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 MULTIPLICIDADE DE  DEUSES DEMÓNIOS GÉNIOS  E  ANIMAIS VENERADOS  COM UM  ARDOR ESPANTOSO  RESSURGIU  A PARTIR  DA DECIFRAÇÃO DOS VELHOS  HIERÓGLIFOS E  DO DESENVOLVIMENTO DA  EGIPTOLOGIA P OR  TRÁS DE UMA  APARÊNCIA ESTRANHA BIZARRA  MESMO OS DEUSES  DO EGITO  HABITAVAM  UM UNIVERSO DE PENSAMENTO REFINADO  QUE  ABRIGAVA DO  MUNDO  E DA EXISTÊNCIA  HUMANA. NUMA  LINGUAGEM ACES SÍVEL E GANTE CLAUDE  TRAUNECKER DESVENDA-NOS  A  SUTILEZA  D O S MITOS  E A  COMPLEXA NATUREZA D E  UM MUNDO MISTERIOSO E DISTANTE  QUE  CONTINUA A  NO S  FASCINAR. ISBN:  85 230 0392 4

Os Deuses Do Egito - Claude Traunecker

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M U L T I P L I C I D A D E DE D E U S E S , DEMNIOS, GNIOS E A N I M A I S V E N E R A D O S COM UM ARDOR ESPANTOSO - RESSURGIU A P A R T I R DA D E C I F R A O DOS VELHOS H I E R G L I F O S E DO D E S E N V O L V I M E N T O DA E G I P T O L O G I A POiR T R S DE UMA A P A R N C I A ESTRANHA, B I Z A R R A MESMO, OS D E U S E S DO EGITO H A B I T A V A M UM U N I V E R S O DE P E N S A M E N T O R E F I N A D O QUE A B R I G A V A

DO MUNDO E DA EXISTNCIA H U M A N A . NUMA LINGUAGEM A C E S S V E L E G A N T E , CLAUDE T R A U N E C K E R DESVENDA-NOS A SUTILEZA DOS MITOS E A COMPLEXA N A T U R E Z A DE UM MUNDO MISTERIOSO E DISTANTE QUE CONTINUA A NOS F A S C I N A R .

ISBN: 85-230-0392-4

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FUNDAO UNIVERSIDADE DE BRASLIA

Claude Traunecker

Reitor: Joo Cludio Todorov Vice-Reitor: Srgio Barroso de Assis Fonseca

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OS DEUSES DO EGITO

EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASLIA

Conselho Editorial

Alexandre Lima lvaro Tamayo Aryon Dali Igna Rodrigues Dourimar Nunes de Moura Emanuel Arajo (Presidente) Euridice Carvalho de Sardinha Ferro Licio Benedito Reno Salomon Mareei Auguste Dardenne Sylvia Ficher Vilma de Mendona Figueiredo Volnei Garrafa

Traduo de Emanuel Arajo

A Editora Universidade de Braslia, instituda pela Lei n2 3.998, de 15 de dezembro de 1961, tem como objetivo "editar obras cientficas, tcnicas e culturais, de nvel universitrio".

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Direitos exclusivos para esta edio: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASLIA SCS - Q. 02 - Bloco C - n9 78 - Edifcio OK - 2S andar 70.300 - 500 - Braslia - DF ' FAX: (061)225-5611 Copyright 1992 by Presses Universitaires de France Ttulo original: Ls dieux de l'Egypte

Sumriow ''

Introduo 11

CAPTULO lFontes e estado dos conhecimentos 13 /, As fontes 13 Diversidade das fontes 13 As grandes compilaes 14 Os rituais 15 Hinos, textos mitolgicos e mgicos 16 Listas de deuses 18 2. Histrico dos estudos 19 Antes de J.-F. Champollion 19 Monotesmo e politesmo 21 A escola moderna 23 3. Alguns conceitos 23 Multiplicidade de abordagens 23 Pensamento e ao 25\a catalogrfica elaborada pela dos antigos egpcios O mundo

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao poder ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizao por escrito da Editora. Impresso no Brasil EDITOR MARCELO CARVALHO DE OLIVEIRA PREPARAO DE ORIGINAIS WILMA G. ROSAS SALTARELLI REVISO FTIMA REJANE DE MENESES E WILMA G. ROSAS SALTARLU

EDITORAO ELETRNICA MAURCIO SABINO DE ARAJO ROCHACAPA

CRISTINA GOMIDE (Formatos Design e Informtica)

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SUPERVISO GRFICA ANTNIO BATIST FILHO E ELMANO RODRIGUES PINHEIRO ISBN: 85-230-0392-4 Biblioteca Central da Universidade de Braslia. Traunecker, Claude Os deuses do Egito / Claude Traunecker; traduo de Emanuel Arajo. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1995. 143 p.: il. Ttulo original: Ls dieux de 1'Egypte CDU 291.212 (32) .

CAPTULO 2

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T 777

1. A realidade geogrfica e social 27 O mundo niltico 27 Paisagens e deuses 29 As desordens das guas, do cu e dos homens 30 2. O homem 32 O homem na criao 32 O homem do real 33 O homem do imaginrio 35

CAPTULO 3Os deuses e seu universo 39 1. O aparecimento dos deuses 39 As antigas teorias 39 Os dados arqueolgicos 40 As teorias atuais 41 2. A natureza divirta 42 A terminologia do divino 42 Os nomes dos deuses 44 Os elementos da personalidade divina 47 3. O espao e o tempo dos deuses 50 O espao dos deuses 50 O tempo dos deuses 52 4. Lngua e subsistncia dos deuses 55 A lngua dos deuses 55 A subsistncia dos deuses 57

O traje 69 Coroas e toucado 70 4, Imagens para ler 11 V

CAPTULO 5

A sociedade divina 73 /, O modelo familiar 73 Pares e paredros 73 Procriao e nascimento 74 Os deuses-meninos 75 Famlias e tradas 76 2. Os grupamentos divinos 77 Da Dada Ogdada 77 Enadas e grupos divinos 79 Os deuses-multido e seus animadores 79 3, Hierarquia e recrutamento dos deuses 80 Ascenso a divindade 80 As soberanias divinas 83 Gnios e demnios 84

CAPTULO 4A aparncia dos deuses 59 1. Formas e transformaes 59 2. O corpo divino 60 O antropomorfismo 60 Matria, cores e odores 61 A idade dos deuses 62 Os andrginos 62 Os seres hbridos 64 As aparncias animais 65 3. As atitudes e os atributos 66 As posturas 66 Os acessrios divinos 67

CAPTULO 6As funes divinas 89 L Os atares da criao 89 Os relatos 89 A imagem cosmolgica 90 O mundo da antecriao 92 As divindades/conceitos da criao 94 2. Os procedimentos cosmognicos 96 O demiurgo e o desejo de criar 96 A colina, o escarro e a masturbao 97 O espao imaterial 98

O Verbo, o pensamento e o arteso 99 O pntano, a flor, o ovo e o lodo 100 3. A organizao do universo 102 A Idade de Ouro e a revolta 102 O destino do demiurgo e os deuses-mortos 105 Os causadores divinos de perturbao 107 4. Funes particulares 109 As funes complexas: o exemplo de Osris 109 A animao das funes complexas 110 Imanncia e transcendncia 112 Amenfis IV e o atonismo 112

l

Os deuses fora de sua cidade 124 Os deuses-personificaes das cidades 125 2. Os deuses e as provncias 125 Os riamos 126 As listas geogrficas antigas 127 As compilaes tardias 128 3. Os deuses das marcas e das fronteiras 129 As portas do deserto 129 Os mercenrios das marcas do Delta 129 Os deuses-hspedes da Nbia 130 Os deuses nbios 132 4. Os deuses de fora 132

CAPTULO 7Os deuses e o mundo dos homens 115 L Os meios de comunicao 115 Do mundo divino ao dos homens 115 Dos homens aos deuses 117

5. Deuses do Egitofora do Egito 135 Os deuses cmplices do poder colonial 135 Os deuses exportados 136 Concluso 139 Bibliografia 141

2. A presena divina na terra 118 Os animais 1.193. Os deuses e o rei 120 O conceito de Maat 120 4. Os deuses e os indivduos 121 Os deuses na conscincia individual 121 Os deuses como recurso de um grupo social 122 Os deuses repelidos, constrangidos ou ameaados 122

CAPTULO 8A geografia e os deuses 123 L Cidades e deuses 123 O deus da cidade 123

IntroduoEsta no uma cincia pra encher a cabea com todas as extravagncias dos fencios e dos gregos, e sim para saber o que levou os fencios e os gregos a essas extravagncias.Fontenelle, 1657-1757, De l'origine ds fables, p. 275.

Papiros, esielas, templos c esttuas no cessam de falar dos deuses do Egito e fornecem inmeras informaes sobre esse assunto. Mas-que desordem nejsa abundncia! O homem moderno, EbTtuado unidade do indivduo, ainda que divino, fica bastante embaraado diante dessa multido mvel de seres sublimes cuja ascendncia flutua merc das fontes. A abordagem geogrfica, cmoda no plano enciclopdico, totalmente desorientante: as mais modestas divindades locais ostentavam o glorioso epteto de grande deus. Quanto aparncia desses seres, uma de cujas virtudes era precisamente a faculdade de transformao, 6 ainda mais enganadora. Raros eram os que se contentavam com uma nica funo. Eram numerosos os que se declaravam o nico do primeiro instante. Alm disso, os deuses no permaneceram imutveis durante trs milnios de histria. , portanto, bem difcil, nessas condies, dispo-los em grupos de grandes e pequenos, maiores e menores, csmicos e locais. Na trama dos documentos, os deuses egpcios zombam, dessas categorias e escapam por entre as malhas da rede. Poliformes e polivalentes, parecem-nos inacessveis. E no obstante existem e respondem a uma coerncia.

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Essa coerncia reside no documento, nica realidade antiga que ainda nos 6 acessvel. Nessa religio sem dogma e sem livro cannico, a existncia dos deuses estilhaada, fragmentada em tantas parcelas vivas quanto os documentos disponveis. Estes, fixados no tempo e obra de uma pessoa ou de uma comunidade, retiram o mundo divino do lugar e do instante conforme sua convenincia e num alvo preciso. Era preciso, portanto, fazer algo: os deuses tinham necessidade dos homens, e a segurana destes dependia inteiramente da benevolncia daqueles. Tal ao o ritual: palavras e gestos eficazes, mas fugidios. Na busca dessa eficcia, o telogo local manipulava deuses e mitos, combinava os nomes, funes e aparncias de seres imaginrios, conjugava as tradies ancestrais de sua cidade com os ltimos achados dos colegas ritualistas da cidade vizinha, glosava um velho papiro descoberto na biblioteca do templo, luz das ideias da poca c do fim a atingir. Na edio precedente deste volume,1 o saudoso F. Daumas logrou xito ao apresentar o conjunto do mundo dos deuses da terra do Egito adotando um esquema geogrfico. Mais modestamente, gostaria de fornecer ao leitor alguns instrumentos conceituais extrados da 'caixa de ferramentas' do velho telogo, a fim de lhe facilitar o acesso ao imaginrio dos antigos egpcios. Para comodidade do leitor, ordenamos os fatos, exemplos e regras segundo um plano que pode dar a impresso de uma sociedade divina homognea e fora do tempo. A iluso perigosa, mas tal perigo o preo a pagar se se quer penetrar nesse mundo desconcertante e orientar-se no labirinto divino do antigo Egito.Com o mesmo ttulo e integrando a mesma coleo francesa, 1965. [N. do T.]

CAPTULO l

Fontes e estado dos conhecimentos1. As fontes Diversidade das fontes So inmeras as fontes concernentes aos deuses egpcios. O Estado, o fara, a sociedade faziam parte de um universo onde os deuses se apresentavam cotidianamente nos mais nfimos aspectos da vida. Essas fontes podem dividir-se em duas categorias: X .'profanas' e 'religiosas'. A primeira compreende os objetos, monumentos ou documentos cuja finalidade primeira no cultual," tnas onde os deuses esto presentes: por "exemplo, umlTcfiaTcre' rigclITOTneando-pela enumerao de deuses cuja proteo se invoca em benefcio do nobre destinatrio, ou ainda a decorao de um espelho cujo cabo, ornado com o rosto de Hathor, evoca, por intermdio da deusa celeste unida ao astro solar, uma jovem de encantos resplandecentes. Entre as fontes 'profanas', os documentos literrios ocupam lugar parte. Os textos qualificados de 'contos' tiram sua inspirao do mundo divino. Com frcqtlncia, trata-se de textos cifrados, que glosam de forma divertida mutaes, quer polticas, quer culturais, e particularmente religiosas. Por fim, os ensinamentos, forma literria muito antiga, pem em cena um venervel personagem que, no crepsculo da vida, transmite a seu filho um conjunto de preceitos prticos. Esses ensinamentos erigem o painel de uma sociedade ideal cujos princpios se fundam nas relaes entre os deuses e os homens. As fontes mais especificamente religiosas comportam os objetos e monumentos em relao direta com um culto ofi-

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ciai, um culto privado ou qualquer manipulao que se refira ao imaginrio dos egpcios. A decorao dos templos , de longe, a fonte^mais abundante para quem deseja sondar o mundo dos deuses egpcios. As incontveis cenas de oferendas dos templos tardios mostram o rei, homem-emblema da sociedade egpcia, oficiando diante dos deuses. Os deuses so representados e descritos. Contudo, essa fonte tambm a mais delicada de utilizar, pois tais cenas e representaes fazem parte de sries correspondentes a regras gerais, tanto de forma quanto de contedo, que desempenham um papel capaz de determinar os eptetos ou funes da divindade, e at sua natureza. As grandes compilaes Determinados textos religiosos atravessam toda a histria egpcio, ampliados ou reduzidos, modificados ou glosados, reinterpretados, ilustrados. A mais antiga dessas compilaes conhecida sob o nome de Textos das pirmides. Ornam as paredes dos aposentos funerrios de reis e rainhas do fim da quinta e da sexta dinastias e formam um conjunto de 759 captulos de extenso muito varivel.Alguns egiptlogos viram a uma coleo de escritos dspares, outros os textos recitados durante o sepultamento real, outros ainda uma espcie de guia do rei defunto acompanhado de sua biografia mtica. Por muito tempo, admitiu-se que esses textos tinham suas razes nas religies prhistricas, mas por diversos aspectos referem-se a um Estado estruturado, que o dos reis do Antigo Imprio.

tram-se numerosos emprstimos dos Textos das pirmides. Essa compilao conta com 1.185 captulos, muitos reutilizaddj a partir do Novo Imprio no Livro da sada ao dia, composto de 192 captulos e mais conhecido sob o nome de Livro dos mortos. Conforme a necessidade, as frmulas dessas compilaes mudam de suporte e passam do culto funerrio ao culto divino. As decoraes dos templos ptolomaicos reutilizam antigos captulos dos Textos das pirmides, na verdade do Livro dos mortos (osis de Siwah: captulo 17 do Livro dos mortos), Entre as grandes compilaes, deve-se contar os livros conhecidos sob os nomes evocadores de Livro do que existe no Duat (Mundo Inferior) ou Livro do Imduat, Livro das cavernas, Livro das portas. Essas grandes composies ornam as paredes das tumbas reais do Novo Imprio, mas foram rapidamente transpostas em benefcio do particular, em especial o Livro do Imduat. No sculo IV a.C., aparecem em Tebas novas compilaes funerrias, os dois Livros das respiraes, cuja composio , na verdade, bastante disparatada e apresenta numerosas variantes. Os rituais Alguns rituais, amplamente difundidos, so conhecidos por diversas verses sobre vrios suportes, como o antiqussimo ritual da abertura da boca (animao de esttuas divinas, defuntos e mmias) e o ritual divino dirio, srie de 66 atos cultuais segundo um papiro de Berlim, celebrado em todos os templos (cuidados com a pessoa divina: toucador, vesturio, alimentao).

Mais tarde, uma parte desses textos originalmente reservados salvao real foi transposta em benefcio dos particulares. Nos Textos dos sarcfagos, pintados no interior dos esquifes de altos personagens do Mdio Imprio, encon-

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Outros rituais, mais pontuais, chegaram-nos igualmente transcritos em papiro: o ritual para Amenfis I, um. soberano divinizado; o ritual do embalsamamento; o ritual da confirmao do poder real etc. O divino pai Nesmin chegou ao outro mundo munido dos rituais das lamentaes de sis e Nftis, de repelir Apfis, a litania dos nomes de Apfis (papiro Bremner Rhind). Seu colega, Pasherinemin, completou seu Livro dos mortos com os rituais de proteger a barca, de perseguir Seth e seus confederados, de perseguir o maligno, das glorificaes de Osris e do que fazia sair Sokris (papiro Louvre N 3.129).

transposio da luta entre Ahbis e Bata, deuses do 18- nomo do Alto Egito; Conio do Deus do Mar, ou ainda o mais clebre e irreverente, as Aventuras de Hrus e Seth. Certos relatos, as monografias, foram compostos pafta estabelecer a justificativa mtica de um santurio e so reproduzidos na base das portas ou no nos do templo.

Conhecemos outros livros e rituais pelas decoraes dos templos (ritual funerrio de Osris no ms de khoiak, a proteo dos leitos divino e real etc.). Certas cerimnias so descritas como dramas sagrados que pem em cena os deuses: o mito de Hrus em Edfu, o nascimento divino celebrado nos mamises da poca tardia/ do qual se conhecem as verses histricas do Novo Imprio (nascimento da rainha Hatshepsut e de Amenfis Hl). Hinos, textos mitolgicos e mgicos Entre os hinos mais clebres, deve-se citar as duas grandes composies consagradas a Amon, do museu de Leide (papiro Leide I, 350) e do museu do Cairo (papiro Bulaq 17), o Grande hino ao Nilo, sem esquecer os famosos hinos a Aton das tumbas de Tell el-Amarna.Alguns hinos, como as exortaes ao temor divino e talvez os cantos do ritual de Mut, eram escandidos pela multido na porta do templo. As aluses mitolgicas so frequentes nos contos: Conto dos dois irmos, Termo inventado por Champollion, mammisi, 'lugar de nascimento', para designar a pequena construo anexa ao templo, onde se representava o mistrio anual do nascimento do deus-menino. Os mamises mais bem conservados, todos da poca ptolomaica, so os de Denderah, Filas e Edfu. [N. do T.]

Outras histrias integraram-se nas composies funerrias, como o Livro da vaca celeste (tumba de Sti I, catafalco de Tutankhamon). Os textos mgicos so a fonte mais rica em aluses mitolgicas. Essa abundncia constitui tanto uma riqueza quanto uma fonte de dificuldades, na medida em que os contextos, os suportes e o uso desses documentos eram diversos. Os testemunhos do pensamento religioso egpcio que nos chegaram foram extrados de uma mesma fonte? A religio egpcia no se apoia nem sobre uma revelao divina nem sobre uma tradio proftica; no h, portanto, nem doutrina codificada nem texto cannico no sentido estrito do termo. Deviam existir algumas frmulas bsicas. J. Assmann restituiu uma srie de sete hinos solares padres. S a partir do Novo Imprio se constata uma tendncia para fixar na parede de pedra os livros e rituais at ento confiados ao papiro, mas o alvo visado permanece essencialmente a eficcia local do documento.Consultavam-se as bibliotecas dos templos, Casas da Vida, para responder a necessidades precisas e imediatas. Seus escribas nlo eram os guardies de uma verdade textual congelada, mas dotilos que utilizavam os antigos livros para assegurar a eficcia dos velhos rituais e seus desdobramentos novos.

O conhecimento do mundo divino constitua, igualmen_te, um fatQr_da-p.oderL enquanto algumas compilaes se mostravam amplamente acessveis, a exemplo do Livro dos mortos, outros textos eram considerados perigosos.

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Determinados rituais comeam por terrveis ameaas ao leitor que revele o contedo aos profanos: o indiscreto que divulgasse o ritual osiriano 'fim da obra' "ser massacrado", diz o autor do papiro^ Salt 825. H, pois, deuses e mitos cujo conhecimento se reservaVa aos manipuladores admitidos.

Essas listas so muito prximas dos inventrios das esttuas divinas gravados nas paredes das criptas dos templos de Tod e de Denderah. A grande lista de divindades que se estende pelas paredes do santurio do templo de Arnon de Hbis, no osis de Kharga, um inventrio de imagens divinas, veneradas nos grandes centros de culto, agrupadas pelo nomo, e no um quadro da composio do panteo egpcio.

Listas de deuses Os egpcios no sentiram necessidade de estabelecer um inventrio de seus deuses. O esforo dos hititas, que fizeram laboriosas listas de concordncia entre seus deuses e os de seus vizinhos, devia faz-los sorrir. Essa ausncia deve-se prpria natureza do panteo, em que a_divindades_apair_ cem, desaparecem, mudamjieuaoiae__dej:uri.o-se.gundo as circunstncias^ Os poucos repertrios conhecidos de divindades inscrevem-se num contexto limitado e visam a uma aplicao precisa.A tumba do Ramss VI 6 um monumento dedicando a "todos os deuses do Dual" (Mundo Inferior), para que o rei "faa um novo inventrio a fim de renovar seus nomes". A essas espcies de Bottins dos infernos correspondem os Who is who dos cultos, que so os manuais de geografia religiosa (o Livro do Fayiim, o papiro geogrfico de Brooklyn, o papiro Jumilhac). A finalidade desses documentos era expor os elementos teolgicos, fortalecendo os deuses locais nas funes universais e, por conseguinte, ritualmente eficazes (verpp. 25-26 e 118).

2, Histrico dos estudos Antes de J.-F. Champollion O prestgio da civilizao egpcia parecia incompatvel com o aspecto brbaro dos deuses, e para os escritores antigos, cristos ou no, impunha-se a ideia de uma religio de iniciados ante um povo ignorante e supersticioso. Seria esta a posio de numerosos exegetas, historiadores e sbios, e perpetuou-se at os nossos dias. O estranho panteo egpcio com seus deuses meio humanos, meio animais, e outros seres hbridos, inspirava zombarias e desdm aos gregos. "Tu adoras o boi e eu o sacrifico aos deuses55} ironiza a respeito de um egpcio o personagem de uma pea de Anaxandride (sculo IV a.C.). Porm a sabedoria da antiga civilizao egpcia tinha um grande prestgio junto aos pensadores gregos. Segundo a tradio, os matemticos Tales, Pitgoras e Eudxio de Cnido, os legisladores Slon e Licurgo, e sobretudo o filsofo Plato, estiveram no Egito, extraindo dos sacerdotes egpcios parte de seu saber. "Interessei-me apaixonadamente pelos livros de Hrus e de fsis", faz dizer Luciano de Samsata a Pitgoras. Diodoro da Siclia chegou at a imaginar uma estadia de Homero no Egito.Segundo Diodoro da Siclia, os sacerdotes egpcios ensinavam uma "doutrina secreta". Clemente de Alexandria admite que, por trs "do monstro que se espoja num tapete prpuro", os egpcios "s do a conhe-

No templo de Sti I, em Abido, duas listas totalizam 113. divindades agrupadas por santurios ou capelas. Neste caso, como na maior parte das listas conhecidas, invocam-se os deuses no mbito de uma litania, e seu nome, sua ordem e sua natureza so variveis. Na poca tardia, as paredes do nos, espcie de armrio de pedra contendo a imagem habitada pelo deus, portam representaes-inventrios das imagens divinas locais associadas aos deuses residentes.!

Designao da lista telefnica anual francesa. [N. do T.]

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cer a verdade por enigmas, alegorias, metforas e outros tipos de Figuras". Conforme o apologista cristo Ainbio (morto cerca de 327), a turba v apenas o animal, enquanto. o sbio venera nele conceitos eternos^ Na Assembleia dos deuses, de Lucian de Samsata, o prprio Zeus declara: "Sua religio est cheia de emblemas, ,..e nem por isso se deve escarnecla quando no se iniciado". No sculo III a.C., Evmero de Messina desenvolvia uma tese estica que via nos deuses homens superiores divinizados em razo de seus atos benfazejos para com seus semelhantes. Nos primeiros anos do sculo II, Plutarco analisa o mito de Osris, que considera uma sucesso de alegorias, a fim de resgatar uma viso transcendental, dando uma resposta a questes de seu tempo.

A partir de 1809, aparecem os primeiros volumes da colossal Description de 'Egypte, suma das observaes receitadas durante a expedio ao Egito de Bonaparte (1798-1800). Para os autores da Description, o segredo dos iniciados no era o conhecimento de uma transcendncia suprema e nica, mas o dos mistrios da natureza. Os deuses so "composies fantsticas" ou "emblemas", invocados para "pintar os fenmenos naturais e fornecer de algum modo uma imagem sensvel deles". Monotesmo e politesmo Desde 1824, os textos religiosos egpcios tornaram-se, enfim, diretamente acessveis. Mas seu contedo era ainda mais desconcertante_que_as imagens dos deuses. Para J.-F. Champollion;^Amon^RaJera o ser supremo. Durante grande parte do sculo XIX, a tese dominante seria a de um monotesmo mais ou menos afirmado ou secreto.Exemplos: E. De Roug (1860), Sir P. L Page-Renouf (1879), tese henotesta: cada fiel escolhia um deus que se tornaria o nico; H. Brugsch (1884), telogo do Bem, inato no corao do homem; os mitos so a transposio transcendida de acontecimentos polticos (G. Mnspero).

Alguns decnios mais tarde, os pais da Igreja no se incomodavam muito com os deuses egpcios, que relegavam categoria de demnios e anjos decados, enquanto a religio egpcia ainda era uma realidade viva: a ltima inscrio hieroglfica conhecida, datada com certeza, comemora o enterro do touro Bchis em 340 de nossa era. Em Filas, o culto de sis manter-se-, por motivos polticos, at 535. Nos sculos XV e XVI, redescobriram-se as obras dos gegrafos e historiadores antigos. Peregrinos e viajantes visitavam o Egito. No geral, o Egito aparece aos pensadores do Renascimento como o pas da sabedoria secreta transmitida aos iniciados por intermdio da_escrta hierngh"fca._ A Contra-Refbrma deu novo impulso s pesquisas: o Egito torna-se o bero de um pensamento pr-cristo habitado pelo Esprito Santo. Os deuses, segundo Atansio Kircher (1652), so alegorias obscuras que encobrem a encarnao do Verbo Eterno.Nojsculo das Luzes, a viso predominante a de uma religio de iniciados(jr7nBTs'Rrs^Jque reinava sobre uma turba supersticiosa, e zxilatra, e o Ser Supremo s era conhecido pela jite,. (Voltaire, 1753). Os egpcios "no adoravam, como ns, apenas um deus nico e invisvel", mas "sob nomes e figuras convenientes, os diferentes atributos" (abade L Mascrier e Benot de Maillet, 1735).

Em 1879, Paul Pierret exps um quadro da religio egpcia em que a figura central o deus nico oculto que se manifesta no Sol. Os deuses que o acompanham so imagens simblicas, espcie de hierglifos que descrevem o curso solar, e o deplorvel culto de animais n5o passa de uma corrupo tardia. Pelo fim do sculo XIX, dois acontecimentos desviaram o pensamento dos pesquisadores; de um lado, a colonizao da frica e o descobrimento de sociedades totmicas (comparativismo de Frazer), e, de outro, a descoberta dos Textos das pirmides (1881), revelando que os egp-

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cios do Antigo Imprio eram politestas. Victor Loret (1902) foi o primeiro a utilizar o modelo totmico, seguido por Emile Amlineau (1908), Philippe Virey (1910) e, sobretudo, por Alexandre Moret (1925 a .1935). Para eles, os nomos, isto , as diferentes regies do Egito, eram antigos cls com seu totem. A. Moret rejeita a ideia de um monotesmo de iniciados, A tese totmica foi vivamente combatida (Van Gennep, 1908; G. Foucart, 1908; E. Meyer, 1906; K. Wiedemann, 1925). A oposio mais estruturada, porm, viria de Adolf Erman, em Berlim (publicaes de 1905-1937), e de seus discpulos. Esta escola, que se poderia qualificar de pragmtica, fundava o pensamento religioso egpcio sobre um sentimento de temor ante a natureza. Os deuses arcaicos foram conservados, mas a evoluo da civilizao conduziria os egpcios da 18a dinastia a uma concepo mais elevada da divindade, prxima do monotesmo. Depois s restou uma longa decadncia. A evoluo das teologias foi conseqlncia de lutas polticas e de rivalidades do clero.Essas ideias foram retomadas, aprimoradas e desenvolvidas por K. Sethe (1930) e por H. Kees (1941). parte algumas teorias marginais, com frequncia comparativistas (G. Wainwright, 1938: o deus-cu e a chuva; E. Baumgartel, 1947: a deusa-me e a vaca; H. Junker, 1940: o Grande Deus arcaico), o consenso em torno das ideias de K. Sethe e H. Kees bastante geral. Mas parte da escola francesa, representada por E. Drioton (1945), Sainte Pare Garnot (1947), J. Vandier (1949), Christiane Desroches Noblecourt (1960) e F. Daumas (1965), continua fiel ao monotesmo de elite.

est a ideia implcita de que todo pensamento religioso deve conduzir concepo de uma divindade transcendental nica. Unf >autor questionava-se mesmo "se os egpcios, em ltima anlise, no foram monotestas sem o saber"! ?

A escola moderna Em 1946, o egiptlogo e (assirilogo /horte-americano Henri Frankfort descartou o dilema poli/monotesmo e rejeitou qualquer julgamento de valor. Intentou penetrar na lgica dos antigos e introduziu as noes de deuses-foras, de teologia descritiva do universo, de diversidade de abordagens, de pontos de emergncia mltiplos. As snteses propostas desde a dcada de 1960 apiam-se nessas noes (P. Derchain, S. Sauneron e J. Yoyotte)-. Em 1971, E. Hornung publicou uma obra que faz um balano do mundo divino egpcio, beneficjada por um consenso bem amplo. A partir de 1975, J. Assmann, especialista nos hinos solares, estampou uma srie de estudos que relanaram o debate sobre a aparente contradio entre um mundo divino amplamente politesta e o conceito de divindade nica (ver p, 112). 3. Alguns conceitos Multiplicidade de abordagens Os deuses so potncias animadoras da natureza. Esta situa-se no plano da realidade. Apesar de sua infinita diversidade, o real factualmente nico. Um objeto possui apenas uma realidade palpvel e quantificvel. Todavia, para alm

Todas essas abordagens se colocam entre dois extremos: de um lado, um politesmo pragmtico, reflexo da histria poltica do Egito, e, de outro, um pensamento religioso altamente espiritualista. O pragmtico A. Erman lastima a proximidade, em certos textos, de uma viso "grandiosa de Deus" com "imagens mticas grosseiras", tais como o ovo primordial ou a criao pelo escarro divino. Nessas reaes

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CLAUDE TRAUNECKER

'luminoso'. Nos Textos das pirmides, o rei defunto tornava-se um esprito-a/fc/i celeste. O esprito-