Os Devaneios Do Caminhante Solitário

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/24/2018 Os Devaneios Do Caminhante Solitrio

    1/5

    Os devaneios do caminhante solitrio, by Jean-Jacques Rousseau

    Comprei por impulso, por causa do ttulo, um pequeno volume da coleo pocket da L&PM

    intitulado Os devaneios do caminhante solitrio, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor

    que me remetia s aborridas aulas de histria da poca do ginsio.

    Para minha surpresa, o velho e sbio Rousseau me fez mudar radicalmente de opinio, mesmo

    antes de terminar, com muita satisfao, a leitura de seus devaneios l no longnquo sculo

    dezoito. Uma espiada na cronologia da vida de Rousseau j entrega: ele no passou toa por

    esse .

    Nasceu em 1712, em Genebra; sua me falece poucos dias aps o parto e seu pai o entrega a

    uma famlia aos dez anos de idade. Aos 16, com os hormnios a mil, acolhido por uma jovem

    viva de 28, senhora de Warens, a quem chamava freudianamente de mame. Sero amigos

    e amantes por toda vida, o que no deixa de ser encantador.

    Entre 1729 e 1730 vai bater perna pela Frana e pela Sua, depois de viver um tempo em

    Turim, onde troca o protestantismo pelo catolicismo. Nessa vagamundagem passa um tempo

    em Annecy, Lyon, Fribourg, Lausanne, Neuchtel, Berna e Soleure. Pr fechar com estilo, no

    ano seguinte viaja a Paris. Entre as andanas e algumas longas estadias com mame,

    Rousseau se dedica ao estudo da msica e vai to fundo nisso que desenvolve um novo

    sistema de notao musical, na altura em que chegava aos 30. Palmas para ele.

    No vero de 1743 acompanha o embaixador da Frana em uma viagem a Veneza, e aproveita o

    dolce far niente para publicar sua Dissertao sobre a msica moderna. Deixa Veneza no anoseguinte depois de brigar com o embaixador. Esfria os nimos ao conhecer Thrse Levasseur

    com quem se casar duas dcadas depois, pobre moa. Dizem que nesse perodo o irritadinho

    Rousseau entrega trs filhos a um asilo de crianas. E paro por aqui, porque essa histria vai

    longe. bom saber que sua vida no foi l muito tranqila no, parte as boas viagens e o

    reconhecimento intelectual celebrado ainda em vida.

    Rousseau causou muita polmica com suas obras na rea da poltica e da educao o que o

    levou a ser expulso de alguns lugares, forando-o a uma vida errante por um perodo. Por tersido o primeiro escritor de sua poca a atacar a instituio da propriedade privada,

    considerado um precursor do socialismo moderno.

    O autor de Os devaneios um homem j no finalzinho da vida, mais comedido, mais sbio e

    mais romntico tambm. Nos dez captulos, enumerados por Caminhadas (primeira

    caminhada, segunda caminhada, etc...) vamos conhecer alguns fatos bastante particulares da

    vida de Rousseau, o que nos leva a ter uma empatia imediata com ele, pelo menos assim se

    passou comigo.

  • 5/24/2018 Os Devaneios Do Caminhante Solitrio

    2/5

    O legal que, mesmo no conhecendo a obra desse grande personagem, filsofo, msico e

    botnico (grande paixo teve pela botnica o Rousseau), no h como no gostar desse texto

    antigo com boas sacadas sobre a condio humana. A impresso que se tem a de que ele

    saa para caminhar e aproveitava os momentos de solido e prazer em meio natureza para

    repensar a vida e quando voltava para casa punha no papel aquilo que sua mente conseguia

    organizar. Diz ele que essas horas de solido e de meditaoso as nicas do dia em que sou

    eu mesmo por inteiro e perteno a mim sem distino, sem obstculo, e em que posso dizer

    de verdade que sou o que a natureza quis.

    A tradutora dessa pequena edio em portugus, Julia da Rosa Simes, tem um qu de dedo-

    duro, achei at graa nisso; em notas de rodap vai mostrando alguns dos lapsos de Rousseau

    quanto a citaes de autores clssicos e de algumas localidades, o que mostra que ela fez a

    lio de casa direitinho, toda aplicadinha.

    na segunda caminhada que a coisa toda comea a acontecer pr valer. Dizem que Rousseau

    tinha mania de perseguio, um preo a pagar por aqueles que dizem o que pensam sem dosar

    as conseqncias; caminhar, portanto, era uma chance de despistar os mal aventurados que o

    perseguiam. Esses enlevos, esses xtases que sentia algumas vezes ao caminhar assim

    sozinho, eram prazeres que devia a meus perseguidores: sem eles nunca teria encontrado nem

    conhecido os tesouros que carregava em mim mesmo.

    Algumas consideraes sobre o ato e o hbito de caminhar compartilhadas por Rousseau me

    trouxeram memria os escritos de um grande pacifista, o monge budista vietnamita Thich

    Nhat Hanh, famoso por ensinar a tcnica da meditao em movimento. J lemos sobre ele aqui

    no Odeprica, e vou transcrever um trecho de outra obra desse mestre que ganhei de

    presente de minha irm e que linda, tanto em sua aparncia, com ilustraes tocantes de

    Mayumi Oda, quanto em contedo, simples e profundo como um koan budista. O ttulo do

    livro Present moment, wonderful moment:

    Nossa mente pula de uma coisa para outra, como um macaco pulando de galho em galho sem

    descanso. Os pensamentos tm milhes de caminhos, e somos sempre levados por eles para o

    mundo do esquecimento. Se ns pudermos transformar o local de nossa caminhada em um

    campo de meditao, nossos ps daro cada passo com conscincia plena. Nossa respirao

    estar em harmonia com nossos passos, e nossa mente estar naturalmente em paz. Cada

    passo que damos ir reforar nossa paz e alegria e resultar num fluxo de calma energia que

    fluir atravs de ns. Ento podemos dizer: A cada passo, sopra um vento suave.

    Lembrei-me dessa passagem de Thich Nhat Hanh por causa de outra escrita por Rousseau na

    segunda caminhada, que diz assim:

  • 5/24/2018 Os Devaneios Do Caminhante Solitrio

    3/5

    O hbito de entrar em mim mesmo por fim me fez perder a sensao e quase a lembrana de

    meus maces; aprendi, assim, por minha prpria experincia, que a fonte da verdadeira

    felicidade est em ns e que no depende dos homens tornar miservel aquele que sabe

    querer ser feliz. H quatro ou cinco anos experimentava essas delcias internas que as almasafetivas e suaves encontram na contemplao.

    Na terceira caminhada os pensamentos ganham maior profundidade: Rousseau reflete sobre a

    morte, afirmando que o estudo de um velho, se ainda tem algum a fazer, apenas aprender a

    morrer e que ficar feliz se conseguir aprender a sair da vida mais virtuoso do que nela entrou.

    Todos os velhos tm mais apego vida que as crianas e saem dela com maior m vontade

    que os jovens. Como todas as suas obras foram para essa mesma vida, vem a seu fim que

    trabalharam em vo. Todos os seus esforos, todos os seus bens, todos os frutos de suas

    laboriosas viglias, tudo deixado quando partem. No pensaram em adquirir algo em suasvidas que pudessem levar na morte.

    Para Rousseau, a sociedade parece ser a origem de todo o mal, no sentido de uma maldade

    que tem como conseqncia a desconexo do homem com a sua divindade interior, ou Eu

    superior, como queiram chamar. Suas escapadas, de certo modo, eram o antdoto contra esse

    mal, trazendo tona a ideia de que s mesmo a solido e, se possvel, o contato com a

    natureza, fossem capazes de aliviar o sofrimento de uma alma apartada.

    A meditao no recolhimento, o estudo da natureza, a contemplao do universo foram umsolitrio a se erguer de maneira constante ao autor das coisas e a procurar com uma dvida

    inquietante a finalidade de tudo o que v e a causa de tudo o que sente. Quando meu destino

    me lanou na torrente da sociedade, no encontrei mais nada que pudesse deleitar por um

    instante meu corao.

    Aos quarenta anos, na maturidade e com toda a fora do entendimento Rousseau determina

    um turning point em sua vida: a mudana se faz necessria, pois o homem, palavras suas,

    precisava de uma regra fixa de conduta para o resto de meus dias. Essa regra de conduta

    encontra-se no isolamento, e aqui me lembrei de outra leitura, Walden, de Thoreau, que

    tambm buscou esse afastamento, ainda que temporrio, da sociedade.

    dessa poca que posso datar minha total renncia ao mundo e esse gosto vivo pela solido

    que no me abandona desde ento. A obra que iniciava s poderia ser realizada em retiro

    absoluto; exigia longas e serenas meditaes que o tumulto da sociedade no permitia. Isso

    me obrigou a levar por algum tempo outro modo de viver, no qual logo me senti to bem que,

    tendo-o interrompido apenas fora e por poucos instantes, retomei-o com todo o meu

    corao e a ele me limitei sem dificuldade assim que pude, e quando a seguir os homens me

    obrigaram a viver sozinho, descobri que ao me isolarem para me tornar miservel eles haviam

    feito mais por minha felicidade do que eu soubera fazer por mim mesmo.

  • 5/24/2018 Os Devaneios Do Caminhante Solitrio

    4/5

    Na quarta caminhada hora de questionar-se sobre a mentira e sua memria volta aos

    dezesseis anos, fazendo-o sofrer horrores por conta de uma falsa acusao de roubo, episdio

    de sua vida que s nos resta lamentar. Dessa caminhada anoto um belo ditame: Se preciso

    ser justo com o prximo, preciso ser verdadeiro consigo mesmo; uma homenagem que o

    homem honesto precisa render sua prpria dignidade. Falou bem.

    Quinta caminhada: uma ode ao cio. Deliciosa seqncia de dias passados s margens do lago

    de Bienna, na Sua, uma regio pouco freqentada por viajantes (...) mas interessante para

    os solitrios contemplativos que gostam de se embriagar vontade com os encantos da

    natureza e se recolher num silncio no perturbado por outro barulho que o grito das guias e

    o rumor das guas que caem da montanha...

    No conheo a obra de Rousseau, mas no tocante a esse livro, no veremos tantos momentos

    de felicidade quanto os que ele descreve naqueles meses de descanso na casa do lago e tudo

    soa to bonito, e to verdadeiro, que temos vontade de viver a mesma experincia por ele

    vivida ali.

    Considero aqueles dois meses o momento mais feliz de minha vida, to feliz que foi suficiente

    para toda a minha existncia, sem deixar nascer uma nica vez em minha alma o desejo de

    outro estado.

    Na sexta caminhada hora de falar sobre as boas aes e suas observaes sobre o ato de

    fazer o bem ao prximo so bastante lcidas: vi que para fazer o bem com prazer seria

    preciso agir com liberdade, sem coao, e que para perder toda a doura de uma boa ao

    bastaria que ela se tornasse um dever. E filosofa, l no finalzinho do captulo: Nunca

    acreditei que a liberdade do homem consistisse em fazer o que quisesse, mas sim em nuncafazer o que no quisesse.

    O momento de maior devaneio, e que mais me surpreendeu, aconteceu na caminhada

    seguinte, a stima. O mote desse captulo a paixo de Rousseau pela botnica e, por

    extenso, a natureza em geral. No fosse Rousseau quem fosse, eu diria que ele andava

    enamorado de alguma religio ou filosofia oriental; certo que o homem quando em contato

    direto com a natureza e afastado da vida mundana se volta mais para o interior, o prprio

    meio o convida a isso. No toa, grandes mestres de variadas ordens religiosas ou

    espiritualistas buscaram momentos de solido em ambientes isolados de bosques, montanhas,

    desertos ou cavernas.

    Para alguns, o contato mais ntimo com a natureza pode levar a algum tipo de transcendncia

    (um samadhi, para usar uma expresso do hindusmo), especialmente se isso o que se busca.

    Percebi lampejos desse sentimento de transcendncia, no sei bem se este o termo

    adequado, em algumas passagens que transcrevo a seguir:

    Quanto mais o contemplador tiver a alma sensvel, mais se entregar aos xtases que essa

    harmonia lhe provoca. Um devaneio doce e profundo se apodera de seus sentidos, e ele se

    perde com deliciosa embriaguez na imensido desse belo sistema com o qual se senteidentificado. Todos os objetos particulares lhe escapam; ele nada v e nada sente seno no

  • 5/24/2018 Os Devaneios Do Caminhante Solitrio

    5/5

    todo. preciso que alguma circunstncia especfica restrinja suas ideias e circunscreva sua

    imaginao para que possa ver em partes esse universo que se esforava por abarcar.

    (...) Essa maneira de pensar, que sempre reduz tudo a nosso interesse material, que em tudoprocura proveito ou remdios e que faria olharmos para toda a natureza com indiferena se

    sempre estivssemos bem, jamais foi a minha (...) s encontrei verdadeiro encanto nos

    prazeres do esprito ao perder de vista os interesses de meu corpo.

    (...) No, nada de pessoal, nada que diga respeito ao interesse de meu corpo pode ocupar de

    verdade minha alma. Nunca medito, nunca sonho de maneira mais prazerosa do que quando

    esqueo de mim mesmo. Sinto xtases, encantamentos inexprimveis, que me dissolvem, por

    assim dizer, no sistema dos seres, que me identificam com toda a natureza.

    A oitava caminhada eu passo. Vou direto para a nona, bonita caminhada que empea assim: a

    felicidade um estado permanente que no parece feito para o homem neste mundo.

    Filosofa feito sbio budista ou hindu, algumas linhas mais frente, quando afirma: Tudo

    muda nossa volta; ns mesmos mudamos, e ningum pode garantir que amar amanh

    aquilo que ama hoje. Assim, todos os nossos projetos de felicidade nessa vida so iluses.

    Aproveitemos o contentamento do esprito quando ele ocorre.... Depois no diga que no

    reparou.

    Nessa caminhada chama a ateno o fato de Rousseau se dirigir s crianas com enorme

    carinho, o que me fez pensar se isso no tem alguma relao com os filhos que deu para

    adoo, embora aqui os sentimentos sejam da mais pura alegria; no final, no deixa de ser

    uma metfora: os pequenos so a expresso da felicidade justamente por conta de sua

    natureza simples e aberta e isso o que Rousseau tenta nos dizer com essa caminhada, que a

    felicidade encontra-se nas pequenas coisas, nos pequenos prazeres, na soma das pequenas

    alegrias que temos ao longo de nossa existncia.

    Enfim, chegamos dcima e ltima caminhada do sbio peregrino solitrio. Est inacabada,

    mas suas palavras se dirigem todas mulher que primeiro amou, a senhora de Warens. uma

    bonita declarao pstuma, onde o autor abre o corao e agradece melhor das mulheres,

    como ele a chama. Quase sem querer que percebemos que o gosto pela solido j estava

    latente no corao do jovem Rousseau, quando afirma categoricamente: Preciso me recolher

    para amar.

    Leia: Os devaneios do caminhante solitrio. Jean-Jacques Rousseau. L&PM, outono de 2010.