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organizador de carne - poderes imateriais na comunicação contemporânea sheila canevacci ribeiro/dona orpheline A idéia de usar o objeto que organiza filas em bancos, aeroportos e museus para um projeto coreográfico tornou-se explícita para mim a partir de uma experiência vivida no Departamento de Investigações Criminais (DEIC), em São Paulo. Minha irmã tinha sido convocada para reconhecer o homem que havia roubado o seu carro. Eu a acompanhei. Em um determinado momento, tive que atravessar, sozinha, um grande hall de entrada, cinza, com paredes e chão de concreto, sem ninguém e sem móveis, completamente vazio, se não fosse a ornamentação única de uma enorme fila de organizadores, em zig-zag. (seria bom colocarmos uma imagem do organizador) anexada Sem corresponder ao que propunha aquele agenciamento (percorrer trezentos metros dentro daquele organizador), decidi espontaneamente passar por baixo deles (percorrendo somente uma distância de trinta metros, mais ou menos). Uma policial veio em minha direção, já no final de meu percurso e me surpreendeu perguntando incisiva, insistente e repetidamente: “você é gente ou animal?”. Obrigou-me, então, a retornar (por fora) ao meu ponto de partida e a recomeçar o meu caminho, percorrendo os 300 metros de zig-zag, dentro do organizador. Algumas pessoas perambulavam e outros policiais observavam aquela cena, com um certo ar de público. Na hora, não entendi nada muito bem. Depois entendi que aquele organizador de filas era mais significativo do que eu tinha percebido até então. Ele era a anima do contexto, sua motivação interna, e impunha valores de condicionamento e de mobilidade.

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organizador de carne -

poderes imateriais na comunicação contemporânea

sheila canevacci ribeiro/dona orpheline

A idéia de usar o objeto que organiza filas em bancos, aeroportos e museus

para um projeto coreográfico tornou-se explícita para mim a partir de uma

experiência vivida no Departamento de Investigações Criminais (DEIC), em

São Paulo.

Minha irmã tinha sido convocada para reconhecer o homem que havia roubado

o seu carro. Eu a acompanhei. Em um determinado momento, tive que

atravessar, sozinha, um grande hall de entrada, cinza, com paredes e chão de

concreto, sem ninguém e sem móveis, completamente vazio, se não fosse a

ornamentação única de uma enorme fila de organizadores, em zig-zag.

(seria bom colocarmos uma imagem do organizador) anexada

Sem corresponder ao que propunha aquele agenciamento (percorrer trezentos

metros dentro daquele organizador), decidi espontaneamente passar por baixo

deles (percorrendo somente uma distância de trinta metros, mais ou menos).

Uma policial veio em minha direção, já no final de meu percurso e me

surpreendeu perguntando incisiva, insistente e repetidamente: “você é gente

ou animal?”. Obrigou-me, então, a retornar (por fora) ao meu ponto de partida

e a recomeçar o meu caminho, percorrendo os 300 metros de zig-zag, dentro

do organizador. Algumas pessoas perambulavam e outros policiais observavam

aquela cena, com um certo ar de público.

Na hora, não entendi nada muito bem. Depois entendi que aquele organizador

de filas era mais significativo do que eu tinha percebido até então. Ele era a

anima do contexto, sua motivação interna, e impunha valores de

condicionamento e de mobilidade.

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Ainda perplexa, pareci entender o óbvio daquela pergunta, “gente ou animal?”:

o animal não entende aquela cognição, o ser humano sim. Agindo daquela

maneira (seguindo a lógica da policial do DEIC) eu teria um só possível status,

eu era um animal não humano, porque se humano fosse, estaria então

quebrando um poder, mesmo que espontaneamente. A incapacidade de leitura

simbólica estabelece ali uma condição pré-humana, o que esclarece a função

domesticadora e simbólica do organizador de fila.

Naquela ocasião, o organizador de filas representou um tipo de poder simbólico

contemporâneo, que é silencioso, presente, mas agenciado de maneira a ser

imperceptível e discreto, mesmo se fisicamente presente. Ele substitui o

trabalho da policial, como um facilitador do poder na contemporaneidade. Esse

evento tornou-se intuitivamente a semente de um novo projeto coreográfico.

O organizador de fila - que organiza as filas de bancos, aeroportos,

restaurantes, museus, parques de diversões - é o principal elemento cênico

explorado na instalação coreográfica organizador de carne (2007); seja

plasticamente, corporalmente e em sua metáfora, enfrentando assim um dos

ingredientes que constroem o “organizador de carne” contemporâneo: o poder

do alinhamento que educa em uma ordem não-animal.

O organizador de fila define e estabelece espaços - a arquitetura, o olhar, o

tipo de trânsito. Ele é uma pedagogia do tempo-espaço, do corpo e da lei,

incorporando elementos comportamentais que cruzam hierarquia animal,

status social e psicologia individual. É também um condicionador da ordem e

da disciplina, funcionando como bondagei ético, que integra a pessoa

unilateralmente além de treiná-la a um certo prazer de pertencer

simbolicamente a um trânsito único e à aglomeração persuasiva.

Portanto, o organizador de fila interfere, recria, estipula e desenvolve

especificidades eróticas, sinestésicas e comunicacionais, mutando elementos

constitutivos do corpoii (volume, foco, presença, grounding). Ele é corpo pós-

humanoiii, seu elástico é pele, suas estruturas de base, ossos; e com esse

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objeto corpo-cadáver-fetiche-invisível, a coreografia iconiza os parâmetros em

jogo.

O que chamei de “organizador de carne” é a educação, direta ou indireta; é a

socialização (linguagem, cognição, valores); e o condicionamento da pessoa

(relação ao espaço, aos outros, aos sentidos, ao corpo). Toda e qualquer

cultura humana tem o seu “organizador de carne”. Ele estabelece os

parâmetros de inclusão e exclusão, pertencimento e diálogo. Parâmetros esses

flutuantes, mutantes e complexamente dependentes dos contextos de domínio

e de recriação de si mesmo e da própria cultura.

O que diferencia o organizador de fila dos outros símbolos de condicionamento

é que ele encapsula o mais perverso e maior valor de domínio da

contemporaneidade: ele é ambiguamente explícito e invisível, material e

imaterial, justamente como a cultura digital. Pois mesmo que teatralize o

espaço, a arquitetura e as pessoas, constrói espontaneamente uma coreografia

que é a manifestação visível daquele poder.

2nd Life

“_ Olá.

_ Oi.

_ Tudo bem?

_ Tudo.

_ Quantas vezes vc já deu o cu?

_ Não gosto que falem assim comigo e estou no meu perfeito direito. Eu

também não falo assim com ninguém.

_ Ah, então várias...

_ Não, nenhuma.

_ Bom, vejo q tem rabo potencial pra dar.

_ Na verdade, foi uma.

_ Você sabe dançar? Não sei, sou novo aqui.

_ Burro não, sou um profissional!

_ Ô, pára de chorar!

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_ Como faz sexo?

_ Tem que se teleportar, aperta com a direita e clica no sit here.

_ E como morre?

_ Não dá pra morrer aqui.

_ Vc é muito infantil.

_ Eu sou ciumento. Trago as fotos aqui pra mostrar o teor artístico e já vêm

dizendo que viram a rachaiv dela, não gostei.

_ Digamos que por mostrar-se assim proativo eu nem levantaria esta questão.

_ Acho que não entendo nenhuma expressão artística.

_ Eu caguei nas calças.

_ Que nojo, por quê?

_ Porque eu tomei laxante pra emagrecer.

_ Não tenho nem merda no cu pra cagar.

_ São recursos, né?

_ E como você começou na dança contemporânea?

_ Praticamente nasci dentro dela.

_ Uau! E como foi isso??

_ Isso o quê?

_ Bem que eu falei pro Edgar Morin que não era bem assim...

_ Errado? Como assim??

(...)

_ É, passarinho que come pedra sabe o cu que tem.

_ Pimenta no cu dos outros é refresco.

_ Não tem carne no cu que dê um pastel de cruzado.

_ É, merda cagada não volta ao cu.

_ Afinal, quem tá no cu do mundo?

_ Calma... não tô entendendo...

_ Hey, não fale assim! Eu sou um profissional!

_ E por que você matou, então?

_ Eu tava com raiva e decidi mudar.

_ Ah...”

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É nesse clima que o projeto coreográfico organizador de carnev começa.

Dois avatares no 2nd Lifevi e eu, como performer. Eu estou vestida em shorts

camuflado de lycra, bem curtinho e grudado (no estilo “mulher com boa auto-

estima de classe popular em terra tropical”); uma camisa preta de manga

comprida, com bordados de lantejoulas e flores (no estilo “mulher aos trinta de

classe média profissional liberal”); em um sapato vermelho de salto prateado

(estilo “design interessante e caro”). Participamos de um diálogo a três, em

uma pseudo-informalidade que hospeda a autoria ambígua das frases.

Os avatares estão separados por uma mesa de escritório virtual, por sua vez

separados da performer que está no mundo concreto. O que une os três é o

diálogo. Os avatares digitam o texto. A performer o recita. Um triângulo

concreto-virtual traz um diálogo onde não se sabe quem fala o quê, nem quem

fala com quem.

É inviável responsabilizar a comunicação, o conteúdo, o fundo e a forma

quando não se sabe de onde vem a informação, quando os responsáveis são

inacessíveis. Essa é a beleza e o terror da cultura digital, que promove um tipo

de autonomia e ao mesmo tempo, e paradoxalmente, destrói a noção de

autoria e de autor, transformando os parâmetros da política.

Em um tom confessional típico daquele contexto, o diálogo propõe morte e

sexo através de diferentes estilos de linguagem. A coreografia enfrenta o sexo

em um enquadramento dualista, mórbido, orgânico e inorgânico dos corpos-

autômatos do 2nd Life; propõe a morte como relação fundamental com a vida,

também virtual, já que a publicidade (que organiza nossa carne) é a principal

inimiga da morte, segundo o publicitário paulistano Abel Reis. Essa relação

coreográfica de sexo e morte virtuais traz um outro ingrediente que “organiza

a carne”, propondo um entendimento da erótica profunda do corpo-cadávervii

virtual. A coreografia começa assim: morte, sexo, 2nd life, sob o olhar nublado

pelas alterações de percepção causadas pelos novos parâmetros da cultura

digital e suas éticas “em construção"viii.

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No diálogo, o texto “revela” a “intimidade” dos três avatares. O que parece

informal e leve traz perversidades latentes. Em primeiro lugar, a reprodução

dualista da primeira vida. Em seguida, o dever implícito de correr atrás da vida

ou de uma nova vida (nesta segunda vida), de ser mais e/ou maior (duplos,

múltiplos), de não atrasar-se para o “novo”, para o “cool”, para o “pioneiro”.

Além das possibilidades de relação mecânica, sinestesia e estética

proporcionadas pela tecnologia, deve-se enfrentar o sentido da relação entre

arte e tecnologia além de seus impactos, dispositivos e política espacial,

observando-a enquanto objeto-fetiche de uma realidade outra, de um mercado

pluralizado, de um consumo glocalizado, interferindo diferentemente na

produção das artes.

Nas culturas onde a baixa auto-estima permeia a construção da pessoa, como

é o caso da brasileira, o deslumbramento pela tecnologia a promove mais

como um sujeito externo e representativo do que na sua efetiva existência ou

aplicação conceitual. O delírio do soundscape digital, a beleza do pixel, a

relação mecânica entre corpo/tecnologia transformam-se em um placebo

comunicacional.

O projeto busca entrar na contemporânea reversão estética, moral e psíquica

do que possa ser a tecnologia digital, além de sua poética social e não o

dispositivo em si. A minha perspectiva é a de penetrar a tecnologia - sob o

poder mercadológico do sistema corporativista - entrar em seus conceitos

explodindo-os, como um tipo de hacker. Penetrar os seus paradoxos, os quais

legitimam e prescrevem os condicionamentos invisíveis da comunicação

contemporânea, isto é, penetrar o “organizador digital de carne”, usufruindo a

cultura digital de maneira não dualista.

Nesse sentido, Orkut, MSN e 2nd life são dispositivos que "organizam a carne"

e que são também "carne". Esses elementos tecnológicos, integrados e

digeridos socialmente, são ferramentas que propõem novos paradigmas em

uma pseudo-descentralização centralizada. Promovem autonomia, reproduzido

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dualismo, estabelecendo normalidades comunicacionais, (parâmetros de estilo,

de dress code, de beleza, de linguagem), propondo corpos e erótica, enfim

transformando as dinâmicas da comunicação contemporânea. Na coreografia,

esses elementos trazem uma estética caseira, além de um deslocamento do

que se normalizou.

Gente ou animal?

Escolhi apresentar o organizador de carne como um tipo de tratado de

etologiaix em uma maneira falso-didática. As diferenças e as semelhanças

entre o ser humano e o animal são exploradas ludicamente através de citações

de vários autores em múltiplas visões, sejam elas antigas, contemporâneas,

antiquadas, inovadoras, "orientais" ou "ocidentais". Parti do interesse pelo

absurdo, em um correr atrás do rabo metafórico. Depois entendi, que o

absurdo localizava-se em problemas contemporâneos tais quais indícios de

fundamentalismos que servem-se da biologia, da antropologia e da psicologia

para afirmarem-se. Ainda hoje, como na França, discute-se a diferença entre o

ser humano e o animal, chegando-se em conclusões sobre o ADN para que, em

seguida, decida-se sobre leis de imigração. Isto é o que organiza a carne

francesa, mas também a carne da imigração e da política de troca, de fronteira

e de limite, ou seja, a política contemporânea. Assim, na coreografia não

existe nem a pretensão, nem a intenção, muito menos o interesse em achar

respostas de quais seriam as partes “animais” dos humanos e nem aquelas

sociais. A reflexão e os conteúdos das citações são ignorados completamente,

servindo de elemento para evidenciar e tornar os parâmetros funcionais.

Em uma das cenas, estou em pé atrás de uma mesa rosco, e atrás de um

computador laptop PC, que manipulo. Presa na mesa rosco está uma tela de

madeira na qual projeta-se uma imagem em uma tela de madeira: uma avatar

feminino de textura fotográfica, de um programa de text-speach da marca

oddcast. O avatar tem cabeça e torsos bastante evidenciados, como se fosse

um jornalista, em um fundo vermelho do qual se vê, na parte lateral superior,

um logo do DEIC com uma águia. Eu manipulo o computador e uma voz em off

é ouvida. Novamente um jogo de ambigüidade e autoria, além do duplo

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avatar-pessoa manifesta-se. Quem esta falando, eu ou o avatar? De quem é

aquela voz? Quem esta mandando a voz? A voz que sai do speaker é a do

computador?

“A diferença entre o ser humano e o animal é que o animal age por impulso,

já o ser humano tem a capacidade racional de escolher, decidir e controlar-se,

o que preserva sua integridade física e outras.”

“Chihuahuas nascem por cesariana. As cabeças desses cachorros são tão

grandes que tornam impossível o parto natural. Apesar de serem cabeçudos,

não possuem as cabeças chatas como as dos nordestinox. Já os pequineses

têm focinho diminuto como o de Janet Jackson. Os habitantes de Bombaim,

São Paulo e os Skinhead tem dificuldades respiratórias.”

Trabalhando na esfera da ilusão e da manipulação, apresento as coisas de

maneira hesitante e incerta confundindo o que é verdadeiro e falso - na base,

no tratamento e no conceito, revelando um tipo de absurdo da racionalidade

organizada. A etologia é um pretexto para enfrentar percepção e ética de

conceitos ligados à mentalidade colonial, já que o animal é considerado tão

primitivo, nativo, selvagem e inferior quanto o colonizado, ao mesmo tempo

em que, segundo o etólogo Steve Baker (2000), ambos desenvolvem-se na e

acompanham a contemporaneidade em suas natureza e cultura.

“Comer, beber, dormir, nascer, morrer etc são condicionamentos que

pertencem a todos, mas nem todos percebem isso.”

“O animal puxa carroça com ser humano. Já o ser humano pode puxar uma

carroça seja com outros seres humanos ou ainda puxar uma carroça com

papelões e recicláveis.”

“O ser humano é um bichinho muito querido. Quando morre, a tristeza pode

ser muito sentida. Ou não. Depende.”

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“A cultura é uma herança contínua. Varia de país para país, de cidade para

cidade e existem várias culturas todas diferentes. Segundo o francês Lévi-

Strauss, algumas culturas são mais primitivas do que outras. Por exemplo, a

cultura dele não é. Já com Gilles Deleuze aprendemos que se você nasce

francês, o melhor mesmo é suicidar-se.”

MSN – um exemplo de comunicação contemporânea

Oi

Oi

Tudo bem?

Tudo

E vc?

Tudo

Onde vc tá?

SP

Ah...

E vc?

Eu tb

Ah...

Tá sozinha?

Nao

E vc?

Eu tb nao.

organizador de fila 2

Como que em um sistema de segurança de um aeroporto, no centro de arte

Georges Pompidou, no Museu d’Orsay e no Museu do Louvre, todos em Paris,

as pessoas esperam, em fila, para entrar e visitar as obras. Em julho de 2007

(quatro meses depois da criação do organizador de carne), eu e Laurent

Goldring (artista, escultor e fotógrafo francês) exploramos aqueles contextos.

Eu sirvo de modelo. Assimilo-me às pessoas da fila. Entro e saio muitas vezes,

umas cinqüenta, dos sistemas de segurança desses espaços de arte. Laurent

explicitamente filma.

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Ele filma a mim e as pessoas na fila, todas no mesmo organizador de fila que

foi objeto-fetiche da coreografia. As pessoas em estado de espera, com uma

mesma sintonia e em um estado de corpo de quem se prepara para não se

sabe bem o quê... estranho. A cada vez que eu abro a minha bolsa para os

seguranças, a cada vez que eu passo pela entrada, pergunto-me se eles estão

ou não entendendo aquela repetição. A ambigüidade é que não se sabe se eles

ignoram a minha ação. Coincidentemente, o centro Pompidou exibe o

documentário "Shoah", de Claude Lanzmannxi. Talvez por uma associação

casual da minha psicologia (será?), eu tive muito medo. Foi duro para mim e

acho importante sublinhar neste texto, que é principalmente um relato de

artista. Como artista da dança, incorporar essa esfera (e também o trauma?)

foi bastante estranho, complexo e exigente.

Nosso discurso artístico, meu e de Laurent Goldring, relaciona-se com o

absurdo, com a política do corpo, com o horror e de certa forma com o

trauma, neste caso específico, o de uma memória do presente e de um

testemunho corporal. Assimilando a manifestação da tendência

fundamentalista contemporânea, essa pesquisa que engloba também o projeto

“organizador de carne”, serve-se de um tipo de fazer-atitude-ação estruturada

pela arquitetura dos espaços, transformando-o em instalação, vídeo, fotografia

ou escultura. Penetramos nas arquiteturas e agenciamentos do corpo recriam

novos princípios e banalizam velhos motivos de tragédias.

Tudo no organizador de carne é descentralizado como na metrópole

comunicacionalxii. Mortos, Orkut, Josh S.xiii, 2nd life, Chapolin Colorado, Michael

Jackson, Helena Katzxiv, DEIC, microfone, CPFxv, Sheila Ribeiro, caixa de

guitarra, organizador de fila, tela de madeira, MSN, etc. Em termos semióticos,

todos os elementos do organizador de carne são, em permutação contínua,

carne, recipiente e organizador, ou seja, seus elementos ajudam a entender o

que é fundamentalmente a carne, o organizador e o recipiente dos dispositivos

de agenciamento humano.

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“Em uma conferência publicada aqui em 2005, o filosófo italiano Giorgio Agamben ampliou a

noção de „dispositivo‟ do pensador francês Michel Foucault. Propôs que qualquer coisa com

capacidade de orientar, controlar, determinar, assegurar os gestos, as condutas e os discursos

dos seres viventes poderia ser entendida como um dispositivo... É com esse conceito ampliado de „dispositivo‟ é que se pode pensar o Organizador de carne.

Se o sujeito é o que resulta da relação entre os seres vivos e os dispositivos, como diz Agamben, a necessidade de identificar os dispositivos transforma-se em uma ação política, e dela o

organizador de carne se desincumbe muito bem. Nos faz ver, com as situações variadas que

apresenta, que o poder não se preocupa em esconder seus atos de exceção porque nos faz acreditar que eles são a norma (Katz, 2007).

Cu do mundo e cultura digital

Relacionar a expressão “cu do mundo” como referência e parâmetro de

localização psico-geográfica, a simbologia da bunda em toda a sua

complexidade da história cultural brasileira, valores institucionalizados e

publicidade é, para mim, bem mais possível e realizável na obra coreográfica

do que nesse texto. Nesse sentido, apresento essa parte procurando estimular

a reflexão dessa intersecção, sabendo da importância dessa abordagem e

esperando que alguém mais competente do que eu possa elaborar conceitos

pertinentes.

Decidi colocar a frase “O Edgar Morin é um filósofo francês bem aqui no meu

cu” na sinopse do projeto organizador de carne, pelo seu efeito publicitário:

neste caso, “Edgar Morin” é símbolo de poder legitimado e “cu” o de cultura

local. Foi uma brincadeira antropológica partindo das preocupações de “o um e

o outro”, auto e hetero, por ser importante, ao enfrentar questões de poder,

compreender o que é “cu” e o que é “Edgar Morin”, ou seja, o que é cultura

local e o que é a violência simbólica.

Classicamente e no Ocidente, o cu é desejo e obscuridade, começo e fim,

entrada e saída. Aqui, o cu é também localidade e borda, visto que o dualismo

não cabe mais nas análises da cultura. É localidade subjetiva e borda da

cultural local; é o coração das expressões popularesxvi, portadoras de

moralismo, doçura, fatalismo e “brasilianidade”. O cu é a porta de entrada

escondida, semi-impenetrável, deste tipo de visão de mundo. Edgar Morin, por

sua vez, funciona aqui como um ícone da legitimação institucional, de um tipo

de instituição acadêmica e do pensamento. Ele é um código autorizado, assim

como Deleuze, Derrida e Guattari. Neste sentido, tanto o cu quanto o Morin

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não existem per sei. Suas cognições são deslocadas, assim como os valores da

contemporaneidade na qual todo mundo de fato existe, mas nem todas as

existências são legítimas. O que torna uma existência legítima é contextual.

O “cu do mundo” não é mais nem periferia, nem centro. É um local para o

“Edgar Morin”, para a instituição. O “cu do mundo” é considerado emergente e

é portanto a boca que fala e que beija o Edgar Morin. Seria a ameaça e o

desejo de um novo tipo de colonialismo? É no diálogo entre o poder legitimado

e a manifestação da localidade que encontram-se os interstícios das relações

de poder contemporâneas.

Quando um avatar entende e manifesta que “quem tem cu tem medo”, ele

quebra os parâmetros de controle dualista do próprio 2nd life, parâmetros da

1st life, pois penetra nos próprios sentidos profundos, de política e de erótica.

Dessa maneira o cu não é dissimulado em, por exemplo, “ânus”, impedindo o

desdobramento da violência simbólica e cortando da lógica da dominação.

Será que o contexto atual quer “comer o cu” rebatendo com um tipo de

antropofagia (ou continuando a mentalidade colonial) ao inventar o já

inventado, ou seja, as culturas híbridas, sincréticas e o direito à existência pela

auto-representação. O poder dominante, i.e. os vetores que legitimam a visão

de mundo dessa turma/espécie/gueto/raça/estilo “Morin”, quer agora integrar

o “cu do mundo”?

I had to cross it and I did it - parâmetros para éticas contemporâneas?

Quando se é estrangeiro, de “outra” classe, de “outro” gênero, pode-se não

entender ou mal-entender a linguagem. Por exemplo, ignora-se a linguagem

ao ser autônomo, politizado ou simplesmente por ser uma pessoa chata. Pode-

se desconsiderar estruturas comunicacionais por dicotomia, revolta ou por

estratégia. A composição, ou seja a “organização da carne”, é o trânsito do

hetero e do auto controle. É a composição que evita matar ao sentir ódio, fugir

ao sentir medo assim como fazer sexo, toda vez que o desejo se apresenta.

Page 13: Odc Poderes Imateriais

O que é ser elegante? Onde começa e onde acaba a inconveniência? E o

civismo? Participar dos dispositivos democratizados da nova tecnologia (my

space, 2nd Life, roupas com chip), importar-se com eventos claramente

políticos (imigração clandestina, comunidade européia) é elegante, é

inconveniente ou é ato civil? Como os dados dessas realidades coabitam? E o

que significam ao coabitarem?

Gonna kill and destroy, I am not an animal boy (Ramones)

A composição das linguagens contemporâneas cruza uma permutação de

status coabitante e de exclusão. As classes são flutuantes. Os grupos de

qualquer natureza já não impõem respeito. Os profissionais profissionalizam-

se. Os profissionais não-oficiais trabalham. A universidade e a pesquisa estão

em crise. A subjetividade é um valor discutível e dependente. A política

morreu. Bancários, padeiros e professores não acreditam no que fazem e só os

carroceiros de papelão, malabaristas de semáforos e vendedores de flor de

bar, sendo eles a curva do rio, mostram algum parâmetro concreto.

Projetando matéria bruta desejante, como insinuações de pequenos tabus, de

racismo e do politicamente correto, organizador de carne é um grande

“whatever”xvii. Tudo é descentralizado e dissimulado. Os mortos não são

mortos, são fotos de vários tipos de funerais e de mortos postadas no Orkut. O

2nd life perde sua função completa, já que vira vídeo editado, voltando à

cultura analógica. O herói falido da América Latina, Chapolim Colorado, é

também MSN. Michael Jackson é o seu cover no carnaval de Salvador. As

cenas são como as pesquisas do Google, onde uma palavra-chave traz várias

realidades associadas (ou não), os corpos criando assim vetores de tensão

entre si, cruzados e relacionados intimamente, como na internet.

Organizador de carne vive a hesitação e indaga as construção das novas

éticas contemporâneas, no tornar-se gente por autoria incerta. A reflexão

pertinente é aquela da flutuação, das entrelinhas, da sinergia hipnótica,

construída inclusive pela tecnologia e pela publicidade conseqüentes da cidade

Page 14: Odc Poderes Imateriais

- o arbítrio é virtual, a escolha é marketing dependendo sempre da composição

do imaterial. Portanto a dança na hesitação, o contexto-cadáver e o corpo-

Zumbi são camuflados e revertidos em um “fatalismo ativo”. Quem e o quê

organizam sua carne? O fatalismo ativo é aquele que apesar de tudo quer

viver, é o que transforma terror em possibilidade, é o deboche e a poesia doce

como em um tipo de samba urbano e digital. Será?

Em “organizador de carne” tudo é dissimulado em um agenciamento preciso e

meticuloso, é pseudo, falsamente acessível e falsamente inacessível. Nem as

coisas, nem o seu contrário podem ser. É a composição do deslocamento e da

ambigüidade suprema da contemporaneidade. As coisas são mesmo não

sendo: como na cultura digital, como na cultura mestiça.

O cruzamento é um dos problemas do poder contemporâneo e partir dele

pode-se escolher ficar onde se está, ultrapassar, cruzar, ignorar (como um

animal faria). O cruzamento é presente e os limites, fronteiras e espaços

comuns estão em trânsito. Quais seriam os parâmetros pertinentes para

enfrentarmos as influências de pensamento que abordam rizoma e “corpo sem

órgãos”?

Eu proponho a visão não cartográfica da “comida por quilo”. Como desenvolver

um método que enfrente a manifestação cultural espontânea da comida por

quilo, onde a mistura de estéticas, de códigos, histórias e poderes vivem

transformando-se continuamente e contextualmente? Como relacionar a

comida por quilo e a cultura digital? Esses desafio e ângulo seriam, para mim,

um cruzar necessário. Um cruzar que penetra, compõe e transforma o

“organizador de carne” em elemento vital.

I’ve been to the São Paulo Police Department and there was a hall much bigger

than this one here. Here at this place, Josh and I will try to reproduce the São

Paulo Police Department’s relationship to the line organizer. The purpose is

organizador de carne which has been chosen and produced by Rumos Itaú

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Cultural Dança and presented here. We will care for the dynamics of the line

organizer.

I had to cross it.

I did it.

Check it out!

Por isso tive que cruzar.

Organizador de carne

Ficha técnica

Conceito e direção geral Sheila Ribeiro

Elenco Sheila Ribeiro e Josh S.

Som Josh S.

Assistência de direção Carolina Laranjeira

Produção executiva Olívia Pontes, Maria Isabel Ribeiro (dona orpheline)

Produção técnica Rafael Ortega

Pesquisa digital Daniel Corsi

organizador de carne foi viabilizado pelo Rumos Itaú Cultural Dança 2007

em São Paulo e no Teatro do Dirceu em Teresina (PI), sendo posteriormente

produzido na mostra Corpoinstalação do SESC Pompéia (SP) e na exposição de

arte e tecnologia Memória do Futuro do ITAÚ Cultural (SP).

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humano. Belo Horizonte: Autêntica.

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Zuckerman, Solly. c1998. The ape in myth and art. S.l.: Verdigris Press.

Outras referências

Site: www.ctheory.net

Artista: Rabih Mroue

Programa televisivo: Cidade alerta

Musica: animal boy (ramones)

i Bondage é um tipo prática fetichista relacionada ao sadomasoquismo na qual o prazer consiste em

amarrar e imobilizar seu parceiro ou pessoa envolvida. ii O conceito de “corpo” é datado e contextual. Prefiro aqui falar de “pessoa” quando trata-se de ser-humano e de corpomídia (Katz) quando trata-se de elemento estético-político. iii O conceito de pós-humano foi elaborado por Jeffrey Deitch em 1992 ao ser

curador de exposições de arte chamando-as de "Post-Human: novas formas da figuração na arte comteporânea" em Torino e em Kassel. Para ele, este termo comporta

o cruzamento entre carne e tecnologia que transforma a identidade em

híbrida e mutante. iv Racha: gíria vulgar e popular, sinônimo de vagina. v O projeto organizador de carne pode ser visto no youtube.com ou ainda através do site

donaorpheline.com vi 2nd life é a forma slogan oficial de referir-se ao Second life. vii Bodycorpse, Canevacci, 2007. viii “under construction” conceito filosófico da cibernética. ix Etologia é a ciência que analisa os costumes e as tradições dos animais em seu ambiente natural. x Neste texto integrante da coreografia, as palavras “nordestino” e “Skinhead” não concordam com os

seus artigos em plural, fazendo alusão aos contextos paulistanos onde o artigo é pronunciando no plural

e o substantivo que o acompanha, no singular. xi Shoah (catástrofe), do jornalista e cineasta Claude Lanzmann, é um documentário feito a partir de

entrevistas aos sobreviventes dos campos de concentração, testemunhas passivas e antigos nazistas. xii “metropoli comunicazionale”, Canevacci, 2005. xiii Intérprete e compositor no projeto coreográfico. xiv Crítica de dança que figura entre as imagens exibidas em uma das cenas da coreografia. xv Cadastro de pessoas físicas. xvi Exemplos destas expressões populares: “Pimenta no cu dos outros é refresco”; “quem tem cu tem

medo”; “passarinho que come pedra sabe o cu que tem”; “não tem merda no cu pra cagar”; “tá com o cu

na mão”, “cu do mundo”, entre outras. xvii Decidi usar a palavra inglesa whatever por não existir uma justa expressão em português,

aproximando-se vagamente de uma mistura entre “deixa pra lá” e “não tem jeito”.