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PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.128, dezembro/2010 193 MOURA, M. C. O surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: Revinter/Fapesp, 2000. Aline Moreira de Andrade Aluna de graduação do curso de Geografia 2007 Mariéli Luccas Aluna de graduação do curso de Geografia 2007 Denise Sponchiado Ms. Denise Sponchiado. Professora do curso de Pedagogia Este trabalho faz uma análise da obra da pesquisadora Maria Cecília de Moura, inti- tulada “O Surdo”. A autora, fonoaudióloga de formação, iniciou seus trabalhos com surdos ainda na década de 1970, dentro de um arcabouço metodológico pautado no oralismo, quando o surdo era visto como um deficiente auditivo, incapaz de adquirir linguagem e de se integrar efetivamente na sociedade ouvinte. Em uma viagem aos Estados Unidos, a au- tora entrou em contato com uma nova meto- dologia de ensino, denominada Bilinguismo, na qual a linguagem oral não é fundamental para a inserção comunicativa do surdo. Ela tomou, então, conhecimento da Linguagem de Sinais, modificando, a partir de estudos e contato com grupos de Surdos, seu método de trabalho, que passou a compreender a ne- cessidade de o surdo adquirir uma linguagem capaz de fazê-lo interagir com o mundo e construir sua identidade. Baseada em uma análise psicossocial de uma entrevista realizada pela pesquisadora a um Surdo, a obra não revela apenas a trajetória de aprendizado e construção de identidade do protagonista – Ricardo - mas também traz à tona a história da pesquisadora. Essa história também é reveladora de uma construção de identidade: a identidade de uma nova maneira de compreender o surdo, percebendo-o como detentor de linguagem. Ao construir sua identidade, Ricardo transforma as ideias pré-concebidas e mostra que o fato de ser surdo não o torna mudo, deficiente ou alienado, e leva a refletir sobre a forma como o preconceito é reproduzido na sociedade. O livro nos leva a modificar pa- drões de pensamento, fazendo-nos perceber que os Surdos lutam pelo direito de expressar sua identidade. Tendo como pressuposto que as pessoas externalizam os valores que a sociedade tem como verdadeiros, a autora aborda o tema dentro de uma perspectiva Histórica. Dessa forma, as realidades acerca da surdez são reveladas em cada período da história, o que faz com que o leitor tenha uma visão geral sobre a evolução da educação dos surdos, tanto no Brasil como no mundo. A primeira parte do livro traz, de manei- ra clara e objetiva, um panorama histórico acerca da forma como os surdos eram vistos pelas sociedades do passado e, especifica- mente, como a educação era ministrada. Nas sociedades da Antiguidade, os surdos não eram vistos como portadores de direitos por não conseguirem exprimir suas vontades, acreditando-se serem, eles, incapazes de desenvolver pensamento pelo fato de não adquirirem linguagem. Na Idade Média, período marcado pelos valores teológicos, a Igreja afirmava que os surdos não possuíam alma por não falarem os sacramentos. A sur- dez era vista como um problema filosófico, social e religioso. Foi somente na Idade Moderna que surgiram as primeiras preocupações com a

o Surdo Caminho Para Nova Identidade

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Trabalho de discussão arespeito da obra supracitada.

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  • PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.128, dezembro/2010 193

    MOURA, M. C. O surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: Revinter/Fapesp, 2000.

    Aline Moreira de AndradeAluna de graduao do curso de Geografia 2007

    Marili LuccasAluna de graduao do curso de Geografia 2007

    Denise SponchiadoMs. Denise Sponchiado. Professora do curso de Pedagogia

    Este trabalho faz uma anlise da obra da pesquisadora Maria Ceclia de Moura, inti-tulada O Surdo. A autora, fonoau diloga de formao, iniciou seus trabalhos com surdos ainda na dcada de 1970, dentro de um arcabouo metodolgico pautado no oralismo, quando o surdo era visto como um deficiente auditivo, incapaz de adquirir linguagem e de se integrar efetivamente na sociedade ouvinte.

    Em uma viagem aos Estados Unidos, a au-tora entrou em contato com uma nova meto-dologia de ensino, denominada Bilinguismo, na qual a linguagem oral no fundamental para a insero comunicativa do surdo. Ela tomou, ento, conhecimento da Linguagem de Sinais, modificando, a partir de estudos e contato com grupos de Surdos, seu mtodo de trabalho, que passou a compreender a ne-cessidade de o surdo adquirir uma linguagem capaz de faz-lo interagir com o mundo e construir sua identidade.

    Baseada em uma anlise psicossocial de uma entrevista realizada pela pesquisadora a um Surdo, a obra no revela apenas a trajetria de aprendizado e construo de identidade do protagonista Ricardo - mas tambm traz tona a histria da pesquisadora. Essa histria tambm reveladora de uma construo de identidade: a identidade de uma nova maneira de compreender o surdo, percebendo-o como detentor de linguagem.

    Ao construir sua identidade, Ricardo transforma as ideias pr-concebidas e mostra

    que o fato de ser surdo no o torna mudo, deficiente ou alienado, e leva a refletir sobre a forma como o preconceito reproduzido na sociedade. O livro nos leva a modificar pa-dres de pensamento, fazendo-nos perceber que os Surdos lutam pelo direito de expressar sua identidade.

    Tendo como pressuposto que as pessoas externalizam os valores que a sociedade tem como verdadeiros, a autora aborda o tema dentro de uma perspectiva Histrica. Dessa forma, as realidades acerca da surdez so reveladas em cada perodo da histria, o que faz com que o leitor tenha uma viso geral sobre a evoluo da educao dos surdos, tanto no Brasil como no mundo.

    A primeira parte do livro traz, de manei-ra clara e objetiva, um panorama histrico acerca da forma como os surdos eram vistos pelas sociedades do passado e, especifica-mente, como a educao era ministrada. Nas sociedades da Antiguidade, os surdos no eram vistos como portadores de direitos por no conseguirem exprimir suas vontades, acreditando-se serem, eles, incapazes de desenvolver pensamento pelo fato de no adquirirem linguagem. Na Idade Mdia, perodo marcado pelos valores teolgicos, a Igreja afirmava que os surdos no possuam alma por no falarem os sacramentos. A sur-dez era vista como um problema filosfico, social e religioso.

    Foi somente na Idade Moderna que surgiram as primeiras preocupaes com a

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    educao do surdo. Na Espanha, em um pri-meiro momento, surgiram alguns estudiosos que se dedicavam a ensinar a surdos, filhos da elite, a fim de instru-los. Iniciou-se, nesse perodo, o esboo de um mtodo baseado na utilizao da Linguagem de Sinais, bem como as primeiras referncias ao estudo da surdez e a importncia de se educar o surdo na linguagem oral e de sinais desde cedo.

    A Idade Contempornea, por sua vez, tem inmeros educadores que se dedicam a anali-sar e elaborar mtodos de ensino aos surdos. Muitos desses mtodos incluem experincias com pessoas surdas, a fim de erradicar a sur-dez, vista como fator de limitao aquisio de conhecimentos. Alguns pesquisadores, como Jean Marc Gaspard Itard, fizeram experincias fsicas com surdos, chegando a perfurar tmpanos e aplicar descargas el-tricas nos ouvidos de surdos. Este e muitos outros pesquisadores e mdicos da poca passaram a ver a surdez no mais como um problema filosfico/social, mas, sim, como uma doena. Dessa forma, a doena deveria ser passvel de cura, e a reabilitao, feita atravs do ensino da articulao e da restau-rao da audio. Muitos desses pensadores iniciavam suas carreiras, defendendo a ora-lizao dos surdos, colocando a Linguagem de Sinais em segundo plano. Entretanto, muitos encerravam a carreira com opinies modificadas, defendendo novos padres de comunicao para os surdos, como Itard e Baron de Gerndo, por exemplo.

    Nos primeiros sculos da Idade Con-tempornea, alternaram-se, na Europa, duas vises acerca do mtodo para ensinar aos surdos. Um deles, defendido na Alemanha, baseava-se na defesa da oralizao e na refutao da Linguagem de Sinais. A autora atribui esse fato a fatores histricos e sociais, ligados formao da nao alem. O outro mtodo foi defendido na Frana, em cujo ter-ritrio a Lngua de Sinais adquiriu contornos educativos mais ntidos, influenciando deci-

    sivamente a educao de surdos nos Estados Unidos e, mais tarde, no Brasil.

    Nos Estados Unidos, ainda antes da Guerra de Secesso (1861/1865), floresceram alguns internatos focados na educao de surdos, baseados no ensino da Linguagem de Sinais francesa. Esses internatos, apesar de privarem o surdo do convvio social, permi-tiram a formao das primeiras comunidades de surdos, capazes de reivindicar os seus di-reitos. Posteriormente Guerra de Secesso, houve presso contrria ao uso da lngua de sinais, por no existir uma verso em ingls.

    Partiu-se, ento, para a defesa de um mtodo de ensino baseado em tcnicas que visavam a oralizar o surdo. A autora destaca, em relao aos Estados Unidos, a utilizao de quatro tcnicas que se prestavam a essa funo: oralismo puro; mtodo multissen-sorial; mtodo de linguagem por associao de elementos; mtodo unissensorial. Todos objetivavam a integralizao da criana, com prejuzo auditivo, no mundo ouvinte, sem levar em conta as possibilidades de aprendi-zado, o que os levou ao fracasso.

    Isso, segundo a autora, ocorreu nas dca-das de 1960/70. Ao mesmo tempo, estudos americanos comprovaram a validade da Lin-guagem de Sinais no processo comunicativo, com possibilidades de expresso nos nveis de abstrao. Nesse perodo, ocorreram tam-bm descobertas no campo cognitivo, quando se inferiu que surdos e ouvintes tivessem a mesma distribuio da inteligncia.

    Delinearam-se, ento, novos mtodos de ensino, como o Bimodalismo e o Bilinguis-mo. A Comunicao Total ou Bimodalismo tem como mtodo aproveitar e utilizar todos os recursos e estmulos possveis com fins de desenvolvimento da linguagem por parte do surdo, sendo que a lngua de sinais era utilizada como um suporte para a lngua oral. Essa abordagem apresenta problemas, segundo a autora, no que tange formao da

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    identidade do surdo, pois no leva em consi-derao que a aquisio da linguagem se d pelo canal visual e no auditivo do mesmo, no sendo possvel a ele desenvolver suas habilidades e capacidades para exercer seu papel na sociedade.

    O Bilinguismo, por sua vez, possui uma abordagem focada no multiculturalismo, movimento, esse, de valorizao dos direi-tos sociais e culturais das minorias, o que possibilitou a afirmao da cultura surda no mundo. Esse mtodo defende a utilizao de duas lnguas na educao dos surdos, sendo a primeira delas a Lngua de Sinais, visto que a aquisio da linguagem se d no campo visual, e uma segunda lngua, que poderia ser oral ou escrita. Esse mtodo foi implantado na Sucia, em 1981, quando obteve bons resultados e disseminou-se no mundo a partir de ento.

    Na perspectiva levantada pela autora, o Bilinguismo se relaciona com o multicul-turalismo, na medida em que o surdo tem sua particularidade comunicativa valorizada pela sociedade, sendo visto como um ser possuidor de identidade e de direitos sociais. Ela afirma, tambm, que o surdo constri sua identidade no contato com seus iguais. Isso faz com que ele se perceba como sujeito. Da a importncia da existncia de uma co-munidade de surdos, pois, dentro do grupo, se est entre iguais, sendo que a surdez no usada como instrumento de discriminao, mas, sim, de interao grupal.

    Em termos de Brasil, a educao de surdos se iniciou ainda no sculo XIX, com o Institu-to Nacional de Educao de Surdos, fundado em 1857 e administrado por um especialista em surdez. A metodologia utilizada no ensi-no, inicialmente, foi pautada na leitura sobre lbios, modificando-se em conformidade aos mtodos europeus. Consolidou-se em nosso Pas a viso de que a surdez era uma doena que deveria ser curada. A fala foi valori-

    zada na mesma proporo em que a Lngua de Sinais foi percebida como destruidora da linguagem.

    Os mtodos de ensino utilizados com os surdos podem ser percebidos na prpria narrativa de Ricardo e na trajetria da pesqui-sadora. A oralizao do surdo era defendida pelos profissionais, o que contribuiu para a consolidao de categorias de surdos: os que aprendiam a falar, por possurem resqucios de audio e os que no conseguiam articular linguagem falada. Esse mtodo de ensino no proporcionou o meio necessrio para o surdo construir sua identidade e, sim, gerou um sentimento de incapacidade perante a sociedade ouvinte.

    A prpria legislao brasileira, segundo a autora, perpetua essa viso, ao considerar o surdo como incapaz, no levando em conta as mudanas no campo educacional e a aqui-sio do discernimento por parte do surdo, realizada atravs da Lngua de Sinais. Uma modificao na legislao apontada pela autora como necessria a fim de garantir uma insero social real para o surdo.

    O caso de Ricardo ilustrativo: a ele foi negada, no momento oportuno, uma forma de comunicao que lhe permitisse construir sua realidade, exercer sua cidadania de forma a ser includo, de fato, na sociedade. Na en-trevista que a autora realizou com Ricardo, transcrita no capitulo trs, o mesmo conta a sua histria.

    Nessa entrevista, na qual Ricardo se expressa atravs da Lngua de Sinais, perce-bem-se os diferentes estgios pelos quais ele passou at atingir a vida adulta. E fica evi-dente o papel importante que teve a Lngua de Sinais para a sua insero na sociedade e para a construo de sua humanidade. Fica claro, atravs de sua fala, que ele iniciou um tratamento fonoaudiolgico pautado na oralidade e que, na escola, estimulava-se a sua expresso oral.

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    O contato com a Lngua de Sinais, e com os demais grupos de surdos, veio posterior-mente, quando ele, Ricardo, foi para So Paulo. Esse foi o divisor de guas para ele, pois, a partir de ento, ele despertou para o mundo e comeou a construir-se como indi-vduo capaz.

    No captulo quanto, a autora faz a analise da entrevista, buscando relacion-la com o contexto tanto da vida de Ricardo como o contexto social. nesse espao que a autora verifica e expe, de modo claro, o processo de metamorfose de Ricardo. A infncia re-velada como nula, por no ter sido capaz de proporcionar a construo de sua identidade, por ele no ter sido visto como um membro atuante da famlia, mas, sim, como algum que deveria ser cuidado. Houve falhas condi-cionadas por um contexto social, psicolgico e familiar em que o exerccio da igualdade no foi possvel, exatamente por faltarem a Ricardo os meios para interagir comunicati-vamente com o mundo.

    A construo de sua identidade somente ocorreu mais tarde, quando Ricardo entrou em contato com a escola e os grupos de surdos. S ento o estigma de incapaz se converteu em instrumento de incluso dentro do grupo e da sociedade. Essa incluso no ocorreu na famlia, na escola ou atravs dos profissionais que o atendiam, que lhe forne-ceram apenas o papel de no saber, mas entre os grupos de surdos, que o fizeram ser visto como surdo como diferente dos demais e, por isso, com capacidades especficas de aprendizado.

    A autora compara o desenvolvimento de Ricardo com uma metamorfose que faz surgir um sujeito explorador do mundo que o cerca. Ela mostra, no decorrer do texto, que possvel perceber, atravs da fala de Ricardo, a sua passagem de impossibilitado para o autorreconhecimento como particularmente igual, o que essencial para a construo de sua identidade.

    Aps adquirir, atravs da Lngua de Sinais, um veculo para comunicao com o mundo, Ricardo tornou-se uma pessoa popular. Na anlise da autora, a aquisio de conhecimentos, por parte de Ricardo, tornou-o uma pessoa com um diferencial no grupo de surdos, capaz no apenas de aprender, mas de ensinar. Ela deixa transparecer que h certa relutncia, por parte de Ricardo, em relao aos surdos do grupo, que ainda no dominam os sinais por completo, situao reveladora da desigualdade dentro de um grupo aparentemente igual.

    A autora conclui a obra, destacando a importncia temporal (passado, presente e futuro) nos caminhos que levaram percep-o do surdo como indivduo portador de linguagem. Muito tempo foi preciso para que se desenvolvesse um mtodo capaz de incluir os surdos na sociedade, que fosse respeitada a sua forma de adquirir linguagem, que atravs do campo visual.

    Para a autora, numa sociedade majorita-riamente ouvinte, o surdo precisa ser ensi-nado dentro de uma proposta educacional denominada Bilinguismo, pois esse mtodo valoriza o ensino da Lngua dos Sinais aos surdos, bem como o ensino da linguagem ouvinte, seja atravs da fala e / ou da escrita, a fim de proporcionar aos surdos a possibili-dade de comunicao e desenvolvimento de sua identidade, tal como ocorreu, embora de forma bastante difcil, com Ricardo.

    A obra de Maria Ceclia, situada no campo da psicologia social e da educao de surdos, possui uma linguagem clara que prende o leitor ao texto. Ao mesmo tempo, aborda um assunto pouco estudado e pouco conhecido, sendo, esses fatores, motivadores para a sua leitura. indicada a profissionais da Educa-o, psiclogos e, sobretudo, a profissionais que atuam na Educao de Surdos.