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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 64
OS DILEMAS DA COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL: UM CASO DE
“RESISTÊNCIA SOCIOPÁTICA À MUDANÇA”
Diogo Valença de Azevedo Costa*
Resumo: Os trabalhos recentes das Comissões da Verdade no Brasil, atuantes nos níveis nacional, estadual e municipal, vêm sendo realizados em meio a uma série de críticas e ataques de setores conservantistas da sociedade civil, alguns dos quais remanescentes da ditadura empresarial-militar de 1964. O objetivo deste artigo será o de caracterizar tais críticas e ataques como um exemplo de “resistência sociopática à mudança”, categoria elaborada por Florestan Fernandes nos idos da década de 1960, a qual indica a defesa intransigente por parte das elites das classes dominantes de seus privilégios nas estruturas sociais de concentração da riqueza, cultura e poder. Acreditamos que a “resistência sociopática à mudança” é um componente de forte expressão nos Estados capitalistas da periferia, combinando o uso sistemático da violência, sua reserva última de poder, com violações dos direitos humanos e a criminalização da pobreza e movimentos sociais. Os dilemas atuais da comissão da verdade se situam nesse quadro histórico de longa duração.
Palavras-chave: Comissão da Verdade; ditadura militar no Brasil; violência; resistência sociopática à mudança Abstract: The recent works of Truth Commissions in Brazil, at the federal, state and municipal levels, have received a lot of attacks and negative criticism by conservative strata of civil society, some of which originated from entrepreneurial-military dictatorship of 1964. The purpose of this article will be to characterize such criticism and attacks as an example of “sociopathic resistance to change”, category elaborated by Florestan Fernandes in the 1960s, which indicates an intransigent defense of privileges, by elites of dominant classes, on social structures of wealth, culture and power concentration. We believe that the “sociopathic resistence to change” is a component of strong expression in capitalist States of periphery, which combines the systematic use of violence, their last reserve of power, with human rights violations and criminalization of poverty and social moviments. The current dilemmas of Truth Commission are located in this historical long-duration perspective.
Key-words: Truth Commission; military dictatorship in Brazil; violence; sociopathic resistence to change
* Professor Adjunto no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB). Realizou estágio pós -doutoral na Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e na Universität Basel (Unibas) e atua como professor permanente no Programa de Pós -
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
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Introdução
As primeiras partes deste artigo foram escritas no primeiro semestre de 2014,
com o intuito de serem apresentadas num encontro internacional sobre a violação de
direitos humanos de crianças e adolescentes que seria então realizado na Argentina em
outubro desse mesmo ano. Essa circunstância explica em parte o caráter às vezes
informativo, para o público estrangeiro, de acontecimentos históricos aqui bastante
divulgados e de conhecimento mais ou menos geral. Ao desistir de enviá-lo para o
referido encontro, o artigo ficou engavetado e incompleto. Ele avançava, no entanto,
uma interpretação sociológica sobre o arcabouço social, político e cultural da violência
no Brasil. Com a divulgação recente do relatório final da Comissão Nacional da
Verdade (CNV), em 10 de dezembro de 2014, surgiu a oportunidade de completar a
argumentação e apresentar quais seriam os desafios atuais da luta por justiça contra as
graves violações dos direitos humanos ocorridas no Brasil principalmente nos anos de
chumbo da ditadura militar.
Uma palavra a mais de esclarecimento ainda seria necessária. O presente artigo
não se volta para um resgate do debate historiográfico mais recente sobre os motivos
políticos da eclosão do golpe de 1964. Grande parte das reinterpretações do golpe
possuem o objetivo muitas vezes implícito de atenuar as suas características repressivas
e procuram justificar a existência e necessidade da própria ditadura. A ideia de que se
tratou, por exemplo, de um contragolpe ou de uma contrarrevolução, pensados de forma
a impedir a implantação de uma ditadura de esquerda no país tem sido bastante
divulgada pelos meios de comunicação de massa e por grupos sociais, como o Clube
Militar, contrários à instalação das Comissões da Verdade. Essa visão tem recebido
também um forte respaldo acadêmico, de correntes historiográficas revisionistas, as
quais resgatam o ponto de vista dos setores sociais favoráveis ao regime militar na
época mesma de eclosão da ditadura1. Não será propósito deste artigo recuperar um
debate tão permeado por paixões políticas e ideológicas, não menos por ódios e
preconceitos de classe. Cumpriria apenas mencionar que a interpretação a seguir
avançada se baseia na tese de que a ditadura militar se enraizava nas transformações da
1 Para um panorama mais abrangente sobre esse debate público a respeito do caráter da ditadura
de 1964 e suas razões históricas, ver Demian Bezerra de Melo, O golpe de 1964 e meio século de
controvérsias: o estado atual da questão, in Demian Bezerra de Melo (org.), A miséria da historiografia:
uma crítica ao revisionismo contemporâneo , Rio de Janeiro, Consequência, 2014.
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incorporação do Brasil ao capital monopolista internacional, já em curso nos anos 50. A
ditadura não seria apenas militar, mas envolvia parte da sociedade civil, especificamente
os setores empresariais, o que tem levado alguns autores a caracterizá-la como ditadura
empresarial-militar. O termo civil se prestaria a confusões, pois daria a ideia de que a
sociedade civil, ou a sociedade como um todo, teria apoiado o regime militar,
desfrutando a ditadura de ampla legitimidade à época. Não é esse o sentido, entretanto,
em que autores como Florestan Fernandes (2006) e René Armand Dreifuss (1981)
utilizam a expressão ditadura civil-militar. Para eles, a ditadura assume um nítido
conteúdo de classe burguês e o termo civil, em especial para Dreifuss, representa a
ordem empresarial que constituiu a verdadeira base de sustentação do regime militar. É
nesse sentido que será empregado aqui o termo civil-militar, combinado muitas vezes ao
de ditadura empresarial-militar. Caberia esperar, por fim, que as futuras pesquisas
historiográficas aprofundassem os indícios de relações íntimas entre os setores militares,
incluindo as altas cadeias de comando e as pessoas dos generais-ditadores, e as diversas
ramificações da chamada iniciativa privada, um eufemismo para as burguesias internas
e externas.
Sociedade civil, Estado e capitalismo dependente
A categoria de sociedade civil recebeu nos últimos anos, em especial nas
pesquisas acadêmicas dedicadas ao Terceiro Setor e às Organizações Não
Governamentais, um uso bastante amplo e impreciso. Sociedade civil seria tudo aquilo
que negasse o Estado e deteria, por isso, um teor democrático pelo seu potencial de
participação dos indivíduos e organizações nas decisões públicas antes restritas à esfera
estatal.
Trata-se de uma ilusão de setores da classe média pretensamente apolíticos, que
se percebem como situados acima das tradicionais divisões ideológicas entre esquerda e
direita. Uma visão ingênua que acaba por mascarar os reais mecanismos de decisão das
políticas econômicas e direcionamento dos recursos públicos, dominados por círculos
restritos envolvendo as grandes corporações internacionais e seus funcionários
distribuídos no aparelho estatal.
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Não é preciso gastar tantas linhas para explanar essa categoria. Sociedade civil
ou sociedade burguesa (bürgerliche Gesellschaft) nada mais é do que sociedade de
classes. Ela não se opõe ao Estado, mas a ele se articula a fim de garantir a exploração
do trabalho pelo conjunto das classes dominantes sob o sistema capitalista. Por isso
falamos de setores conservantistas e reacionários da sociedade civil, para caracterizar
frações de classe da burguesia e seus agentes espalhados pelas diferentes esferas de
poder estatais, legislativas, executivas, judiciárias e militares.
Nas condições de reprodução ampliada do capitalismo dependente e de seu
padrão espoliativo de acumulação, baseado na exploração interna da força de trabalho
pelas burguesias nacionais e na extração internacional de grande parcela da mais-valia
produzida na periferia pelo capital especulativo parasitário, as burguesias periféricas
assumem um perfil violentamente autocrático, antidemocrático e antissocial de defesa
irracional de seus privilégios de classe.
A noção de “resistência sociopática à mudança” condensa esse caráter reativo e
irracional de oposição a quaisquer tentativas de democratização, por mais limitadas e
tímidas que elas possam ser, das estruturas sociais de distribuição da riqueza, do
prestígio, da cultura e do poder.
Adiante discutiremos os marcos históricos da violência política no Brasil e seu
padrão sistemático de desrespeito aos direitos humanos, aliado à criminalização da
pobreza e dos movimentos sociais, características que foram acentuadas com a ditadura
civil-militar instaurada em 1964. Com base nessa discussão, apontaremos os principais
dilemas das atuais Comissões da Verdade no Brasil.
A violência política no Brasil e a “resistência sociopática à mudança”: as raízes colonialistas do terrorismo de Estado
A violência política no Brasil remonta aos tempos coloniais. Esse padrão de
violência se recompôs na transição para o “trabalho livre” e apresenta-se, hoje, como
uma realidade inerente ao regime de classes, que não se propôs como tarefa a
descolonização total da sociedade brasileira.
As burguesias nacionais preferiram a vinculação subordinada – ainda que com
pequenas divergências de caráter econômico, em tentativas de abocanhar pedaços
maiores do bolo da mais-valia e da exploração dos trabalhadores – a um acerto de
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contas com o passado colonial, a discriminação racial e a marginalização de uma grande
massa de deserdados, funcionais para a manutenção de níveis imorais de
superexploração da força de trabalho.
A consciência burguesa no Brasil assume tons obscurantistas, autocráticos e
despóticos, disfarçados sob uma retórica liberal e democrática, para que seus privilégios
de classe sejam mantidos inalterados e intocáveis. É uma situação típica dos países de
capitalismo dependente, “nos quais o capitalismo ainda não chegou ao ápice da
descolonização” (Fernandes, 2008[1980]: 154).
Essa consciência burguesa não tem outra saída que a de renegar os princípios
clássicos da ideologia liberal e dos direitos humanos, graças a seus vínculos egoísticos
com a exploração mundial e com a dominação imperialista.
Falando das burguesias periféricas em fins da década de 1970, diria o sociólogo
Florestan Fernandes:
A consciência burguesa se debilita naquelas latitudes, nas quais a dominação externa e indireta substitui a dominação colonial em sentido
restrito e as ramificações nacionais e estrangeiras da burguesia compõem uma formação de classe articulada, com maior ou menor grau de
coalescência unificadora, preservando-se definitivamente formas intrinsecamente coloniais ou semicoloniais de relação dos opressores com os oprimidos – ou de subalternização das classes despossuídas
(FERNANDES, 2008[1980], p. 154).
Esse padrão societário exige a concentração da violência contra as classes
trabalhadoras e camadas subalternas, a qual se manifesta na intolerância e negação de
seus direitos de reivindicação. O direito irrestrito à greve, por exemplo, é sempre
julgado ilegal e ilegítimo pelos artifícios do poder judiciário.
Quaisquer mudanças, por mínimas que sejam, capazes de restringir alguns dos
privilégios quase estamentais das classes burguesas, são tomadas como ameaças à
ordem e à paz social. A reforma agrária, nesse sentido, foi violentamente hostilizada
pelos latifundiários e usineiros, no passado, e agora se encontra implacavelmente
perseguida pelos interesses do grande capital no campo.
Ao se sentirem ameaçadas por tendências de democratização da riqueza social e
de ampliação da participação política, essas classes burguesas não possuem quaisquer
escrúpulos de lançar mão da violência e do terror de Estado. O caráter sociopático de
sua resistência à mudança assim o exige.
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Foi esse padrão de violência política e de terror de Estado que se abateu sobre o
Brasil durante a ditadura empresarial-militar em 1964. Nos horizontes da história de
longa duração, essa ditadura acolheu o nosso passado colonial e marcou, como cicatriz
na pele deixada em ferro ardente, os seus opositores como inimigos da liberdade, da
civilização cristã, da família, da ordem e da democracia.
Aceitar o regime de exceção e a prática ultraconcetrada da violência em nome da
lei e do Estado não seria difícil, portanto, numa nação em que o poder de decisão e o
ritual democrático estiveram historicamente restritos a uma parcela minoritária da
sociedade civil. A realidade é completamente invertida, tomando-se esse tipo de
violência como redentora e como uma “revolução institucional democrática”.
Numa sociedade baseada na concentração de privilégios econômicos, sociais e
políticos, esse padrão de violência não é passageiro e, inclusive, seria um fenômeno
considerado normal e necessário, em especial pelas forças repressivas e pelas elites
burguesas, a fim de se manter a ordem e impedir a ousadia dos protestos populares e das
classes trabalhadoras.
Essa violência política define, de igual modo, os limites e as fronteiras entre o
humano e o não-humano, de modo a justificar os assassinatos, torturas e demais crimes
praticados por agentes do Estado. Em breves palavras, Florestan Fernandes condensou
com extrema indignação esse direito sacrossanto ao uso da violência em defesa da
propriedade privada e da espoliação do trabalhador:
A violência incorporada aos princípios dos que se atribuem a
responsabilidade de defesa da ordem, da moralidade ou da religião e de todo um padrão de civilização, se objetiva como um direito natural – ou no pior dos casos, como uma coação ‘legítima’ e ‘necessária’ que se justifica por si
mesma, por prevenir irrupções destrutivas da violência e por institucionalizar-se como «um direito sacrossanto» (FERNANDES,
2008[1980], p. 153).
Toda sociedade baseada na estratificação social e na exploração do trabalho
possui certa dose de violência institucionalizada, que se exerce em todos os níveis da
vida social, mas se concentra no Estado. É assim também com os regimes
representativos burgueses, atuando a sua democracia como uma forma de manter o
domínio sobre as classes trabalhadoras.
Essa verdade simples geralmente é negada pelos que alegam a complexidade do
Estado e a atuação nele de pessoas provenientes dos mais diferentes estratos sociais.
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Porém, afirmar que o Estado é complexo em suas múltiplas dimensões e, por isso,
assume uma autonomia relativa, não significa desconsiderar sua natureza de classe. É
importante que, dentro do Estado, sejam travados tais embates políticos, mas isso não
pode levar a substantivá-lo como uma realidade independente do fenômeno da
exploração capitalista.
Há situações em que os conflitos são canalizados e resolvidos de forma pacífica,
sem que o recurso à violência física se faça necessário. Isso ocorre em algumas
democracias ocidentais, combinada com a violência seletiva direcionada a alguns
grupos (a situação dos imigrantes em alguns países da Europa e nos Estados Unidos
seria o melhor exemplo disso) e, em especial, com a guerra externa aberta ou
clandestina voltada para a defesa dos interesses imperialistas das multinacionais
sediadas nas nações centrais. A verdade, enfim, é que a democracia ocidental repousa
sobre a violência colonial e imperialista.
No Brasil, no entanto, e no conjunto dos países de capitalismo dependente da
América Latina, África e Ásia, essa verdade é muito mais cruel. A violência
institucionalizada não comporta os seus próprios limites e a ela se abrem as fronteiras
do ilegal, do clandestino e do sadismo de dimensões patológicas. Isso é assim porque o
ódio suplanta a razão e os alvos prioritários da violência são aqueles que, como um
Gregório Bezerra, no Brasil, e um Víctor Jara, no Chile2, por serem de origem popular,
são punidos severa e exemplarmente por agentes fardados do aparelho repressivo de
Estado.
A violência, sádica e brutal, dirigida contra as organizações de esquerda que
optaram pela luta armada no Brasil foi apenas a ponta do iceberg. O objetivo final era
garantir a desmobilização dos trabalhadores, a repressão aos sindicatos, às greves e aos
movimentos em prol das reformas de base. O paradigma dessa violência foi a repressão
contra os camponeses na guerrilha do Araguaia.
A paz social deveria ser garantida para o aprofundamento da penetração do
capital monopolista no país e a manutenção dos privilégios das elites das classes
dominantes. Esse foi o papel a que se prestou parcela predominante das forças armadas
2 Gregório Bezerra (1900-1983) foi um militante histórico do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Logo após o golpe de 1964 ele foi arrastado e submetido a severas sevícias em praça pública, por
soldados do exército brasileiro na cidade de Recife. Víctor Jara (1926-1973) foi um artista popular
chileno, barbaramente torturado e assassinado no Estádio Nacional, poucos dias após o golpe militar de
Pinochet, ocorrido em 11 de setembro de 1973.
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no Brasil, combatendo o inimigo interno a favor de uma pequena nação dos mais livres
e iguais, uma rala minoria que representa o topo da sociedade civil.
Essas são as raízes colonialistas do terrorismo de Estado implantado no Brasil a
partir de 1964 e que sobrevive, seletivamente, contra as populações marginalizadas,
contra a pobreza e os movimentos sociais. Nesse sentido, pode-se dizer que as práticas
ditatoriais se institucionalizaram, evidenciando que as forças burguesas não abrirão mão
do seu último recurso de defesa, o uso da violência concentrada do Estado nos
momentos de crise hegemônica.
A “resistência sociopática à mudança” das elites brasileiras, em prol da defesa de
seus privilégios, esteve na origem do terrorismo de Estado no Brasil e ela se relaciona
com a reprodução de nosso passado colonial no sistema capitalista.
A violência dirigida contra os indígenas brasileiros e os camponeses por
latifundiários e pela ditadura – violência essa elucidada pela Comissão Nacional da
Verdade – seria um exemplo dos mais significativos da continuidade do colonialismo
em nosso capitalismo contemporâneo. Ainda como parte dessa continuidade e
reprodução do mundo colonial, a repressão ao movimento negro seria também um dos
graves componentes da ditadura militar no Brasil. A Comissão Nacional da Verdade
não orientou suas investigações nessa direção, porém a ditadura cometeu graves
intervenções na autonomia dos movimentos negros ainda hoje pouco divulgadas3.
Para elucidar mais algumas questões, abordaremos a estrutura repressiva do
Estado brasileiro e a prática rotinizada da violência no período ditatorial, sintetizando o
conteúdo de alguns depoimentos prestados às comissões da verdade. Focalizaremos
principalmente as reações sociopáticas – por parte de alguns setores civis e militares,
isto é, pelos agentes do aparelho repressivo do Estado – aos trabalhos da comissão da
verdade, a fim de indicar os dilemas da democratização da sociedade brasileira.
O aparelho repressivo de Estado da ditadura brasileira: as reações sociopáticas à
Comissão da Verdade
3 A esse respeito, Pedro Caldas Chadarevian (2009) cita três episódios que evidenciam o teor da
política de Estado da ditadura em relação ao negro: em 1969 o Conselho de Segurança Nacional
denominou de subversiva a campanha contra o racismo, fruto da influência estrangeira no país; a ditadura
impediu que intelectuais negros fossem, em 1976, a um congresso na Colômbia para debater o problema
da discriminação racial; a ditadura retirou do censo o quesito sobre a categoria raça/cor. Seria de suma
importância uma pesquisa que recuperasse os percalços do protesto negro durante a época da ditadura
civil-militar no Brasil.
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Apenas um mentiroso patológico acredita incondicionalmente na realidade de
sua própria mentira. Apesar de existir algo de patológico no sadismo da violência
dirigida contra os pobres, os trabalhadores e os movimentos sociais, esse não é o caso
da ditadura militar no Brasil. A sua mentira não é patológica e, portanto, eles não
podem fazer como Pinochet, alegar demência para não serem julgados. Poderíamos
dizer que na mentira há algo de verdadeiro e essa verdade precisa ser escondida.
Num rápido contraste entre o que os agentes de repressão do Estado assumem ter
feito por pura convicção e em defesa da legalidade democrática, de um lado, e aquilo
que omitem em termos de deturpação histórica e/ou falsificação de provas e prisões
clandestinas, de outro, é que podemos desvendar os mecanismos que vinculam a função
social da mentira consciente e premeditada – um dos cimentos e argamassas de
sustentação da sociedade com base em suas ilusões – com as ideologias políticas de
conservação da ordem.
Poderíamos acrescentar, ainda, que a ideologia política é uma mentira
inconsciente quando serve aos propósitos da dominação entre as classes sociais. De
fato, muitos militares acreditaram piamente que salvariam o País do perigo vermelho,
do comunismo e do que eles chamam, em tom pejorativo, de ditadura do proletariado.
Mas também é função da ideologia distorcer a realidade, tornando-a mais palatável para
aqueles que ainda possuem alguns escrúpulos e não se querem ver na pele de
opressores. A ideia de salvação nacional e o mito da incorruptibilidade dos militares,
com a restauração do equilíbrio econômico, omitem os entraves estruturais para a
superação do subdesenvolvimento e da dependência intensificados e legados pela
ditadura ao Brasil de hoje.
Essa é a primeira grande contradição do discurso de defesa da ditadura, que se
inscreve na ideologia da segurança nacional e no alinhamento com a superpotência
imperialista, os Estados Unidos. Argumentam que, durante a ditadura, houve progresso
econômico e que antes reinava o caos, a desordem e a irresponsabilidade do Governo
Jango na condução da economia.
Ainda está muito vivo o mito do “milagre econômico”4. O regime de exceção se
justificaria, assim, pela retomada do crescimento e restauração da ordem. A propósito,
4 O chamado “milagre econômico” se sustentou no arrocho salarial do trabalhador, configurando
aquilo que pensadores da teoria marxista da dependência, em especial Ruy Mauro Marini, chamariam de
“superexploração”. Também usada por Florestan Fernandes, essa categoria é fundamental para entender o
que se passa no capitalismo dependente com seu respectivo padrão de acumulação. Em termos resu midos,
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há toda uma memorialística atual, que fala em tom saudosista e laudatório do regime do
apartheid na África do Sul, justificando as violências lá cometidas pela existência
também de um “milagre econômico”, uma das afinidades eletivas entre a ditadura no
Brasil e o regime racista.
Não houve milagre e, sim, aceleração do desenvolvimento capitalista e
incorporação dependente ao sistema mundial. O que significa, em termos práticos,
concentração de riquezas e aumento da pobreza, endividamento externo e a montagem
de uma infraestrutura para atender os interesses das potências imperialistas e suas
multinacionais. O mito do “milagre econômico” não suporta um confronto superficial
com análises objetivas da economia brasileira da década de 1970.
A segunda contradição é que agiram por convicções nobres, em defesa da Pátria
e legitimados na legalidade democrática. Um governo ditatorial instituído por um golpe
de Estado, com uma oposição consentida, é tudo menos um governo legal. O seu apoio
inicial foi buscado em setores da burguesia, do empresariado, de frações da classe
média e elementos conservadores da igreja católica, que legitimaram um governo ilegal
e ilegítimo. Não foi o povo ou a nação que defendeu a ditadura, mas uma pequena nação
dos mais iguais e privilegiados, concentrados no topo da pirâmide social. Os saudosistas
da ditadura têm utilizado atualmente a noção de ditadura civil-militar como forma de
evidenciar o suposto apoio da sociedade brasileira ao golpe de 1964 e o regime militar
subsequente.
A terceira contradição é a de que não começaram a guerra contra a “subversão” e
o “terrorismo”. Após a explosão da bomba no aeroporto dos Guararapes em julho de
1966 na cidade de Recife, por exemplo, é que o endurecimento teria começado.
Em que pesem as prisões arbitrárias anteriores e o linchamento público de
Gregório Bezerra já no ano de 19645, os ímpetos golpistas de setores reacionários do
a superexploração representa um pagamento inferior ao custo de reprodução da força de trabalho. Esse é
outro aspecto da violação dos direitos humanos pelas ditaduras militares na América Latina, pois o
trabalhador passa a não dispor de condições de prover adequadamente o sustento da família, ameaçando a
segurança alimentar de seus filhos, crianças e adolescentes, de modo a prejudicar a continuidade de seus
estudos e possibilidade de lazer, já que tais meninos e meninas passam a ser jogados precocemen te no
mercado de trabalho precário. Além desse tipo de violação dos direitos humanos de crianças e
adolescentes, são relatados casos de filhos de presos políticos que foram obrigados a assistir à tortura de
suas mães e pais. 5 Seria de se perguntar se os soldados responsáveis pelas agressões a um homem preso,
desarmado e com mais de 60 anos de idade, receberam no mínimo uma advertência de seus oficiais de
patente superior, contra ato que ofende a ética militar. Primeiro ato de tortura da ditadura, Gregório
Bezerra foi obrigado a pisar em ácido de bateria com os pés cortados e encravados de vidro. Ainda não se
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exército são bem anteriores e remontam à década de 1950. Mariano Joaquim da Silva,
assassinado na casa da morte de Petrópolis no Rio de Janeiro, em 1971, foi preso pela
primeira vez em 1952 por suspeitas de “atividades subversivas”.
As tentativas de golpes se iniciaram já antes, em 1956, quando se procurou
impedir a posse de Juscelino Kubitschek e, em 1961, quando se instalou uma crise
política com a renúncia de Jânio Quadros e, do mesmo modo, setores civis e militares
quiseram evitar a ascensão de João Goulart à Presidência da República.
Por si só, um governo ilegal e ilegítimo é um ato de violência. Mas todo um
passado de arbitrariedades, de assassinatos de trabalhadores rurais, de miséria e
exploração nos latifúndios e usinas – que se mantém ainda hoje com a morte de
cortadores de cana por excesso de esforço6, premidos pela competição desigual da
mecanização da agricultura e pelas exigências de lucro e acumulação de capital com a
produção de combustível – constituía a base da estrutura social e política apoiadora do
golpe militar de 1964. Esse foi o projeto de nação defendido pela mão armada da
burguesia brasileira, um país de poucos, de grandes empresários, latifundiários e
usineiros.
A quarta contradição seria a de que numa guerra vale tudo e o que os dois lados
cometeram crimes. Por isso, a tortura teria sido necessária para obter informações que
impediriam outros atentados, sequestros, assaltos e execuções por parte dos
“subversivos” e “terroristas”7. Se assim foi, por que não dizem a verdade? Por que a
necessidade de forjar mortes em supostos confrontos? Por que lançar mão do crime de
fraudes processuais e deturpar provas? Justamente por não ter a cara limpa, a ditadura
precisou ocultar esses fatos e seus remanescentes ainda mantêm a lei do silêncio.
tinha chegado à sofisticação das técnicas mais refinadas de tortura, aprendidas com a instrução de
assessores militares estadunidenses. 6 Um deputado federal reacionário, conservador e defensor da ditadura militar afirma que, se as
organizações de esquerda tivessem sido vitoriosas, estaríamos todos sendo obrigados a cortar cana como
em Cuba. A verdade é que hoje se continua cortando cana no Brasil em condições degradantes e
morrendo-se justamente por conta de esforços desumanos de trabalho. 7 O exemplo da polícia peruana no combate ao Sendero Luminoso é digno de nota, por evidenciar
que na guerra nem tudo é válido. Embora motivados por uma ideologia co nservadora e, num momento
posterior subvencionados pelos Estados Unidos, os policiais envolvidos na captura do líder máximo dessa
organização política e militar – envolvida em acusações, inclusive, de assassinar camponeses, líderes de
movimentos sociais e militantes de esquerda – não se utilizaram da prática de tortura e sequer agrediram
seus prisioneiros no momento da captura. Tais policiais se limitaram corretamente a prender e entregar ao
Estado os membros da referida organização para que fossem julgados . Isso também demonstra que a
premência de se evitar outros atos de sabotagem e violência é uma mera desculpa para justificar crimes de
tortura.
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Se estavam tão certos de suas convicções, por que negar e esconder os atos
praticados em nome delas? O desrespeito à legalidade por eles mesmos impostas ao
conjunto da sociedade brasileira – com as farsas burlescas de falsificação de provas e
das supostas cenas de crimes – revela o quanto a linha tênue entre o criminoso e o
soldado lutando por suas convicções em defesa de sua pátria foi constantemente
ultrapassada, com plena consciência de que se tratavam de atos ilegais.
Num confronto armado se compreende que alguém possa morrer, mas um preso
desarmado, aos cuidados de agentes do Estado, ser torturado sem chance de defesa até a
morte é simplesmente um ato de sadismo e um crime hediondo, de lesa-humanidade e,
portanto, imprescritível. Não se pode dar outro nome a isso do que o de terrorismo de
Estado.
A quinta contradição, que é uma mera extensão da mistificação anterior, seria a
de que os dois lados em disputa detinham igualdade de condições. Não se trata aqui da
desproporcionalidade militar e do aparelho de informações, bem como do isolamento
dos grupos guerrilheiros em relação ao protesto democrático das massas e das
insatisfações populares contra a ditadura. Mas do simples fato de as vozes dissonantes
serem consideradas proscritas e serem consideradas ilegais por um regime ilegal e
ilegítimo. Não havia as condições mínimas para um livre debate e acordo entre as
partes.
Aí também se revelam toda a hipocrisia e cinismo dos que defendem esse
período sombrio da nossa história recente, pois se sugere a igualdade de direitos entre
duas partes em conflito dentro de um regime de exceção. A anistia autoconcedida pelos
militares a si mesmos seria entendida, por exemplo, como um livre acordo entre as
partes.
Essa é uma ideologia bastante repisada dentro do sistema capitalista e que
mascara os mecanismos da exploração. O patrão e o trabalhador seriam duas partes
iguais e equivalentes para contratar livremente entre si. Indivíduos em posições
desiguais de disputa são, num passe de mágica, igualados.
Esse raciocínio está na ideia do “salário justo” e se estende para a vida política,
ao se afirmar que o voto tem o poder de nivelar os homens. Não se considera, contudo,
as condições profundamente desiguais, tais como o monopólio das informações, a
parcialidade dos meios de comunicação de massa e a influência do poder econômico,
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que fazem pender os resultados das eleições a favor das situações de interesse das elites
das classes dominantes.
A sexta contradição é de que as torturas teriam sido atos isolados, cometidos por
alguns agentes do aparelho repressivo de Estado sem o conhecimento da cadeia superior
de comando militar. O depoimento do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante
Ustra, prestado em maio de 2013 à Comissão Nacional da Verdade, revela que ele e
seus subordinados diretos obedeciam ordens emanadas do alto comando do exército do
Estado ditatorial brasileiro. Embora negue a prática de tortura durante o período em que
esteve no comando do DOI-CODI, o coronel Brilhante Ustra entrou em contradições
com os relatos e documentos apresentados. Ao mesmo tempo, um dos antigos agentes
do DOI confirmou, com plena convicção, o envolvimento direto do referido coronel nas
sessões de tortura.
É justamente essa cadeia de comando, com ramificações nos altos escalões do
regime militar, incluindo o conhecimento e aprovação tácita dos generais ditadores
travestidos de presidentes, utilizada, portanto, como uma política sistemática de Estado,
que se procura por todos os meios esconder do conhecimento público.
Os indícios deixados pelos depoimentos e pelas documentações históricas
apontam para essa estrutura complexa do aparelho repressivo de Estado. Alguns dos
torturadores diretos estiveram próximos ao topo máximo da cadeia de comando e, além
disso, os cursos ministrados por assessores estrangeiros, na sua grande maioria
estadunidenses, para ensinar técnicas de obtenção de informação por meio da tortura
eram patrocinados pelas instituições militares e com anuência das patentes superiores.
O aparelho repressivo de Estado não pode ser analisado apenas sob um prisma
institucional. Suas conexões com as divisões da sociedade de classes e com as teias
internacionais de poder seriam, para utilizar uma linguagem técnica e sociológica,
algumas das variáveis explicativas do fenômeno. A sua função é justamente manter o
status quo por meio de mudanças que não ameacem as posições relativas das classes nas
estruturas desiguais de distribuição da riqueza, do prestígio, da cultura e do poder.
Há, no entanto, outro nível em que a estrutura do aparelho repressivo de Estado
pode ser focalizado, o qual se manifesta também nas reações sociopáticas aos trabalhos
da Comissão da Verdade. Esse nível é o da íntima imbricação entre a violência
institucionalizada e a violência espontânea e amorfa no seio dos organismos da
sociedade civil e do Estado.
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Esses dois níveis foram apontados por Florestan Fernandes no livro A ditadura
em questão (2008[1980]), no ensaio final “Nos marcos da violência” já citado implícita
e diretamente no corpo do presente artigo. Sem grandes esforços de definição, a
violência institucionalizada é aquela concentrada nas forças policiais e militares do
aparelho de Estado, enquanto a violência espontânea e amorfa grassaria de maneira
autodestrutiva, anárquica e anômica – isto é, não organizada politicamente – no seio das
camadas populares. Esses dois níveis não seriam excludentes entre si e suas funções,
para a mudança controlada da ordem, atuam de modo intercambiável, complementar e
solidário.
Não precisamos explicar muito o primeiro tipo de violência, tratado ao longo de
quase todo o texto. Seria preciso acrescentar apenas que a violência aparentemente
anômica e espontânea do pobre contra o pobre é a base sobre a qual se sustenta a
violência institucionalizada. O perigo suposto ou real representado pelas classes
populares, que assusta as elites das classes dominantes na defesa de seus privilégios
seculares, fomenta todo o discurso de defesa da ordem contra a baderna, a subversão e a
paz social.
O mais trágico disso tudo – e o mais triste, em termos humanos – é que o
controle social representado por essa violência “espontânea” acaba por identificar
alguns setores das classes trabalhadoras e das camadas populares com os valores
conservantistas da ordem social dominante8. Isso explica a identificação dos estratos
populares com punições severas da pessoa humana, como nos casos do linchamento,
utilizadas como demonstração exemplar de domínio e autoridade pelas elites das classes
dominantes, típicas do nosso passado colonial remoto e da nossa história republicana
recente.
8 “A massa de violência ‘anômica’ engendra e fortalece várias atitudes e orientações de
comportamento que predispõem os componentes das classes subalternas a atuar socialmente em termos da
‘defesa da ordem’ (e dos correspondentes padrões de punição e de compensação, que involucram valores
como ‘dignidade pessoal’, ‘responsabilidade individual’, ‘caráter sagrado da propriedade pessoal’ etc., e
socializam as relações das classes subalternas através do código ético, das ideologias e da submissão aos
interesses das classes dominantes) e, adicionalmente (ou concomitantemente), a exaltar as convicções e os
sentimentos prevalecentes nas classes altas, segundo os quais estas exercem uma violência natural,
necessária e, em consequência, exemplar (como se ela fosse ‘sagrada’). Se trata de um conjunto de
funções e significados sociais que, de fato, são substancialmente anômico s para o padrão aberto,
competitivo e instável da luta de classes, pois procura mantê-lo ou fixá-lo como se as classes pudessem
ter certas características estruturais e dinâmicas do capitalismo e não outras, e como se a luta de classes,
por conseguinte, pudesse ser castrada maliciosamente pela simples exposição mais ou menos extensa e
intensa das classes subalternas ao ‘caldo’ de sua própria violência espontânea, não eliminada ou absorvida
organicamente por essas mesmas classes” (FERNANDES, 2008[1980], p. 160-161).
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Esse é o padrão de violência existente na sociedade brasileira durante a ditadura
civil e empresarial-militar e que se mantém ainda hoje direcionado de maneira especial
contra a pobreza e os movimentos sociais. De maneira sensacionalista, esse caldo moral
da violência no Brasil é aproveitado de forma oportunista nos programas televisivos de
reportagem policial, nos discursos de políticos tradicionais (muitos dos quais defensores
da redução da maioridade penal) e reproduzido ainda hoje na fala dos militares da
chamada linha dura. Uma concepção tosca de justiça como punição subjaz a essa
configuração sociocultural e histórica altamente explosiva e extrema. Enfim, ela
constitui a base social para a legitimação e aprovação da violência reacionária contra os
movimentos sociais.
O essencial a reter disso tudo é que, na sociedade brasileira, o processo de
democratização não se tornará completo enquanto esse padrão de violência persistir. É
notória sua incompatibilidade com os valores e a constituição de uma “utópica
democracia pluriclassista” e de uma “sociedade civil civilizada”, em que as divergências
entre os grupos e seus conflitos de interesses sejam encaminhados por meios
institucionais. Nesse terreno, podemos dizer que a ditadura, como representação do
poder burguês, se institucionalizou em nichos específicos que atravessam os três
poderes da nossa frágil república e o quarto, que não é o jornalismo, mas o militar.
Os setores mais reacionários e conservantistas das forças burguesas no Brasil
não vão abrir mão facilmente da sua reserva última de poder, que é o seu dispositivo
repressivo ilegal e clandestino, nem da possibilidade de acionar as forças armadas nos
momentos de crise de hegemonia. O combate pelos direitos humanos pode se
transformar em mera retórica se esses elementos, incompatíveis com um Estado
democrático de direito, não forem enfrentados de modo organizado pelos setores
progressistas (dos quais podem participar indivíduos provenientes das classes
burgueses) e, fortemente, por movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, pela
reforma urbana e pela democratização da sociedade brasileira.
Os dilemas da Comissão da Verdade e a democratização da sociedade brasileira
Nas palavras de um general reformado, ex-ministro do exército já no governo
civil de José Sarney e também de uma ministra do Supremo Tribunal Federal, querer
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revogar a lei de anistia seria ameaçar a base da nossa convivência democrática pacífica
ou rasgar o acordo sobre o qual se sustenta a nossa atual paz social. Ou seja, tornou-se
um tabu político a revisão da lei de anistia, pois a anulação de uma anistia
autoconcedida seria o primeiro passo para desaprovar e deslegitimar o aparato
repressivo ilegal da ditadura. Os representantes das elites das classes dominantes
querem a todo custo evitar tal desfecho.
Apesar de pressões internacionais e dos acordos firmados pelo Brasil, a reação
conservadora conseguiu impor limites à Comissão da Verdade de modo a torná-la uma
comissão de apuração e não de justiça. Essa solução conciliatória e precária foi bastante
elogiada e aprovada como uma atitude responsável por comentadores políticos e
jornalistas, vinculados não por mero acaso a uma emissora de televisão que se
beneficiou longamente com as benesses do golpe militar de 1964.
Uma visão tão tosca de justiça, como a descrita anteriormente, só pode conceber
como revanchismo quaisquer tentativas de lutar por uma maior democratização da
sociedade brasileira e de alcançar justiça contra crimes de lesa-humanidade.
A Comissão Nacional da Verdade não teria o poder de corrigir os rumos da
democracia brasileira e torná-la consequente com os seus ideais. Nem se poderia esperar
isso dela, que corrigisse os vícios profundos de quase três séculos de colonialismo
direto, de mais um século de transição neocolonial e das etapas atuais de subordinação à
dominação externa e de capitalismo dependente. Mas caberia aqui explicitar qual seria o
seu dilema número um.
A Comissão Nacional da Verdade estabelece no artigo 1o da Lei n. 12.528, de 18
de novembro de 2011, que dispõe sobre a sua criação, o objetivo geral de “examinar e
esclarecer as graves violações de direitos humanos”. Sua abrangência alcança o período
compreendido entre 18 de setembro de 1948 e a data de promulgação da Constituição.
Enfim, seu propósito mais elevado é garantir o “direito à memória e à verdade histórica
e promover a reconciliação nacional”.
Ora, se o objetivo é proceder à reconciliação nacional e também evitar que casos
como esses se repitam em nossa história, ou seja, que não se cometam mais crimes de
violação dos direitos humanos, é necessário não só esclarecer a verdade histórica, mas
que haja justiça quanto aos assassinatos, torturas, ocultação de cadáveres e terrorismo de
Estado. Esse próximo passo não se tornou possível devido a uma correlação de forças
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desfavorável e ao apego sociopático ao passado de setores reacionários da sociedade
brasileira.
É certo que a Comissão da Verdade presta um grande serviço à nação com a
elucidação da verdade histórica, porém não se pode avançar na edificação de um novo
patamar democrático para o Brasil, sem que o dispositivo repressivo de violência contra
os movimentos sociais seja completamente deslegitimado e desmascarado como um
instrumento de dominação das classes burguesas.
A afirmação de que nossa paz social depende da preservação da anistia
autoconcedida pelos militares é uma chantagem, sinal de que a nossa democracia se
sustenta nas mentiras acima expostas. O dilema da Comissão da Verdade reside, enfim,
justamente na impossibilidade de levar até às últimas consequências o desmantelamento
do dispositivo repressivo como elemento de dominação de classe. Nesse sentido, não
será possível realizar uma verdadeira reconciliação nacional, apenas possível com a
destruição dos privilégios de classe das elites dominantes, nem prevenir
indefinidamente que acontecimentos históricos como esses se repitam.
Aliás, violações dos direitos humanos continuam ocorrendo no Brasil e são
politicamente voltadas contra a pobreza e os movimentos sociais.
Um sinal de que a covarde repressão à livre manifestação dos movimentos
sociais persiste na sociedade brasileira é a manutenção da Portaria 186, do Ministério da
Defesa, intitulada “Garantia da Lei e da Ordem”.
Essa portaria prevê em seu capítulo IV a atuação conjunta das Forças Armadas,
dos Órgãos de Segurança Pública e dos três poderes na repressão aos distúrbios da
ordem social. Esse capítulo atinge diretamente a força de futuras greves e o protesto
coletivo dos movimentos sociais.
Ao dispor, por exemplo, que dentre as ações de garantia da lei e da ordem estão
“assegurar o funcionamento dos serviços essenciais sob a responsabilidade do órgão
paralisado” e “controlar vias de circulação”, isso significa que as forças armadas e os
órgãos de segurança irão depreciar o poder de negociação das greves de categorias de
trabalhadores ligadas aos serviços essenciais e evitar a presença dos movimentos sociais
em locais inconvenientes para os poderes públicos.
A leitura de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx (2011), alertaria quanto
à possibilidade dessa portaria de inspiração fascista poder ser utilizada no futuro,
inclusive, contra os próprios poderes democraticamente instituídos.
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Na contramão dos trabalhos da Comissão da Verdade, o aparato repressivo do
Estado continua a resguardar o direito sacrossanto das classes burguesas a se
apropriarem do trabalho alheio e, com base nisso, concentrar riquezas.
As recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado oficialmente no
dia 10 de dezembro de 2014, explana de modo detalhado e circunstanciado os casos
documentados e comprovados de grave violação dos direitos humanos, bem como a
estrutura repressiva do Estado brasileiro responsável por tais crimes.
A prática da tortura e os atos ilegais da ditadura são caracterizados, à época da
ditadura militar de 1964 a 1985, como de responsabilidade da presidência da república e
das altas cadeias de comando, isto é, como uma política sistemática do Estado
brasileiro.
Trata-se de um grande avanço político tal reconhecimento oficial, por parte do
Governo brasileiro, de que as graves violações dos direitos humanos não consistiram de
atos isolados de militares, sem pleno conhecimento ou sem qualquer anuência das altas
cadeias de comando das três forças armadas e dos generais-ditadores.
Essa talvez seja uma das principais conquistas da Comissão Nacional da
Verdade. O propósito aqui não será, portanto, negar a validade e importância históricas
dos trabalhos dessa Comissão. Nesse sentido os resultados alcançados foram positivos.
Cumpriria questionar, por outro lado, as possibilidades políticas e jurídicas de
que as recomendações avançadas no relatório final possam ter consequências práticas e
efetivas quanto à obtenção de justiça contra as vítimas da ditadura e à desestruturação
do seu aparato repressivo ilegal, que permanece ainda hoje atuante contra as classes
populares e seus movimentos sociais.
Os membros da Comissão Nacional reconhecem, inclusive, a prática atual na
sociedade brasileira de graves violações dos direitos humanos. A sobrevivência de tais
práticas na atualidade é vista como uma das heranças obscuras da ditadura:
A CNV, ao examinar o cenário de graves violações de direitos humanos,
correspondente ao período por ela investigado, pôde constatar que ele persiste nos dias atuais. Embora não ocorra mais em um contexto de
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repressão política – como ocorreu na ditadura militar –, a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos
forçados e mesmo ocultação de cadáveres não é estranha à realidade brasileira contemporânea. Relativamente à atuação dos órgãos de segurança pública, multiplicam-se, por exemplo, as denúncias de tortura, o que levou à
recente aprovação da Lei no 12.847/2013, destinada justamente à implementação de medidas para prevenção e combate a esse tipo de crime.
É entendimento da CNV que esse quadro resulta em grande parte do fato de que o cometimento de graves violações de direitos humanos verificado no passado não foi adequadamente denunciado, nem seus autores
responsabilizados, criando-se as condições para sua perpetuação (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 964).
Uma das atribuições da Comissão Nacional da Verdade, em conformidade com a
lei que lhe deu origem, seria a de propor uma série de recomendações para que crimes
de violação dos direitos humanos não se repitam no Brasil.
As referidas recomendações, expressas no relatório final, se colocam no que
existe de mais avançado no campo jurídico e do direito internacional dos direitos
humanos em termos de coibição a crimes hediondos e de lesa-humanidade, como
tortura, execuções, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver. As instituições
políticas não funcionam, no entanto, de acordo com a racionalidade que se deveria delas
esperar.
Os órgãos que compõem os três poderes, bem como as instituições militares, são
formados por indivíduos provenientes de diferentes estratos sociais, aventando-se a
hipótese de que haja em tais órgãos, nos postos superiores e mais estratégicos, a
predominância de camadas altas e médias com forte identificação com a conservação do
status quo político, social, econômico e jurídico, isto é, com os valores de defesa dos
privilégios na ultraconcentração de riquezas no país, repartidas entre os capitais
externos e internos.
Nesse sentido, por mais que sejam pertinentes e urgentes as recomendações
propostas pela Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final, a correlação atual
de forças políticas parece bastante desfavorável para reverter a herança autocrática da
ditadura burguesa de 1964 ou para desafiar o reacionarismo e conservantismo das elites
brasileiras e seus funcionários instalados nas três esferas de poder, nos meios de
comunicação de massa e nas instituições militares.
A implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade apenas
será efetivada ao lado das lutas sociais por uma maior e mais intensa democratização da
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sociedade brasileira e das suas forças armadas, bem como pelo aprofundamento de
reformas fundamentais a exemplo da reforma agrária, com avanços na destruição de
uma estrutura de classes altamente desigual e concentradora de riquezas.
Não caberia aqui comentar uma a uma cada recomendação da Comissão
Nacional da Verdade, bastando apenas mencionar a nossa concordância expressa com
suas respectivas formas e conteúdo. As recomendações foram divididas em medidas
institucionais, reformas constitucionais e legais e, por fim, medidas de seguimento
das ações e recomendações da CNV. A seguir serão apresentadas as 29
recomendações propostas pela Comissão Nacional da Verdade no volume I de seu
relatório final.
Cada uma das recomendações é seguida de um pequeno texto explicativo. A
apresentação aqui ficará restrita apenas à citação textual. Dentre as medidas
institucionais, que se destinam à obtenção de uma justiça mais imediata e reconstrução
história da memória oficial que procura justificar a existência e a necessidade da
ditadura, são recomendados os seguintes encaminhamentos:
1. Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade
institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985);
2. Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica –
criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período
investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições
constitucionais e legais; 3. Proposição, pela administração pública, de medidas administrativas e
judiciais de regresso contra agentes públicos autores de atos que geraram a condenação do Estado em decorrência da prática de graves violações de direitos humanos;
4. Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964;
5. Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre preceitos inerentes à democracia e aos
direitos humanos; 6. Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais,
para promoção da democracia e dos direitos humanos; 7. Retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de
pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos
humanos;
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8. Retificação de informações na Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Rede
Infoseg) e, de forma geral, nos registros públicos; 9. Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura; 10. Desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de
perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis;
11. Fortalecimento das defensorias públicas; 12. Dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso; 13. Instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário e nos
órgãos a ele relacionados; 14. Fortalecimento de Conselhos da Comunidade para acompanhamento
dos estabelecimentos penais; 15. Garantia de atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas
de graves violações dos direitos humanos;
16. Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação;
17. Apoio à instituição e ao funcionamento de órgão de proteção e promoção dos direitos humanos;
Vários resquícios autocráticos do regime militar brasileiro se institucionalizaram
e permanecem nas legislações ainda em vigor. Por isso, no campo das reformas
constitucionais e legais, foram recomendadas as seguintes medidas:
18. Revogação da Lei de Segurança Nacional; 19. Aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras
penais correspondentes aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado;
20. Desmilitarização das polícias militares estaduais; 21. Extinção da Justiça Militar Estadual; 22. Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar Federal;
23. Supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades;
24. Alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão;
25. Introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática da
tortura e de prisão ilegal;
Por fim, quanto às medidas de seguimento das ações e recomendações da
Comissão Nacional da Verdade, foram feitas as seguintes propostas:
26. Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar
seguimento às ações e recomendações da CNV; 27. Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e
entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno,
dos restos mortais dos desaparecidos políticos; 28. Preservação da memória das graves violações de direitos humanos;
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29. Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar (COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE, 2014, p. 964-75).
É provável que tais recomendações possam vir a ter no longo prazo
consequências políticas importantes. O seu principal ganho no momento é que se deram
avanços na luta ideológica pela transformação da memória oficial, conservadora, sobre
a ditadura militar de 1964 a 1985. A concretização de várias dessas recomendações, no
entanto, só será possível com mudanças mais profundas e radicais da estrutura social
brasileira, mediante a atuação conjunta das classes trabalhadoras organizadas e dos
movimentos populares.
Considerações finais e o julgamento da história
É certo que, dadas as condições políticas atuais, os resultados dos trabalhos da
Comissão da Verdade dificilmente avançarão para a obtenção de justiça e mesmo o seu
objetivo maior, o de impedir que graves violações dos direitos humanos se repitam na
história do nosso país, sequer será alcançado em toda sua plenitude e na construção de
uma autêntica democracia pluriclassista.
Ainda estamos muito longe desse desfecho histórico. No Brasil os crimes contra
militantes dos movimentos sociais continuam fortes e impunes. A criminalização desses
movimentos, por sua vez, está disseminada nas diferentes instâncias do Estado (federal,
estadual e municipal) e nos diversos órgãos de imprensa, verdadeiros centros
monopolizadores e manipuladores de informação, os quais atentam contra a liberdade
de expressão que eles mesmos dizem defender.
O dilema número um da Comissão da Verdade pode ser expresso em toda sua
plenitude nos seguintes termos: para avançar na democratização da sociedade brasileira
seria preciso deslegitimar e desmontar o aparato repressivo do Estado, que se conserva
como herança da ditadura empresarial-militar. No entanto, com uma sociedade ainda
fortemente marcada por uma estrutura de classes sociais ultraconcentradora nos terrenos
político e econômico, com uma correlação de forças extremamente desfavorável aos
movimentos sociais, o próprio aparato repressivo do Estado cria e recria mecanismos de
autodefesa e autopreservação, tornando-se intocáveis e insensíveis às mudanças sociais
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progressistas. As recomendações da Comissão da Verdade permanecerão letra-morta
enquanto as circunstâncias políticas atuais não forem transformadas.
Uma transformação radical da sociedade brasileira, que elimine pela raiz os
privilégios das classes burguesas, será obra das classes trabalhadoras e dos movimentos
sociais. Até lá não podemos ser muito otimistas e esperar justiça quanto aos crimes da
ditadura, cujo aparato repressivo está institucionalizado nas mentes e corações dos
defensores da ordem social dominante. A história, porém, não absolverá os algozes, os
mandantes e autores intelectuais dos crimes de lesa-humanidade cometidos contra os
opositores do regime militar.
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