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Os Guarani: Indios do Sul Religião, Resistência e Adaptação* CARLOS RODRIGUES BRANDÃO** P ois é isto, meus irmãos, minhas irmãs, para obtermos as normas de obstinação, as normas da completude, as normas da completude para que nós chegássemos à completude nós nos erguemos no esforço. Como deveremos nos conduzir à verdade? O que disse, na verdade, Nhande Ru Papari? Como ele viveu, na verdade? Como Nhande Ru Papari, para o seu próprio futuro tão bem soube, na verdade? Conformemente a isso, de novo vamos nos conduzir meus irmãos, minhas irmãs. Graças a isso já nos erguemos no esforço com o bastão insígnia que Nhande Ru Caraí Ete concebeu Nós o brandimos, nós nos abaixamos, nós nos reerguermos, nós — os eleitos. Palavras dos últimos dentre os eleitos fragmento l Quantos Eram? Quantos São? Pierre Clastres reconta os Guarani do passado. Ele discute a difícil questão da demografia indígena e em absoluto não concorda com as cifras até então calculadas, do mesmo modo como outros antropólogos mais recentes não concordam com as dele. Seriam muito mais, pouco anos antes do início da conquista, estes índios do Sul, * Documento preparado para o Programa de Investigação: Palavra e Obra no Novo Mundo: Imagens e Ações Interétnicas. Trujillo, Espanha, Dezembro de 1988. ** Carlos Rodrigues Brandão é professor do Departamento de Ciências Sociais da Unicamp e da FFLCH/USP. É autor de Identidade e Etnia (São Paulo, Brasiliense, 1986); Festim dos Bruxos (São Paulo, Ícone/Unicamp, 1987) e A Cultura na Rua (Campinas, Papirus, 1989).

Os Guarani Indios Do Sul Religião, Resistência e Adaptação

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guaranis do sul e resistência

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Os Guarani: Indios do SulReligião, Resistência eAdaptação*CARLOS RODRIGUES BRANDÃO**

P ois é isto, meus irmãos, minhas irmãs,para obtermos as normas de obstinação,as normas da completude, as normas da completude

para que nós chegássemos à completudenós nos erguemos no esforço.Como deveremos nos conduzir à verdade?O que disse, na verdade, Nhande Ru Papari?Como ele viveu, na verdade?Como Nhande Ru Papari, para o seu próprio futurotão bem soube, na verdade?Conformemente a isso, de novo vamos nos conduzirmeus irmãos, minhas irmãs.Graças a isso já nos erguemos no esforçocom o bastão — insígnia que Nhande Ru Caraí EteconcebeuNós o brandimos, nós nos abaixamos, nós nos reerguermos,nós — os eleitos.

Palavras dos últimos dentre os eleitosfragmento

l — Quantos Eram? Quantos São?

Pierre Clastres reconta os Guarani do passado. Ele discute a difícilquestão da demografia indígena e em absoluto não concorda com ascifras até então calculadas, do mesmo modo como outrosantropólogos mais recentes não concordam com as dele. Seriam muitomais, pouco anos antes do início da conquista, estes índios do Sul,

* Documento preparado para o Programa de Investigação: Palavra e Obra no NovoMundo: Imagens e Ações Interétnicas. Trujillo, Espanha, Dezembro de 1988.

** Carlos Rodrigues Brandão é professor do Departamento de Ciências Sociais daUnicamp e da FFLCH/USP. É autor de Identidade e Etnia (São Paulo, Brasiliense,1986); Festim dos Bruxos (São Paulo, Ícone/Unicamp, 1987) e A Cultura na Rua(Campinas, Papirus, 1989).

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profetas errantes em busca sem fim da Terra, Sem Mal. Antes docomeço do genocídio dos Guarani, eles haveriam de ser pelo menosseis vezes mais do que os apenas 250.000 índios, por volta de 1570,calculados por Rosenblantt, e mais de dez vezes os irrisórios 100.000imaginados por Steward em anos próximos a 1530.

É necessário pois, para refletir sobre os Guarani,adotar esses dados fundamentais: eles eram, antesda Conquista, 1.500.000, repartidos por 350.000km2, ou seja, uma densidade de pouco mais de 4habitantes por quilômetro quadrado(l).

Não é exatamente esta notável revisão de cifras o que chama a atenção.Algumas observações sobre como esses guerreiros do Sul ocuparam oterritório de uma grande parte da América merecem, elas sim,destaque. Da mesma maneira como espanta lembrar que essesindígenas foram, como tantas outras nações, dizimados em umaproporção de l sobrevivente para cada 500 ou mais mortos. Por umlongo tempo e depois da Conquista os tupi-guarani lograram preservaruma surpreendente uniformidade de língua, organização social esistema de vida — o ñande reko,o "nosso modo de vida" dos Guarani— ao longo de um intenso território de florestas cujos limites iam daAmazônia à Bacia do Prata. Distâncias maiores de 4.000 kms, entre oSul e o quase extremo Norte do continente, não tornariam muitodiversificadas culturas de uma tão grande variedade de tribostupi-guarani (2).

De saída reconheçamos que os próprios termos: tupi, guarani etupi-guarani traduzem dimensões diferentes, e nem sempre claras depovos, nações e tribos do passado e de hoje. Vejamos uma vez mais opróprio Pierre Clastres:

Os tupi-guarani apresentam a situação inversa:tribos, situadas a milhares de quilômetros uma dasoutras, vivem do mesmo modo, praticam osmesmos rituais, falam a mesma língua. UmGuarani do Paraguai se sentiria em terrenoperfeitamente familiar entre os tupi do Maranhão,distante entretanto 4.000 quilômetros(S).

(1) Clastres, Pierre, A Sociedade Contra o Estado, p. 48.(2) Era este Ñande Reko, o " nosso modo de ser na antiga nação Guarani, a maneira

peculiar de afirmação de diferenças, não apenas como uma identidade construida,metáfora do " ser Guarani", mas como a realidação deste ser através do cumprimento deprincípios vitais, cotidianos da vida tribal. Ver o sentido desta expressão em Meliá,Bartolomé: El Modo de Ser Guarani en la Primeira Documentación Jesuística, p. 5-6.

(3) Clastres, Pierre, A Sociedade Contra o Estado, p. 58.

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Mas ao contrário dos outros tupi que os missionários eviajantes-cronistas da "Conquista do Brasil" iriam encontrarespalhados por uma ampla área litorânea e, depois, continental deflorestas da América do Sul, viviam os Guarani dentro de umterritorio bastante mais delimitado. Isto muito embora eles fossem,desde antes da chegada das caravelas, grupos indígenas semprenômades em busca da Terra Sem Mal. A região Guarani do passadodelimitava-se originalmente a Oeste do rio Paraguai e ao Sul daconfluência deste rio com o Paraná. O Oceano Atlântico era o seulimite oriental, entre Paranaguá, no litoral brasileiro e a fronteira entreo Brasil e o Uruguai de hoje. De um território, entre florestas egrandes rios, com pouco mais de 500.000 km2, os Guaranidominaram uma região de pelo menos 350.000 km2. Concentradospouco mais tarde basicamente nas imensidões do Chaco, foram elesprimeiro alidados dos espanhóis durante as primeiras investidas daConquista, entre Assunção e os Andes. Foram depois reduzidos pelospadres jesuítas e esta experiência é conhecida o bastante para serrepetida aqui. Dentro ou fora das terras das missões, foram mais tardedizimados e reduzidos à escravidão pelas encomiendas espanholas. Epelas campanhas genocidas de portugueses e bandeirantes paulistas(4).

Embora pareça cientificamente estranho, não é fácil dizer-se quantossão os Guarani de agora, entre a Argentina e o Paraguai, a Bolívia e oBrasil. Não é fácil sequer definir quem eles são.

Segundo Egon Schaden, à exceção dos Guayaki, um grupo nômade doParaguai que nos espera adiante, a população Guarani do oeste destepaís, da Argentina, do Brasil, pode ser em princípio dividida em 3subtribos: os Nandeva, também conhecidos como Xiripá, os Mbiá(Mbuá, Mbwá, Mbyá) e os Kaiowá. No Paraguai é preciso desdobraros Guarani em outros e sub-grupos ainda. Os Xiripá (Chiripá)estendem-se pelo norte, ao longo da rodovia Strossner-Assunción esomam cerca de 3.000 índios, de acordo com Miguel Chase-Sardi, ou6.500, segundo J. Borgson. Esses seriam os Guarani mais aculturados

(4) De qualquer maneira as cifras do genocídio indígena são no Sul do Continente maisbrandas — se é que este termo pode ser aplicado ao que ocorreu — do que em regiõesda Conquista na América do Norte, especialmente no México. De acordo com ospesquisadores de Berkeley em que Pierre Clastres se baseia, na região de Anauaque25.000.000 índios em 1500 reduzem-se drasticamente a cerca de 1.000.000 em 1605.O Império Inca despovoa-se de 10.000.000 para 1.000.000 de pessoas entre umperíodo equivalente de 100 anos, isto é, de 1500 a 1600. Uma queda de 9/10, terrível,mas ainda melhor do que a da conquista do México, cuja proporção para o mesmoperíodo é de 96/100. Mas a partir desta despopulação geométrica há, nos Andes... emalgumas áreas do México e da América Central, uma lenta recuperação demográficaindígena. O mesmo não acontece em momento algum no caso Guarani. Depois dehaverem sido já muito reduzidos, dentro e fora das Missões, os Guarani passam de200.000 em 1690 para 130.000 em 1730. E decrescem sempre. A Sociedade Contra oEstado,p. 67-8.

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da região oriental do Paraguai. Os Guayaki (Aché, Aché-Guayaki) sãoíndios nômades e caçadores. Habitantes de seis zonas do ChacoParaguaio, seriam cerca de 800 a 1.000 em 1910, dos quais apenasuns 500 escaparam de uma epidemia de gripe em 1920. Já na décadade 1960 não seriam mais do que cerca de 350 pessoas. Pouco mais de1.000 índios Guarayo, que se autodenominam de nação Guarani e sãopor outros considerados como indios Chané guaranizados, vivem noextremo norte do Paraguai(5).

Os Mbiá (também Mbihá, Ave-Mbihá, Cacyguá, Pitará, Baticol,Caiinguá, Kaynguá, Mbyá-Apitaré, Avé-Mbyá) que se autodenominamJagua Teonde Paraguai (Cadogan, 1968) são possivelmente osubgrupo Guarani mais disseminado. Vivem no território deMissiones, na Argentina, entre serras e florestas nos estados jámencionados do território brasileiro e em boa parte do Departamentode Guayra, no Paraguai(6).

Seriam os Paí Tavytera o subgrupo Guarani mais populoso doParaguai? Provavelmente sim, pois há deles ainda algo como entre9.000 e 11.000 pessoas, ao norte do rio Jujui, na fronteira setentrionale leste do Paraguai com o Brasil, onde há também alguns núcleosdestes índios também chamados Pan, Teranole (Metraux), Kaaygua e,contra a vontade deles próprios, Cayuá ou Caiová, finalmente, Abá.

índios que se atribuem o nome Avá (homem) e rejeitam o nome comque são mais conhecidos, Tapieté (também Tapii, Yaanayge, Yane,Nanaigua, são cerca de 2.000 pessoas ao noroeste do Chaco e noextremo oeste do Paraguai. Há também Avá-Tapieté na Bolívia(7).

Alguns autores lembrarão, entre os grupos indígenas não-andinos daBolívia, os Chiriguano, "índios guaranizados". Mas em seu estudosobre os grupos indígenas da Bolívia, Heinz Kelm lista outros setegrupos Guarani e um Arawac-Guarani: Chane, Chiriguano, Guarayú,Jore, Pauserna (Guarasuyuna), Siriono, Tapiete, Yuqui (Sirioco). OsChane não são mais do que 20 índios Arawac-Guarani situados aosudeste de Santa Cruz de la Sierra. Menos ainda, os Jora seria 8sobreviventes entre os rios são Simão e Iténez. Os Pauserna,

(5) Chase-Sardi, Miguel, La situación actual de Los Indígenas en el Paraguai, in: W.Dostale G. Grumberg, La situación del indígena en América del Sur, 1971.

(6) Cadogan acredita que " atualmente os Mbyá encontram-se em grupos disseminados enúdeos reduzidos, através dos departamentos de Itapuã, Caazapâ, Gucirã, Alto Paranáe San Pedro. Vi duas famílias em Misiones perto de Santa Rosa e periodicamente algunspassam a Misiones argentinas e ao Mato Grosso"." Encontramos Mybiás nas ruas de SãoPaulo. Eram os que vivem em Itanhaém, de que Baldos nos da noticia. Chase-Sardi,Miguel, Situación Actual de los Indígenas en el Paraguay,p. 237-306. Citado na p. 277.

(7) Chase-Sadi, Miguel, La Situación Actual de los Indígenas en el Paraguay, p. 242.

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sobreviventes entre o rio Pauserna, o Paraguá e o Hénez, oscilamentre 28 e 30 pessoas. São menos numerosos do que os Tapíete, queencontramos antes no Paraguai e que, na Bolívia, não são mais do que40 pessoas, entre as margens do rio Pilcomayo e a fronteira com oParaguai. Os Yuqui são cerca de 50 índios ao sul do alto rio Ichilo(8).

Entre os Guarani ou índios guaranizados com uma população melhorpreservada, é preciso contar os Sirioco, com um número entre 500 e800 índios, distribuidos pelo rio San Martin e Negro, nodepartamento de Beni, o alto rio Machupo e Missiones de Guarayos anoroeste de Santa Cruz de la Sierra. Os Guarayu seriam cerca de 5.000índios entre o rio San Pablo e o Blanco a noroeste de Santa Cruz.Finalmente, os Chiriguano são entre 15.000 e 20.000 índios Guarani,espalhados pela região de extensas serranias entre o sudoeste de Tarijáe o Paraguai.

Em termos numéricos é possível que, tal como acontece na Bolívia, ogrupo Guarani mais importante na Argentina seja o dos Chiriguano,vindos do Paraguai desde tempos remotos da Colônia. Hoje eles sedividem em 54 sub-grupos distribuídos pelos departamentos de Jujui(El Caiman, Laderma, San Pedro e Santa Bárbara) e de Salta (Oran eSan Martin). Somam um total aproximado de 14.000 pessoas.

Os Mbiá que encontramos no Brasil e no Paraguai são, na Argentina,cerca de apenas 600 indivíduos; pouco menos de 1.000, de acordocom outras estatísticas. Migraram do Paraguai para a província deMissiones depois de 1870 e hoje distribuem-se em cerca de 28comunidades(9). Os Chané (Guana) constituem na Argentina, tantoquanto na Bolívia, um grupo Arawac guaranizado pelos chiriguanos.São pouco menos de 900 índios na província de Salta(l0).

(8) Kelm, Heina, Grupos Indígenas de Bolívia,p. 232-4.(9) Bartolomé, Miguel Alberto, Grupos Indígenas en la Argentina — área Machagueña e

Misiones, p. 347-9.(10) No já quase envelhecido, mas ainda necessário Handbook of South American Indians,

os Guarani aparecem nos volumes 3 e 6 com um importante registro de AlfredMetraux. Estes antigos senhores de um território de dimensões continentais, quandosomados aos outros grupos tribais Tupi, são classificados ainda no período Colonialem duas categorias: 1a os índios já então submetidos ao trabalho e ao controle reli-giosos das missões jesuísticas; 2a os" índios livres", denominados Cainguá (Kaathwá,Kainguá, Cayauá) nomes que sempre querem significar algo próximo a " índios dafloresta". Deixados de lado os índios " reduzidos", Metraux dividide os Cainguá emtrês grupos: Mbyá (Paraguai, Argentina e nos estados brasileiros de Mato Grosso,Paraná e Rio Grande do Sul), Chiripá, concentrados no Paraguai e os Pan(Teranõhe), também no Paraguai. Também em Metraux os Mbiá seriam o subgrupoGuarani que melhor preservaria uma antiga cultura tribal, resistente aos valores re-gionais. Seriam os Chiripá os mais aculturados. Entre os Guarani Brasileiros, osApapocuva seria índios Cainguá, de quem se conhecem, diversos homônimos no

, Paraguai. Ainda no Brasil outros subgrupos Cainguá: os Cainguá, propriamente, osCarimã, ...., Guayana, Tañiguá, Oquauiva, Cheirú, Yuytyiguá, Avachiropé, Catan-

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2 — Xamãs e Profetas: a religião dos Guarani

A Hélène Clastres alguns aparentes silêncios dos índios Tupi chamama atenção. E que segundo os primeiros relatos de missionários e outroscolonizadores, eles pareciam ser "gente sem lei": povos e culturassem a idéia de um deus, sem o seu temor, sem mais nada do que vagosnomes dados a algum fenômeno da natureza. A própria noção dosagrado parecia ser desconhecida aos tupi-guarani. Alí estava umagente que ao contrário de outros índios encontrados na rota dosdescobrimentos, parecia não possuir ritual algum de qualquer tipo deculto religioso. Não possuindo em aparência o conhecimento de umdeus, não pareciam ter crença alguma em outros seres: maléficos oudemoníacos. E se aos primeiros jesuitas espantava uma "gente" semfé, consolava a desconfiança de que, pelo menos entre eles, não serianecessário combater "falsas crenças", pois, a um primeiro olharpiedoso, parecia não haver nenhuma.

Depois do padre Manoel da Nóbrega e dosprimeiros missionários, todos os viajantes quevisitaram os índios coroboraram esta afirmação:não somente eles não tinham conhecimento algumdo deus verdadeiro — o que, tratando-se deselvagens, a ninguém surpreendia — mas tampoucotinham falsas crenças. Esse traço notável das naçõespós-guarani espanta — ainda que anime, pelomenos, os missionários: sua tarefa de evangelizaçãovê-se simplificada, por não terem de combatercrenças já estabelecidas. Rebeldes à idéia correntesobre o que deveriam ser os pagãos — adoradoresde divindades múltiplas e praticantes de cultosidolatras — esses índios em nada acreditavam, nãoadoravam astros, nem animais, nem plantas, nemcontando com padres ou lugares sacros(ll).

"Gente sem fé", teriam dito dos tupi-Guarani os primeirosmissionários. "Teólogos da América do Sul", escreve-se hoje, comalguma frequência, a respeito dos Guarani. Que religião afinal era a

du..., Jatahy, segundo relato de Kurt Nimuendaju, a maioria deles já extintos. Dentretodos, apenas os antigos Apapocuva, os Tañygua e os Oguaiuva somam de fato gru-pos parciais culturalmente guarani. Todos os outros seriam reconhecidos comoCheirú (Kainguá). Mesmo ao tempo de Kurt Nimuendaju, os Ivarapã (Aré, Sheté)seriam subgrupos lingüísticos considerados como guarani errantes nas florestas doBrasil, do mesmo modo como os Guayaki nas selvas do chaco paraguaio. Em 1912Nimuendaju estimara em cerca de 3.000 todos os índios Cainguá do Brasil. Ver Me-traux, Alfred, South Americans Indians, p. 69-72.

(11) Clastres, Hélène, Terra Sem Mal, p. 14-5.

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deles? Em que crêem hoje e o que buscam? Em que as suas crenças seperderam do ritual antigo e da memória? No que se transformaram?

Deixemos de lado a síntese do sistema religioso dos antigos Tupi econcentrêmo-nos na descrição da religião Guarani(12). As palavrasñandé rekó, que vimos algumas páginas atrás como sinônimas de algocomo "modo de ser", "o nosso modo de ser", que o Guaraniemprega para dizer em que, como e porquê se reconhece diferente dosdemais, designa-se também a religião. Isto é o mesmo que dizer queentre os seus sub-grupos, um modo peculiar de ser, assumido eproclamado como uma identidade realizada como um sistema ancestralde crenças destinado a conduzir tanto a história de um povo quanto aconduta cotidiana de cada uma de suas pessoas, é definido como umareligião. Esta seria uma das razões pelas quais um mesmo sistemareligioso, em princípio unívoco entre vários subgrupos e tribos, ébastante resistente a ponto de ser ainda quase integralmente a religiãoGuamni,após um tempo entre 450 e 300 anos de evangelizaçãocristã(13). A oposição entre esta resistência nativa e uma criativaincorporação de temas e sujeitos do cristianismo é o que nos obrigaráa um segundo momento de descrição etnográfica, adiante.

Guardadas as diferenças entre as culturas do sub-grupos Guarani, oque Egon Schaden resume a respeito da religião estudada por ele entreos Kayaowá do Mato Grosso do Sul, poderia ser estendido aos outrosgrupos.

Um lugar intermediário, morada de inúmeros deuses e espíritos quehabitam os seus vários sub-espaços superpostos e a que os Guarani dãoo nome de Yváraquy, existe entre a superfície da Terra onde vivem oshumanos — Yvy-Yvíkatú — e algo equivalente ao firmamento, nãoexatamente pensado como um homem cristão do povo imagina o céude sua fé — Yvá, Yvága,) Yvánga —. Entre os dois lugares extremos,no Yváraguu estão os deuses e os espíritos que amiude se comunicamcom os vivos e que podem ser benéficos ou perigosos.

(12) Há estudos, de resto conhecidos, a respeito da religião que os primeiros europeusencontraram entre os povos Tupi do Litoral Brasileiro. Entre as pesquisas mais atuaismerece se lido inicialmente o A Religião dos Tupinambá, de Alfred Metraux. Donotável Leónd Cadogan é importante conhecer pelo menos o seu antigo trabalho de1946: Las Tradiciones Religiosas de los Índios Jeguaká Tenondé Porá-qué í del Guairácomumente llamados Mbyá, Mhya-Apyteré o Kayanguá, originalmente editado pelaRevista de la Sociedad Cientifica del Paraguay. O célebre trabalho de Kurt Nimuen-dajú a respeito dos mitos de criação dos Apapokuva-Guarani — inexplicavelmente nãopublicado em tradução portuguesa até hoje — é um trabalho de referência obrigató-ria: Los mitos de creación y de destrucción del mundo como fundamentos de la religión de losApapokuva-Guarani, editado em Lima pelo Centro Amazônico de Antropologia yAplicación Prática. Finalmente, e ele será com freqüência citado aqui, há o estudorealizado por Hégène Clastres sobre o sistema religioso guarani, com foco sobre oprofetismo da Terra Sem Mal, que dá título ao seu livro.

(13) Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo, p. 8.

Em que crêemhoje e o que

buscam? Em queas suas crenças se

perderam do ritualantigo e da

memória? No quese transformaram?

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De acordo com certos sub-grupos Kayowá, Mbyá e Ñandeva, existeum deus supremo, um criador indiscutível do mundo terreno, suaordem e a totalidade dos seus habitantes: Ñame Ramõi Papá. OsKayowá do Amambabí, estudados por Egon Schaden, reconhecem emÑamé Rumó Papá a pessoa de uma divindade suprema, mas nãopropriamente um criador. Um orvalho primitivo, — Ysapy — deuorigem ao embrião da Terra — Yví Reñoi — e também aos deuses que,tal como os humanos, surgiram de uma mesma " origem impessoaldas coisas", criadora e não criada por deus algum: Djasaká (14).

Um casal de deuses supremos — criadores, ordenadores ou não domundo terreno — estabelecem com os homens uma distanciadarelação afetivamente parental: Ñané Ramói Papá é traduzidocomo "nosso avô", "nosso ancestral" e ÑandéDjary, sua esposa —mas não sua equivalente em poder e posição celestial — é traduzidacomo "nossa avó". Distribuidos por outras regiões celestiais, deusesmenores prestam serviços a Ñamé Ramõi Papá na qualidade deYvyrâidjá, os "senhores dos pequenos bastões".

Ñamé Ramõi possui deuses — filhos e entre eles merece destaque apessoa de Pai Kwara, o deus lunar. E ele quem se relaciona com oshomens e, desde a região superior do centro do céu, dirige suas vidasterrenas. E a ele — ou a seu equivalente em outros sub-grupos — queGuarani se sente estabelecendo uma relação cuja tradução católica seria

(14) Toda a religião indígena que não afirme explicitamente a origem de " todas as coisas"e, no ponto central da criação, a origem da própria tribo como o ato voluntário de umdeus, de uma relação entre divindades ou entre seres humanos, forças divinizadas e aprópria natureza, deixa margem a uma discussão interminável a respeito do sentido dopróprio ato, ou da seqüência de atos de origem. São forças impessoais da natureza?Serão seres humanos punidos por seus deuses ou sacralizados como ancestrais místi-cos, devido ao seu gesto de origem? É um ser divino, mas apenas ordenador e, depoisdistanciado dos humanos, deixando a cargo de forças ou divindades intermediárias aresponsabilidade do " cuidado do mundo e dos homens" ? É um ser divino pessoali-zado e atento aos humanos, no sentido cristão da idéia de deus? A respeito dos Tupi-Guarani sabemos que a interpretação de uma idéia de deus pessoal intrigava oseuropeus desde os primeiros cronistas e missionários. Afinal, em que criam osprimeiros Tupi?Mas, prossigamos na leitura: Claude d'Abbeville: "Embora os índios tupinambástenham um juízo natural bastante belo, nunca se viu nação mais rebelde ao serviço deDeus do que eles... Não creio que haja nenhuma nação no mundo sem alguma espéciede religião, exceto os índios tupinambás, que até hoje não adoraram a Deus Algum,nem celeste, nem terrestre, nem de ouro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nemde pau, nem nenhuma outra coisa que seja". Mesma observação e mesmo espanto queo de Léry: ... única exceção a esta regra geral (a de possuir deuses, mesmos falsos —CRB) os tupis que, pelo que nos dizem, ignoravam o que pudesse ser uma prece ouum ofício divino e para quem se equivaliam todos os dias, tão pouco solenes unsquanto os outros. Contudo — acrescenta o autor — eles têm algum conhecimento deum deus verdadeiro, a quem chamam Tupã. Observemos aqui um primeiro desa-cordo: pois, quanto a esta última afirmação, é bem diferente o testemunho de Léry, anos declarar a que foram os brancos, ele próprio e seus companheiros, que, pre-textando o medo manifestado pelos tupinambás ao ouvirem o trovão — tupã —pretenderam fosse este o deus de que falavam. (Hélène Clastres, Terra Sem Mal, p.16.

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a do devoto; "e a maior ventura que o devoto pode almejar é ver osemplante de Pay Kwara. O empenho com que se pratica o culto,dizem os índios, visa, em última instância, a obter essa graça" (15).

Afora esta divinidade mais humanizada e mais diretamente próximados homens do que da natureza, os outros deuses intermediários vêmdo Yváraguy à Terra. Suas visitas são percebidas por mudanças noambiente natural, pois eis que são eles os responsáveis pelastempestades, pelos trovões, pelo granizo e assim por diante. Maislonge do que o lugar dos deuses intermediários, existe uma espécie deregião do Alto habitada pelo povo dos "Kayowá celestes", espíritos(dos mortos? de quem?) estreitamente ligados com os seres vivos daTerra. Estes Tavyterã eram sem morada definida e desconhecem o seupróprio destino.

Um pouco adiante chegaremos, com os Guarani, à Terra Sem Mal,cuja busca incessante bem poderia ser o símbolo do sentido de vidadeste povo. O seu equivalente interior, subjetivo e pessoal poderia sera idéia de aqwjdjé: tornar-se próximo, purificar-se como o divino; nolimite, chegar ao lugar do Paraíso sem passar antes pela morte.Diversa de ser uma religião utilitária, centrada na relaçãocotidianamente mensurada pela distância entre as necessidades doshumanos, o seu poder de obter dos deuses ou intermediários aproteção, e a resposta a cada caso favorável por parte deles, aosGuarani o sagrado sugere a busca de um estado de proximidade daperfeição, que mais a aproxima das religiões de purificação do que deoutras religiões tribais. Os deuses e, mais do que todos, Pay Kawrásão, como os humanos, pessoas corpóreas, vivas e actantes, ainda queseus corpos sejam incorruptíveis e seus atos perfeitos, ou pelo menospróximos da perfeição. Esta similitude não apenas de aspectos, mas dedestinos e relações sugere aos humanos serem como os deuses, não empoder — porque justamente esta distância estabelece a realidade dasduas naturezas — mas em perfeição interior. Veremos adiante em quee como este sistema de crenças, tomado a partir de um exemplo deuma das tribos Guarani representa alguma mescla com o imagináriocristão. Mas que nada nos impeça de adiantar aqui uma conclusão deEgon Schaden e que, com diferenças de um para o outro, osestudiosos da cultura Guarani irão corroborar.

Certo é que a religião de todos os grupos da triboque hoje vivem no Brasil, no Paraguai e naArgentina não cristã, mas a Guarani. De tudo o quede possível cristã se possa descobrir no conjunto desuas crenças, ritos e cerimônias conservaram-se

(15) Schaden, Egon, A Religião Guarani e o Cristianismo, p. 9.

Um pouco adiantechegaremos, com

os Guarani, àTerra Sem Mal,

cuja buscaincessante bem

poderia ser osímbolo do

sentido de vidadeste povo.

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apenas aspectos tangíveis e formais. O conteúdo épagão(l6).

A Terra Sem Mal

Se é notório que surtos revivalistas, messiânicos e/ou milenaristasdevem ser associados a situações críticas de mudança, a momentos deintervenção exterior sobre o poder de decisão do destino desociedades, classes ou etnias, então o que explica que entre os Tupi deontem e os Guarani de agora subsistam a idéia e o desejo coletivo dabusca da Terra Sem Mal? Em que e como essas tribos opõem semprea uma religião regida pelo código do xamã, onde o sistema Guarani seconfundiria com o de outro qualquer grupo tribal da América Latina,uma religião regida pelo código do profeta, do Karaí, o pregadorincansável de uma Terra até hoje não encontrada? Pois — e esta é aquestão que importaria considerar aqui — tanto os antigos Tupinambáquanto os diversos sub-grupos Guarani dos primeiros anos daConquista e, por certo, de muitos anos antes dela, desenvolveram umareligião fundada sobre a esperança de uma busca da Terra Sem Mal.Teriam estabelecido isto no tempo em que, no Litoral do Brasil ou nasmatas do Chaco paraguaio, eram senhores de povos e terras, índiosguerreiros dominadores jamais subjugados até à chegada dos europeus.Viveram errantes a sua busca por mais de 500 anos; vivem o seupresságio ainda hoje. Deixo a palavra com Alfred Metraux.

Os missionários que viveram, nos séculos XVI eXVII, entre os tupinambás do litoral brasileiro,

(16) Schaden, Egon, A Religião Guarani e o Cristianismo, p. 5. Não custa transcrever aquia síntese feita por León Cadogan a respeito do sistema religioso dos Mbuá, da regiãode Paso Yoguai, a leste do Paraguai. Ela estende a descrição resumida a partir deSchaden e as duas juntas podem ser tomadas como uma referência segura ao que seria,em princípio, a " crença Guarani" hoje.Por meio da profunda meditação, Ñamandú Ru Papá Tenondé criou o rocio primevo,o seu próprio corpo. De uma parte íntima de sua sabedoria criou o Ayvú Rapytá," sede da fala" ou origem das almas. Criou também o Mborayú Rapytá, a fonte do

amor ao próximo. Depois criou o Mbaé-Aña Rapitã, a fonte do cântico sagrado.Meditou sobre quem deveria ser partícipe das palavras de seu cântico. Criou então osprimeiros deuses (ou chefes dos deuses), os " que não têm umbigo", cada qual estirpede numeroso povo celeste, e deu-lhe a consciência da divindade. Criou a ÑamandúPyg atxú(Ñamandú de Grande Coração) , a Karaí Ru Etê," Verdadeiro Pai do Karaí"que é deus do fogo e mora a leste; criou a Djaky Rá Ru Etê," Verdadeiro Pai dosDjakairá", o deus da neblina e primavera, que mora ao norte; criou Tupã Ru Etê," Verdadeiro Pai dos Tupã", o deus da chuva (ou das trovoadas?), que mora a oeste.Cada um dos povos celestes por eles governados tem as suas próprias tarefas. Cuidamdas estações do ano, do tempo, do crescimento das plantas. Todo chefe de um povoceleste é também Nee Ru Etê," verdadeiro pai das almas", e cada ser humano é afim aum deles. Ñamandu Rú Papá Tenondé criou os sete paraisos do céu, criou o firma-mento, que repousa sobre quatro esteios, Yvy-ráíi e a Primeira Terra, fazendo-adescansar sobre uma coluna de madeira. A" Primeira Terra" foi vítima de um dilúvioque a inundou por causa de um incesto. A " Terra Nova" em que vivemos, foi criadapor Ñanderú Papá Mirí. Também ela poderia ser destruida (Egon Schaden, ReligiãoGuarani e Cristianismo,p. 10).

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Teria uma terradesejada sido

antes e por muitotempo um local

terreno próximo,apenas livre da

opressão daColônia?

falam, reiteradamente, na influência exercida sobreesses borígenes pelas profecias de certos xamãs(melhor seria dizer, karaí — CRB) e pelasperspectivas de uma era áurea, anunciada paramuito próximo. Pormenores, freqüentementeobscuros, fornecidos a respeito do assunto pelosantigos cronistas, tornam-se mais compreensíveisquando os comparamos aos acontecimentos,relativamente recentes, que se produziram no seiode alguns grupos guaranis do paraguai e do sul doBrasil... É a Nimuendaju que cabe o mérito de teriniciado as primeiras pesquisas metódicas nessedomínio. O referido sábio encontrou, em 1912, emlitoral perto de São Paulo, um pequeno bando deíndios guaranis vindos do Paraguai. Eram algunssobreviventes do numeroso grupo que se pusera emmarcha em busca, além-oceano, da "terra ondeninguém morria". A leva constituia a última vagado vasto movimento migratório de origem religiosaque, começando em 1810, se prolongara até oscomeços do século XX. Três tribos tinham tomadoparte do movimento — os apapocuva, os tanhiguáse os oguauívas, todas, outrora, habitantes do sul deMato Grosso, nas fronteiras paraguaias (l7).

A Terra sem Males não é apenas um lugar para onde a tribo deve sedeslocar sem tréguas em busca de uma vida sem a morte e sem o mal.Ela é também um tempo, pois eis que pelo menos entre os Guaraniatuais um cataclismo próximo que, diferente de um primeiro,ancestral, destruirá a Terra má de agora e somente serão salvos os quehouverem se posto em marcha em busca da Terra Sem Mal. Aqui emnada a simbologia religiosa dos profetas guarani difere da de outrosmovimentos messiânicos ou milenaristas, em que o movimento e olugar de salvação não são dados pela vinda de uma divindade aogrupo, mas por meio de uma viagem do grupo a um lugar sagrado,terra da salvação(18).

(17) Ver Metraux, Alfred, A Religião dos Tupinambá,p. 176.

(18) O Mito da destruição da Primeira Terra prenuncia a destruição da Segunda Terra, aatual, o que torna a busca da Terra Sem Mal não apenas uma promessa de encontropossível de um mundo perfeito, a começar pela ausência da morte, como também aalternativa única de o povo Guarani espaçar da segunda destruição. Após sintetizar adescrição do extermínio dos homens da Primeira Terra, Alfred Metraux conclui daseguinte maneira, seguindo dados obtidos por Kurt Nimuendaju:O cataclismo que já uma vez aniquilou o universo não é o último a ameaçar o mun-do, cujo fim, aliás, está próximo. Quando este acontecimento se produzir, o criadorenviará o morcego Mboní recoypy que devorará o sol, soltando o tigre azul, animalsemelhante a um cão. O tigre azul destruirá impiedosamente a raça humana. Emseguida virão o fogo e a água (Metraux, Alfred, A Religião dos Tupinambá,p. 177).

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Os guaranis modernos vivem persuadidos dapróxima destruição da térra, considerando toda acatástrofe de que se tem notícia, como signoprenunciador do desastre. Quando os sonhos,visões ou simples fenômenos naturais insólitosfazem pressentir a algum feiticeiro a aproximaçãodo perigo, este, seguindo o exemplo de Guyraypo,procura escapar-se-lhe, reunindo em torno de si esob sua direção os mancebos, que se entregam aojejum e à dança; todo um ano consagrado à dançamal chega para velar a orientação ou caminho aseguir(19).

Yvy Marã Ey,a Terra Sem Mal, Terra Sem Males, também dita, comoem Egon Schaden, Yvy Ñombimbyré, Terra Escondida, Yvy Katu, aTerra Boa que León Cadogan ouviu dos Mbuá no Paraguai, um lugarlonge, para além de Kurutuê Retã,a Terra dos Portugueses, para alémdo Mar Grande(20).

Teria havido aqui uma variação de sentidos na qualificação deste lugarcuja própria direção sempre foi um problema para os índios Guarani?Teria uma terra desejada sido antes e por muito tempo um localterreno próximo, apenas livre da opressão da Colônia? Ora, se de umalado antropólogos como Hélène Clastres defendem que as migraçõesGuarani em busca da Terra Sem Mal terão sido antecedentes à chegadados portugueses e espanhóis e, como vimos, terão encontrado osGuarani livres de opressões de outras tribos vizinhas ou de privaçõesda natureza, pelo menos Bartolomeu Meliá chama a atenção para ofato de que nos escritos do jesuita Montoya, uma primeira YvyMaraney surge como terra virgem, ainda não tocada;" sol intacto, quenão foi ainda edificado" e se confunde com kan mamney: monte deonde não foram tirados os paus. Ao contrário do motivadíssimo sentidosagrado que os Guarani posteriormente dariam à Yvy Marã Ey, teriamos seus primeiros significados feitos apenas alusão à busca, maisecológica do que religiosa, de territórios virgens de caça e prática daagricultura indígena?

(19) Metraux, Alfred, A Religião dos Tupinambá, p. 177. Um exemplo de como isto acon-tece é assim descrito por Egon Schaden. Em 1949, quando trabalhei entre os Kaiowáde Panambi, perto de Dourados, os índios da aldeia estavam em alvoroço por causada decisão do Governo de fundar uma colônia agrícola em seu território. Achavamque o fim do mundo estava próximo, e o próprio sacerdote do grupo promovia dançasreligiosas para precipitar o evento (Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo,p. 15).

(20) Ver Schaden, Egon, El" Modo de ser Guarani en la Primera documentación Jesuitica, p.5-17.

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Na busca de um solo onde pudessem viver o seumodo de ser autêntico, os Guarani podem ter feitocristalizar tanto suas antigas aspirações religiosascomo a consciência de novos conflitos históricos.Yvy maraney se convertia numa "terra sem mal",terra física como em sua concepção antiga e, aomesmo tempo, terra mística depois de tantamigração frustrada(21).

Seria esta Terra Sem Males, seria a vocação persistente de sua busca,seria esta obsessão de um Paraiso na Terra, mas para além não apenasdo mar, mas até da morte, o núcleo verdadeiro da religião de um povodisperso entre tantos sub-grupos, por tanto tempo?

3. Tradição e Mudança: Resistência e Integração

A que lugares e sentidos geográficos e simbólicos conduzia e conduz areligião dos Guarani? Nem todos os estudiosos da questão concordamcom as conclusões de Hélène Clastres, algumas delas já nossasconhecidas, outras a serem re-discutidas a seguir. Não são poucos osque avaliam como quase delimitantes as suas conclusões, mais eis quenela temos um intrigante ponto de partida. Noemi Dias Martinezpropõe uma leitura etno-histórica que possibilite uma outracompreensão do nomadismo secular desses índios que, encontrados jámuito dispersos entre territórios tão distantes, à época da conquista,foram vistos ainda em viagens ou sonhos de viagens no Final do séculopassado, no princípio deste e mesmo nos últimos anos(22). Ela aceitaa interpretação dada pelo padre Montoya em 1640 e aqui jáapresentada a partir de Meliá: Yvy Mamney, a Terra Sem Mal, naverdade, é o lugar do solo intacto, o espaço ainda não edificado, nãotransformado pela mão do homem de terra da natureza em local decultura. Ca Maraney é o nome dado ao monte de que ainda não foitirada a madeira e que não foi, igualmente, trabalhado. E a floresta, olugar ancestral de uma tribo de caçadores, pescadores e coletores(23).

Como praticamente todos os outros estudiosos dessa religião de índiosascetas, conduzidos por seus Karai,profetas, senhores das" belaspalavras", sabedores dos cantos e danças cujo sentido, decifrado, nãofaz mais do que indicar à tribo o lugar e a direção da terra buscada,Noemi Diaz deverá ressaltar que um dos traços mais notáveis da

(21) Meliá, Bartolomé, Religião Guarani e Cristianismo, p. 16. Ver também o texto de LeónCadogã: Ayvú Rapyta — textos míticos de Mbyá-Guarani Del Guaira, p. 144-5.

(22) Diaz, Noemi Martinez, La Migration Mbya (Guarani),p. 148-69.

(23) Id.lbid. p. 164.

... a perfeição de simesmo através do

domínio do ritoda palavra e da

dança e através docontrole ascético

do corpo e doespírito...

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cultura Guarani é a sua resistência a modificações fundamentais dossistemas de símbolos e códigos que organizam o modo de ser tribal"dos antigos".

Qualquer que seja a interpretação dada ao lugar da Yvy Maraney porsucessivos profetas, ela é sempre em direção a Leste, ao mar, ao litoralatlântico do Brasil(24). A um lugar, quem sabe? Situado mesmo dooutro lado do oceano(25). Um lugar, portanto, terreno, concreto,possivelmente conhecido dos ancestrais: a floresta em geral ou, então,alguma região definida de matas intocadas, não conhecida e, por istomesmo, não dominada pelo homem branco. A Terra Sem Mal é oespaço do retorno à possibilidade, dada pela natureza e reencontradapelo exercício persistente do nomadismo, da reprodução de um modode vida de uma tribo que mesmo depois de reduzida à Missão esubordinada ao trabalho agrícola, jamais deixou de pensar-se como decaçadores, para quem a atividade agrícola é, ela sim, desqualificadora ecomplementar. Que outro lugar realiza isto melhor do que a florestaatlântica, terra dos Tupi dos tempos da Conquista?(26).

Menos terrenamente utilitários e geográficos, os Guarani que EgonSchaden interpreta na mesma direção de Hélène Clastres buscamatravés de uma viagem — solidária e ascética, tribal e nômade —atingir ao mesmo tempo o Kandire, a perfeição de si mesmo atravésdo domínio do rito da palavra e da dança e através do controleascético do corpo e do espírito, e Yvy Maraney, o lugar paraísoinsento do mal. E atingi-los ambos, um através do outro, aqui mesmo,antes de passar pela experiência da morte, antes de dissolver-se no malsem retorno(27).

Mas é o mesmo Schaden quem retorna a Bartolomé Meliá e ao Tesorodo padre Montoya para lembrar uma primeira possível transformação

(24) Id.lbid. p. 150.(25) Getulio Vargas savait que de 1'autre coté ils arriveraient à Lisbone. Devant leur

insistence, Vargas permit leur embarquement sur un navire... qui arrivà à Bahia.Durant un séminaire sur les Guarani, à lUniversité de São Paulo, le professeurSCHADEN indica (..) qu'en 1934 Getulio Vargas envoya les indiens à EspiritoSanto, mas en realité les indiens voulaient travesser lAtlantique. Diaz, Noemi Mar-tínez, La Migration Mbya (Guarani),p. 154.

(26) Assim: " que bien que les Mbya réalisent des travaux agricolas et en mentionent lestechniques dans leurs mythes, ils ne se considèrent pas comme des agriculteurs-sédentaires mais comme des chasseurs cueilleurs essentiellement. En dautres termes,le processos de transformacion du nomadisme Guarani presente une fréquencedeterminé par les forms idéologiques-politiques. Diaz, Noemi Martinez, La MigrationMbya (Guarani),p. 167.

(27) Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo, p. 10. Também em Schaden e deacordo com o depoimento de León Cadogan, a Yvy Maraey, Yty Marã Ey estariasituada " para além dos portugueses", isto é, para alem da terra dominada pela em-presa da Conquista, p. 16-7.

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de sentidos na busca da Terra Sem Mal. Índios caçadores, o primeirosignificado dado ao lugar da busca nômade é mesmo a terra intocada,própria a uma tribo que vive e deseja viver livre da agricultura e de seumodo de vida sedentário. Nisto, como também Noemi Dias Martinezacentua, os Guarani em nada se diferenciam de outras tantas tribos enações de índios nômades, caçadores das florestas da América do Sul.Somente depois de submetidos ao poder colonial da Conquista,conduzidos contra a vontade à redução ou à encomenda, é que osGuarani transformam um lugar conhecido da natureza — a floresta —em um local desejado da religião: uma terra desconhecida, massimbolicamente real além de tudo e, mais do que tudo, dos poderes dapresença maléfica dos homens brancos. Assim, a terra sem brancos,lugar ancestral de caça, passa a ser o lugar místico da negação de todosos males, a começar pelo mal da morte(28).

A começar pela própria sociedade, insiste Hélène Clastres. Pois o quepregavam os Caraí, Karaí, profetas errantes de tribo em tribo, dealdeia em aldeia, sujeitos de um poder religioso absolutamenteinquestionado, até quando os seus ouvintes e seguidores osdescobrissem mentirosos ou iludidos, era a busca de um espaço devida coletiva sem um local e sem lugares demarcados onde fossemabolidas não as regras dos costumes do modo de vida dos antigos, masas relações da vida social que negassem a sua ancestral naturalidade. Olugar de um tempo sem as etapas da história, onde fossem abolidas elaprópria e a sucessão das gerações de homens.

Com tantos outros lugares de paraiso, na sua face mais externa a TerraSem Mal é o lugar da absoluta abastança num tempo de realizaçãoplena do desejo de um povo de caçadores: "o milho cresce sozinho,as flechas alcançam espontaneamente a caça... Opulência e lazeresinfinitos. Mas nenhum trabalho, portanto, danças e bebedeiras podemser as ocupações exclusivas" (29). Mas se em tal Terra os princípioséticos, lúdicos e religiosos do ñandé renko devem ser preservados eretraduzidos para a eternidade de uma vida opulenta, as normasantigas de orientação da vida social antecedente devem ser abolidas, acomeçar pelas próprias regras do casamento. Do que elas valerão, senão haverá mais gerações? O que elas poderão valer, ali, onde foramabolidos o trabalho, o poder, a submissão e o conflito que delesdecorrem? "Dêem suas filhas a quem vocês quiserem" diziam os caraí.O que traduz sem dúvida a recusa das duas prescrições essenciais dostupis, a do primo cruzado e a do tio materno, mas — mais

(28) Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo,p. 16-7.(29) Clastres, Hélène, Terra Sem Mal,p. 67.

Não há umacidade celestial a

construir ou aencontrar alhures;

há um lugar adescobrir através

da asceseindividual

(Kandire) ecoletiva...

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profundamente — a recusa de toda a proibição: pois, se tudo épermitido, nenhuma união é incestuosa" (30).

E Hélène Clastres conclui:

Quer dizer que o mal — trabalho, lei — é asociedade. A ausência do mal — a terra sem mal — éa contra-ordem. Não é por acaso que as únicasatividades sociais destinadas a se manterem na TerraSem Mal são as festas de bebidas: essas festas sãotambém, na sociedade, a expressão da contra-ordem(ao mesmo tempo, sem dúvida, que são o meio decontrolá-la). Finalmente, a Terra Sem Mal é o lugarda imortalidade, enquanto nessa terra os homensnascem e morrem: como se tal fosse acorrespondência entre a ordem social das regras(que implica troca matrimonial, trabalho, etc.) e aordem natural da geração (que implica nascimentoe morte) que bastasse para abolir aquela para selibertar desta. O homem nasce bom (nasce paradeus), a sociedade deprava-o (abole sua naturezadivina): poderia ser este o axioma da antropologiados tupis, ou do que se poderia chamar suaantropodicéia(31).

Rousseau por certo gostaria de haver nascido tupi-guarani. Vejamosbem: a procura sem fim de uma Terra Sem Mal é a recusa ativa dasociedade, de sua vida em seu estado negador da natureza e daquilo aque — mesmo antes da vida dos brancos e da Conquista, ela obriga oshomens a serem e viverem. E se fracassam as migrações de tantospovos, através de tantos anos, é porque o seu projeto: dissolver asociedade, é em si mesmo suicida(32).

(30) Id.Ibid. p. 67.(31) Id.Ibid. p. 68.

(32) Hélène Clastres procura definir o Kandire: " O que eles se esforçam por pensar é que,entre a existência finita que é a dos humanos na yvy mbaemegua (— terra má) im-perfeita porque prometida a uma destruição a uma destruição próxima e a vida semfim desfrutada pelos divinos na yvy maraey(= terra sem mal), não existe ruptura. Épossível passar de uma à outra sem solução de continuidade; ou, como dizem ospróprios mbiás sem passar pela prova da morte: oñemokandire. Essa expressão que,segundo a etimologia fornecida por León Cadogan, significa literalmente fazer comque os ossos permaneçam frescos a mesma que os mbiás empregam para significar achegada à Terra Sem Mal sem perder sua natureza, sua forma humana, isto é, suapostura vertical. Sem sofrer, portanto, a prova da morte (íntegro de corpo e alma, porassim dizer), pois a verticalidade define o ser animado. Que o conceito de Kandiretraduza a possibilidade de alguém continuar vivo e — ao mesmo tempo — tornar-seimortal não aparece apenas na etmologia da palavra e na sua explicação pelos mbiás,mas também no uso que os mitos fazem dela, (id.ibid, p. 89).

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Para além da sociedade terrena o homem guarani deixa, ele mesmo, deser um homem regido por sua deficiência. Retornado ao estado denatureza que o aproxima do momento antecedente à própria criação,ei-lo que, tal como antes os seus Karaí, torna-se como os deuses. Seucaminho? Destruir não apenas a sociedade que obriga o homem a serservo do próprio homem — de si mesmo — mas também a cultura,ou melhor, o que há nela de propriamente humano, logo, desocialmente produzido por ele: por coerção e sob coerção. Não háuma "cidade celestial" a construir ou a encontrar alhures; há um lugara descobrir através da ascese individual (Kandire) e coletiva, a viagemda tribo onde a vida de homens próximos a deuses possa ser coletiva— como a deles — sem ser social.

Se uma tal interpretação é verdadeira, eis que podemos crer comHélène Clastres que estamos diante de um movimento de busca tribalde um lugar de deuses para a vida do homem que em nada seconfunde com os messianismos e milenarismos costumeiros daAmérica e, com mais ênfase e persistente atualidade, do Brasil(33).

Porque não havia, pelo menos antes da chegada dos europeuscolonizadores, o projeto comum da "sobrevivência de uma sociedadeameaçada por outra na sua própria existência". E nisso:

O profetismo tupi é exatamente o inverso de ummessianismo: nasce de uma cultura que segrega porsi mesmo seu próprio questionamento e na qual areligião, por ser o lugar dessa crítica, gera adispersão. As migrações para a Terra Sem Malilustram dessa maneira uma das possíveis saídaspara a crise — manifestada pelas tendênciasinconciliáveis do religioso e do político — dassociedades tupis-guaranis: a autodestruição dessassociedades(34).

" Os ritos religiosos dos guarani são, portanto, governados pela crença que o homempode alcançar o Kandire, pode ascender à imortalidade sem passar pela prova damorte" (Id.Ibid., p. 92). Chegar à vida plena sem passar pela experiência da morte,chegar ao Kandire, implica a dupla viagem, como vimos: a do indivíduo através daascese e a da tribo através da busca da Terra Sem Mal. É uma promessa dada aoGuarani, mas uma promessa somente cumprida por meio de um esforço que, nos doissentidos, implica o abandono de tudo e uma busca incessante.

(33) Recomendo ao leitor dois estudos a respeito do profetismo indígena na AméricaLatina. Estão ambos publicados em italiano em: LAmenca Rifondata — analisi di trerisposte indigene alloccidente. O primeiro é justamente ainda sobre os Guarani e foiescrito pela antropóloga Cristina Pompa: Il Mito della "Terra Senza Mal" e; osegundo de Gilberto Mazzoleni, é: Huave — la rifondazione quale constante.

(34) Clastres, Hélène, Terra Sem Mal,p. 68." O Breve relato dessas migrações dos guaranispara a Terra Sem Mal basta para mostrar, também aí, a originalidade de uma tradiçãoreligiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer. Nenhum sincretismo

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Estamos assim diante de uma dupla interpretação negadora domessianismo clássico como fundamento da religião, do ethos e dabusca de destino dos Guarani. De um lado as teorias utilitárias quereduzem a busca da Terra Sem Mal à procura terrena de um lugar denatureza, realizado na e como a floresta virgem: lugar aquém dacultura, terra dos ancestrais, da reprodução sem fim do modo de serdo caçador guarani. De outro as teorias que definem essa mesma buscacomo sendo regida em sua essência por um simbolismo religioso quedesloca para a imaterialidade de um viver para além da cultura, logo,para um estado de natureza próprio dos deuses, o lugar da vida que ocoração do homem e os desejos da tribo devem querer procurar semtréguas. Em ambas as interpretações não se espera a vinda de umredentor, de um guia, de um ser supremo que destrua "este mundo"e o seu mal, deixando a salvo apenas uma fração devota de seguidoresfervorosos. De uma parte eis o ideal de volta a um lugar na Terra e aum modo de ser que destrua não a cultura e a vida que ela codifica etraduz, mas aquilo que nela impede a tribo de viver a seu modo: comouma gente da floresta, aquém da agricultura, aquém do poder tornadouma forma de coerção. De outra parte, a negação pura e simples dequalquer espécie de sociedade, porque para os homens atingirem oKandire e, imortais, tornarem-se próximos aos deuses, precisam nãohabitar uma outra sociedade, mas viver já para além de qualquer uma.

O discurso dos Caraí sobre a Terra Sem Mal continua a ser, depois depassados cinco séculos, de um mesmo teor: uma fala religiosa sobre asociedade presente. Ele é, ao ver de Hélène Clastres, antes de maisnada um discurso crítico sobre a sociedade com uma vocação à críticaque o passar do tempo enfraqueceu. Sendo a negação de um estado desociedade presente, em nome das "boas normas", o modo de ser dosantigos é ainda hoje a essência presente se realiza como um estadointerno de relações — ainda que sob o poder e a coerção de fatores esujeitos externos — negador, por sua vez, de uma ética de salvação aque o profeta conclama a tribo (35).

Se um primeiro pensar religioso tupi-guarani negava a sociedade comoa possibilidade da Terra Sem Mal, o pensamento guarani atual aceita

existe aqui. E, ao contrário do que se da com os movimentos messiânicos, não depa-ramos com nenhuma ressonância política: não se trata de revoltas; nenhuma reivin-dicação política ou territorial acompanha ou provoca as migrações. É, ao contrário, ecomo antigamente, o abandono do território e a passagem à vida nômade. Os gua-ranis certamente não procuravam obter uma independência política e econômica quejá possuiam: devemos recordar que os grupos que empreenderam essas migraçõesviviam num território (na fronteira entre o Brasil e o Paraguai) onde podiam desfrutarde uma autonomia real, embora precária, sem dúvida, protegidos que estavam de todoo contacto por um meio natural (a densa floresta tropical que cobre toda a região)muito difícil de se penetrar e, na época, ainda virgem (op. cit., p. 81-2).

(35) Clastres, Hélène, Terra Sem Mal,p. 109.

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supor uma sociedade justa cujo modelo, a ser encontrado em algumlugar do futuro, é o de seu próprio passado. Isto porque o mal é aambivalência e ela não é mais do que a junção de valores antigos evalores novos, onde são verdadeiros, para o Guarani, apenas osantigos, os da tradição, "os que distinguem os Poranguei dos quenão foram enfeitados — os paraguaios" (36). A busca da Terra SemMal começa por uma ascese que não é outra senão, vimos já, o viverde acordo com as normas tribais dos antigos. Mas se tal mal éindividual e existe quando o índio é seduzido pela dessemelhança —por ser, ele mesmo, Guarani e viver também como o branco — ésobretudo na vida social que o mal da dessemelhança se instala,quando nela duas culturas coexistem em conflito. Não adianta maisviajar: pois se individualmente a pessoa do Guarani não mais conseguelivrar-se de ser ambivalente, também a tribo não tem mais como selivrar de converter-se subalternamente aos desígnios do mal. Isto é,pensar e agir como os brancos que, submetendo-os ao seu podereconômico e político, submetem as normas do Ñandé rekó aos seuspróprios preceitos e interesses. E se os brancos são o mal porque não"foram enfeitados", porque desconhecem "as belas palavras, porquenão sabem conduzir o canto e a dança que trás a fala dos deuses aocoração dos humanos, os Guarani tornam-se maus porque não sabemmais como não mesclar os símbolos de seu modo de ser como os dosbrancos.

Nós, os nhanderus de hoje, fazemos apenasesforços esporádicos para cantar, e fadados aofracasso. E como poderíamos cantar? Veja: umamanhã, na rede, me ponho a cantar as palavras queme são inspiradas pelos senhores do além. E minhamulher me interrompe: "o que está fazendo você,cantando quando não há sal nem banha para arefeição?". Tenho que me levantar e sinto raiva.Impossível cantar quando se está com raiva. Comopoderíamos receber inspiração quando temos quetrabalhar para nossas famílias não morrerem defome?. Precisamos trabalhar para comprar carne,porque o senhor dos taiaçus e dos outros animaisda floresta os impede de cair em nossas armadilhas.E precisamos trabalhar para nos vestirmos como osparaguaios. Porque os nossos próprioscompanheiros chegam a zombar dos ornamentosrituais(37).

(36) Id.Ibid. pg. 109-10.

(37) Leon Cadogan, apud Clastres, Hélène, Terra Sem Mal, p. 111.

Isto é, pensar eagir como osbrancos que,

submetendo-os aoseu poder

econômico epolítico, submetem

as normas doÑandé rekó aos

seus própriospreceitos einteresses.

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Eis um caso surpreendente de uma religião indígena que resiste adeixar-se integrar no corpo de valores de outras religiões. Que persistecomo pode em manter viva a palavra do profeta, dirigida agora àquiloque foi, em um passado da tribo, apenas a condição inicial para abusca da vocação do Guarani: a Terra Sem Mal. Já que a comunidadedos índios guarani não é mais a dos eleitos — e os fatos da vidasubmetida o demonstram, com evidência, que eles pelo menos, saibamentre os outros vivem como os eleitos. E justamente porque a própriavida nega agora, sujeita e ambígua, até mesmo uma tal possibilidade,ainda que a cultura guarani possa se ver repetindo as palavras e osgestos rituais dos antepassados, isto somente serve a tornar patenteque o sentido e a vocação antigos não são mais possíveis de seremrealizados. Conviver subordinadamente em uma mesma terra com osbrancos implica a perda das condições pessoais e coletivas de pôr-seem marcha em busca do Kandire. Por isso mesmo o discursoreligioso dos Kami - e não será isto comum entre outras experiênciasculturais do tipo profético, messiânico ou não? — realiza umdeslocamento inevitável. Ele transfere a busca real, geográfica esimbolicamente necessária de um lugar dado em visões e sonhos comoexistente e à espera do único povo eleito capaz de alcançá-lo através deseu próprio esforço coletivo, para uma busca pessoal de ascesê; de umretorno do coração e da conduta às normas da vida antiga, sem amescla — na pessoa e na cultura — do mal que é o valor do branco etudo a que ele conduz. Eis a vocação coletiva da história transformadaem um desejo de ética.

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Escolher um regime alimentar tem, assim,implicações econômicas e sociais de monta: implicaadotar uma prática econômica conforme ao idealmbiá (sem dúvida alguma), mas não é realidade, erestrita demais para ainda ser possível. Ademais,não basta um comportamento econômicoconservador: a ascese alimentar não dá a perfeição,mas somente o que a torna possível — o mborayu-. Para obter o aquyje, é preciso além noconservantismo (ou na recusa da sociedade atual):cumprir um ritual (ou seja, algo que em princípiodeveria envolver o conjunto da comunidade) aoqual a comunidade já renunciou há muito tempo.Restrição no plano enconômico, excesso a nível davida ritual: vale dizer que a Terra Sem Mal só éacessível ao preço de uma opção duas vezesimpossível, pois convida todos a se conformarem amodelos culturais que não são mais os dos mbiás. Odiscurso religioso evidentemente não mudousozinho, a prática religiosa também se modificou:ainda é possível dançar e rezar, mas não é maispossível - exceto sendo um louco - repetir hojeos gestos dos antigos caraí e abandonar tudo, àprocura da Terra Sem Mal(38).

(38) Clastres, HéLène, Terra Sem Mal, p. 110.

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Assim como em outras interpretações indígenas, primeiro onomadismo guarani buscaria apenas o lugar geográfico real da floresta,a terra da caça abundante livre dos brancos, o território ancestral dosantepassados e, depois, reconhecida a impossibilidade de taisdeslocamentos livres em um mundo denominado pela presençacoerciva do homem branco, desloca tal espaço natural e social de buscapara um plano etéreo de realização religiosa, fora ou além dos limitesdo mundo terreno pelo menos próximo e conhecido. Em um terceiromomento há um novo deslocamento: a procura de uma terra fora domundo e da sociedade (um espaço sem lugares marcados, onde seabolem as relações sociais em um tempo sem pontos de referências,em que se abolem as gerações), a uma busca interior do retornoascético ao modo de ser dos antigos, ainda que isto tenha que ser feitoaqui mesmo, entre os brancos e sob o seu poder. Ou por isto mesmo.O imaginário profético guarani repete outros: o paraiso existe aqui,fora do poder opressor do outro e da lógica do outro impressa nacultura da tribo; o paraíso existe além do mundo que o outro domina;o paraiso não existe a não ser no interior, dentro do coração dohomem subjugado, que se livra sem fazer-se ser libertado.O que o profetismo guarani anuncia já não é mais a possibilidade de atribo atingir uma terra perfeita onde o homem guarani escaparia domal e da morte, mas sim a destruição próxima, através do mal e damorte, de toda a terra, isto é, de todas as sociedades. Há agora entre ohomem guarani e seus deuses uma distância impossível de ser vencida.Não porque os deuses se calaram, mas porque os humanos,dessemelhantes, ambivalentes, não sabem mais ouvir as suas palavras.Não sabem mais, portanto, pronunciá-las.

Nós, que somos as últimas gerações já não nosabstemos de mais nada de agora em diante nãosabemos mais conduzir-nos.

Religião Guarani e Cristianismo

Depois de submetidos à Colônia, os povos Guarani aprenderam comos brancos a se dividirem a si próprios em índios das missões,civilizados, e índios da floresta, selvagens. Sabemos que muitos anosmais tarde esta mesma oposição rege auto-classifícações dos Guarani.A própria diferença entre índios integrados, vivendo próximos àscidades do Brasil, da Argentina, da Bolívia e Paraguai, e índios livres,habitantes ainda das últimas florestas, como os Guayaki, nãoreduzidos às fronteiras de reservas, atualiza aquela primeira oposição.

Os povos guarani foram no passado e são atualmente submetidos aotrabalho tutelar e conversionista de missões cristãs. Por muito tempo,

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durante e após os padres jesuítas, elas foram exclusiva oupredominantemente católicas. Hoje em dia missões evangélicas e,dentre elas, com muito mais ênfase e melhores resultados, as degrupos e igrejas pentecostais, disputam com as ordens de missionárioscatólicos o direito e o suposto dever cristão de converter pessoas eculturas indígenas à sua fé.

índios que nas reduções dos Sete Povos aprenderam os princípios docristianismo, submetendo-se aos preceitos de uma vida sedentária eregida pelo trabalho agrícola e artesanal, e que encantaram os senhoresdo Reino com a qualidade de seus objetos de arte e de suas vozes,re-educadas para os corais das igrejas, preservam no entanto até hoje eadaptam a novas condições uma cultura religiosa tribal que aosestudiosos dos Guarani espanta em um duplo sentido. Primeiro emrazão de sua própria persistência que, para além de uma simplesestratégia cultural de resistência relativa a uma plena integração asistemas simbólicos impostos, parece traduzir uma rara vocação defidelidade indígena à sua própria religião. Em segundo lugar, em razãoda maneira como, guardadas as diferenças de integração cultural entresub-grupos e aldeias, subsiste entre os Guarani uma notávelhomogeneidade religiosa, inclusive na lógica das atualizações agorainevitáveis.

Não são poucos os pesquisadores da cultura guarani que aceitam aidéia de que, mais do que entre outros grupos tribais das Américas,uma declarada conversão de pessoas, famílias e mesmo aldeias a algumdos ramos do cristianismo, tem apenas facilitado a possibilidade depreservação do sistema de crenças e cultos essenciais da " religião dosantigos", fundamento, vimos, do Ñandé rekó que traça o próprio perfilde uma identidade Guarani.

Quanto às mudanças do sistema cultural,encontramos toda — a escala de variação. Algunsgrupos mantiveram no essencial o seu antigo modode vida. Outros foram já levados à beira dadesintegração. Muitas mudanças que se observamno sistema religioso data do tempo das reduções,outras se devem a influências de época mais oumenos recente. De modo geral, a cultura guaranirevela resistência aos efeitos das diferentes situaçõesde contacto. Sobretudo o carácter fundamental dareligião se mostra particularmente imune ao contactocom representantes do mundo cristão. Por muitotempo, ali, a adoção de elementos do cristianismonão decorreu de um real confronto de dois sistemas

Outros tomaramdesde então o

caminho da vidaerrante e livre nasflorestas. Por isto

mesmo, foramaqueles que

preservaram atéagora mais livres

de elementosbrancos e cristãos

a sua cultura e asua religião.

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religiosos, mas reflete uma estratégia para melhorconservar as crenças e os valores tradicionais. É umaforma de conceder para não ceder(39).

Frente à presença de vários grupos missionários cristãos ao redor oudentro de uma mesma aldeia, a maioria dos Guarani em situação decontacto constante com os brancos aceita identificar-se como cristã.Assim, as aldeias dos Guarani ao longo do litoral de São Paulo, noBrasil, aprendem a dividir-se simbolicamente em católicos e crentes (istoe, convertidos a alguma denominação evangélica, via de regra,pentecostal)(40). Um desdobramento, aí sim estratégico, permite àlógica religiosa indígena reconhecer, para dentro da tribo e para asinterações com os regionais, uma religião guarani de que o índio sereconhece sendo, e uma adesão ao cristianismo, cuja religião, aocontrário, ele se reconhece tendo.

Após século e meio de submissão às missões jesuíticas, dois parecemser os destinos tomados pelos povos guarani. Alguns deixaram-sesubmeter à ação missionária dos outros grupos religiosos católicosentre meados do século 18 e fins do século 19. Aproximaram-se dascidades e do modo de vida dos brancos e, mesclados aos seus códigosde crença, culto e identidade, incorporaram à religião guaranielementos míticos e mesmo éticos de um cristianismo inicialmentecatequético e, depois, francamente popularizado, como o doscamponeses da Argentina, Brasil, Bolívia e, principalmente, doParaguai, com quem os Guarani estreitaram relações de troca deserviços e sentidos religiosos. Outros tomaram desde então o caminhoda vida errante e livre nas florestas. Por isto mesmo, foram aquelesque preservaram até agora mais livres de elementos brancos e cristãosa sua cultura e a sua religião. Por causa desta oposição de destino,sincretismos religiosos e integrações de símbolos cristãos à religiãoguarani variam intensamente no tecido de um núcleo religiosoindígena comum. Não será outra a razão pela qual, enquanto KurtNiemundajú nega a subsistência do cristianismo como um sistemareligioso entre os Apapocúva, do Brasil, que ele descobre e descreveno começo do presente século, ressaltando na religião dos índios nãomais nem menos do que raros fragmentos cristãos, como a existênciada cruz em alguns ritos e lugares, o uso do batismo, a adoção docaixão cristão para a viagem final do corpo dos mortos e arepresentação de heróis da tribo através de esculturas de madeira, osdados de León Cadogan sobre os Mbüá-Guarani do Paraguai quasepoderiam evocar a evidência, no sistema tribal de mitos cosmogônicos.

(39) Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo,p. 2, grifos meus(40) Cherobim, Mauro, Os Índios Guarani do Litoral do Estado de São Paulo, p. 123-4.

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de personagens e heróis indígenas dentro de uma estrutura deacontecimentos e significados em tudo cristã (41).

Seja entre culturas indígenas francamente cristianizadas, seja entreindios escapados ao longo dos séculos de um trabalho missionáriopersistente, o que os estudiosos dos indios do Sul encontram, pareceser sempre uma estrutura simbólica e uma vida religiosa coletiva semduvida alguma Guarani. Egon Schaden diz isto sem rodeios:

Certo é que a religião de todos os grupos da triboque hoje vivem no Brasil, no Paraguai e naArgentina não é cristã, mas a guarani. De tudo oque de possível proveniencia cristã se possadescobrir no conjunto de suas crenças, ritos ecerimônias conservaram-se apenas aspectostangíveis e formais. O conteúdo é pagão. Entreíndios cujos antepassados estiveram direta ouindiretamente na órbita de influência dosmissionários, ter-se-ia a expectativa de encontrarpelo menos uma mitologia sincrética em que todosos elementos bíblicos e outras reminiscências cristãsestivessem amalgamados com os relatos autóctenes.Mas o que na realidade se registrou é um conjuntode mitos que manteve o seu genuíno carácteraborígene. Nada do que se depara na estrutura dopensamento mítico-religioso reflete a visão domundo que deve ter sido a dos jesuítas(42).

Um duplo deslocamento feito pela cultura de alguns sub-gruposGuarani revela a maneira como a tribo lida com a questão religiosa.Sobretudo quando em contacto com os brancos, os índios não revelamum modo cotidiano de vida e mesmo os símbolos visíveis de umaidentidade pessoal, familiar e de aldeia associadas à religião dosancestrais. Ao contrário, o índio tenderá a tornar proclamada a sua

(41) Apud Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo,p. 3.

(42) Schaden, Egon, Religião Guarani e Cristianismo, p. 5. Um notável exemplo de comoelementos simbólicos do cristianismo são incorporados à mitologia Guarani, circuns-tancialmente, poderia ser o do seguinte depoimento recolhido por Egon Schaden:

"Em 1946, redro Pires, velho ñandeva do litoral paulista, me narrou o mito daCriação, em que se diz: Era um homem. Não se sabe o pai dele e não se sabe a mãedele. É o deus verdadeiro.Ñanderuvusú.Não havia iluminação no ar. Eles viviam noescuro, em cima da cruz. Ñanderovusú mandou Mbaékwáá gritar. Então ele gritou.Ñanderuvusú desceu para o pé da cruz. Desceu e viu uma bolinha de terra. Aí elesubiu outra vez e contou a ele que lá estava uma bolinha de terra. Aí ele mandou gritaroutra vez, com mais força. Aí, quando ele foi, estava grande, muito grande, tinhaespichado bastante, Aí, o primeiro bicho que houve foi o grilo: txim, txim, txim,começou a falar. A eles desceram. Estava feito o mundo" (op. cit.., p. 13).

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adesão a um dos ramos do cristianismo de conversão: o catolicismo ouo evangelismo pentecostal. Esta confissão de crença cristã não raro secompleta, principalmente no caso dos "guarani-católicos", com ademonstração da evidência de que a família batiza os filhos na igreja,participa de seus cultos e respeita seus santos e preceitos.

É entre eles, no interior social e simbólico da vida da tribo, que nãoapenas uma prática que torna atualizada a crença da religião dosantigos, mas também uma identidade étnica que se recompõe guaranijustamente por não deixar de acreditar nos deuses e mitos da tribo,são pensadas e vividas entre todos. A exceção poderia ser, agora, a deíndios convertidos por neo-missões pentecostais. Aqui sim, começa aparecer crescente o número de pessoas e famílias que fazem daconversão ao cristianismo uma adesão de crença, culto e identidade.Esta nova divisão entre os índios de uma mesma aldeia seráconsiderada no item a seguir.

Em segundo lugar, fragmentos de crenças do catolicismo camponêssão incorporados à periferia simbólica da religião guarani. No entanto,sincretismo às avessas, para que a religião dos. ancestrais possa serantes de mais nada justamente isso: a religião, tais elementos cristãospopulares, rearranjados de acordo com a lógica tribal, tornam-se, elessim, elementos de crenças e cultos de medicina popular, de magiacaseira, de explicações parciais de relações entre brancos e índios. Istopoderia significar que no seu todo o guarani vive o seu sistemaoriginal de crenças como religião e faz ser magia o que acrescenta a elado cristianismo, sob a forma do catolicismo popular.

Ora, de acordo com Egon Schaden a religião guarani — " núcleo deresistência da cultura nas situações de contacto" — apenas mantém asua antiga integridade enquanto cada grupo, em cada aldeia, conseguepreservar pelo menos a essência das regras de relações entre seusintegrantes. Religião de uma comunidade em diáspora, ela significa aprópria experiência de tal vida coletiva. E quando ela perde todos oualguns dos seus principais princípios de reorganização de estruturas eprocessos de orientação da vida e de significação do mundo, também asua religião deixa de ser acreditada e vivida como um sistemaintegrado e íntegro de símbolos e significados.

Entre os fatores de uma progressiva desintegração religiosa guarani,Egon Schaden faz coro com outros autores ao apontar: os casamentosmistos (dado que o cônjuge não-guarani dificilmente se integra emuma religião tribal); a imposição do trabalho do índio subordinado aopoder e à lógica de patrões brancos; a incorporação à vida da aldeia eaos códigos da tribo de princípios regionais de ordenação e atribuição

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de sentido à vida social, como e principalmente, uma nova hierarquiade pessoas não mais fundada em valores internos de base religiosa,mas em critérios "brancos", como a riqueza material.

As familias extensas, habitantes de uma mesma original casa grande,são substituídas por familias elementares segundo o estilo regional. Asubordinação do tempo de trabalho ritual e de trocas cerimoniaisdentro de uma aldeia, ou entre aldeias, às regras do tempo e da lógicado trabalho produtivo regido pelo interesse econômico (traduzidopelo próprio índio como uma questão de sobrevivência) altera oesquema real de experiência do Ñandé rekó. A desintegração cotidianado sistema de relações entre homens e mulheres, entre pais e filhos,com os adultos em número crescente trabalhando fora das aldeias epara os brancos, sugere um efeito crescente de desintegração da vidareligiosa guarani, que cinco séculos anteriores de catequese nãoconsequiram abalar (43).

Três etapas desiguais poderiam traduzir o processo de transformaçãoda vida religiosa guarani. É importante enunciá-las aqui porquanto elasrevelam respostas diferentes às mesmas ou a diferentes situações decontacto e de pressão dos brancos para a integração da culturaindígena à nacional.Uma primeira aproxima os grupos e aldeias que, apesar de todo ocontacto de muitos anos com os brancos e apesar da atual

(43) Alguns dados sobre a relação entre religião, sociedade e papéis sociais poderiam seresclarecedores aqui. Tomo-os de Egon Schaden: " Na medida em que se pode falarem estratíficação social entre os Guarani, esta se baseia em critérios religiosos. Oprestígio do indivíduo decorre de seu papel nas danças e festas pelas quais se esta-belece comunicação coletiva com o Além. Mas tão logo o índio, no afã de obter umastantas coisas que antes não conhecia e agora lhe parecem indispensáveis, seja colhidopelas malhas da economia regional, começa a entrar em jogo também o ideal daeficiência econômica e o da posse de valores materiais. Em outras palavras: já se dis-tingue entre ricos e pobres. £ pelo fato de os homens em grande parte passarem asemana trabalhando em fazenda e outras propriedades de civilizados, é inevitável quea família-grande, antes o principal grupo responsável pelas práticas regulares oudiárias do culto, se fragmente em famílias elementares. Para a religião dos Guarani sãode importância também, embora de modo igualmente indireto, a ordem política e astransformações que nela operam. Nas comunidades mais fiéis à tradição, a chefia dogrupo, originalmente composto de várias famílias grandes, cabe ao pajé, cuja vida étoda voltada para o sobrenatural. Sua mentalidade o impede de compreender as exi-gências que o contacto com o mundo dos brancos trás consigo. Guardião da herançacultural de seu povo, provura defendê-la dos efeitos nefastos da nova situação. Poucose interessa por aprender a língua dos estranhos e mantém-se alheio a quaisquer inte-resses e aspirações econômicas que venham a manifestar-se na geração dos jovens.Surgiu assim, uma nova instituição, mais condizente com a realidade atual, a docapitão, que tem entre suas funções principais a de representar o grupo perante asociedade nacional. Devido às mudanças lentas mas contínuas e inevitáveis, o capitãoacaba por tornar-se figura de importância vital mas não entra em competição com ochefe religioso, cuja autoridade e prestígio se mantém inalterados (op. cit., p. 21). Nãoé difícil associar este " capitão", face da tribo ao mundo do branco, à própria maneiracomo os Guarani lidam com o cristianismo. Seria então possível dizer-se que o capitãoestá para o - ser cristão" da tribo e de cada aldeia, assim como o xamã está para o" ser guarani" e afirmar-se como tal através da religião.

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subordinação do guarani aos princípios de vida e trabalho dosregionais, persistem em preservar tão intacta quanto possível a"religião dos ancestrais", lançando mão, inclusive, de estratégias deocultamente de práticas rituais indígenas, de afirmações "para osbrancos" de adesão ao cristianismo e de incorporação fragmentada deelementos do cristianismo popular à periferia entre magia e religião navida da aldeia.

Já que, para todo o Guarani, as experiênciasmístico-religiosas constituem o objetivo último davida, não se há de estranhar a sua dificuldade decompreender o mundo dos brancos e de neleencontrar o seu lugar. Ao passo que em outrastribos — entre os Tupi, por exemplo, osTenentehára, do Maranhão — arrefece aos poucos aresistência à aculturação, inclusive no que dizrespeito aos valores religiosos, os Guarani seaferram a eles com obstinação, embora em muitoscasos já não disponham da necessária organizaçãosocial para exprimi-los satisfatoriamente e torná-losefetivos(44).

Quando nesta primeira situação algo do catolicismo, doprotestantismo ou mesmo do espiritismo permeado de idéias eimagens de cultos de origem afro-brasileira, é incorporado à religiãodos ancestrais, vimos que recobre aí uma dimensão simbólica liminar.Isto significa que a religião Guarani não sincretiza propriamente comoutras. A cultura da tribo, para manter a integridade ainda de seusistema religioso toma fragmentos de outras e os desloca pra esferasliminares de sua própria vida religiosa. Algo que, de resto, camponesese operários do Brasil estão acostumados a fazer na relação entre umaidentidade proclamada como católica e o uso sistemático de práticas epreceitos de cultos afro-brasileiros. Não seria propriamente umexagero dizer que, como vimos antes, a religião do conquistadortorna-se, na cultura do índio, a sua magia.

(44) Q jogo pessoal, familiar e de aldeia em e entre religiões, como estratégia da cultura eda identidade, aproxima o índio do próprio branco pobre no Brasil. Vejamos umdepoimento de Egon Schaden: "Na aculturação religiosa, que na maioria dos casos,como vimos, significa a aceitação de umas tantas idéias e ritos do catolicismo rural dosvizinhos brasileiros, de uma seita protestante ou de um espiritismo permeado deelementos de origem cabloca e africana, é possível distinguir três fases. Na primeira oGuarani aceita elementos estranhos sem atribuir-lhes função e significado religiosos.Tem apenas valor mágico medicinal, econômico e social. Ocorre então, por exemplo,como algo muito natural que o índio assista à missa e de noite participe de dançasrituais na cabana de seu pagé. A presença na missa nada mais é do que fonte de pres-tígio nas relações com a população brasileira. Levam-se as crianças para serem ba-tizadas na igreja a fim de receberem presentes de seus padrinhos, não raro pessoasestranhas à tribo, e, sobretudo, porque o evento é ensejo para uma festa. Doismotivos, portanto, o econômico e o de sociabilidade. Do pecado original a serapagado pelo sacramento o Guarani não tem noção alguma" (op. cit., p. 22).

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Em segundo lugar,fragmentos de

crenças docatolicismo

camponês sãoincorporados à

periferia simbólicada religião

Guarani

Em uma segunda situação há uma efetiva mescla de sujeitos, símbolos,usos e princípios de codificação da vida entre a " religião dosancestrais"e outras, principalmente o catolicismo e o evangelismoprotestante. Ativa ainda e integra, a religião Guarani incorpora à sualógica de crença e ethos elementos passíveis de gerarem associaçõesférteis, vindos de outras religiões (45). E a religião tribal se pensando asi mesma, enquanto inevitavelmente se modifica através do que integrade cristão ao seu próprio sistema.

Na terceira situação, que podemos considerar aqui como um limite, dealguma maneira o processo de articulação entre dois sistemasreligiosos é oposto aos antecedentes. Agora é o cristianismo quem seimpõe como "verdade cultural" e realiza entre os índios a dissoluçãode personagens, símbolos e códigos da religião Guarani à sua lógicareligiosa. Este momento de perda Guarani da religião tribal equivale,em todos os casos estudados, a uma correspondente reorganização davida coletiva da tribo segundo os padrões do modo de ser indígena.

Quando os estudiosos de religião na América do Sul falam desincretismo, algumas vezes cometem duas falhas que uma análise dareligião indígena em contacto com culturas regionais ajuda a corrigir.

Não são sistemas religiosos em si mesmos, postos em relação, os queintercambiam elementos de troca e que, como resultado, produzemamálgamas peculiares ou sub-sistemas religiosos. Em tudo há — e aexperiência Guarani dramaticamente o revela — situações vividas entresujeitos religiosos ou não, de um lado e do outro. Há estratégias eprocessos sociais de alianças táticas e de conflitos inevitáveis, deexpropriações e de apropriações. Não são apenas "elementos" dereligiões que se aproximam e se fundem, que se combinam paraproduzirem outra coisa que não mais eles mesmos. O que existe é acriação de novas articulações de e entre sistemas integrados desímbolos e significados religiosos. Processos de subordinação edomínio também entre os símbolos e seus valores; recriações lógicas epossibilidades de recriação de rearranjos dentro de uma mesmareligião, ou na fronteira entre ela e uma outra.

Mais do que sincreticamente criar uma religião, ou um sistemavariante em uma única direção, o que parece ocorrer no caso Guarani é

(45) Sigo com Egon Schaden: "Na segunda fase se aceitam padrões de comportamento,símbolos e conceitos religiosos enquanto tais, mas reinterpretando-os em termos dereligião tribal e sobre a base de analogia. A divindade suprema é identificada com oDeus cristão e recebe o nome de Ñande Djara, Nosso Senhor. Outros entes sobre-naturais se equiparam a santos católicos, à semelhança do que se deu nas religiõesafro-brasileiras. Os anjos cristãos são yryrái djá,os espíritos auxiliares. Com o batismocristão acabam por confundir-se as cerimônias pagas de nominação, nas quais seintegram, aliás, elementos do tempo dos jesuitas" (op. cit., p. 22 e 23).

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um jogo de relações de resistência e subordinação. Se em um primeiromomento a religião da tribo preserva a sua integridade "religiosa" àscustas de deslocar para sua fronteira, como magia utilitária, os valorese princípios de usos de culto de outras religiões, em um segundomomento, ainda articulada e dominantemente a religião tribalreordena seu próprio logos para pensar-se a si mesma através do queintegra de uma outra religião, cujo sistema dissolve em sua próprialógica: em e como seu sistema religioso. Se a idéia de sincretismo éainda válida, podemos falar aqui de uma subordinação do cristianismoa uma lógica sincretizante indígena.

Apenas uma terceira situação limite poderia corresponder ao quetradicionalmente é descrito como um efeito de sincretismo, quandouma cultura já cristianizada — isto é, cujo sistema religioso de crença evida já é o cristão — deixa-se impregnar de "elementos nativos e serealiza com a mescla deles, quando não gera, de uma possível ediscutível combinação de duas ou mais religiões, uma outra, diversa detodas(46).

Vejamos a seguir como, em um caso concreto, não mais uma culturaindígena, mas os seus personagens lidam com a identidade religiosa esuas transformações.

Guarani: índio católico x índio crenteHá uma curiosa divisão com que se diferenciam os sub-gruposGuarani do Litoral de São Paulo, entre Itariri, no Sul e Ubatuba, nafronteira Norte com o Rio de Janeiro. Os índios do sub-grupoNandeva auto-identificam-se com "guarani" e aceitam com os Mbüa aclassificação de "tupi", para este sub-grupo(47). Havendo chegadoantes, os Nandeva reconhecem-se também como"índios daqui", isto é,do lugar, e atribuem aos Mbüa serem vindos do Sul do país, muitosanos depois.

Provenientes possivelmente do Paraguai, do Mato Grosso e dosestados do Sul do Brasil, esses guarani do litoral paulista serão a sobradas grandes migrações anotadas por Kurt Nimuendajú em 1824, 1870e 1912. Terão vindo também, em bandos menores, em anosposteriores do presente século. Eles estão hoje estabelecidos em 5aldeamentos nas matas do litoral e em dois acima, no planalto da Serrado Mar(48).

(46) Sobre esta questão remeto leitor ao oportuno estudo de Manuel Estevez Gutierrez:En torno al estudio comparativo de la pluralidad católica.

(47) Cherobim, Mauro, Os índios Guarani do Litoral do Estado de São Paulo, p. 27.

(48) Id.Ibid. pg. 65-78. Sobre o que representam os " aldeamentos" Guarani para os indiosdo litoral, ver p. 82.

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Insulados e pequenos aldeamentos que em nada significam a posse dereservas adequadas e definitivas, os Guarani procuram preservar aindaa sua principal atividade de subsistência: a caça, acompanhada de pescae coleta. São reconhecidamente mais hábeis que os caçadores brancos,caiçaras e caipiras, que os acusam de dizimarem os animais da floresta.Praticam uma agricultura complementar com base no milho e namandioca. Ela é maior e integra mais a dieta dos sub-grupos Ñandevado que dos Mbüa. Habitantes ainda de florestas em uma regiãodestinada recentemente ao turismo e que muito depressa sofremodificações demográficas e econômicas, os índios até agora sãomuito pouco requisitados como força de trabalho no mercadoregional. Sua principal atividade é a produção de artesanato para avenda(49).

Não há mais uma terra para onde viajar, alem do oceano a cuja beirachegaram, muito embora o mito da Terra Sem Mal esteja presente atémesmo na fala cotidiana dos Guarani Ñandeva ou Mbyá.

Vejamos como em uma situação localizada a duplicidade religiosa évivida e representada na cultura Guarani. Persistente no desejo demanter autônoma a cultura da tribo, mas inevitavelmente inserido semem absoluto reconhecer-se integrado na sociedade regional, o Guaranipensa a religião como uma experiência de dupla dimensão: existe a" minha religião", a "nossa religião", algo como o ñande rekó que seassume como sendo a religião guarani, a " religião dos antigos";existe o cristianismo, reconhecido como: "a igreja católica" e a "doscrentes".

Seria possível falar-se de uma religião interna, a dos índios,reconhecidamente entre eles, e de uma religião externa, se os doisqualificadores não parecessem algo artificiais. Pois a realidade daoposição está além desta mera geografia. Disse algumas páginas atrásque o sistema religioso Guarani é aceito pelos índios como o núcleosimbólico das crenças e da identidade indígena. É a religião de que se é,o fundamento da própria cultura naquilo em que, para o Guarani,apenas em aparência isto ou aquilo nada têm a ver com a própriareligião. De modo mais motivado entre estes índios do que entrevários outros do continente, é impossível pensar em ethos e uma visãode vida Guarani e dos Guarani sem ser através da religião. Destemodo, mesmo um índio convertido de corpo e alma a uma confissão

(49) " Todas as atividades dos Guarani são voltadas para uma atividade principal, que é aconfecção de produtos artesanais destinados à comercialização. Pronta uma certaquantidade, enfeixam-na e iniciam a venda pelas imediações do aldeamento, praias,estradas, indo à capital de São Paulo. Quando vendem tudo retornam para casa e otrabalho recomeça". (op. cit., p. 109).

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pentecostal e, portanto, negador como sistema denoníaco de suaantiga religião, ela ainda e a religião da sua tribo. Mesmoteologicamente falsa (e entre eles muita discussão a respeito devehaver) ela é metaforicamente o eixo da verdade da tribo, porquanto oGuarani é a sua religião.

Eis porque a religião dos antigos funciona — e como poderia deixar deser assim? - como um sistema de valores guardião da unidade da tribo,na diferença entre seus sub-grupos.

Assim, a religião tribal é, em última análise, um doselementos aglutinadores do grupo enquantoexpressão étnica onde o Guarani encontrasolidariedade tribal em termos de segurança, apoio,auto-identificação, etc. Neste sentido, esta dimensãoreligiosa é sinônimo de dimensão índia de vida doGuarani(SO).

Se o Guarani se reconhece como tal através de crer e procurar praticara "minha religião", ele aceita ser cristão. Aceita relacionar-se para forada aldeia e da tribo com os brancos, como um cristão: católico oucrente. Atenção, mesmo em aldeias onde o trabalho evangelizador atualé fraco ou inexistente, uma proclamação de adesão ao cristianismoparece atualizar entre os índios, frente aos brancos, a legitimidade dasrelações entre as duas culturas. Pois se em absoluto não cabe aobranco converter-se a, ou mesmo reconhecer a religião Guarani, aoíndio é necessário proclarmar-se cristão para reconhecer-se capaz decolocar-se diante do branco. Uma apressada interpretação utilitária quevisse nesta duplicidade uma apenas estratégia consciente e adequação aum modo inevitavelmente dual e opressor, perderia de vista uma razãomais densa(5l).

Uma vez mais, estejamos atentos, não se trata de um puro e simplessincretismo religioso, mas de uma duplicidade confessional que sugerea cada sistema de crença e culto não apenas uma função, mas aatribuição de significados a uma dimensão desigual de experiência derelações sociais e simbólicas da própria vida cotidiana.

E aqui a diferença sobre como se comportam, como sujeitos religiosos,os índios convertidos a uma das ramas do protestantismo, oureconhecidos como católicos, poderia esclarecer mais de perto o jogodesta própria inevitável duplicidade.

(50) Cherobim, Mauro, Os índios Guarani do Litoral do Estado de São Pauto, p. 124.(51) Id.lbid. Ver análise feita das p. 124-30.

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Não seriapropriamente umexagero dizer que,

como vimos antes,a religião do

conquistadortorna-se, na

cultura do índio, asua magia.

Se pudéssemos colocar como um tipo puro da religião tribal a pessoaGuarani que ativamente recusasse todo e qualquer reconhecimento emsi mesmo do cristianismo, teríamos que colocar no extremo oposto oconvertido ativo ao protestantismo pentecostal. Oculto o primeiro,proclamado o segundo, de acordo com o bom estilo "crente", os dois

"certamente existem, encarnados em sujeitos, em modos confessionaisde ser: o primeiro cada vez mais a exceção, o segundo como umacrescente e perigosa demografia ativa. Porque eis que o sujeitoreligioso apenas Guarani existe como um ser de cultura, no interior datribo, entre seus silêncios e segredos, não como um índio entrebrancos, que é como cada vez mais os Guarani são obrigados asobreviverem. Extremo oposto, o " índio-crente" precisa afirmar paraos brancos e entre eles a sua exclusiva adesão à nova fé cristã. Istoporque não existe outra modalidade de se ser pentecostal que não sejao reconhecimento de uma adesão indiscutível a uma única igreja deuma única religião tida como verdadeira e redentora.

Mas eis que mesmo alguns convertidos ao protestantismocontinuavam considerando a religião tribal como "a verdadeira",ainda que não mais, ativamente, a religião deles, crentes. Seria então areligião Guarani uma verdade voltada ao passado, imobilizada em suavocação de não se mesclar ou render aos cultos dos brancos, sendo, aomesmo tempo, incapaz de trazer ao índio de agora, na situação desujeição em que vive, a resposta de uma salvação antes acreditada eagora, desesperada.

Uma mulher do aldeamento de Itariri, ao serindagada porque era "crente", respondeu "porqueeles passaram por aqui e disseram que Jesus vinhanos salvar". Ingressou na igreja, mesmo semcondições de freqüentá-la por razões de saúde queimpossibilitaram seu deslocamento. Seu marido e osoutros membros do aldeamento eram assíduos aoscultos. Respostas idênticas recebemos emBoissucanga e em Ubatuba: convertiam-se à esperade salvação. No entanto, estes mesmos informantes"conversos" sempre se referiam à religião tribal

como a verdadeira; a conversão possibilitava podermanipular uma situação à qual os índios se sentiamimpotentes; convertidos, diziam que "agora eu nãoincomodo ninguém, e agora ninguém meincomoda" (52).

(52)Id.Ibid.p.I39.

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Mas certamente não será esta pobre razão funcional o que explica oporque de conversões crescentes de Guaranis ao protestantismopentecostal. Uma associação entre o seu discurso de salvação, de restonão muito distanciado simbolicamente da busca da Terra Sem Mal,como um precário sucedâneo branco ao mito indígena, poderia seraqui feita com o profetismo Guarani. Claro, ela nega a essênciasimbólica e histórica deste mesmo profetismo, principalmente pordelegar mitos, valores, acontecimentos e sujeitos não-indígenas umprojeto de busca não apenas Guarani — isto é, essencialmente indígena— mas com exclusividade para os Guarani, ou seja, para osnão-brancos, para os que "foram enfeitados"(53).

Entre os dois tipos extremos propostos aqui, reais ou não, oGuarani-católico poderia ampliar a compreensão do que se discute. Talcomo acontece com os próprios brancos — os camponeses vizinhosdos Guarani, em todos os países do Sul do continente onde eles estão,por exemplo — a possibilidade real de se apresentar como um católicoe compartir com tal identidade proclamada outros sistemas religiososou, pelo menos, alguns serviços e momentos de outras religiões, é umahipótese não apenas viável, mas até costumeira.

Mesmo entre os "guarani-crentes" há queixas dos pastores brancos deque eles são volúveis: mudam de uma para outra igreja e não raro seafiliam a mais de uma, algo impensável na lógica protestante(54). Oque parece ser problema para a fração guarani convertida aopentecostalismo: assumir-se crente e aceitar na prática a verdade dareligião dos antigos (o que é diferente de, no interior da aldeia,reconhecê-la como verdadeira, pelo menos no âmbito do mundoGuarani), é uma solução não pressentida como contraditória para oguaraní-católico.

A descontinuidade exigida pelas igrejas protestantes entre sua fé e ados índios não encontra um equivalente no caso católico, nem comoatitude ativa por parte da igreja próxima aos índios, nem — eprincipalmente — na lógica do catolicismo popular. Vejamos. Quandoum Guarani vem a converter-se sozinho ou com a família a um grupopentecostal, será dele exigido pela nova confraria religiosa de adesãoum comportamento exemplar, negados os modelos incompatíveis da

(53) Eis que inteligentemente Mauro Cherobim não resiste associar a oposição "TerraRuim" versus " Terra Sem Mal" dos Guarani, ao desenho conhecido e costumeiro dos" dois caminhos", com que os protestantes atualizam as duas vias únicas do destino dohomem: o " caminho largo" de perdição, cujo contexto visual é todo ele urbano, e o" caminho estreito da salvação, eminentemente rural. Ver p. 134-9.

(54) Id.lbid. p. 140 e, especialmente, a nota de rodapé 27.

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Pois se emabsoluto não cabe

ao brancoconverter-se a, ou

mesmo reconhecera religião

Guarani, ao índioé necessário

proclamar-secristão para

reconhecer-secapaz de

colocar-se diantedo branco.

cultura guarani, negados ainda mais os do catolicismo camponês,aceitos apenas e com restrita exclusividade os do padrão protestante decrença, culto e conduta social. Eis um exemplo de conversão nãoapenas a uma confissão religiosa, mas a um modo radical de vidaregido por uma neo-religião.

As seitas protestantes, principalmente as iluministasou pentecostalistas, prescrevem um código decomportamento moral com proibições de vícios eestímulos à vida correta e produtiva. Fabricam,assim, uma imagem de uma criatura puritana,muito compatível com as idéias capitalistas de vida.daí a melhor aceitação, pelo civilizado, doíndio-crente e a sua valorização no contacto políticomanipulado pelo branco. A "conversão" de Bentofaz mudar os motivos da sua contestação comolider: deixou de ser o beberrão e passou a sercontestado "por não ter cultura" (55).

No intervalo entre a face mais xamanística e menos profética dareligião guarani e o catolicismo popular sincretizado, a cultura dosñandeva dá margem até mesmo para a incoporação de elementos decultos afro-brasileiros, desde que o conjunto se perceba subordinado à"verdadeira religião": a guarani(56).

Quando um Guarani é convertido a uma igreja protestante, os brancose os seus neo-irmãos de fé exigem dele uma conduta que, ambivalenteao negar o ethos e o modo de ser propriamente guarani, como umsuposto tipo puro de sujeito indígena, negue aquilo que caracteriza oguarani-católico: a idolatria, os vícios do álcool e "da carne", orecurso as atividades mágicas, a não subordinação do tempo da pessoaa um código de vida regido pelo trabalho, onde a própria caça —atividade guarani ancestral — é mal vista, porquanto é umnão-trabalho. Pelos guarani não-crentes, o convertido é desqualificadopor haver abdicado publicamente não apenas de usa religião de origem— o que ele faz com dificuldades, vimos — mas de um modo de serem sua essência incompatível com os valores protestantes.

De um lado e do outro das duas margens que o cristianismo oferece

(55) Id.Ibid. p. 141.

(56) "Nesta entrevista, entretanto, duas coisas ficaram patentes: e foi influência de cultosafro-brasileiros: o rezador se situava como pertencente a uma "linha", provavel-mente de " caboclo", que a denominava de" índio guarani"; havia uma forte reação aoutras religiões, sempre reafirmando a sua, tribal, como a verdadeira" (Id.lbid, p.142).

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ou impõe ao Guarani como saída simbólica a uma incorporação dosujeito índio ao mundo do homem branco, subsiste uma estranhavocação de guarda da integridade da religião ancestral. Em outrassituações de conversão de sujeitos, famílias e grupos inteiros deindígenas latinoamericanos a confissões cristãs, não é raro que,fragmentado e subalternamente sincretizado, sobretudo com ocatolicismo, a religião tribal se reduza a um repertório de preceitos eusos de tipo mágico. A tribo adota ou representa haver adotado umareligião dos brancos e, nos limites em que ocultamente pode fazê-lo,revive fragmentos de sua religião antecedente.

No caso Guarani parece haver uma vocação oposta. Ela consiste emreduzir e em magicizar a religião de conversão e afirmar ainda aintegridade e a excelência da religião tribal como um sistema nãoredutível e crenças e cultos próprios da tribo. Seja reconhecendo talsistema indígena como a verdadeira religião, para os índios, comoentre os "crentes", seja vivendo-a na plenitude possível, sob a capa deuma confissão católica, é a religião Guarani que se trata de nãointegrar, isto é, de não deixar corromper-se no confronto com a dohomem branco, " não enfeitado", " não eleito", ainda quedominador(57). A própria "mescla" com elementos religiosos docatolicismo popular ou de cultos de origem afro-brasileiras realiza-se,vimos já, segundo os padrões de incorporação do novo e aspossibilidades de transformação própria da lógica e da vocaçãoreligiosa guarani.

Eis um caso raro em que a demografia de conversão ao cristianismofavorece não o desaparecimento ou à descaracterização da religiãotribal, mas justamente o contrário: o desejo persistente de suareinvenção e a afirmação de sua perenidade.

Pudemos observar exatamente isto nas últimasviagens realizadas ao Bananal, uma tentativa deretorno às tradições tribais, em buscacompensatória para a descaracterização trazida pelaaculturação. A casa-de-rezas foi reativada e oscerimoniais passaram a ser realizados comfreqüência e assistidos não só pelos ñandeva locais,como também pelos Müa do aldeamento da

(57) O que quer dizer esta possibilidade, quando mesmo entre os povos missionários cató-licos, pos-conciliares e defensores de uma Teologia da Inculturação, em que a própriareligião tribal é para ser defendida e valorizada, como uma reversão absoluta — peloymenos no plano da intenção — do projeto catequétíco? Ver, a respeito: Inculturaçãoe Libertação editado pelo Conselho Missionário Indigenista, com o apoio da própriaConferência Nacional dos Bispos do Brasil.

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Barragem. Apresentam, no decorrer dos cerimoniaise pelas declarações do chefe religioso, umsincretismo com traços afro-brasileiros...

Verificamos nesta pesquisa que, pelo menos emrelação aos Ñandeva, à religião, neste momento,deixa de ser apenas individual e/ou familiar para setornar religião de todo o grupo e, como tal, fazerparte do movimento contra-aculturativogrupal(58).

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(58) Cherobim,Mauro, Id.Ibid.p. 86-7.

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