religião se define para o indivíduo como uma relação do

seu eu interior com a realidade transcendente. Os fenomenólogos da religião afirmam

que a religião é uma constante em todas as épocas da humanidade. O homem possui

uma natureza religiosa que exige a experimentação do sagrado, do numinoso. A partir

das características sentidas nessa experiência, resultam-se os aspectos morais da justiça

divina e desenvolvem-se conceitos como amor, misericórdia, piedade. A sacralização

contemporânea não é um fenômeno marginal que está renascendo. A necessidade do

sagrado nunca deixou de existir, pois não há sociedade sem religião. A religião não

desaparece, transforma-se.

Reflexões finais

A diversidade religiosa do mundo atual exige a abordagem das relações inter-

religiosas e das formas como as religiões poderiam contribuir para superação da

racionalidade fragmentada herdada do Iluminismo. Existiriam invariantes religiosas que

permitiriam o diálogo em um mundo multicultural? Antropólogos e sociólogos já

haviam reconhecido a legitimidade que possuíam as diversas culturas ao romperem com

a tradição etnocêntrica. Passaram a analisá-las em suas especificidades, porém,

deixaram sem questionamento que as culturas são tradições vivas passando por um

processo de interação. Uma filosofia intercultural exige mais do que admitir que a

pluralidade; ela deve reconhecer a centralidade do diálogo nesse processo. Este modelo

dialógico pressupõe diversos tipos de racionalidade nas diferentes culturas. Cada

tradição cultural deve ser analisada em si e aceitar a legitimidade das outras.

Quando duas culturas se encontram, elas são livres para optar pela convivência

ou pelo conflito. Essa liberdade intersubjetiva permite a manutenção ou não da

comunidade e só se manterá se uma cultura reconhecer a outra. As liberdades se

invadem e se limitam. É necessária, portanto, a construção de uma segunda natureza,

mediante a realização de algo em comum: as liberdades individuais conviveriam em

relações comuns, e o ser humano exerceria aí sua liberdade.

Como ser livre sem eliminar o outro? Para que isso ocorra, um processo de

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compreensão mútua é fundamental. O diálogo só se tornará possível se invariantes

forem encontradas nas diferentes identidades. Em todas as crenças religiosas, é possível

encontrar pontos de consenso, sem renunciar as diferenças. Essas invariantes culturais

podem ser convertidas em transculturais à medida que nos encontramos nos outros. Esse

encontro é fundamental para se projetar o futuro.

A nova sociedade do saber possui um poderoso instrumental tecnológico e

organizativo que pode ser usado para o “bem ou para o mal”, de acordo com os projetos

humanos. As forças desencadeadas não podem andar à solta; é preciso que o homem

assuma a responsabilidade pelo seu destino. O poder das tecnologias transformou a

nova sociedade em uma sociedade global. O homem se vê forçado a assumir todas as

culturas, todos os diferentes projetos, todas as religiões. Uma sociedade global tem de

aprender a excluir a agressão e a exploração. Em outros termos: “tendría que postularse

que todo el mundo pueda intervenir democráticamente en la decisión y creación del

destino colectivo” (CORBI, 1992, p. 329). O diálogo democrático, que garante o direito

do cidadão de intervir no seu destino, é a única forma de exorcizar a violência.

Corbí alerta sobre a necessidade de exclusão dos projetos estáticos que

bloqueiam as transformações nos conhecimentos, bem como daqueles que excluem

outros projetos, e, por fim, dos projetos baseados na exploração. Devem-se estimular

projetos que gerem dinamismo, colaboração, comunicação, e que criem uma

consciência de globalidade, garantindo a pluralidade e a diversidade. Corbí defende que,

se nos ativermos às doutrinas dos fundadores das grandes religiões, perceberemos que o

caminho proposto é um processo que gera dinamismo, flexibilidade, criatividade.

Foram os moldes culturais estáticos e autoritários, sob o qual foram vertidas

historicamente, que fizeram da religião algo estático e autoritário. Partindo desta

premissa, a religião poderia ter um papel criador importante na atual sociedade

dinâmica, se escutarmos as antigas tradições religiosas: elas falam de um processo de

refinamento de nossas faculdades que nos pode conduzir a um novo acesso cognitivo e

axiológico. Um processo que não termina em submissão ou em crença cega; mas em

respeito, interesse e amor por tudo que existe. Essa dimensão pode se converter em

critério e guia para homens que são forçados a decidir o destino do planeta e da espécie.

A nova religiosidade é de difícil classificação; a conseqüência disso é que se tem

chamado de “religião” muitos comportamentos simbólicos que não merecem esse nome.

O atual crescimento do sagrado parece convidar cada um a criar sua própria religião,

produzindo uma crise das cosmovisões sagradas. Segundo Riesgo (1997), o atual

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reencantamento carece de profundidade e conteúdo. Falta o “rompimento de nível”

(RIESGO, 1997, p. 55), gerador de uma experiência gratuita de mistério através do qual

o fenômeno religioso se manifesta. A falta dessa experiência tem gerado uma crise no

mundo simbólico, que caracterizou a história da humanidade. Essa constatação, mesmo

se verdadeira, não elimina o problema: o sagrado é presença incontestável na atual

sociedade do saber.

Quais religiões terão futuro na sociedade pós-moderna? Quais poderão

contribuir para projetar o futuro? Riesgo aponta para aquelas religiões que legitimam a

autonomia pessoal e a solidariedade entre os povos, convocando o homem a uma tarefa

histórica, responsável e criativa como projeto de salvação. A autêntica religião deve

reivindicar o especificamente religioso e ajudar a superar a razão instrumental da

ilustração, buscando uma razão integral que desvele todas as dimensões da realidade.

Essa religião deve ser capaz de manter uma tensão dialética entre o imanente e o

transcendente, entre controle da natureza e o mistério.

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