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Os sentidos da universalidade no debate da saúde no Brasil: uma análise da 8ª Conferência Nacional de Saúdepor Celita Almeida Rosario Dissertação apresentada com vistas à obtenção do título de Mestre em Ciências na área de Saúde Pública. Orientadora principal: Prof.ª Dr.ª Tatiana Wargas de Faria Baptista Segundo orientador: Prof. Dr. Gustavo Corrêa Matta Rio de Janeiro, maio de 2015.

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“Os sentidos da universalidade no debate da saúde no Brasil: uma

análise da 8ª Conferência Nacional de Saúde”

por

Celita Almeida Rosario

Dissertação apresentada com vistas à obtenção do título de Mestre em

Ciências na área de Saúde Pública.

Orientadora principal: Prof.ª Dr.ª Tatiana Wargas de Faria Baptista

Segundo orientador: Prof. Dr. Gustavo Corrêa Matta

Rio de Janeiro, maio de 2015.

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Esta dissertação, intitulada

“Os sentidos da universalidade no debate da saúde no Brasil: uma

análise da 8ª Conferência Nacional de Saúde”

apresentada por

Celita Almeida Rosario

foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Ruben Araújo de Mattos

Prof. Dr. Eduardo Navarro Stotz

Prof.ª Dr.ª Tatiana Wargas de Faria Baptista – Orientadora principal

Dissertação defendida e aprovada em 25 de maio de 2015.

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Catalogação na fonte

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica

Biblioteca de Saúde Pública

R789s Rosário, Celita Almeida

Os sentidos da universalidade no debate da saúde no

Brasil: uma análise da 8ª Conferência Nacional de Saúde. /

Celita Almeida Rosário. -- 2015.

127 f.

Orientador: Tatiana Wargas de Faria Baptista

Gustavo Correa da Matta

Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde

Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2015.

1. Sistemas de Saúde. 2. Reforma dos Serviços de

Saúde. 3. Conferências de Saúde. 4. Sistema Único de

Saúde. 5. Brasil. I. Título.

CDD – 22.ed. – 362.1040981

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“A utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos.

Caminho dez passos e o horizonte se distancia dez passos mais além. Para que serve a

utopia? Serve para isso: para caminhar.”

Eduardo Galeano

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AGRADECIMENTOS

Gratidão!

À minha família agradeço por todo apoio desde sempre, por todo afeto e por toda

torcida! Em especial à minha mãe Márcia!

Agradeço aos meus orientadores: Tatiana Wargas e Gustavo Matta, primeiro por

aceitarem orientar esta aluna que chegou apenas com muitas e muitas inquietações que,

assim como uma pedra bruta, foram sendo lapidadas em cada orientação junto à vocês.

À Tati, agradeço por toda a sua dedicação, disponibilidade, por me motivar a cada passo

avançado na pesquisa e por sua doçura, que tanto ameniza a vida de mestrandos

desesperados! rs Da mesma forma, agradeço ao Gustavo pela dedicação, disponibilidade

e pela motivação ao longo da pesquisa. Agradeço pelas orientações e grupos de estudos

que tanto auxiliaram na construção deste estudo, mas que também contribuíram

enormemente para minha formação como futura mestre. Foi um prazer trabalhar e

aprender junto à vocês!

Agradeço aos professores Eduardo Stotz e Ruben Mattos pelas contribuições que

aprimoraram a construção deste trabalho!

Agradeço aos professores da ENSP, que além de ensinarem o conteúdo acadêmico,

tornaram-se grandes exemplos de mestres por toda a dedicação, respeito e apreço ao

ensino e aos alunos. Sinto-me muito feliz em ter feito parte desta Escola e ter tido a

chance de aprender com vocês!

Agradeço aos meus queridíssimos e amados amigos! A cada um de vocês meu enorme

agradecimento pela paciência durante o processo de construção desta dissertação!

Agradeço cada abraço amigo, cada angústia dividida, cada incentivo! Agradeço a sorte

de tê-los por perto e na torcida em cada nova empreitada!

Agradeço aos meus amigos de turma de Mestrado da ENSP por todo apoio, toda

preocupação e colaboração, pela troca de ideias, pelas conversas divertidas nos

corredores da ENSP e por dividirem comigo o mesmo ideal de contribuir para a saúde

do nosso país! Agradeço também aos amigos de outras subáreas com que tive o prazer

de dividir ideias ao longo das aulas. Muito deste trabalho vem da contribuição de vocês

que acompanharam cada etapa dele!

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RESUMO

O presente estudo tem como objetivo identificar os sentidos de universalidade presentes

no debate da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) no Brasil. Após 25 anos da

criação do SUS, o tema da universalidade retorna ao debate da saúde no Brasil através

do reconhecimento de uma possível modificação de seu sentido a partir dos anos 2000,

onde este princípio vem sendo utilizado em dois sentidos distintos: o de cobertura

universal de saúde e o de sistemas universais de saúde. Esta elucidação suscitou a

necessidade capturar e investigar os principais argumentos e discursos acerca do sentido

da universalidade no debate da saúde no Brasil, através de uma abordagem teórico-

metodológica para o estudo da produção de sentidos a partir da análise das práticas

discursivas. A VIII CNS apresentou-se como espaço privilegiado para a captura do

processo discursivo acerca da universalidade, por se caracterizar um marco para o

movimento da Reforma Sanitária e pela expressiva participação popular. Foram

escolhidos como fonte de análise os Anais da 8ª CNS, o Relatório Final, além de artigos

da Revista Saúde e Debate, revistas, jornais e vídeos relacionados à VIII CNS. Logo,

buscou-se também reconhecer os processos políticos e contextos que davam sentido aos

enunciados, trazendo à tona os discursos em disputa e as possíveis condições que esses

se apresentam e são formados. A análise deste estudo revelou que, embora não houvesse

uma preocupação com a definição do conceito tal como no debate atual, apresentou-se

como predominante nos discursos a ideia de universalidade como ampliação do acesso

ao direito à saúde. Identificou-se como condições de possibilidade para a emergência

deste sentido o processo de redemocratização do Estado no final da década de 1980 e a

disseminação de propostas para uma reforma ampla atreladas à ideia de garantia de

direitos de cidadania, além da forte participação popular e de atores que defendiam a

ampliação do acesso ao direito à saúde. Evidenciou-se ainda a existência de eixos temáticos

que influenciavam a construção dos sentidos de universalidade: Responsabilidade do Estado,

Unificação do SNS, Estatização do SNS e Setor Privado como Concessão. A análise destes

eixos permitiu concluir que no debate da VIII CNS sobressaíram as propostas relacionadas à

ideia de saúde como conceito ampliado e como um direito social.

Palavras- Chaves: Universalidade; VIII Conferência Nacional de Saúde; SUS;

Reforma Sanitária; Produção de sentidos;

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ABSTRACT

This study aims to identify the meanings of universality present in the debate of the VIII

National Health Conference (CNS) in Brazil. After 25 years of SUS creation, the theme

of universality returns to the health debate in Brazil by recognizing a possible

modification of its meaning from the 2000s, where this principle has been used in two

different senses: the universal coverage health and universal health systems. This

elucidation raised the need to capture and investigate the main arguments and speeches

about the meaning of universality in the health debate in Brazil, through a theoretical

and methodological approach to the study of the production of meaning from the

analysis of the discursive practices. The VIII CNS presented himself as a privileged

space to catch the discursive process about universality, by characterizing a milestone

for the movement of health reform and the significant popular participation. Were

chosen as the source of the analysis of the 8th CNS proceedings, Final Report, and of

the journal Health Debate, magazines, newspapers and videos related to VIII CNS.

Therefore, it sought to recognize the political processes and contexts that gave meaning

to set out, bringing up the speeches in dispute and the possible conditions that these

present and are formed. The analysis of this study showed that, although there wasn´t a

concern with the definition of the concept as the current debate, introduced himself as

predominant in the discourse of universality idea as increased access to the right to

health. It was identified as conditions of possibility for the emergence of this sense the

state of the democratization process in the late 1980s and the spread of proposals for a

comprehensive reform linked to the idea of ensuring citizenship rights, in addition to

strong popular participation and actors who advocated increased access to the right to

health. It also showed the existence of themes that influenced the construction of the

universality of meanings: State Responsibility, the Unification NHS, the NHS

Nationalization and Private sector as Concession. The analysis concluded that these

axes in the debate VIII CNS highlights proposals related to the idea of health as a

broader concept and as a social right.

Key -words: Universality; VIII National Health Conference; Health Reform;

Production of senses; Unified Health System;

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LISTA DE SIGLAS

ABEM - Associação Brasileira de Educação Médica

ABRASCO - Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

AIH - Autorização de Internação Hospitalar

AIS - Ações Integradas de Saúde

AMB- Associação Médica Brasileira

APS- Atenção Primária em Saúde

BM - Banco Mundial

BNDES- Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CEBES - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

CENDES- Centro de Desenvolvimento Econômico e Social

CDNM - Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

CFM- Conselho Federal Medicina

CIMS - Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde

CIPE - Comissão Interministerial de Planejamento Estadual

CIPLAN - Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação das Ações de

Saúde

CIS - Comissão Interinstitucional de Saúde

CNBB - Confederação Nacional dos Bispos do Brasil

CNS - Conferência Nacional de Saúde

CNRS - Comissão Nacional da Reforma Sanitária

CNTI - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria

COC - Casa de Oswaldo Cruz

CONAM- Confederação Nacional das Associações de Moradores

CONASP - Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária

CONASS - Conselho Nacional dos Secretários de Saúde

CONCLAT- Confederação Nacional da Classe Trabalhadora

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CONTAG- Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CRIS - Comissão Regional Interinstitucional de Saúde

CUT - Central Única dos Trabalhadores

DATAPREV - Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social

DIESAT- Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes

de Trabalho

DMPs- Departamentos de Medicina Preventiva

ENSP- Escola Nacional de Saúde Pública

FAMERJ- Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro

FAS - Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social

FIESP - Federação das Industrias do Estado de São Paulo

FINSOCIAL - Fundo de Investimento Social

FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz

FNM - Federação Nacional dos Médicos

FUNRURAL- Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural

FUNABEM- Fundação Nacional de Bem Estar do Menor

IAPs - Institutos de Aposentadoria e Pensões

IAPAS - Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social

INAMPS- Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

INPS- Instituto Nacional de Previdência Social

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LBA- Legião Brasileira de Assistência

MDB - Movimento Democrático Brasileiro

MPAS - Ministério da Previdência e Assistência Social

MS- Ministério da Saúde

NHS- National Health Service

OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

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OMS - Organização Mundial de Saúde

OPAS - Organização Panamericana de Saúde

PAIS - Programa das Ações Integradas de Saúde

PIASS - Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento

PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PND - Plano Nacional de Desenvolvimento

PPA- Programa de Pronta Ação

PRA - Programa de Racionalização Ambulatorial

PRE- SAÚDE- Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde

POI - Programação Orçamentária Integrada

SAMHPS - Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social

SES- Secretaria Estadual de Saúde

SINPAS- Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social

SNS- Sistema Nacional de Saúde

SUDS - Sistema Unificado Descentralizado de Saúde

SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

SUS- Sistema Único de Saúde

UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância

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LISTA DE QUADROS E FIGURAS

Quadro 1- Síntese do Temário das Conferências Nacionais de Saúde (da 1ª à 7ª

CNS)....................................................................................................................................

Quadro 2 - Distribuição de Vagas para Delegados na VIII CNS.................................

Quadro 3- Discursos Oficiais Proferidos na Abertura da VIII CNS..................................

Quadro 4- Participantes do Debate do Painel I..................................................................

Quadro 5- Participantes do Debate do Painel II............................................................

Quadro 6- Participantes do Debate do Painel III..........................................................

Quadro 7- Participante da Mesa-redonda: “Constituinte e Saúde”...................................

Figura 1- Eixos que Atravessam a Temática da Universalidade no Debate da VIII

CNS.....................................................................................................................................

Quadro 8- Comparativo entre Relatório Final da VIII CNS e Relatório da

CNRS...................................................................................................................................

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS........................................................................................................

RESUMO ............................................................................................................................

ABSTRACT .......................................................................................................................

LISTA DE SIGLAS ............................................................................................................

LISTA DE QUADROS E FIGURAS .................................................................................

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................

CAPÍTULO 1- UNIVERSALIDADE: SISTEMAS UNIVERSAIS OU COBERTURA

UNIVERSAL? ....................................................................................................................

1.1 - A Construção de Sistemas de Saúde Universais .......................................................

1.2- Reformas nos Sistemas de Saúde: Crise nos Sistemas de Saúde Universais...............

1.3- Debate atual da Universalidade: Sistemas Universais ou Cobertura Universal?.........

CAPÍTULO 2 - ANTECEDENTES DA VIII CNS ............................................................

2.1- Redemocratização: A Saúde na Nova República .....................................................

CAPÍTULO 3- A CONFERÊNCIA DA REFORMA SANITÁRIA ..................................

3.1- Conferências que Antecederam a VIII CNS ...............................................................

3.2- A VIII Conferência Nacional de Saúde .................................................................

CAPÍTULO 4 - OS SENTIDOS DE UNIVERSALIDADE NA VIII CNS .......................

4.1- Os Sentidos de Universalidade na VIII CNS ..............................................................

4.2- Consensos: Quais Sentidos de Universalidade Vigoraram Após o Debate da VIII

CNS? ...................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................

ANEXOS ............................................................................................................................

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ....................................................................................

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo identificar os sentidos de universalidade

presentes no debate da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) no Brasil.

A motivação para este estudo surgiu de inquietações e indagações oriundas de

minhas experiências no Sistema Único de Saúde (SUS), atuando no setor de Psicologia

ainda em minha graduação, e de muitas reflexões suscitadas durante o curso de

Especialização em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

(ENSP/FIOCRUZ) no ano de 2012.

Durante o período de formação em Psicologia, a atuação em diferentes

instituições do SUS - sobretudo em programas voltados para a reorganização dos

modelos de atenção à saúde -, possibilitou-me entrar em contato com a dinâmica do

SUS, com as equipes de saúde e com os usuários e assim perceber a complexidade do

trabalho em saúde. Nesse processo de aprendizagem, é que então pude perceber a

intensa relação de muitos problemas de saúde apresentados pelos usuários com fatores

do contexto social tais como pobreza, violência, péssimas condições de moradia e

trabalho; e a necessidade de se buscar alternativas de modelos de atenção que

privilegiassem uma concepção de saúde ampliada e que considerassem no processo de

saúde-doença os sujeitos e o contexto no qual estão inseridos.

Nesse sentido, já no curso de Especialização em Saúde Pública da ENSP,

busquei compreender a discussão acerca dos modelos de atenção à saúde, assim como

alguns dispositivos para a sua reorganização. No entanto, no decorrer deste curso, ao

compreender um pouco mais da gênese e a constituição do SUS, novos questionamentos

emergiram e, desta vez, não mais atrelados à questão das práticas e dos modelos de

atenção, mas sim a questões mais estruturais do sistema de saúde brasileiro. De forma

mais específica, interessou-me aprofundar a compreensão da contribuição da construção

do SUS para a questão da democracia e cidadania no país, principalmente ao instituir a

saúde como um direito social, através do princípio de universalidade.

Dessa forma, tornou-se uma importante questão de estudo compreender e

conhecer de forma mais profunda esse princípio instituído na Constituição Federal de

1988, assim como o seu debate no contexto atual, em um sistema de saúde tão

complexo e híbrido como o brasileiro.

Uma primeira aproximação com esta discussão levou-me ao reconhecimento do

debate em torno da universalização entre autores do campo da saúde e à percepção da

existência de um tensionamento mais recente (anos 2000) em torno deste princípio, com

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a distinção entre universalidade como cobertura assistencial ou universalidade como

sistemas universais. Nesta revisão preliminar, foi possível identificar uma

multiplicidade de argumentos e sentidos para o princípio de universalidade, o que

consequentemente justifica o embate atual e conduziu-me a aprofundar os estudos na

busca da compreensão desses diferentes sentidos.

Segundo Paim e Silva (2010) a noção de universalidade é estritamente

relacionada ao princípio de igualdade e à ideia de justiça. Já na ciência política, esse

princípio tem sido relacionado ao campo do direito, mais especificamente dos direitos

humanos, e refere-se aos “direitos que são comuns a todas as pessoas, como um direito

positivo que visa à manutenção da vida individual e social no mundo moderno”

(MATTA, 2009, p.465).

Na Lei Orgânica da Saúde 8.080/90 o princípio da universalidade se expressa no

Art. 2º que define a saúde como “um direito fundamental do ser humano, devendo o

Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (p.01). Tal como

postulado nesta lei, o Estado deve garantir a saúde através da formulação e execução de

políticas econômicas e sociais visando à redução de riscos de doenças e de outros

agravos e através do estabelecimento de condições que possam assegurar o acesso

universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e

recuperação. Esse dever, no entanto, não exclui a responsabilidade das pessoas, da

família, das empresas e da sociedade (BRASIL, 1990).

Portanto, de acordo com a Lei 8080/90, para a garantia do princípio da

universalidade é preciso considerar a saúde como conceito ampliado, ou seja,

compreender que

“os níveis de saúde expressam a organização social e econômica

do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes,

entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o

meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade

física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços

essenciais” (BRASIL, 1990, p.02).

Da mesma forma, na Constituição Federal de 1988, a universalidade também é

apresentada no art. 196 que define saúde como um direito de todos e dever do Estado.

Esta Constituição é considerada por diversos autores como a “Constituição Cidadã”,

visto que simbolizou um marco na garantia de direitos fundamentais a população. Nela

o SUS foi instituído e, pela primeira vez no país, a saúde foi considerada como um

direito social fundamental.

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No entanto, após 25 anos da criação do SUS, o tema da universalidade vem

retornando ao debate da saúde no Brasil. Segundo autores como Noronha (2013) o novo

debate traz como questão uma possível modificação no sentido de universalidade a

partir dos anos 2000, que difere de forma significativa daquele sentido pactuado na

construção do SUS. Essa percepção de mudança no sentido sugere que o princípio da

universalidade na saúde vem sendo utilizado e confundido como simples expansão da

oferta e cobertura, o descaracterizando como um princípio fortemente atrelado ao direito

do indivíduo e dever do Estado, à equidade e à democracia (COHN, 2009; MATTA,

2009; NORONHA, 2013).

Segundo Paulo Buss, em entrevista recente acerca de sistemas universais de

saúde (DOMINGUEZ, 2013), observa-se atualmente a utilização do princípio da

universalidade em dois sentidos distintos: um que defende uma cobertura universal de

saúde e outro que defende sistemas universais de saúde. Para Paulo Buss, o primeiro

sentido seria apenas uma das dimensões dos sistemas universais públicos e o foco da

cobertura estaria na expansão do acesso aos serviços de saúde, sejam eles prestados por

entes públicos ou privados. Já o segundo sentido seria mais abrangente e estaria

relacionado ao direito à saúde, integralidade e equidade.

A elucidação dessa percepção de mudança de sentido trazida ao debate por esses

e outros atores suscitou, portanto, a necessidade de compreender melhor o princípio de

universalidade. Isso porque, tornou-se claro que apesar de ter sido institucionalizado sob

um determinado sentido, nas práticas cotidianas e no discurso dos sujeitos envolvidos

com o sistema de saúde brasileiro o princípio da universalidade é vocalizado de

diferentes formas.

A partir dessa constatação alguns questionamentos acerca do tema apresentaram-

se: o princípio da universalidade sempre foi unânime no debate da saúde no Brasil ou

coexistiram diferentes sentidos? Que fatores possibilitaram a maior expressão de um

sentido no debate da saúde no Brasil em detrimento de outros? Quais contextos sociais e

políticos possibilitaram a emergência de um determinado sentido nos discursos dos

atores da saúde brasileira? De que forma e onde é possível identificar e analisar as

mudanças de sentido do princípio da universalidade?

Foi, portanto, na busca por responder esses questionamentos que se apresentou a

necessidade de capturar e investigar os principais argumentos e discursos acerca do

sentido da universalidade no debate da saúde no Brasil.

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Embora os argumentos apresentados pelos autores acerca da modificação no

sentido de universalidade pareçam pertinentes e pertençam ao debate atual da saúde,

durante leituras prévias para a realização desse estudo conjecturou-se a hipótese de que

esse debate não é tão recente quanto a princípio se imaginou. Logo, ao investigar quais

seriam os possíveis motivos que justificariam essa mudança, compreendeu-se que seria

necessário verificar o processo discursivo desse conceito e, para isso, seria preciso

conhecer igualmente a discussão dessa temática em um contexto anterior ao debate

atual.

Nessa perspectiva, durante o processo de construção de uma metodologia para

esse estudo buscou-se construir caminhos de análise que permitissem a compreensão e o

reconhecimento dos diversos sentidos do princípio da universalidade no debate da saúde

no Brasil. Era necessário, portanto, partir de um referencial analítico que, mais do que

trazer à tona os chamados “universais1” e conceitos de acerca de uma temática,

possibilitasse elucidar a história de um determinado conceito, os debates e, sobretudo,

os diferentes discursos existentes, suas contradições e disputas. Segundo BAPTISTA,

BORGES & MATTA (2015), é preciso olhar a história sem um sentido finalístico, mas

sim como um acontecimento resultante “dos jogos de força que se encontram em jogo

na história e obedecem ao acaso da luta” (p.103) e, dessa forma, buscar reconhecer as

condições que se apresentam e possibilitam a emergência de discursos de uma época.

A fim de alcançar este objetivo esse estudo apoiou-se na abordagem teórico-

metodológica desenvolvida por Spink e colaboradores (SPINK, 2004) para o estudo da

produção de sentidos a partir da análise das práticas discursivas. Para Spink e Medrado

(2004) os sentidos são compreendidos como construções sociais, produzidas nas

interações cotidianas,

“por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais

historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem

os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as

situações e fenômenos a sua volta” (p.41).

Ou seja, os sentidos estão presentes nos discursos, o que faz da linguagem uma

ferramenta para a construção da realidade. Esses, por sua vez, apresentam regularidades

1 Segundo Baptista, Borges e Matta (2015) esta é uma terminologia utilizada por Foucault para colocar os

conceitos em suspenso e questionar as verdades absolutas que se busca imprimir nos discursos e nos fatos

e acontecimentos da história. Com isso, Foucault busca escapar da essência dos conceitos e valoriza como

estes funcionam e operam nas realidades. Assim, seu método de análise trabalha com o inusitado porque

precisa da liberdade para encontrar o inesperado, porque se dispõe a falar dos discursos silenciados e seus

efeitos.

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linguísticas, que orientam as práticas cotidianas das pessoas e tendem a manter e

reproduzir certos discursos tanto no nível macro dos sistemas políticos e disciplinares,

quanto no nível restrito dos grupos sociais (SPINK & MEDRADO, 2004).

Dessa forma, a produção de sentidos pode ser compreendida como uma prática

social, dialógica, que implica a compreensão da linguagem em uso e que busca entender

as práticas discursivas que atravessam o cotidiano, como as narrativas, argumentações e

conversas, além dos repertórios utilizados nessas produções discursivas (SPINK &

MEDRADO, 2004; PINHEIRO, 2004). Segundo Spink e Medrado (2004), as práticas

discursivas constituem-se como um caminho privilegiado para se compreender a

produção de sentidos no cotidiano. Além disso, o trabalho no nível da produção de

sentidos exige ainda uma retomada da linha da história, pois os repertórios

interpretativos que nos servem de referência foram constituídos histórica e

culturalmente. Logo, essa retomada possibilita a compreensão da construção social dos

conceitos que são utilizados no cotidiano nos discursos (SPINK & MEDRADO, 2004).

Através de um processo de pesquisas documentais prévias, inferiu-se que as

Conferências Nacionais de Saúde (CNS) seriam um espaço privilegiado para essa

retomada no processo discursivo do princípio da universalidade. Isso porque, desde a

promulgação da Lei n. 8.080/90, as CNS ocupam no SUS a condição de instância

formal de exercício do princípio de participação da comunidade. Portanto, atuam como

arenas nas quais a participação social se antecipa à formulação de políticas e, através

desta participação, busca-se desenhar princípios, diretrizes e pressupostos que deverão

orientar todo o processo de formulação de políticas de saúde. Segundo Guizardi et al

(2004), as CNS podem ser caracterizadas como um

“espaço público de deliberação coletiva sobre as diretrizes que

devem guiar a estruturação e condução do SUS, sendo que nelas

o princípio da participação da comunidade assume

explicitamente um caráter decisório acerca da configuração do

sistema” (p.16).

Logo, compreendeu-se que neste espaço de deliberação e de participação de

diferentes atores seria possível capturar e investigar os principais argumentos, discursos,

sentidos, debates e disputas existentes frente a um determinado tema no setor de saúde

brasileiro, nesse caso a temática da universalidade.

Em um primeiro momento do estudo optou-se por investigar os sentidos de

universalidade nas CNS de saúde, tomando como referência os Relatórios Finais e

documentos elaborados da VII à XIV edição. A delimitação da análise a partir da VII

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edição (em 1980) da CNS se deu, primeiro porque as edições anteriores caracterizavam-

se como espaços de discussões estritamente técnicos e, segundo porque o debate da

universalidade se mostra de certa forma mais presente a partir desta edição. No entanto,

durante o processo de pesquisa entendeu-se que a escolha metodológica de analisar a

VIII CNS permitiria melhor capturar argumentos, debates e sentidos acerca da

universalidade na saúde.

E por que se escolheu a VIII CNS para a análise desse estudo? Primeiramente,

porque há um consenso entre diversos autores (CEBES, 2014; GADELHA &

MARTINS, 1988; NETO, 2003) de que esta Conferência simbolizou um marco para o

reconhecimento do direito à saúde no Brasil- e, portanto, à universalidade na saúde -,

pois pela primeira vez no país a saúde foi reconhecida como um dever do Estado e

direito do cidadão. Segundo Neto (2003) a VIII CNS simbolizou também um marco

para o Movimento da Reforma Sanitária cujas propostas apresentadas tornaram-se as

principais diretrizes para a construção do novo Sistema Nacional de Saúde (SNS), o

SUS.

Outro marco da VIII CNS refere-se à intensa participação da comunidade, já que

pela primeira vez na história das CNS contou-se com a presença e a participação de

diferentes representantes da sociedade, tais como usuários, profissionais, trabalhadores

da saúde, entre outros, nas deliberações da política de saúde. Essa organização até então

inédita, concretizou a proposta do debate democrático, e até mesmo o confronto de

opiniões e de ideias entre os atores participantes materializou o processo de construção

da democracia que se pretendia (BRASIL, 2001).

Devido a estas peculiaridades, portanto, entendeu-se como mais interessante ao

estudo e à identificação dos sentidos da universalidade na saúde aprofundar a análise

nos discursos da VIII CNS. Logo, foram escolhidos como fonte de análise os principais

documentos elaborados na VIII CNS: os Anais da 8ª CNS, contendo os trabalhos

apresentados durante a VIII CNS e o Relatório Final da 8ª CNS. Foram também

analisados documentos de contextualização tais como: artigos da Revista Saúde e

Debate, revistas, jornais e vídeos relacionados à VIII CNS. Além disso, foi realizada

uma visita à Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ) onde foi possível entrar em

contato com o acervo histórico sobre a VIII CNS e onde foram encontrados documentos

que auxiliaram na compreensão do debate da Conferência e do contexto histórico do

período.

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A escolha pelos materiais elaborados na VIII CNS baseou-se na compreensão de

que a formulação destes documentos originou-se da realização de toda uma fase de

debates prévios, grupos de trabalho, discussão de propostas, negociações e disputas

entre diferentes posições, para que no fim fossem aprovadas certas análises e diretrizes

para as políticas de saúde. Dessa forma, constituíram-se como documentos históricos

privilegiados para apreender os principais argumentos, sentidos, debates, disputas,

continuidades e deslocamentos argumentativos existentes acerca da universalidade na

saúde.

Cabe ressaltar que esses documentos foram utilizados como pano de fundo e

analisados junto aos materiais referentes ao contexto político-institucional do período

com a finalidade de investigar a existência de algum tipo de relação entre os sentidos

identificados nos discursos com o contexto da época. Portanto, além de analisar os

sentidos de universalidade nos discursos da VIII CNS interessou ao estudo reconhecer e

dar visibilidade aos processos políticos e contextos que dão sentido aos enunciados,

buscando, assim, trazer à tona os discursos em disputa e as possíveis condições que

esses se apresentam e são formados.

Durante o percurso metodológico, foi importante buscar nos materiais indícios

que vinham ao encontro das perguntas de investigação e que serviram como guias

iniciais para se eleger o que era necessário aprofundar na leitura histórica. No entanto,

apesar de apoiar-se em um referencial teórico, o estudo não se apoiou em uma teoria

geral ou modelos a priori. Na verdade, buscou-se reconhecer caminhos específicos de

análise, que foram sendo delineados a partir das questões de pesquisa e incrementados

com novas questões emergidas durante o processo analítico.

Dessa forma, ao entrar em contato com os materiais a serem analisados, tomou-

se como referência uma concepção que considera insuficiente tratar os processos

políticos apenas no que é aparente ou formalmente estabelecido. Segundo Baptista e

Mattos (2011),

“É preciso romper com uma visão normativa e descritiva das

políticas e trazer o que há de vida na sua construção. Isto tudo

nos sugere que é necessário ir além deste modo formal de

definição de Estado e de políticas públicas, buscando nas

práticas sociais as formas de construção das políticas públicas

em cada contexto” (p.63).

Ainda segundo estes autores, durante a análise de políticas deve-se atentar para

aquilo que não se apresenta no documento oficial, tal como os conflitos velados, o olhar

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e discurso diferenciados entres os diversos atores, a utilização de conceitos que se

apresentam em um debate, além dos acasos e contingências na construção das

estratégias de política, ou seja, a forma como foi se delineando o argumento em torno da

política em questão.

Ressalta-se ainda que o conceito de política adotado por esse estudo a

compreende, não de maneira restrita ao seu aspecto formal de enunciado oficial, mas

como uma prática de embates e conflitos de interesses, de posicionamentos, que podem

produzir acordos momentâneos e dinâmicos, que expressam uma forma historicamente

construída de viver e reproduzir da sociedade. (BAPTISTA & MATTOS, 2011).

Nessa perspectiva, a análise dos documentos elencados foi realizada a partir do

seguinte percurso: primeiro pela leitura prévia dos documentos selecionados, seguido da

identificação de trechos que continham conteúdo relevante à temática da universalidade.

Neste processo, foram identificados eixos temáticos2 que atravessavam o objeto de

estudo e que também foram incluídos na análise. Posteriormente este material foi

organizado através da produção de tabelas3 divididas por documentos e subdivididas

pelos eixos temáticos identificados.

Portanto, diante do que foi exposto, este trabalho se propôs a investigar e

responder as seguintes questões: Quais foram os sentidos de universalidade presentes no

debate da VIII CNS no Brasil? Quais foram os principais argumentos e propostas

políticas relacionadas ao debate da universalização em saúde presente nos discursos dos

atores participantes da VIII CNS? Quem eram os sujeitos e grupos que vocalizaram

sentidos relacionados à universalização nos discursos da VIII CNS? Quais são as

relações entre os argumentos e sentidos de universalização encontrados nos discursos da

VIII CNS e o debate de cobertura universal e sistemas universais do momento atual?

Para esta finalidade esse estudo foi dividido, além da Introdução, da seguinte

maneira: O capítulo 1 apresenta o debate atual acerca da universalidade e o

tensionamento de sentidos atribuídos à temática; O capítulo 2 discorre sobre o contexto

político-institucional do setor saúde a partir da década de 1970 até o final da década de

1980, período este que antecedeu a realização da VIII CNS, a fim de propiciar um

panorama ao leitor acerca das condições que possibilitaram o debate levado a esta

2 Além de trechos referentes à universalidade, foi identificada na leitura prévia a existência de eixos

temáticos que atravessavam a temática da universalidade , tais como: Direito à Saúde; Acesso aos

serviços de Saúde; Responsabilidade do Estado; Unificação do SNS; Estatização do SNS; Setor privado

como concessão . Estes eixos e o processo de análise dos mesmos serão mais bem apresentados no

capítulo 4. 3 Ver ANEXO I.

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Conferência; O capítulo 3 refere-se à VIII CNS, e tem como finalidade apresentar a

estrutura, atores e debates ocorridos nesta Conferência histórica. Já o capítulo 4

apresentará os sentidos de universalidade encontrados no debate da VIII CNS; Por fim o

último capítulo trará as considerações finais do trabalho.

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CAPÍTULO 1- UNIVERSALIDADE: SISTEMAS UNIVERSAIS OU

COBERTURA UNIVERSAL?

Para iniciar a reflexão acerca dos sentidos do princípio da universalidade e

buscar reconhecer as condições que possibilitaram a emergência dos discursos sobre

essa temática, será preciso antes compreender um pouco mais o debate atual que vem se

destacando no setor saúde do Brasil a partir dos anos 2000. Este debate refere-se a uma

possível mudança discursiva do princípio de universalidade como defesa de Sistemas de

saúde Universais para uma concepção de Cobertura Universal.

1.1 - A Construção de Sistemas de Saúde Universais

Antes de ingressar na questão central do debate atual - a mudança discursiva do

princípio de universalidade nos anos 2000 -, vale discorrer brevemente acerca da

construção dos sistemas de saúde universais a fim de compreender o contexto histórico

e político que possibilitou a emergência da ideia de saúde como direito e como esta foi

se desenvolvendo ao longo do tempo até o período atual.

Segundo Almeida (2002), a institucionalização de direitos sociais ocorre de

forma paulatina, em um processo histórico que atravessa os séculos XIX e XX, como

parte do desenvolvimento do princípio da cidadania. Este processo de desenvolvimento

de ações políticas como forma de construção de uma ordem social estava intimamente

vinculado à consolidação e complexificação dos Estados modernos. Portanto, segundo

esta autora a capacidade de regulação social do Estado, assim como a criação das

representações democráticas e a ideia dos direitos sociais, podem ser compreendidas

dentro de um contexto de desenvolvimento do sistema econômico capitalista, gerando a

necessidade de criação de uma ordem política promovida pelo Estado, cujo objetivo

principal era organizar a sociedade (ALMEIDA, 2002).

De modo mais específico, a ideia de uma política setorial para a saúde passa a

existir somente a partir da segunda metade do século XIX. Surge através do

imbricamento do discurso médico-científico com o âmbito social, permitindo a

emergência da saúde pública e da política de saúde como campos de intervenção do

Estado. Essa intervenção, no entanto, não acontece de forma linear e uniforme, mas sim

como resposta a diferentes demandas e necessidades em espaços e épocas distintas4

(ALMEIDA, 2002).

4 A autora cita as diferentes e complementares etapas de constituição da medicina social na Europa – da

medicina do Estado na Alemanha, da medicina urbana na França e da medicina da força de trabalho na

Inglaterra, discutidas por Foucault (1979).

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Antes disso, contudo, durante o século XVIII, já é possível identificar a

emergência da saúde e da doença como problemas que exigem um encargo coletivo,

além do surgimento da ideia do bem-estar físico da população como um dos objetivos

essenciais do poder político. Posteriormente, durante os séculos XIX e XX o que se

observa é uma ampliação e dominância da racionalidade científica médica,

acompanhada de um crescente desenvolvimento e dependência das estatísticas. A

importância e a força da medicina na política de saúde, portanto, tem sua origem no

cruzamento de uma nova economia analítica da assistência e a emergência de um

“policiamento” da saúde em nível da população (FOUCAULT, 1979).

Foucault (1979) pontua que o conceito de população – esquadrinhada e ordenada

estatisticamente –, assim como o de política de saúde, emergem no processo de

disciplinamento da sociedade. Logo, saúde e doença tornam-se categorias que integram

os sistemas de administração e controle da população, e a política de saúde torna-se um

campo privilegiado de regulação de tensões sociais, constituindo-se assim como

elementos do estabelecimento de uma determinada ordem social.

“Os direitos e deveres dos indivíduos em relação à sua saúde e a

dos outros, o mercado onde interagem as demandas e as ofertas

de cuidados médicos, as intervenções do poder na ordem da

higiene (prevenção) e das doenças (cura), a institucionalização e

defesa da relação privada com o médico (predomínio da

medicina científica), marcam o funcionamento global da política

de saúde do século XIX” (ALMEIDA, 2002, p.32)

Já no início do século XX, com a aceleração do desenvolvimento da

industrialização e do capitalismo e suas consequentes mazelas (como pobreza,

desigualdade e desemprego), sobretudo nos grandes centros urbanos, emerge a

necessidade de se buscar medidas que visassem atenuar tais diferenças sociais criadas

pelo livre funcionamento do mercado. E é com essa finalidade que são criados os

sistemas de proteção social modernos (VIANA & MACHADO, 2008). Segundo Viana

e Machado (2008),

“a proteção social caracteriza-se como a forma de articulação

entre Estado, mercados e sociedades para proteger os cidadãos

dos riscos associados aos efeitos socialmente diferenciados do

mercado em um dado contexto histórico” (p.646).

A criação de sistemas de proteção social, portanto, busca proteger os cidadãos

das produções de desigualdades e de insegurança social através do financiamento e

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provisão de um grande número de bens e serviços (como a saúde, por exemplo) pelo

Estado aos que não poderiam acessá-los através da renda obtida pelo trabalho ou devido

ao desemprego e/ou falta de renda. Esse movimento ocorre principalmente no momento

pós Segunda Guerra Mundial e passa a ser conhecido como Estado de Bem-Estar Social

ou Welfare State (VIANA & MACHADO, 2008).

Dentre os modelos de proteção social modernos construídos ao longo da história

dois tipos se destacam: o modelo universal e o ocupacional/meritocrático. No primeiro

todos os cidadãos são cobertos e a forma de financiamento é tributária. Segundo Matta

(2009), é um modelo fundamentado

“não na renda ou no mérito, mas no direito a um conjunto de

ações que visam a condições mínimas de vida igualitárias a toda

população, independente de classe social, raça ou religião,

resgatando a idéia de um conjunto de direitos naturais de

qualquer cidadão”.

Segundo Titmus (1968 apud DRAIBE, 1993) o modelo universal ou

institucional redistributivo concebe o sistema de Welfare como um elemento importante

e constitutivo das sociedades contemporâneas, voltado para a produção e distribuição de

bens e serviços sociais "extra mercado", os quais são garantidos a todos os cidadãos.

Respeitando-se condições de vida e necessidades mínimas historicamente definidas, tal

sistema tende a mesclar os mecanismos de renda mínima, integração e substituição de

renda com aqueles típicos dos equipamentos coletivos públicos gratuitos para a

prestação de serviços essenciais, especialmente os de saúde e de educação.

Já no modelo ocupacional, apenas os trabalhadores inseridos no mercado formal

de trabalho são protegidos e o financiamento da provisão é feito através da contribuição

de trabalhadores, empregadores e, por vezes, do Estado. Pauta-se em critérios de

elegibilidade de vulnerabilidades e de contribuição previdenciária para atender aos

indivíduos e grupos (VIANA & MACHADO, 2008; MATTA, 2009). Fundamenta-se na

premissa de “que cada um deve estar em condições de resolver suas próprias

necessidades, em base a seu trabalho, a seu mérito, à performance profissional, à

produtividade” (TITMUS, 1968 apud DRAIBE, 1993, p.14). Dessa forma, a política

social intervém parcialmente, corrigindo as ações do mercado.

Há ainda, segundo a tipologia clássica nos estudos comparativos sobre os

Estados do Bem Estar Social utilizada por Titmus (1968 apud DRAIBE, 1993) um

terceiro modelo: o residual. Neste modelo, a política social intervém ex-post, ou seja,

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quando os meios “naturais” e “tradicionais” de satisfação das necessidades (família,

rede de parentesco, mercado) não estão em condições de resolver determinadas

exigências dos indivíduos. A intervenção, nesse caso, possui um caráter

temporariamente limitado e deve cessar com a eliminação da situação de emergência.

Contemporaneamente, um modelo denominado residual e seletivo, por ser dirigido a

grupos particulares de indivíduos, dotados de características específicas, parece ser, o

"Welfare State" dos Estados Unidos da América.

Segundo Viana e Machado (2008) as razões para a adoção de um determinado

modelo nos Estados ao longo da história costumam guardar coerência com fatores tais

como o “grau de heterogeneidade social, o papel das instituições nos antigos modelos

de proteção social, a força dos movimentos e partidos social-democratas ou socialistas,

o papel das ideias e as formas de difusão das mesmas pelas elites, etc.” (p.651).

Além disso, Draibe (1993) ressalta que o Welfare State aqui apontado está sendo

compreendido no âmbito do Estado Capitalista, como uma particular forma de

regulação social que se expressa pela transformação das relações entre o Estado e a

Economia, entre o Estado e a Sociedade, a um dado momento do desenvolvimento

econômico. Tais transformações se manifestam na emergência de sistemas nacionais,

públicos ou estatalmente regulados de educação, saúde, integração e substituição de

renda, assistência social e habitação que, a par das políticas de salário e emprego,

regulam direta ou indiretamente o volume, as taxas e o comportamento do emprego e

salário da economia, afetando, portanto, o nível de vida da população trabalhadora.

No entanto, após os chamados 30 anos gloriosos do modelo de Welfare State

passam a surgir, a partir da década de 1970, ideias no cenário internacional que se

opõem a esse modelo. Pode-se destacar nessa década a crise econômica dos Estados,

trazendo à tona a preocupação com a sustentabilidade política e econômica destes

sistemas. Portanto, neste período ganham maior expressão os estudos relacionados à

economia política com foco nos determinantes do gasto público.

Segundo Viana e Machado (2008), para os demais países, sobretudo os em

desenvolvimento, que iniciaram seus processos de construção dos sistemas de proteção

e de saúde mais tardiamente, a difusão de ideias reformistas e o diagnóstico de

insustentabilidade econômica dos sistemas de bem-estar representou um freio à

construção de sistemas universais e mais equitativos.

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1.2- Reformas nos Sistemas de Saúde: Crise nos Sistemas de Saúde Universais

A partir dos anos 1970-1980, a extensa intervenção estatal na saúde passa a ser

questionada, com a emergência do debate de reformas do Estado e dos sistemas de

saúde. Logo, torna-se consenso em diversos países a necessidade de executar reformas

nos sistemas de saúde pautadas na racionalização de custos, maior eficiência e

efetividade dos serviços de saúde, além de melhores resultados em termos de equidade.

Segundo Almeida (2002), a discussão acerca desta necessidade ganha destaque

em contexto de crise do Welfare State e de crise econômica, que suscitam o

questionamento dos resultados e benefícios dos investimentos realizados nos sistemas

de saúde. Soma-se este contexto, a emergência dos governos neoliberais nos países

desenvolvidos, propondo políticas de ajuste estrutural e ideias sobre reformas do Estado

que tinham como alvo redução de gastos públicos (FAUSTO, 2005). Nos anos 1990,

esse debate se amplia, tornando-se um dos principais pontos da agenda de discussão

sobre as reformas (do Estado e setoriais) nos fóruns nacionais e internacionais

(ALMEIDA, 2002).

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a reforma no setor de saúde

seria um processo de mudanças fundamentais na política de saúde e nos arranjos

institucionais, coordenado pelo Estado, cuja finalidade seria melhorar o funcionamento

e o desempenho do setor, a fim de alcançar melhores níveis de saúde em uma dada

população (WHO, 1995). Portanto, a reforma na saúde, refere-se a uma definição de

prioridades, um refinamento da política de saúde e uma reforma das instituições que

implementam essas políticas (JANOVSKY & CASSELS, 1995 apud ALMEIDA,

2002).

Estas propostas ganham difusão nos diversos países, sobretudo pela entrada de

agências internacionais no debate da saúde (MATTA, 2005; VIANA & MACHADO,

2008). Segundo Mattos (2001), a oferta de ideias sobre quais seriam as políticas de

saúde mais adequadas para os países em desenvolvimento destaca-se como traço

marcante da atuação de agências internacionais, como Banco Mundial (BM),

Organização Mundial da Saúde (OMS) e Fundo das Nações Unidas para a Infância

(UNICEF), principalmente nos anos 90. Este autor aponta ainda que, por constituírem-

se através de acordos entre vários governos nacionais, denominados países-membros,

que as sustentam financeira e politicamente e que possuem interesses e poderes

políticos, militares e econômicos diversos, as agências internacionais muitas vezes

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expressam relações de poder e de estratégias de disputas de hegemonia numa dada

conjuntura.

Dessa forma, diante do contexto de ajuste estrutural, a partir dos anos 80, as

propostas de orientação da política de saúde dos países passam a ser elaboradas num

âmbito restrito a algumas agências internacionais e aos principais governos do mundo,

difundindo-se, com a ajuda de dispositivos de indução, tais como empréstimos

condicionados e adoção de certas políticas econômicas, sobretudo aos países em

desenvolvimento (MATTOS, 2001).

Para Mattos (2001) a emergência deste padrão de atuação ocorreu de forma

simultânea à crescente proeminência do Banco Mundial ao que se refere ao debate sobre

as políticas de saúde no cenário internacional. Antes desta, a OMS era considerada a

principal agência internacional a exercer uma liderança no debate e na orientação da

política de saúde dos países.

Um destaque importante da atuação da OMS, junto a UNICEF, foi a realização

em 1978 da Conferência de Alma-Ata e o lançamento do projeto “Saúde para todos no

ano 2000”, divulgando a proposta de Cuidados Primários em Saúde. Segundo Mattos

(2001), a Conferência de Alma- Ata significou um avanço no consenso na saúde de

diferentes países ao enfatizar a expansão da atenção primária com ampla participação do

Estado e, além disso, pode ser considerada como uma última participação efetiva dos

países em desenvolvimento no consenso. Nesta Conferência a OMS passa a

compreender e divulgar os cuidados primários em saúde como:

“Cuidados essenciais baseados em métodos práticos,

cientificamente bem fundamentados e socialmente aceitáveis e

em tecnologia de acesso universal para indivíduos e suas

famílias na comunidade, e a um custo que a comunidade e o país

possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, dentro do

espírito de autoconfiança e autodeterminação. Os cuidados

primários são parte integrante tanto do sistema de saúde do país,

de que são ponto central e o foco principal, como do

desenvolvimento socioeconômico geral da comunidade. Além

de serem o primeiro nível de contato de indivíduos, da

família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, aproximando ao máximo possível os serviços de saúde nos

lugares onde o povo vive e trabalha, constituem também o

primeiro elemento de um contínuo processo de atendimento

em saúde” (UNICEF/BRASIL, 1979, p.01 [grifos nossos]).

Ainda na Conferência de Alma-Ata, a OMS identificou como componentes

fundamentais para a constituição da Atenção Primária em saúde: a educação em saúde;

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saneamento ambiental; programas materno-infantis, inclusive imunizações e

planejamento familiar; prevenção de doenças endêmicas locais; tratamento adequado de

doenças e lesões comuns; fornecimento de medicamentos essenciais; promoção de boa

nutrição e medicina tradicional (UNICEF/BRASIL, 1979).

Nesse sentido, é possível identificar nesta Conferência a defesa de sistemas de

saúde universais e a responsabilidade do Estado na garantia de acesso aos serviços de

saúde da população, já que o conceito de atenção primária consensuado era

compreendido como um primeiro nível de atenção à saúde dentro de um sistema

nacional de saúde.

No entanto, apesar de este conceito ter sido amplamente divulgado, após a

Conferência disseminou-se internacionalmente uma noção seletiva da atenção primária

em saúde, que se baseava na formulação de programas focais cujo objetivo era intervir

em problemas específicos de saúde de grupos populacionais em situação de pobreza.

Segundo Fausto (2005), tais programas, propagados principalmente por organismos

internacionais, propunham o uso de recursos de baixa densidade tecnológica sem que

houvesse uma interface direta com os demais recursos em saúde, divergindo assim da

noção de atenção primária proposta na Conferência de Alma-Ata.

Em 1979 (um ano após a Conferência de Alma-Ata) foi realizada a Conferência

de Bellagio intitulada “Health and Population in Development”. Este evento

patrocinado pela Fundação Rockefeller - que naquele período priorizava a identificação

de estratégias custo-efetivas em saúde e a relação entre índices de saúde e os programas

populacionais nos países em desenvolvimento -, marcou a definição e a disseminação

dessa ideia de atenção primária seletiva como um pacote de intervenções técnicas de

baixo custo para intervir nos principais problemas de adoecimento das populações em

situação de pobreza (FAUSTO, 2005).

Segundo Baptista, Fausto e Cunha (2009) esta proposta de atenção primária

seletiva surgiu na Conferência de Bellagio como uma crítica à concepção de atenção

primária em saúde (APS) presente na Declaração de Alma-Ata, “interpretada como uma

concepção idealizada, muito ampla e com poucas chances de aplicabilidade” (p.1011).

No entanto, Fausto (2005) aponta que as principais críticas à versão seletiva da atenção

primária em saúde referiam-se a sua característica de programas verticais que não se

relacionavam “às causas sociais do processo de adoecimento, além da adoção de

medidas paliativas e do distanciamento da noção de saúde básica integrada às demais

ações desenvolvidas em um sistema de saúde” (p.88). A mesma autora acrescenta ainda,

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que esses programas foram questionados em relação aos efeitos discriminatórios e

segmentares de suas ações, pois, na versão seletiva, o termo primário era criticamente

relacionado à ideia de algo primitivo, com qualidade inferior, destinado às populações

pobres, contribuindo assim, para a manutenção de desigualdades sociais e reforçando as

diferenças no acesso e uso aos recursos em saúde.

Durante a década de 1980, portanto, observou-se o surgimento de uma tensão

discursiva entre uma vertente com propostas de extensão de cobertura de caráter mais

universal (Conferência de Alma-Ata) em detrimento de um projeto mais focalizado

(Conferência de Bellagio), que gerou reflexos na discussão sobre a organização dos

serviços de saúde na década de 1990 (BAPTISTA, FAUSTO & CUNHA, 2009). O

resultado dessa tensão foi mais favorável às concepções da atenção primária seletiva e a

sua disseminação em países pobres foi amplamente apoiada pelas principais agências

internacionais. Segundo Fausto (2005) “o objetivo era a extensão de cobertura a partir

da oferta de ações de saúde simples e de baixo custo, principalmente áreas rurais onde a

população não tinha acesso ao sistema de saúde existente” (p.89).

Já nos anos 1990, o Banco mundial assume um papel central no debate

internacional e na orientação das políticas de saúde dos países através da publicação do

relatório “Investindo em Saúde” (MATTOS, 2001; FAUSTO, 2005). Esse documento

apresentou ofertas de ideias cujo argumento principal era a consolidação de sistemas de

saúde capazes de responder a um conjunto mínimo de ações essenciais, definindo quais

serviços e ações de saúde deveriam ser ofertados pelos Estados (BANCO MUNDIAL,

1993 apud BAPTISTA, FAUSTO & CUNHA, 2009).

Resumindo, é possível detectar já na década de 1970 e 1980 a existência de uma

disputa entre: a defesa da responsabilidade do Estado pela garantia da saúde à

população (compreendendo saúde como direito social) e a defesa pela intervenção

mínima do Estado no setor saúde. No contexto desta disputa, a ideia de cobertura

universal era, portanto, atribuído à uma noção de extensão dos serviços de saúde de

caráter público, ou seja, extensão dos serviços de saúde dentro de um sistema de saúde

público e universal. Já a ideia de programas focalizados sugeria uma participação

mínima do Estado, através de ações de baixo custo às populações marginalizadas.

No entanto, como será apresentado a seguir, a partir dos anos 2000, alguns

autores identificam a utilização do conceito de cobertura universal sob outro sentido:

atrelado à expansão dos seguros privados de saúde.

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Já no Brasil, as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelas propostas de outra

reforma no setor saúde: a Reforma Sanitária – que será mais bem apresentada no

capítulo seguinte. Na contramão da discussão que já era colocada no debate

internacional, a Reforma Sanitária tinha como principal lema de luta a universalização

da saúde e o reconhecimento da saúde como direito. É somente a partir dos anos 1990 e

início dos anos 2000 que as reformas nos sistemas de saúde ganham destaque no debate

das políticas de saúde no Brasil.

1.3- Debate atual da Universalidade: Sistemas Universais ou Cobertura Universal?

Nos anos 2000, o tensionamento entre a defesa da responsabilidade do Estado

pela garantia da saúde e a defesa pela intervenção mínima do Estado ressurge, porém

sob outro prisma. A pesquisadora Asa Laurell, durante a palestra Sistemas Universais

de Saúde: objetivos e desafios, no Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde

(Isags) (DOMINGUEZ, 2013), aponta que atualmente é possível identificar duas

correntes de pensamento distintas predominantes no conteúdo das reformas nos

sistemas de saúde. Segundo esta autora, países como Chile, Colômbia, México e

Estados Unidos, compartilham a concepção corrente que busca a cobertura universal

através da expansão de seguros de saúde privados para todos. Por outro lado, países

como Venezuela, Bolívia e Equador, compreendem que o caminho para o alcance da

universalidade na saúde deve ocorrer através da criação de sistemas nacionais integrais,

únicos e públicos. Essa concepção, inspirada no modelo de bem-estar social dos países

centrais propõe a desmercantilização da saúde e reivindica o papel redistributivo do

Estado por meio de prestação de serviços sociais.

Contudo, alguns autores (CEBES, 2014; NORONHA, 2013), sugerem que no

debate atual essa última corrente vem perdendo espaço em uma "disputa pelo discurso"

de organismos financeiros internacionais e seguradoras de saúde, e também pela oferta

de ideias de agências internacionais, como já indicado acima. Segundo Noronha (2013),

a partir da década de 1990, observa-se que as agências internacionais passam a defender

uma “cobertura universal” em detrimento dos sistemas de saúde universais.

Em manifesto construído pelo Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES)

acerca dessa discussão, cujo título é “Por que defender o Sistema Único de Saúde?

Diferenças entre Direito Universal e Cobertura Universal de Saúde” (2014), o direito

universal à saúde é compreendido como a possibilidade de todos os cidadãos, de todas

as classes sociais, serem cuidados pelos serviços de saúde públicos. Logo, gozar desse

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direito é uma condição de cidadania, diferentemente quando se paga por saúde e o

indivíduo passa a ser um consumidor. Além disso, o direito universal à saúde pressupõe

“que todos os grupos com demandas ou necessidades de saúde

específicas sejam tratados adequadamente, ou seja, que haja

equidade; e que todas as necessidades de cada um, nas distintas

fases de vida ou situação de saúde, tenham atendimento e sejam

resolvidas. E a isso chamamos de ‘integralidade’” (CEBES,

p.03).

Já a ideia de “cobertura universal de saúde”, propagada pelas agências

internacionais sugerem a ampliação do acesso aos serviços de saúde, mas distinguindo

de acordo com a capacidade de pagamento a oferta de serviços. Ou seja, um maior

número de serviços é oferecido a quem pode pagar mais, enquanto a classe média e os

pobres teriam um número menor ou básico de serviços ofertado, mesmo que públicos

(CEBES, 2014). Ainda segundo o manifesto construído e divulgado pelo CEBES

(2014), esse tipo de modelo reduz o direito à saúde da população, pois seu verdadeiro

objetivo seria fortalecer o setor privado e seu lucro na oferta de seguros e serviços de

saúde.

Noronha (2013) aponta que o conceito de "cobertura universal" aparece

explicitamente pela primeira vez em um dos Relatórios para a 58ª Assembleia Geral da

OMS, em 2005, intitulado “Seguro Social de Saúde: financiamento sustentável da

saúde, cobertura universal e seguro social de saúde”. Posteriormente, em 2010, o

Relatório Mundial de Saúde de 2010 da OMS intitulado “Financiamento dos Sistemas

de Saúde: O Caminho para a Cobertura Universal” traz como tema central o

financiamento setorial como “caminho para a cobertura universal” e a seguinte

definição de cobertura universal:

“(…) os Estados Membros da Organização Mundial da Saúde

comprometeram-se em 2005 a desenvolver sistemas de

financiamento da saúde, que permitam às pessoas acender a

serviços sem enormes sacrifícios financeiros para pagá-los. Esta

meta foi definida como cobertura universal, por vezes também

chamada cobertura universal de saúde” (OMS, 2010, p.12).

O autor evidencia, portanto, uma transformação no sentido do direito à saúde e

do acesso universal e igualitário aos cuidados de saúde para o conceito de “cobertura

universal” associada à proteção do risco financeiro e à busca de mecanismos

alternativos de financiamento setorial.

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Paulo Buss, em entrevista à revista RADIS (DOMINGUEZ, 2013),

corroborando com o pensamento de Noronha (2013) acrescenta que essa transformação

no sentido direito à saúde e do acesso universal e igualitário aos cuidados é negativa,

pois implicitamente incentiva a corrente da cobertura de acesso à saúde, em detrimento

dos sistemas universais e da noção de saúde como direito de todos e dever do Estado. A

utilização do conceito de cobertura universal, pode ainda fortalecer esquemas múltiplos

de seguros e planos de saúde, que geralmente não garantem qualidade e nem

abrangência de cuidados, prejudicando ainda a construção de sistemas baseados em

atenção primária, o que pressupõe integralidade, e ênfase nos determinantes sociais da

saúde.

No Brasil, este mesmo debate vem igualmente ganhando força a partir dos anos

2000. José Gomes Temporão5, por exemplo, em entrevista à revista RADIS

(DOMINGUEZ, 2103), afirma que o país encontra-se atualmente em um processo de

luta político-ideológica para defender a manutenção e a sustentabilidade de um projeto

de sistema público universal de saúde. Isso porque, em seu entendimento, há setores na

sociedade brasileira que tentam transformar em modelo hegemônico uma visão do

sistema de saúde, muito próxima ao modelo americano, de mercado, baseado na

corrente de “cobertura universal”, totalmente distante do necessário para garantir o

direito universal à saúde.

No entanto, alguns autores apontam que o conceito de universalidade no Brasil

nunca foi unânime e sempre se apresentou sob diversos prismas. Logo, embora uma

dimensão mais ampla de direito à saúde e acesso universal tenha sido adotada na

construção do SUS e na Constituição Federal de 1988, a multiplicidade de sentidos de

universalidade na prática do cotidiano do setor saúde e nos discursos dos atores

implicados no SUS revelam a dificuldade de consolidação desse princípio.

Segundo Matta (2009), são considerados fatores explicativos da dificuldade de

consolidação do conceito amplo de universalidade no SUS as influências históricas e

institucionais da trajetória do sistema nacional de saúde no Brasil. Destaca a progressiva

privatização dos serviços de saúde e a constituição do chamado complexo médico-

industrial no país, a partir da década de 60, seguido das reformas administrativas de

cunho neoliberais e seus efeitos durante o processo de democratização do Estado

brasileiro nos anos 80 e 90. O autor pontua ainda que o sistema de saúde brasileiro em

5 Médico; Dr. em Medicina Social; Ministro da Saúde do Brasil de 2007 a 2011.

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sua atuação tem limitado suas ações às populações menos favorecidas, principalmente

na oferta de ações de atenção primária e de alta complexidade, que estão à margem da

ação e dos interesses dos planos privados de saúde.

Outro fator explicativo elucidado pelo CEBES (2014) refere-se à contradição

quanto a permanência da “iniciativa privada” na Constituição Federal (art. 199 da

Constituição Federal) mantendo assim a possibilidade para a comercialização da doença

e garantindo que o mercado permitisse o lucro de alguns e impedisse o direito de todos.

Segundo documento manifesto do CEBES, no debate atual da saúde essas forças

políticas que corroboram com a ideia de mercantilização “não desapareceram, ao

contrário, estão cada vez mais fortes e presentes no interior da sociedade e dos poderes,

tanto no Legislativo, no Executivo como no Judiciário.” (2014, p.5).

Giugliani (apud Dominguez, 2013) aponta que a universalidade no SUS ainda é

um preceito teórico, mas não prático, pois na realidade há restrições de acesso aos

serviços e a qualidade do cuidado é muito heterogênea. Paim (2013) também ressalta

que o avanço na ampliação do acesso aos serviços de saúde pelo SUS nos últimos anos,

não impediu o crescimento do setor privado e a segmentação do mercado,

comprometendo assim a equidade nos serviços e nas condições de saúde.

Logo, uma análise prévia do debate atual acerca dos sentidos de universalidade -

sugerindo uma mudança discursiva deste princípio, - permitiu a conclusão de que este

princípio não se trata de um conceito unânime, pois se apresentava de diversas formas

no cotidiano das práticas de saúde. Portanto, para melhor compreensão deste debate

seria necessário voltar a história da saúde do Brasil a fim de identificar quais sentidos de

universalidade estavam presentes, assim como elucidar as principais condições de

possibilidades de emergência de certos enunciados e discursos acerca da universalidade.

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CAPÍTULO 2 - ANTECEDENTES DA VIII CNS

Como citado anteriormente, a fim de compreender o objeto de estudo desse

trabalho - sentidos de universalidade na VIII CNS - é necessário voltar à história para

buscar reconhecer as condições e os contextos históricos que se apresentavam e

possibilitaram a formação e utilização de determinados discursos e sentidos de uma

época. Dessa forma, este capítulo tem como meta trazer à tona o contexto político

institucional da saúde no Brasil no período que antecedeu a VIII CNS e as discussões

acerca da universalidade na saúde no país, partindo da década de 1960 em diante.

Antes de aprofundar a discussão em torno do setor saúde, é preciso situar o

contexto político do país na década de 1960. Isso porque, desde 1964, o Brasil

encontrava-se sob a égide de um regime militar, sustentado por mecanismos

repressivos, silenciamentos das contestações e a suspensão do Estado de Direito e de

órgãos de representatividade que, posteriormente, foi substituído pela instauração de

uma democracia representativa de fachada e de um artificial sistema bipartidário

(BRASIL, 2006). Este regime foi marcado pelo modelo de desenvolvimento chamado

“milagre brasileiro”, que num primeiro momento (1964-1974), caracterizou-se,

sobretudo, por ações voltadas à modernização e à realização de uma série de

reorientações na administração estatal de caráter altamente centralizador, no que se

referia às questões decisórias, normativas e financeiras (FARIA, 1997).

Em longo prazo, essas medidas representaram uma exacerbação das relações

assimétricas de poder entre Estado e sociedade e impuseram uma política de arrocho

salarial sobre os trabalhadores, que resultou em queda de poder aquisitivo dos

assalariados, aumento da concentração de renda nos estratos sociais mais ricos e

ampliação das desigualdades socioeconômicas (NORONHA E LEVCOVITZ ,1994).

De maneira mais específica para o setor saúde, a lógica centralista da ditadura e

a supressão do debate de alternativas políticas, inclusive nos espaços acadêmicos,

permitiram que o governo federal implantasse reformas de cunho institucional, que

alteraram profundamente os modelos de saúde pública e medicina previdenciária

originados nos períodos anteriores6. Tais mudanças basearam-se na generalização de um

6 O modelo de proteção social brasileiro, assim como em grande parte dos modelos nos países na América

Latina, baseava-se nos benefícios básicos como a assistência à saúde, individual e curativa, aposentadoria,

além de pensões e benefícios ligados a acidentes de trabalho, que eram garantidos através da vinculação

do indivíduo no emprego formal. Portanto, as ações de proteção eram majoritariamente estruturadas em

função das categorias profissionais, variando o escopo e a abrangência dos direitos e benefícios sociais

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modelo de cuidados médicos individuais com padrão de saúde e orientaram um

crescimento significativo da produção de atos médicos, através do financiamento pelo

setor público de um grande número de hospitais, laboratórios e serviços privados

(NORONHA E LEVCOVTIZ, 1994). Além disso, a saúde pública esteve relegada ao

segundo plano e “havia se tornado uma máquina ineficiente e tradicionalista, que

simulava atacar os problemas através de suas campanhas” (ESCOREL, 1999, p.181).

As consequências do “milagre econômico” para o estado de saúde da população

brasileira revelaram-se pela altíssima mortalidade infantil nos grandes centros urbanos,

altos índices de desnutrição, avanço de epidemias como meningite e de endemias como

as de poliomielite e hanseníase. Segundo Escorel (1999)

“o regime militar, de um lado, implementava uma política

econômica geradora de doenças e riscos à saúde; de outro lado,

diminuía a oferta e reduzia a qualidade dos serviços públicos,

potencializando ou sendo o responsável efetivo pela morbidade

e mortalidade prevalentes na população brasileira (p.182).

No âmbito da previdência esta tendência centralizadora também se confirmava.

Em 1966, os diversos institutos previdenciários, que antes mantinham regimes de

contribuição e de benefícios distintos, foram unificados em uma única instituição: o

Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Essa fusão ampliou de forma

importante a abrangência da previdência social, aumentando o número de contribuintes

e beneficiários e, também, acelerando o crescimento da prática privada e empresarial da

medicina - principal prestadora de serviços desta instituição. Essa relação entre o INPS

e a organização dos serviços de assistência médico-hospitalar, por sua vez, imprimiu um

intenso ritmo de participação do setor privado na prestação de serviços de saúde, assim

como a exclusão dos trabalhadores e usuários das decisões da previdência social

(CORDEIRO, 1991).

No fim dessa primeira fase (início dos anos 1970), no entanto, o desgaste do

regime autoritário tornou-se evidente, assim como a perda de sua base de apoio político.

Acrescenta-se à este panorama de esgotamento, os impactos gerados pela crise

econômica mundial7, que passam a modificar a dinâmica do mercado internacional e o

disponíveis e possuindo um caráter complementar às instituições econômicas, eventualmente corrigindo a

ação do mercado (VIANA & MACHADO, 2008). 7 A crise mundial da década de 1970 agravou-se no ano de 1973 com o primeiro choque do petróleo e o

fim do padrão dólar. Segundo Faria (1997), o primeiro choque do petróleo ocorreu junto ao fim do acordo

de Bretton Woods, estabelecido em 1944. Este acordo criava um sistema de câmbio fixo referido no

padrão dólar e este com uma paridade fixa com o padrão ouro. Em 1973 os EUA colocaram fim na

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padrão de desenvolvimento que norteavam os países centrais desde o pós-guerra,

tornando-os mais restritivos e influenciando nas economias dos países periféricos como

o Brasil (FARIA, 1997).

É diante deste contexto de crise e desgaste do regime autoritário, portanto, que

se evidencia uma aproximação da sociedade com a oposição do governo militar. Como

demonstração do descontentamento da sociedade com relação à política do governo,

destaca-se as eleições de 1970 e 1974, cujos resultados propiciaram a conformação de

um novo quadro institucional. Neste quadro, o Movimento Democrático Brasileiro

(MDB)8 passou a expressar uma importante alteração da correlação de forças nos órgãos

de representatividade nacional (Senado Federal e Câmara dos Deputados) (BRASIL,

2006; NORONHA E LEVCOVITZ, 1994).

Logo, na tentativa de atender as demandas sociais que emergiam no contexto de

crise e com o propósito de manutenção do poder pelo regime autoritário, foram

formulados durante o governo de Geisel (1974) projetos cujo objetivo principal era

orquestrar um modo de gestão específico de uma transição política no Estado. Faria

(1997) aponta que:

“frente a esse contexto de crise político-econômico e da

instabilidade político- institucional que se instaura, o Estado

brasileiro formula estratégias políticas de manutenção da ordem

autoritária. Duas saídas: Uma delas é um projeto de

desenvolvimento nacional do país, o II PND (II Plano Nacional

de Desenvolvimento) e, por outro lado, implementou um

projeto de distensão política do Estado brasileiro, a “abertura”

(p.15)

Esse último ficou conhecido como um processo de abertura política “lenta,

gradual e segura”, que permitiria a passagem do poder do comando militar para o civil

de maneira contínua e com um mínimo de rupturas com a ordem política anterior.

Já o II PND, constitui-se em uma estratégia geral de desenvolvimento para o

país a partir: 1) da consolidação de uma economia moderna; 2) do ajustamento do país

às novas realidades da economia mundial; 3) do esforço de integração nacional; 4) da

formulação de estratégias de desenvolvimento social; e 5) da integração com a

conversibilidade do dólar e renunciaram ao sistema de câmbio fixo desequilibrando o mercado mundial. No Brasil os reflexos desta crise internacional manifestavam-se através da elevação dos preços relativos

de consumo geral, na queda do poder de compra dos salários, na “contração de dívidas” por parte das

empresas e também do Estado (FARIA, 1997). 8 O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi um partido político brasileiro composto por opositores

do Regime Militar. Organizado em 1965 e fundado em 1966, o partido se caracterizou por sua

multiplicidade ideológica. Este partido experimentou grande crescimento no governo de Ernesto Geisel

e, posteriormente, deu origem ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) em 1980.

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economia mundial. Neste plano a política social recebia pela primeira vez um caráter

distinto, pois se acreditava que o desenvolvimento efetivo do Estado se daria através do

desenvolvimento econômico, político e social.

“O desenvolvimento social do país seria obtido, por um lado,

através da conjugação de uma política de empregos com uma

política de salários, resultando na criação progressiva de uma

base para o mercado de consumo de massas. Por outro lado, na

qualificação de mão-de-obra a partir da educação, treinamento

profissional, programas de saúde, saneamento e nutrição

(FARIA, 1997, p.163).

Junto à esse “pacote” de ações é criado em 1974 o Ministério da Previdência e

Assistência Social (MPAS), como um ministério autônomo e não mais atrelado ao

Ministério do Trabalho e à Previdência Social. Essa instituição, no entanto, manteve sua

política voltada aos contribuintes da previdência ampliando benefícios e incorporando

novos grupos contribuintes no sistema (como trabalhadores não formais), revelando

uma tendência universalizante do Estado no que se referia às políticas de proteção social

(FARIA, 1997; NORONHA E LEVCOVITZ ,1994).

A constituição do MPAS intensificou ainda a conformação de alguns projetos

mais abrangentes e integradores, tais como o Programa de Pronta Ação (PPA) 9 e o

Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) 10. Ambos

baseavam-se no referencial da medicina comunitária11 e normatizaram as condições de

expansão de cobertura dos serviços assistenciais, trazendo um significativo aumento na

produção de serviços em saúde (BRASIL, 2006). Através do PPA, por exemplo, ocorre

uma expansão dos níveis de cobertura do sistema de saúde do país, pois visava dar

acesso, aos previdenciários, à consulta médico-ambulatorial através da rede privada

contratada e conveniada, universalizando o atendimento de urgência. Já o PIASS surge

no nordeste, como o primeiro programa de extensão de cobertura a nível federal,

abrangendo a região de jurisdição na SUDENE12. Em 1979, este programa é estendido

9 Em 1974 10 Em1976 11 Segundo Paim (2008) a medicina comunitária tratava-se de operacionalização da filosofia da medicina

preventiva, juntamente à ideias como participação da comunidade e regionalização. Em alguns países,

apresentou-se de maneira focal, restritas a atividades experimentais, enquanto que em outros apresentou-

se de modo expansionista, através de programas de extensão de cobertura. Ver mais em: Paim J.S.

Modelos de Atenção à Saúde no Brasil. In: Giovanella L, organizadora. Políticas e Sistema de Saúde no

Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 547-573. 12 A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) é uma autarquia especial,

administrativa e financeiramente autônoma, integrante do Sistema de Planejamento e de Orçamento

Federal. Criada originalmente pela Lei 3.692, de 1959, a Sudene foi idealizada no governo do presidente

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para todo o território nacional adaptando o modelo adotado no nordeste às

peculiaridades das outras regiões do país, resultando numa grande expansão de rede

ambulatorial pública. (PUGIN & NASCIMENTO, 1996).

É a partir da década de 1970, portanto, que começa a se esboçar no Brasil, ainda

que limitado ao espaço institucional da saúde pública, um movimento de extensão de

cobertura e de programas voltados pra atenção primária. No entanto, segundo Vilaça

(1987), esse movimento tratava-se de desenvolver e expandir um modelo médico, de

baixo custo e complementar ao hegemônico, cujo objetivo era dar alguma resposta para

as populações marginalizadas.

Estes dois programas, em específico, não conseguiram ampliação e não

efetuaram mudanças no modelo assistencial devido a falta de recursos, pessoal

qualificado e tecnologias mais sofisticadas (ESCOREL & BLOCH, 2005).

Segundo Faria (1997), em 1977 o MPAS sofre mais uma mudança estrutural e

apresenta através da criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social

(SINPAS) uma nova proposta de organização. Esse sistema dividiu o ministério em

órgãos centrais de decisão em cada área de atuação do complexo previdenciário,

concedendo autonomia gerencial a cada uma delas. Logo,

“foram organizados o Instituto Nacional de Previdência Social

(INPS), o Instituto Nacional de Assistência Médica da

Previdência Social (INAMPS) e o Instituto de Administração da

Previdência e Assistência Social (IAPAS), além da

reorganização dos órgãos de assistência social (LBA e

FUNABEM) e da constituição de uma empresa de

processamento de dados (DATAPREV)” (CORDEIRO, 1991,

p.26).

Nessa nova organização, destacou-se o papel do INAMPS que passou a ser o

órgão responsável pela coordenação de todas as ações de saúde no nível médico-

assistencial da previdência social. Vale lembrar, que ao Ministério da Saúde (MS)

competiam funções mais restritas ao desenvolvimento das políticas de saúde de

interesse coletivo. Desde a sua criação em 1953, o MS apresentava-se como órgão

Juscelino Kubitschek, tendo à frente o economista Celso Furtado, como parte do programa

desenvolvimentista então adotado. Seu principal objetivo era encontrar soluções que permitissem a

progressiva diminuição das desigualdades verificadas entre as regiões geoeconômicas do Brasil. Foram

realizadas ações tais como a colonização do Maranhão, os projetos de irrigação em áreas úmidas, o

cultivo de plantas resistentes às secas, entre outras. No entanto, absorvida pelas administrações que se

seguiram, durante a Ditadura militar de 1964 foi tendo cada vez mais seu uso desviado dos objetivos

iniciais, sendo considerada uma entidade cujo foco era a corrupção. Ver em:

http://www.sudene.gov.br/sudene#instituicao%20sudene

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responsável pela saúde da coletividade não estabelecendo diálogo com as ações

desenvolvidas no contexto da previdência social (FARIA, 1997).

Por sua vez, o INAMPS reuniu, desde sua formação, um poder institucional

forte dentro do MPAS e movimentou de forma autônoma uma parcela significativa de

recursos oriundos da previdência, além de gerir as ações de saúde de toda a rede pública

e contratada de saúde vinculada aos antigos Institutos de Aposentadoria e Pensões

(IAPs) (FARIA, 1997). Nesse sentido, assume um expressivo poder político-

institucional no campo da saúde e torna-se o principal condutor das políticas de saúde.

Segundo Cordeiro (1991), essa reorganização através do SINPAS, significou um

novo momento de concentração do poder econômico e político no sistema

previdenciário e um esforço tecnoburocrático de modernização administrativa. No

entanto, sob o ponto de vista dos usuários essas transformações da organização do

sistema de saúde indicavam um dilema a ser enfrentado: a inoperância do sistema

previdenciário e a baixa eficiência dos serviços públicos de saúde perante as alternativas

de cobertura proporcionadas pelo complexo médico-empresarial.

Faleiros (1995) aponta que no final da década de 1970, o complexo assistencial-

industrial-tecnológico configurava-se como uma

“(...) continuidade de um modelo fragmentado e desigual de

incorporação social em estratos de acesso, privilegiando

interesses econômico-corporativos do empresariado atuante na

área. Os serviços médicos consolidaram uma desigualdade em

três níveis: o setor privado para os ricos, os planos de saúde para

grupo seleto de assalariados e classes médias, os serviços

públicos para pagantes da previdência” (p.16).

Foi, portanto, diante deste quadro de desigualdade de ofertas e de acesso aos

serviços de saúde, que surgiram sinais de uma nova dinâmica da sociedade civil e um

fortalecimento dos movimentos sociais através da crítica ao modelo de saúde vigente.

Em consonância com o movimento de abertura política do Estado iniciado em 1974 e

com o processo de redemocratização que tomava força no início da década de 1980,

movimentos sociais progressistas começavam a apresentar propostas mais

sistematizadas a fim de promover uma reformulação do padrão de proteção à saúde do

país.

Dentre os movimentos sociais, destacou-se no setor saúde um grupo de

reformistas que reunia interesses dos diversos setores progressistas ligados ao Estado e

que propunham uma discussão politizada da concepção de saúde, uma interpretação do

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complexo saúde-doença sob uma ótica social e demandas por políticas públicas de

saúde direcionadas ao acesso ao poder e democracia. Este grupo deu origem ao

chamado movimento sanitário, ou movimento da Reforma Sanitária como também é

reconhecido.

Para Escorel (1999), o movimento sanitário tratou-se de um movimento social

com características e configurações próprias que se revelou mais permanente do que

uma movimentação pontual. Sua formação caracterizou-se pela construção de um saber,

por ser um movimento ideológico e por também ter uma prática política. Segundo

Arouca (1975 apud ESCOREL, 1999) compreende-se por

“prática teórica (construção de um saber) a transformação de um

produto ideológico em conhecimento teórico por meio de um

trabalho conceitual determinado; por prática ideológica

(movimento ideológico) a transformação de uma consciência,

produzida por meio de uma consciência sobre si mesma; e, por

prática política a transformação de relações sociais produzidas

por meios de instrumentos políticos” (p.186).

Dessa forma, a construção de um “paradigma sanitário” (PAIM, 1997), emergia

no debate do setor saúde do país como um modelo alternativo com propostas de

organização dos serviços de saúde formuladas através de estudos teóricos e de

experiências de projetos institucionais (ESCOREL, 1999).

Segundo Fleury (1988), a trajetória de construção do movimento da Reforma

Sanitária pode ser analisada em três fases distintas. A autora pondera, no entanto, que

esses momentos não devem ser compreendidos por uma cronologia rígida, mas pela

prevalência das estratégias que ocorreram quase sempre de forma sobreposta.

O primeiro momento caracterizou-se pelo desenvolvimento de um novo saber no

espaço acadêmico. Escorel (1999) corrobora com esse pensamento destacando que,

entre 1960 a 1974, o processo ocorrido nas universidades serviu de base para o marco

teórico referencial e para o início da constituição das bases institucionais do movimento

sanitário, representadas principalmente pelos Departamentos de Medicina Preventiva

(DMPs). Na medida em que a compreensão e a crítica das propostas de Medicina13

Preventiva e de Medicina Comunitária eram desenvolvidas, emergia um paradigma

13 Segundo Paim (2008), a Medicina Preventiva utilizava conceitos como processo saúde/doença, história

natural das doenças, multicausalidade, integração, resistência, etc. Articulava medidas de prevenção que

resultariam em atitudes preventivas e sociais. Apontava ainda para a possibilidade da redefinição das

responsabilidades médicas através de mudanças na educação, mantendo a organização de serviços de

saúde na perspectiva da medicina liberal.

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alternativo centrado em dois conceitos fundamentais: a determinação social das doenças

e o processo de trabalho em saúde. De acordo Paim (1997),

“(...) o entendimento de que a saúde e a doença na coletividade

não podem ser explicadas exclusivamente nas suas dimensões

biológica e ecológica, porquanto tais fenômenos são

determinados social e historicamente, enquanto componentes

dos processos de reprodução social permitia alargar os

horizontes de análise e de intervenção sobre a realidade (...)”

(p.12).

Portanto, a saúde assumia um sentido mais abrangente, sendo resultado das

condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho,

transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a serviços de saúde, dentre outros fatores.

Nesse sentido, tornava-se de suma importância que o Estado garantisse o direito à saúde

ofertando à população condições dignas de vida e de acesso universal e igualitário aos

serviços e ações de promoção, proteção e recuperação, nos diferentes níveis de saúde,

em todo o território nacional (BRASIL, 1986).

Fleury (1988) destaca, que este novo paradigma operava

“(...) uma leitura socializante da problemática evidenciada pela

crise da medicina mercantilizada bem como de sua ineficiência,

enquanto possibilidade de organização de um sistema de saúde

capaz de responder as demandas prevalentes, organizado de

forma democrática em sua gestão e administrado com base na

racionalidade do planejamento” (p.196).

Ao adotar uma perspectiva crítica, colocava-se como maior desafio para o

movimento sanitário a introdução de mudança no conteúdo e no processo de trabalho

em saúde coletiva exigindo, além de uma elaboração teórica, uma experimentação de

práticas inovadoras nos espaços possíveis. Segundo Teixeira (2011), esse esforço se deu

inicialmente nos DPMs, nos Hospitais Universitários e, posteriormente, nos “centros de

saúde escola” onde buscava-se “articular ações de caráter preventivo com ações

assistenciais, alargando-se o campo de observação e de intervenção sobre o processo

saúde-doença” (p.55).

Nesse primeiro momento de construção de um paradigma, também destaca-se a

criação de centros de pesquisa em saúde coletiva, que proporcionaram a difusão

ideológica do movimento sanitário. São eles: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

(CEBES) em 1976; a publicação da revista Saúde em Debate e a criação da Associação

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Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) em 1979. Segundo

Teixeira (2011)

“a ABRASCO tinha sido criada anos antes como resultado de

uma movimentação de lideranças dos programas de pós-

graduação em medicina preventiva, comunitária, social, e saúde

pública. Buscava-se formar um sujeito coletivo que

representasse a comunidade científica junto aos órgãos de

fomento à pesquisa e frente às instituições responsáveis pela

política e regulação da formação pós-graduada nesta área. A

designação desta área de conhecimento como “Saúde

Coletiva14” foi fruto de reflexão e debate que envolveu vários

dos coordenadores e docentes dos programas, reconhecendo-se

que o termo “saúde coletiva” podia funcionar como uma espécie

de “guarda-chuva” que abrigava diferentes programas sob

diversas denominações” (p.77).

Ainda de acordo com esta autora, a ABRASCO em seus primeiros anos de

existência voltou-se, para o reconhecimento do “campo da saúde coletiva”, organizando

encontros de docentes das diversas disciplinas tais como Epidemiologia, Planejamento,

Ciências Sociais em saúde. O principal objetivo deste grupo era promover o

reconhecimento do “estado da arte”, a troca de experiências e a elaboração de propostas

para o desenvolvimento teórico-conceitual, metodológico, e prático-instrumental da

área.

O segundo momento caracterizou-se “pela luta dos profissionais de saúde e

pelos movimentos de renovação médica nos seus sindicatos e conselho” (FLEURY,

1988, p.199) numa tentativa de ampliação da consciência sanitária. Isso porque, ao

incorporar aos movimentos profissionais à perspectiva mais ampla referente à política

nacional de saúde, mais fácil se tornava a compreensão dos trabalhadores de que sua

situação profissional estava intrinsecamente ligada aos mesmos determinantes, causas,

que afetavam as péssimas condições de saúde dos pacientes que eram atendidos no

sistema de saúde. Nesse sentido,

“a tensão entre saber e prática requeria que o conhecimento

avançasse na direção da incorporação dos problemas colocados

pelos movimentos profissionais e populares. Foi necessário que

14 Cecília Donnangello, em texto escrito à ABRASCO, chama atenção que a expressão “Saúde Coletiva”,

demarca a diferença com a abordagem clínica, individual, e ao mesmo tempo é abrangente para abarcar as

diversas acepções que a dimensão social adquire no âmbito das ciências humanas, contemplando, assim, a

multiplicidade de enfoques e abordagens à problemática das relações entre saúde e sociedade

(TEIXEIRA, 2011).

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o projeto saísse da crítica genérica ao sistema de saúde para

encaminhar propostas referentes à localização de unidades de

serviços e às condições de exercício profissional, e se

defrontasse com a ausência de alternativas para o saneamento

ambiental das favelas e periferias” (FLEURY, 1988, p.199).

Ainda nessa segunda fase, destacam-se a incorporação de elementos técnicos ao

novo formato do projeto sanitário, oriundos de experiências de implantação de modelos

locais de administração da política de saúde, realizadas em secretarias de prefeituras

mais progressistas15. Começam então a emergir no centro dos debates conceitos como

descentralização, sistemas de informação e referência, controle popular, dentre outros.

O terceiro momento da trajetória do movimento sanitário é denominado pela

autora como “ocupação de espaços estratégicos no aparelho governamental”. Segundo

Fleury (1988) muitos intelectuais de diversas áreas foram convidados a ocupar postos

de direção com o início dos governos na Nova República (1985) e muitos profissionais

vinculados ao movimento sanitário conseguiram, através de uma ampla mobilização,

abrir espaços e ocupar, em diferentes níveis, os principais postos de condução da

política de saúde. Segundo autores como Baptista (2007) e Paim (1997), a incorporação

destes atores possibilitou a ampliação do debate sobre o direito saúde no Brasil, assim

como a constituição de um SNS único no país e a defesa de uma maior participação

popular nas decisões políticas para a área da saúde.

Um marco importante do movimento sanitário foi o 1º Simpósio sobre Política

Nacional de Saúde na Câmara Federal promovido pela Câmara dos Deputados em 1979.

No livro intitulado “A Construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do

Processo Participativo” diversos atores pontuam em seus depoimentos que este

simpósio, realizado em meio a uma crise estrutural de financiamento da previdência no

governo do Presidente João Figueiredo, resultou da adesão de deputados de diversos

partidos que sensibilizaram às questões sociais e às questões de saúde ao movimento

sanitário (BRASIL, 2006). Segundo depoimento de Hésio Cordeiro16, nesse simpósio

começou-se “a se falar na ideia do Sistema Único de Saúde. Um sistema público que

seria estabelecido, ainda que convivendo com as instituições filantrópicas e privadas,

mas com a hegemonia do sistema público”. (BRASIL, 2006, p.68).

15 Destacam-se os projetos municipais alternativos em Niterói, Campinas e Londrina como experiências

municipais do movimento sanitário. 16 Médico Sanitarista; Dr. em Medicina Preventiva. Foi Presidente do INAMPS/MPAS no período 1985 a

1988. Reitor da Uerj (1992-1995); Presidente do Conselho Nacional de Educação (1996-1998); Secretário

Estadual de Educação do Rio de Janeiro (1999);

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Outro destaque deste Simpósio foi a apresentação do documento “A Questão

Democrática na área da Saúde”. Neste documento histórico foram sistematizados os

princípios e diretrizes do movimento da Reforma Sanitária e explicitada a

“vontade política do grupo em promover uma ampla reforma nas

concepções e práticas de saúde, apontando para a necessidade de

se organizar um Sistema Único de Saúde, capaz de garantir o

acesso universal às ações e serviços, que fosse governado de

forma democrática, através de conselhos de saúde onde tivesse

assento a representação da ‘população organizada’”

(TEIXEIRA, 2011, p.61).

Dessa forma, o movimento sanitário entra nos anos 1980 com uma importante

capacidade de influir nas políticas públicas de saúde e passa a propor políticas efetivas

de reformulação do modelo assistencial.

No entanto, retomando ao contexto político-institucional no início da década de

1980, evidenciava-se um agravamento da crise nas políticas setoriais, entre as quais a da

previdência e da saúde. Nesse período foi possível destacar no sistema previdenciário

brasileiro: 1) Uma crise ideológica, pois a assistência médica condicionada à

contribuição trabalhista ia de encontro à concepção de saúde como direito social; 2)

Uma crise financeira, estando a previdência em estado de falência sem capacidade de

suprir o montante de recursos que deveria ser destinado ao setor; 3) Uma crise político-

institucional, devido à falhas na prestação da assistência, no controle dos recursos e na

organização do setor (BRASIL, 2001).

No arranjo institucional da previdência, o setor saúde - incluído na assistência

médica previdenciária - era considerado por muitos como “o grande vilão” e

responsável pela crise17, sobretudo, devido “descontrole dos gastos com assistência

médica, a descoordenação de ações dos prestadores de serviços, a desassistência social e

a inadequação do modelo de saúde à realidade nacional” (BRASIL, 2001, p.48). Nesse

sentido, havia dentro da previdência um grupo mais conservador que visava a

racionalização de gastos e a eficiência do sistema previdenciário (permanecendo no

formato INAMPS e MS), enquanto um outro grupo com ideias mais reformistas

buscava um enfrentamento da crise através de propostas de universalização e integração

do sistema de saúde (unificação do INAMPS ao MS) (BRASIL, 2001).

17 Esta discussão é mais bem aprofundada no artigo: FELIPE, J. S. MPAS: o vilão da reforma

sanitária?.Cad. Saúde Pública [online]. 1987, vol.3, n.4, pp. 483-504.

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Em 1980, uma primeira proposta de reformulação do setor saúde e

previdenciário é apresentada envolvendo atores do MS e do MPAS: o Programa

Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV-SAÚDE). Este programa foi

apresentado e discutido neste mesmo ano na VII Conferência Nacional de Saúde (CNS)

e continha propostas como a universalização da assistência e a integração progressiva

das ações de saúde no âmbito do MS. Tratava-se de uma proposta inédita quanto à

temática da participação e de democratização da sociedade e incorporava as teses da

descentralização, hierarquização e regionalização com ênfase nos serviços de saúde

(BRASIL, 2006) através de uma articulação interinstitucional que envolvia entidades

públicas e do setor privado que atendessem a determinados critérios.

“O que havia de novo no PREV-SAÚDE é, exatamente, que ele

deixava o espaço restrito do complexo da saúde pública, para se

transformar numa proposta de coordenação interinstitucional

entre diversos ministérios e as secretarias estaduais e municipais

de saúde, o que timidamente, já se esboçaria no PIASS.”

(VILAÇA, 1987, p.269).

A coordenação, no nível federal, ficaria a cargo da CIPLAN - Comissão

Interministerial de Planejamento e Coordenação, formada pelos Secretários Gerais do

MS e do MPAS; no nível estadual, havia a CIPE - Comissão Interministerial de

Planejamento Estadual, presidida pelo Secretário Estadual de Saúde, que deveria

articular as Secretarias Estaduais de Saúde (SESs), o MS, o INAMPS, MPAS, e as

Diretorias Regionais de Saúde. Além disso, o PREV- SAÙDE defendia ainda a

suspensão de novos credenciamentos de serviços privados e a incorporação pela rede

própria dos serviços prestados por terceiros, subordinando as demais instituições

filantrópicas ou beneficentes ao controle estrito do Estado (PUGIN & NASCIMENTO,

1996).

Este programa, contudo, não obteve apoio político-institucional e acabou não

sendo implementado ao encontrar resistências de grupos reformistas da previdência

social, do grupo de conservadores do setor saúde e previdenciário, além do grupo de

entidades representativas do empresariado hospitalar e da medicina liberal (FARIA,

1997).

Já em 1981, devido ao aumento de demandas pela criação de medidas de escuta

dos segmentos sociais é criado o Conselho Nacional de Administração de Saúde

Previdenciária (CONASP), um órgão do MPAS de representação mista entre Estado e

sociedade, cujos principais objetivos eram: a recuperação operacional do setor público;

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o aumento da eficiência e da qualidade; a racionalização do sistema como estratégia

para a redução de custos; a criação de instrumentos de gerenciamento e a extensão da

cobertura aos trabalhadores rurais (CORDEIRO, 1991; BRASIL, 2006).

Criado no contexto da crise da previdência com a intenção de buscar respostas

que explicassem a crise do setor, o CONASP em seu diagnóstico identificou um

conjunto de problemas presentes naquele modelo de saúde. Foram eles: 1) serviços

inadequados à realidade; 2) insuficiente integração dos diversos prestadores; 3) recursos

financeiros insuficientes e cálculo imprevisto; 4) desprestígio dos serviços próprios; 4)

superprodução dos serviços contratados (BAPTISTA, 2007).

Segundo Cordeiro (1991), este diagnóstico, portanto, apontava a rede de saúde

como ineficiente, desintegrada e indutora de fraude e desvio de recursos. A relação ao

INAMPS e a articulação com os demais serviços de assistência promovidos pelo

Estado, via estados e municípios, foi considerada opaca e pouco operativa. Já os

serviços oferecidos pelo Ministério da Saúde (secretarias estaduais e municipais,

inclusive) funcionavam de forma independente e paralelamente aos serviços oferecidos

pelo MPAS/Inamps, formando assim uma rede pública desintegrada sem o formato de

um sistema.

Dessa forma, a fim de atingir as metas estabelecidas para a superação do modelo

de saúde vigente, foram elaborados quatro propostas-mestras para a organização do

sistema de saúde previdenciário: o Programa das Ações Integradas de Saúde (PAIS), o

Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social (SAMHPS), a

Programação Orçamentária Integrada (POI) e o Programa de Racionalização

Ambulatorial (PRA) (FARIA, 1997). Dentre este conjunto de propostas, apenas o

SAMPHS e o PAIS alcançaram os objetivos propostos e conseguiram dar um contorno

ao redirecionamento do modelo assistencial no plano gerencial.

O SAMPHS possibilitou a informatização do controle das internações e o

controle gerencial de pagamentos das contas hospitalares para o setor privado com a

criação da Autorização de Internação Hospitalar (AIH). Já o PAIS tornou-se uma

estratégia de integração e racionalização dos serviços públicos de saúde e de articulação

destes com a rede contratada e conveniada. As Ações Integradas de Saúde (AIS) entre o

MPAS, MS e as Secretarias Estaduais de Saúde, promovidas com a transferência

financeira do governo federal aos demais entes federativos, possibilitaram uma nova

relação entre união-estados-municípios e a criação de uma infraestrutura fundamental de

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rede física de cuidados básicos de saúde (NORONHA E LEVCOVITZ, 1994; BRASIL,

2006).

Além disso, a institucionalização das comissões interinstitucionais de saúde nos

vários níveis federativos (Comissões Interinstitucionais de Saúde- CIS, as Comissões

Interinstitucionais Municipais de Saúde- CIMS, Comissão Interministerial de

Planejamento – CIPLAN e a Comissão Regional Interinstitucional de Saúde- CRIS)

através das AIS, possibilitaram a participação de gestores governamentais, prestadores

públicos e privados, profissionais e usuários no processo de discussão dos interesses do

setor saúde (BRASIL, 2006). Essas experiências foram se tornando permeáveis aos

princípios e ações democratizantes do movimento sanitário, o que acarretou uma

institucionalização da participação social.

“As comissões se multiplicaram no país, num ritmo bastante

rápido, abrindo espaço a novos sujeitos políticos, embora seu

desenvolvimento institucional tenha sido diferenciado de acordo

com a correlação de forças políticas entre os sujeitos

participantes nos respectivos locais de funcionamento”

(BRASIL, 2006, p.43).

Cordeiro (1991) aponta, no entanto, que apesar do movimento sanitário ter

encontrado nas AIS uma base técnica e princípios estratégicos para a reforma no setor

saúde, essas não foram assumidas pelo governo como uma política de saúde. Segundo

Eleutério Rodriguez Neto:

(...) as Ações Integradas de Saúde são conservadas como

propostas estratégicas, como proposta de avanço funcional, mas

se cobra que ela não é suficiente. Ela é necessária, mas não é

suficiente. É necessário, então, se avançar em propostas de

transformação um pouco mais estrutural, na perspectiva do Setor

de Saúde. Quer dizer, mudanças de reorganização profunda, na

forma de relacionamento, nas atribuições das instituições do

Setor de Saúde que vão fazer parte, portanto, do corpo

programático, que vai formar, ou pelo menos, pretendia formar,

o programa de saúde na Nova República (...) (apud BRASIL,

2006, p.44).

Nesse sentido, pode-se afirmar que as ações desenvolvidas através do Plano

CONASP - destacando se as AIS - favoreceram ao debate da democratização da saúde

ao definir diretrizes para um debate interinstitucional entre diferentes atores. Além

disso, a partir desse processo de discussão, evidenciaram-se os projetos em disputa na

arena das políticas de saúde: o conservador privatista – do setor privado contratado; o

modernizante privatista – dos interesses da medicina de grupo; o estatizante – dos

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técnicos ministeriais e da oposição; e o liberal – de parte dos técnicos e da medicina

liberal (BRASIL, 2006).

De maneira geral, nesse momento anterior à Nova República, foi possível

observar no setor de saúde brasileiro todo um movimento na direção de propostas de

extensão de cobertura e de universalização. Ou seja, a partir de meados da década 1970

estes temas estão em debate, em disputa no Estado, através da conformação efetiva de

políticas estatais tais como as citadas acima. Além disso, seguindo a perspectiva do

debate internacional – citado no capítulo 1 – as ideias de extensão de cobertura e

universalização eram complementares e não antagônicas, contraditórias, pois a principal

finalidade naquele dado momento era a ampliação das ofertas de serviços de saúde pelo

setor público, independente da natureza jurídica do prestador deste serviço18.

2.1- Redemocratização: A Saúde na Nova República

Como já sinalizado anteriormente, o contexto de crise na previdência exigia

transformações estruturais e uma reorganização profunda no setor saúde que

considerasse o momento de redemocratização do país e as redefinições necessárias para

a construção de uma nova política de saúde em uma Nova República (BRASIL, 2006).

Em 1985, o processo redemocratização foi impulsionado com a conquista da

instauração de um governo civil - sobretudo em consequência da luta do movimento

popular pelas “Diretas Já!” 19. No entanto, esta instauração ocorreu através de uma

transição negociada entre os segmentos dissidentes do regime militar e os segmentos

oposicionistas da “democracia de fachada consentida pelo Estado autoritário, em um

pacto pelo alto, das elites, excluindo a participação popular” (BRASIL, 2006, p.44).

Através de uma eleição por voto indireto, Tancredo Neves20 é eleito o novo presidente,

18 Vilaça (1986), em trabalho apresentado nos grupos de trabalho da VIII CNS, identifica três principais

grupos de prestadores de serviços naquele período, conforme a natureza jurídica: a) O subsetor público:

produtor estatal, de administração direta ou indireta, presta diretamente os serviços; b) O subsetor

filantrópico: constituído por entidades sem fins lucrativos, devidamente registrados no Conselho Nacional

de Serviço Social do Ministério da Educação; c) O subsetor privado: representado por entidades

organizadas por livre vontade de particulares. Podem se estabelecer dois subsetores privados: 1) o privado

”típico” quando empresários, com recursos próprios e por seu próprio risco, investem na construção de

unidades de saúde e disputam, em regime concorrencial, fatias do mercado; 2) o privado “delegado”,

onde empresários, muitas vezes com subsídios governamentais, constroem suas unidades de saúde e,

através de contratos com a Previdência Social garantem, para si, um mercado monopsônico, responsável

pela maior parte de suas receitas correntes. 19“Diretas Já!” foi um movimento de grande participação popular no Brasil. Teve início em 1983, no

governo de João Batista Figueiredo e propunha eleições diretas para o cargo de Presidente da República.

A campanha ganhou o apoio dos partidos PMDB e PDS, e em pouco tempo, obteve apoio da população,

que foi às ruas para pedir a volta das eleições diretas. 20 Antes de ser eleito Presidente, foi governador do estado de Minas Gerais de 1983 a 1984. Foi um dos

líderes do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1984, Tancredo candidatou-se à Presidência

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mas com sua morte após a instauração do governo quem assume é seu vice José

Sarney21.

Noronha e Levcovitz (1996) apontam que a composição do “Ministério

Tancredo Neves” foi respeitada durante os dois primeiros anos de governo Sarney,

permitindo a expressão política de alguns grupos existentes no interior do Partido do

Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), propositores e implementadores de

reformas políticas modernizantes e democratizantes do Estado desde a década de 1970.

No entanto, é importante destacar que o governo Sarney constituía-se de um conjunto

de forças políticas heterogêneas, conservadoras e progressistas, sem que houvesse uma

corrente hegemônica ou predominante.

No setor saúde, com o intuito de promover as transformações e reorganizações

necessárias, grupos políticos progressistas implicados com as propostas da Reforma

Sanitária passavam a integrar órgãos chaves do governo tais como o MPAS e o MS.

Contudo, as correlações de forças heterogêneas em disputa no interior do Estado,

dificultaram que estes grupos, muitos do movimento sanitário, implementassem uma

efetiva Reforma Sanitária. Estes atores depararam-se com avanços no plano

institucional que não correspondiam às políticas e ações do executivo e, além disso, as

teses e projetos reformistas eram combatidos por grupos representantes do modelo

privatista e pela burocracia previdenciária (BRASIL, 2006).

Destacaram-se importantes representantes reformistas da saúde no quadro

institucional nos MS e da Previdência nesse período como: Eleutério Rodrigues Neto22

(secretário-geral no MS); Sérgio Arouca23 (presidência da FIOCRUZ); Hésio Cordeiro

(presidência do INAMPS) e Raphael de Almeida Magalhães24 (Ministro do MPAS).

Embora esta composição institucional tenha criado uma expectativa de mudança

institucional imediata - já que o debate reformista era norteado pela universalização da

da República. Em 15 de janeiro de 1985 foi eleito presidente do Brasil pelo voto indireto, mas adoeceu

gravemente, em 14 de março do mesmo ano, véspera da posse. Morreu oficialmente de diverticulite. 21Anteriormente, fora governador do Maranhão (1966-1971) e senador pelo mesmo estado (1971-1985). 22 Médico; Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Secretário-Geral do Ministério da Saúde

na Gestão Carlos Santana (1985/1986). Atou como consultor para a OPAS diversos países. De 1980 a

1982 atuou como Coordenador de Planejamento e Estudos da Secretaria de Serviços Médicos até 1982,

onde se destacou na formulação do “Plano de Reorientação de Assistência à Saúde Previdenciária”,

elaborado pelo Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP). 23Médico sanitarista. Foi presidente da Fiocruz em 1985, professor concursado da Escola Nacional de

Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), chefe do Departamento de Planejamento da Escola e um dos principais

líderes do movimento da movimento sanitário no Brasil. Sua tese de doutorado intitulada: O dilema

preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva, forneceu fundamentos

teóricos estruturantes para a constituição da base conceitual da saúde coletiva. 24 Advogado, executivo e político brasileiro. Foi Presidente do MPAS no governo de José Sarney de 1986

a 1987.

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assistência à saúde, a maior abrangência dos benefícios sociais e a expansão do direito à

previdência social-, o acirramento das disputas de poder, brigas institucionais e

dificuldades operacionais no encaminhamento das reformas, inviabilizaram este plano

na prática. De acordo com Faria (1997),

“os conflitos existentes entre os reformistas ligados à saúde e os

reformistas ligados à previdência, velados no período pré-85

pela situação política do Estado e pela pouca mobilidade política

dos grupos reformistas no âmbito institucional, explicitaram-se a

partir de então. O conflito saúde-previdência ganhou uma

dimensão política complexa e cada setor passou a divulgar um

ideal político específico na condução da reforma” (p.39).

A partir desse momento, dois grupos de interesse destacam-se na discussão da

saúde: os “reformistas da saúde” e os “reformistas da previdência”. O primeiro,

relacionado ao MS e ao movimento sanitário, defendia como proposta uma política de

universalização do direito à saúde, a descentralização dos poderes nas esferas federal,

estadual e municipal, além da unificação da saúde no nível federal (incorporando o

INAMPS ao MS) com a criação de um novo MS que deveria atender as ações de caráter

curativo até ações de caráter preventivo.

Já o segundo grupo, os “reformistas da previdência”, representavam os interesses

do MPAS/INAMPS e contava igualmente com o engajamento de representantes do

movimento sanitário25 atrelados ao INAMPS (estão neste grupo Hésio Cordeiro e José

Carvalho de Noronha26). Estes reformistas também defendiam a ideia de

universalização, mas propunham estratégias de uma unificação da saúde sem a

transferência imediata do INAMPS para a saúde. Na verdade, por se tratar de um órgão

que concentrava muito poder, a unificação do INAMPS ao MS resultaria em uma

transferência de recursos, mas também uma transferência de poder político. Portanto, as

propostas desse grupo apontavam para uma modernização e a promoção de uma maior

eficiência da máquina previdenciária, além da unificação gradual à saúde a partir do

INAMPS (BAPTISTA, 1996).

A respeito dessa disputa, Hésio Cordeiro esclarece o assunto em depoimento:

25 É importante destacar que apesar de tratar-se de um movimento, é possível claramente identificar em

seu interior diferentes grupos, com diferentes propostas e entendimentos acerca da Reforma Sanitária. No

entanto, o direito universal à saúde é um consenso dentro deste movimento. No capítulo 3 e 4 estas

disputas e tensões serão mais bem exploradas. 26 Médico; Sanitarista; Doutor em Saúde Coletiva; Secretário de Medicina Social do INAMPS (1986-

1988); Secretário Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (1988- 1990); Presidente da Abrasco (2000-2003);

Professor adjunto aposentado do IMS/Uerj; Pesquisador do Centro de Informação Científi ca e

Tecnológica/Fiocruz.

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“Havia uma espécie de corrente da unificação pelo alto, em que

o Inamps se transferiria para a saúde, e outra da unificação pela

base do sistema, em que a gente desenvolveria toda uma

estratégia de descentralização, de fortalecimento dos municípios

e dos estados e, a partir daí, iria sendo consolidada a idéia do

SUS e no momento estratégico definido, que seria após a

Constituinte, se promoveria a unificação e a passagem do

Inamps para o Ministério da Saúde. E não o inverso, porque se

corria o risco de que a lentidão burocrática e a máquina pesada

do Ministério da Saúde criasse uma dificuldade muito grande ao

próprio desenvolvimento significativo do acesso à saúde pela

população (BRASIL. 2006, p.77).

De acordo com Faria (1997), as duas estratégias — reforma pelo alto ou reforma

por baixo — tinham como finalidade a unificação do sistema de saúde. Porém, a

unificação pelo alto significava uma mudança imediata de um modelo para o setor

saúde e a unificação por baixo dependia de uma reforma gradativa, trabalhando sempre

com os estados e municípios através da descentralização. Para esse último grupo, as AIS

eram estratégicas para o processo de descentralização cujo objetivo final seria a

universalização da assistência.

No entanto, ainda em 1985, as disputas tornam a se intensificar após o

encaminhamento ao Congresso Nacional da lei delegada27 apresentada pelo então

Ministro da saúde a Carlos Sant´anna28 indicando a transferência do INAMPS para a

saúde no prazo de 90 dias. Segundo Fabíola de Aguiar Nunes29 (BRASIL, 2006), Carlos

Sant´anna já vinha trabalhando na elaboração desta lei delegada para o programa de

governo de Tancredo Neves, no sentido de unificar o sistema de saúde que era uma

reivindicação do movimento sanitário.

Contudo, o MPAS junto a alguns sindicatos de trabalhadores, recusaram a

transferência imediata do INAMPS, argumentando o desconhecimento da população

com relação à proposta de uma transferência imediata, a falta de tempo suficiente para

uma discussão cuidadosa da questão e num período anterior ao reordenamento jurídico-

político do país a ser proposto pela Assembleia Nacional Constituinte (PAIM, 1986). O

27 A lei delegada tem por função delegar poderes a um órgão ou sistema. 28 Embora o deputado Carlos Sant’anna não fosse, originalmente, do movimento sanitário, inclusive com

vinculação partidária mais à direita, seu papel articulador do movimento foi considerada fundamental na

análise de atores deste período. Conforme relato de Fabíola Aguiar Nunes, Carlos Sant’anna era pediatra

na Bahia, deputado estadual, secretário estadual de educação e não estava diretamente envolvido com o

movimento da Reforma Sanitária. Mas, no momento em que ele foi notificado que viria para a saúde, e

que assumiria a pasta ministerial da saúde, começou a estudar essas questões e se articulou com as

pessoas que estavam no processo da Reforma Sanitária (BRASIL, 2006). 29 Médica; Sanitarista; Mestre em Saúde Pública; Secretária Nacional de Programas Especiais de

Saúde/Ministério da Saúde (1985-1987). Foi esposa do Deputado Federal Carlos Sant´anna.

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então Ministro da previdência, Raphael de Almeida Magalhães, consegue pressionar o

Presidente Sarney para que não houvesse a sanção dessa lei e o mesmo não a remete à

apreciação do Congresso Nacional para a aprovação (PAIM, 1986; FARIA, 1997).

É sob esse clima de embate político, portanto, que é convocada a VIII CNS

como uma arena privilegiada para o debate das propostas de saúde no país. Articulada

estrategicamente no âmbito do MS, esta Conferência compôs um programa de

discussões englobando todas as questões relativas à reforma do setor saúde, dentre elas

os temas principais: o direito à saúde, a unificação do sistema de saúde e o

financiamento do setor saúde (FARIA, 1997).

Pode-se inferir, portanto, que neste contexto que antecede a VIII CNS as

disputas e embates deixavam claro a necessidade de modificação no modelo de atenção

à saúde na direção de uma concepção de saúde ampliada e atrelada ao direito social

universal. A VIII CNS, nesse sentido, mostrava-se como arena privilegiada para a

articulação de propostas a serem pactuadas para uma verdadeira reforma no sistema de

saúde do país.

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CAPÍTULO 3- A CONFERÊNCIA DA REFORMA SANITÁRIA

“Claro, saúde é dever do Estado, um direito do cidadão, não termina mesmo que você

esteja desempregado. Na VIII Conferência Nacional de Saúde vamos definir esta e

muitas outras questões para que todos os nossos direitos ligados à saúde sejam

garantidos. Através dos nossos sindicatos e associações, vamos estudar a melhor

maneira de organizar o setor de saúde. Não dá mais pra continuar empurrando a miséria

com a barriga!”

(Fala extraída de comercial convocando a VIII CNS30, 1986).

A fala acima, extraída do comercial veiculado em horário nobre na televisão

brasileira semanas antes da realização da VIII CNS, demonstra a expectativa que a

realização desta Conferência gerou ao debate da saúde e à sociedade civil de maneira

geral. A grande divulgação e o convite à mobilização da sociedade sugeriam que aquela

seria uma Conferência diferente das anteriores, pois diante do contexto de

redemocratização do país e a proximidade com a constituinte, aquele seria um espaço

privilegiado para discutir e elaborar uma política nacional de saúde que atendesse as

demandas da população.

O cenário fictício do vídeo dava pequenos indícios acerca do debate que seria

levado à VIII CNS: uma favela cujos atores percorriam um espaço aparentemente

insalubre marcado pela pobreza e doença. A fala do ator principal, relacionando a

miséria ao estado de saúde, sugeria a tônica do debate que seria levado à Conferência:

um conceito de saúde ampliado e uma reforma efetiva no setor saúde de cunho

estrutural.

A VIII CNS, portanto, organizou-se como resultante das propostas e das lutas do

movimento da Reforma Sanitária que desde a década de 1970 se articulava e acumulava

experiências - como as AIS -, que serviram de base para um projeto de reforma no setor

saúde na década de 1980. Soma-se a esse contexto, a transição democrática e a inserção

de quadros técnico-políticos de integrantes deste Movimento no MS e MPAS, criando

condições ótimas para que esta Conferência trouxesse como temática questões

essenciais à proposta de uma Reforma Sanitária (BRASIL, 2006).

30 Comercial extraído do vídeo: Oitava Conferência Nacional de Saúde (1986) – Parte 1, disponibilizado

na internet pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP/UNB). Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=0w4vnghg1Fo. Acesso em 16 de setembro de 2014.

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Embora o contexto político se apresentasse um pouco mais favorável a

modificações devido a mobilização para a constituinte, a convocação da VIII CNS

significou a abertura de um espaço de discussão e aprofundamento das questões de

saúde em uma dimensão política e social, já que o recente governo Sarney não havia

substituído antigas forças políticas e tratava a saúde ainda de forma técnico-acadêmica

(GADELHA & MARTINS, 1988).

Além disso, o conflito entre os “reformistas da saúde” e os “reformistas da

previdência”, citado no capítulo anterior, havia se tornado ainda mais acirrado no

período pré-constituinte, sobretudo ao que se referia à questão da unificação da saúde no

nível federal com a incorporação do INAMPS ao MS, evidenciando, assim, a

necessidade de um consenso acerca desta problemática.

É diante deste quadro, portanto, que através do Decreto Lei 91.466, de 23 de

julho de 1985 é convocada a VIII CNS, cuja finalidade principal seria obter subsídios

para contribuir para uma reformulação do Sistema Nacional de Saúde e proporcionar

elementos para o debate da saúde na Assembleia Constituinte (GADELHA &

MARTINS, 1988). Por essa razão, a VIII CNS é reconhecida por alguns autores como a

pré-constituinte da saúde. O Deputado Carlos Sant´anna em debate durante a

Conferência explicita essa opnião em sua fala:

“Esta 8ª Conferência foi convocada para ser pré-Constituinte da

Saúde. É aqui, na abrangência deste amplo foro de debates, que

serão caldeadas as matérias que deverão ser conduzidas à

Assembleia Nacional Constituinte, como resultante da vontade

de todos os profissionais de saúde e de todos os segmentos da

sociedade que, ao longo de 17 pré-Conferências e mais desta

Conferência Nacional estão debatendo amplamente todas estas

questões e estes temas” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE

SAÚDE, 1987, p. 329)

Antes de prosseguir no tema, a fim de melhor compreender a especificidade da

VIII CNS e o seu ineditismo em diferentes aspectos, é válido discorrer brevemente

acerca das conferências que a antecederam.

3.1- Conferências que Antecederam a VIII CNS

As CNS foram instituídas por lei em 1937 (Lei 378) com o objetivo de fornecer

orientações sobre a política de saúde. Segundo Escorel e Bloch (2005), o papel atribuído

às conferências quando de sua institucionalização foi o de promover intercâmbio de

informações e proporcionar ao governo federal o controle das ações realizadas no

âmbito estadual a fim de regular o fluxo de recursos financeiros, sem que houvesse

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qualquer menção a processos deliberativos. De todo modo, cada CNS teve objetivos

bastante específicos como será demonstrado resumidamente abaixo.

A primeira CNS, realizada em 1941, teve como objetivo discutir assuntos

relacionados à organização sanitária estadual e municipal, à ampliação e sistematização

das campanhas nacionais contra a tuberculose e a hanseníase, ao desenvolvimento dos

serviços básicos de saneamento e das atividades de proteção materno-infantil. Além

disso, com a finalidade de organizar uma política sanitária buscou-se medidas para o

controle das epidemias, saneamento e urbanização (BRASIL, 2001).

A II CNS (1950) resultou da preocupação de levar ao conhecimento das

autoridades os “pontos de vista” dominantes entre os sanitaristas do país, para que se

realizassem estudos e criassem normas que pudessem emprestar maior uniformidade à

resolução dos problemas de saúde brasileiros (BRASIL, 2001). Segundo Gadelha e

Martins (1988), estas duas primeiras conferências (1941 e 1950) trataram de firmar um

campo institucional próprio ao sanitarismo, que até então estava vinculada ao Ministério

da Educação e Saúde.

A III CNS (1963) foi a primeira conferência ocorrida após a criação do MS em

1953. Seu temário e recomendações expressavam todo um processo de transformação

pelo qual passava o Estado brasileiro naquele período, como reestruturações políticas

sociais e maior democratização do Estado. Os principais tópicos tratados nesta

conferência foram: a situação sanitária da população brasileira; distribuição e

coordenação das atividades médico-sanitárias nos níveis federal, estadual e municipal;

municipalização dos serviços de saúde e fixação de um plano nacional de saúde

(BRASIL, 2001).

Já a IV CNS (1967) teve como tema central "Recursos Humanos", numa

preocupação na formação de profissionais orientados para a solução de problemas de

saúde do país (BRASIL, 2001).

A V e VI CNS foram realizadas em um curto espaço de tempo - 1975 e 1977

respectivamente. A primeira teve como temática: o Sistema Nacional de Saúde; o

programa de materno-infantil; o sistema de vigilância epidemiológica; o controle das

grandes endemias e a extensão das ações de saúde às populações rurais. A segunda

trouxe como tema o controle das grandes endemias, a interiorização dos serviços de

saúde e a política nacional de saúde.

Com a constituição do SNS em 1975, emergem possibilidades concretas na

construção de uma política sob novos parâmetros discutidos e a realização dessas duas

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conferências expressava uma preocupação do Estado na definição de um novo modelo.

Nesse sentido, pode-se afirmar que essas CNS inauguraram uma mudança na discussão

da política de saúde, com uma maior integração ao debate internacional e propostas

estratégicas de reformulação para o sistema de saúde. Da mesma forma, é possível

identificar uma preocupação com a política de extensão dos serviços de saúde31

acompanhando um movimento gradual de incorporação do próprio Estado de novos

setores sociais (rural, autônomos, domésticas, etc.) como beneficiário do sistema a partir

da década de 1970 (BRASIL, 2001).

No entanto, na VI CNS já é possível identificar visões mais críticas, resultado de

uma maior liberdade de divulgação de estudos e pesquisas, assim como dos primeiros

sinais da crise econômica (BRASIL, 1986 apud BRASIL, 2001). Nesse contexto, torna-

se mais nítido um descontentamento da sociedade em relação ao Estado, às políticas

sociais e à política de saúde. Paralelamente, o Movimento Sanitário ia fortalecendo-se

“na busca de alternativas para a construção de modelo

assistencial justo, democrático e igualitário. As Universidades e

Centros de Pesquisa constituíram-se nos principais

interlocutores do debate, buscando nas experiências

internacionais parâmetros para a discussão nacional” (BRASIL,

2001, p.98).

Contudo, segundo essas autoras, mesmo com esse movimento crítico, essas duas

conferências não contaram com a participação desses segmentos e permaneceram

restritas aos convidados do governo que exerciam cargos de comando no Ministério da

Saúde.

A VII CNS, última que antecedeu a VIII CNS que é o foco deste estudo, ocorreu

em 1980 e sua convocação teve como finalidade a promoção do debate amplo de temas

relacionados à implantação e ao desenvolvimento do Programa Nacional de Serviços

Básicos de Saúde (PREV-SAÚDE)32, e como temática principal a extensão das ações de

saúde através dos serviços básicos (BRASIL, 2001; ESCOREL & BLOCH, 2005. Indo

ao encontro da discussão que ocorria no âmbito internacional desde a Conferência de

Alma-Ata em 197833 que previu a garantia da saúde para todos até o ano 2000, toda

discussão apresentada na conferência

31 Um exemplo é o PIASS em 1976. 32 Citado no capítulo anterior. 33 A Conferência Internacional de Cuidados Primários em Saúde (1978) realizada em Alma- Ata, veio

reforçar a ideia e a importância da Atenção Primária em Saúde e a disseminação dos programas de

extensão de cobertura. A Conferência reafirmou e imprimiu um caráter internacional a essa discussão,

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“apontava para a temática da extensão das ações de saúde

através dos serviços básicos, pensadas na organização dos

serviços, no desenvolvimento de recursos humanos, na estrutura

de saneamento e habitação, na necessária educação continuada,

na responsabilidade e articulação interinstitucional, na política

de alimentação e nutrição, informação e vigilância

epidemiológica, saúde mental, odontologia e articulação dos

serviços especializados” (BRASIL, 2001, p.99).

Uma peculiaridade da VII CNS é que, pela primeira vez, contou-se com a

participação de outros setores sociais para contribuir com o debate. Estavam presentes

Solon M. Viana do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), contribuindo

com a questão do financiamento; profissionais de saúde, representados pelo médico

Adib Jatene34; e políticos como José Serra35 e Almir Gabriel36.

Nesta CNS foi possível identificar um progresso na discussão e na definição de

uma política de saúde mais abrangente, levando-se em conta o conceito intersetorial de

saúde e admitindo-se que os gastos no setor saúde constituem-se como investimento de

elevada rentabilidade social (BRASIL, 2001). O quadro abaixo sintetiza o temário

dessas conferências:

Quadro 1- Síntese do Temário das CNS (da 1ª à 7ª CNS)

Conferência Temática

1ª CNS (1941) Situação sanitária e assistencial dos estados.

2ª CNS (1950)

Legislação referente à higiene e à segurança do trabalho.

3ª CNS (1963)

Descentralização na área de Saúde.

ultrapassando os limites regionais e sendo alvo central das propostas formuladas pela Organização

Mundial de Saúde nos anos de 1980. (FAUSTO, 2005). 34 Adib Jatene- Médico; Atuou como secretário estadual da Saúde de São Paulo (1979-1982), no governo

de Paulo Maluf, e duas vezes como ministro, na mesma área, nas gestões Fernando Collor (1992, por oito

meses) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1996, por 22 meses), tendo sido responsável pelo avanço do

processo de descentralização do sistema. No governo de FHC, criou a Contribuição Provisória Sobre

Movimentação Financeira (CPMF), para ajudar a financiar a saúde brasileira, e deu continuidade ao

projeto dos medicamentos genéricos e ao programa de combate à AIDS. 35 José Serra – Médico, atuou como Ministro da Saúde em 1998-2002. 36 Almir Gabriel- Médico; exerceu papel fundamental na Assembléia Nacional Constituinte para a

definição da proposta do Sistema Único de Saúde.

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4ª CNS (1967)

Recursos humanos para as atividades em saúde.

5ª CNS (1975)

I. Implementação do Sistema Nacional de Saúde; II. Programa de Saúde Materno-

Infantil; III. Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica; IV. Programa de

Controle das Grandes Endemias; e V. Programa de Extensão das Ações de Saúde às

Populações Rurais.

6ª CNS (1977) I. Situação atual do controle das grandes endemias; II. Operacionalização dos novos

diplomas legais básicos aprovados pelo governo federal em matéria de saúde; III.

Interiorização dos serviços de saúde; e IV. Política Nacional de Saúde.

7ª CNS (1980)

Extensão das ações de saúde por meio dos serviços básicos.

Fonte: Elaboração própria a partir dos relatórios das Conferências de Saúde.

3.2- A VIII Conferência Nacional de Saúde

A VIII CNS é compreendida por diversos autores (BRASIL, 2006; BRASIL, 2001;

NETO, 2003; ESCOREL E GADELHA, 1986; GUIZARDI et al, 2011) como um marco na

questão da saúde no Brasil. Primeiro, porque simbolizou o processo de construção da

plataforma e de estratégias de um movimento de democratização da saúde e representou

um marco para o movimento sanitário que há tempos já se articulava num sentido de

reformulação do setor (NETO, 2003). Esta Conferência foi prevista como instrumento

de elaboração do novo SNS, mas sua convocação também teve a finalidade de dirimir

impasses, refazer as alianças, traçar as estratégias correspondentes e realinhar propostas

dentro do próprio Movimento sanitário para o aprofundamento da reforma no setor

saúde (NETO, 2003).

“A intenção explícita desta conferência estava em firmar as

“bandeiras” de luta apresentadas pelos reformistas da saúde e,

mais precisamente, sustentar a política de unificação do setor

saúde, com a passagem do INAMPS para o MS como proposta

política para o Estado” (FARIA, 1997, p.52).

Segundo Faria (1997) a grande finalidade da VIII CNS era tornar-se um fórum

de ampliação do debate do debate da Reforma Sanitária em nível nacional e conquistar

o apoio dos diferentes segmentos sociais no que se referia à proposta de unificação do

setor saúde.

A segunda razão que torna a VIII CNS um marco para a questão da saúde, é que

pela primeira vez na história das CNS foi possível contar com uma efetiva participação

da comunidade junto aos técnicos na discussão de uma política setorial, inaugurando

assim um processo de participação da sociedade civil nas deliberações sobre a política

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de saúde (FLEURY apud RADIS, 1986). Carvalho (1995) reitera essa colocação ao

afirmar que:

“A 8ª Conferência foi um evento duplamente inédito. Inédito na

história das políticas de saúde porque não se tem notícia de que

o poder executivo brasileiro jamais tenha convocado a sociedade

civil para o debate de políticas ou programas de governo, menos

ainda no estágio ou momento de sua formulação na escala de

que o fez naquele momento. Todas as sete conferências de saúde

anteriores pautaram-se por um caráter eminentemente técnico e

pela baixíssima representatividade social marcada pela

participação praticamente restrita a gestores e técnicos

governamentais (p.53).”

Fabíola de Aguiar Nunes, em depoimento concedido no livro “A construção do

SUS: Histórias da Reforma Sanitária e do Processo Participativo” (BRASIL, 2006)

aponta que a ideia de Arouca, presidente da VIII CNS, em realizar uma conferência

diferente das anteriores se deu porque até a VII CNS os delegados eram escolhidos pelo

ministro da Saúde ou autoridades da República, o que significava possuir representantes

intimamente ligados à construção de propostas para a política de saúde, mas um

afastamento da população, das administrações locais e dos envolvidos com o

movimento sanitário dos processos decisórios.

“O que Arouca propôs foi o contrário, começar de baixo para

cima. E dizia: “Se a gente tem realmente um argumento bom, a

gente vai poder começar a discutir do município para cá e

quando chegar aqui a força do movimento social vai viabilizá-

lo. Carlos Sant’anna, considerando que administrar essa

conferência ia ser muito difícil, perguntou a Arouca se a

assumia, como Presidente da FIOCRUZ. Arouca disse que sim,

propôs e defendeu um mínimo de mil delegados, mesmo com o

argumento de que era um número muito elevado, sendo contra a

sugestão para reduzi-lo. Arouca achava que mil delegados era o

mínimo para legitimar a conferência, começando dos municípios

– as pré-conferências – que agora são históricas e um fato dado

na organização das conferências. Ou seja, a ideia original foi de

Sergio Arouca e a força política que fez isso acontecer foi de

Carlos Sant’anna.” (BRASIL, 2006, p.83).

A VIII CNS foi viabilizada pela mobilização de três ministérios: da Saúde, da

Previdência e Assistência Social e da Educação, apesar de formalmente ter sido

convocada apenas pelo ministro da Saúde. A comissão organizadora37 do evento foi

composta por atores destes três ministérios, com maior participação de integrantes do

37 Ver em ANEXO II quadro com a composição da Comissão Organizadora.

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MS e com uma participação mais discreta de atores integrantes do MPAS/INAMPS

(ESCOREL & BLOCH, 2005; FARIA, 1997). Os temas relacionados à educação

restringiram-se à ensino médico, a integração ensino-serviço e a participação de

instituições de pós-graduação em saúde como ABRASCO e CEBES.

Por decisão dessa mesma comissão organizadora, a Conferência – que

inicialmente estava prevista para ser realizada no dia 02 de dezembro de 1985, acabou

sendo adiada38 para o ano seguinte na tentativa de garantir um maior tempo de

divulgação do evento e de gerar uma maior mobilização da sociedade civil em torno do

debate.

O processo de preparação para a VIII CNS também merece se destacado. Isso

porque ocorreu através de uma ampla divulgação do temário da Conferência para a

sociedade civil e da realização de pré-conferencias estaduais. De acordo com Arouca

(1987)39 as pré- conferências estaduais de saúde “nasceram num movimento quase que

próprio, quando os estados começaram a ter interesse em se preparar para a

conferência” (p.40). O principal objetivo destas era reunir propostas, além de elaborar

documentos técnicos e relatórios de diferentes estados do país para serem utilizados

como subsídios durante o debate na VIII CNS.

Segundo Escorel e Bloch (2005), todos os estados realizaram as pré-

conferencias, sendo que alguns tiveram também conferências municipais antes do

evento estadual (Minas Gerais, Paraná, Sergipe e Pará). O resultado destas pré-

Conferências foram debatidos durante o evento e auxiliaram na elaboração do Relatório

Final da Conferência.

Destaca-se também nesse processo o papel da ABRASCO, tanto na organização

quanto na condução dos temas a serem discutidos no evento, com especial destaque à

formulação do documento “Pelo direito universal à saúde”40, que também serviu de

38 Em BRASIL. Decreto nº 91874, de 04 de novembro de 1985. Transfere a convocação da VIII

Conferência Nacional de Saúde. Diário Oficial da União. Seção 1. 05/11/1985. p. 16116. 39 Este depoimento foi extraído do documento CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8ª. Brasília,

1986. Anais. Brasília. Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987. No entanto, a fim de

preservar a autoria e melhor identificar os atores no debate na VIII CNS, e em vista que neste documento

os mesmos são identificados, optou-se por utilizar a referência a partir do nome dos atores. Apenas nos

depoimentos extraídos dos debates dos painéis serão utilizados a referência CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE (1987).

40 Ver em Comissão de Políticas de Saúde - ABRASCO - Pelo Direito Universal à Saúde, Rio de Janeiro,

1986.

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documento base para o debate da VIII CNS. (NETO,2003; ESCOREL E BLOCH,

2005).

Acerca do processo de elaboração da Conferência, Sonia Fleury (apud BRASIL,

2006) aponta que houve de fato uma articulação com os movimentos populares e uma

discussão sobre questões complexas da saúde, tais como cidadania, direito à saúde, e

que “esse encontro da intelectualidade com o movimento social se dá na preparação da

8ª CNS, depois continua na própria 8ª CNS e, em seguida, na Constituinte, até chegar na

Plenária...” (p.84).

Dessa forma, a VIII CNS ocorre no período de 17 a 21 de março de 1986 no

ginásio de esportes de Brasília, com a participação 41de mais de 4.000 mil pessoas,

dentre eles 1000 delegados que se dedicaram durante cinco dias, em jornadas de até 14

horas, a discussões e propostas em torno dos temas “Saúde como Direito”,

“Reformulação do Sistema de Saúde” e “Financiamento do Setor” (GADELHA &

MARTINS, 1988).

Para a composição de delegados da Conferência foram escolhidos e/ou indicados

representantes de instituições, organizações e entidades segundo critérios definidos

internamente por cada uma delas (RADIS, 1986). Em um primeiro momento, a

comissão organizadora havia previsto que durante a VIII CNS os trabalhos de grupo dos

delegados aconteceriam separadamente dos participantes e que estes teriam direito à voz

em plenário, mas apenas os delegados votariam. No entanto, em função da

reinvindicação dos participantes, esta decisão se modificou e determinou-se que os

participantes também se reuniriam em grupos, apresentariam seus relatórios e uma

comissão constituída por relatores dos dois grandes grupos (delegados e participantes)

compatibilizaria o relatório final a ser aprovado em plenário (ESCOREL & BLOCH,

2005).

41 A escolha por um ginásio esportivo com capacidade para um grande número de pessoas já denotava um

caráter estratégico de convocação de participantes, independente da representação como delegado.

Durante a construção deste estudo, em conversas informais com profissionais e informantes-chaves que

participaram da VIII CNS, foi possível identificar que a grande participação popular foi utilizada como

uma estratégia de pressão social para que os acordos afirmados nesta Conferência fossem legitimados,

sobretudo aqueles referentes aos temas a serem levados ao debate da Constituinte e a questão da

unificação do INAMPS ao MS. Segundo relatos destes informantes-chaves, durante a VIII CNS

caravanas de diferentes municípios, estados e instituições- como a FIOCRUZ com profissionais e alunos-

foram levadas à Conferência, embora muitos destes participantes não estivessem a par da discussão que

aconteceria. A veiculação do comercial convocando a população para a discussão da VIII CNS em

horário nobre na televisão brasileira, demonstrada no início deste capítulo, também pode ser

compreendida como uma estratégia da organização do evento para aumentar a participação popular.

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Isso caracteriza a importância do debate e da participação nesta Conferência.

Gadelha e Martins (1988) revelam que

“entre os organizadores da 8ª Conferência, havia os que

consideravam que o seu produto final não seria tão relevante

como foi o uso deste espaço para influência na Constituinte.

Assim, o importante seria a abertura para um grande número de

delegados visando à politização do eleitor. O peso político mais

definitivo ficaria por conta de outros fóruns, como a Comissão

de Saúde da Câmara dos Deputados” (p.83).

No entanto, a questão da proporcionalidade das diferentes categorias

representantes gerou diversos conflitos e houve a necessidade da convocação de uma

plenária extraordinária para a discussão do assunto. O setor privado prestador de serviço

contratado e autônomo sentiu-se prejudicado e ausentou-se da Conferência alegando

que sua participação era desproporcional em relação à participação da sociedade civil.

Sergio Arouca em depoimento acerca de como foi o processo de escolha dos

representantes para a VIII CNS revela que

“a questão da representatividade e, portanto, da definição de

delegados realmente foi uma questão muito complexa. Como

definir dentro de limites - que estavam inclusive estabelecidas

até por questões físicas, do local, aonde podia ser realizada a

Conferência, distribuir as vagas no conjunto das instituições

brasileiras? Então, tivemos que muitas vezes tomar decisões.

(...) Inevitavelmente, nessa distribuição determinadas entidades

se acharam pouco representadas, mas acho que foi uma primeira

tentativa que inevitavelmente deve ser melhorada para as futuras

Conferências Nacionais” (Extraído do vídeo Oitava Conferência

Nacional de Saúde – Parte 142).

Segundo Arouca, naquele momento o fundamental era escutar os trabalhadores e

os usuários. Portanto, dentre as 500 vagas destinadas à sociedade civil foi dado um

grande peso aos trabalhadores e as associações de bairro, distribuídas da seguinte forma:

50 vagas a Confederação Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), 50 vagas a

Central Única dos Trabalhadores (CUT), 50 vagas a Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e 50 vagas para a Confederação Nacional das

Associações de Moradores (CONAM). Já as outras 300 vagas foram distribuídas entre

instituições da sociedade civil que de alguma forma poderiam contribuir com propostas

42 Depoimento extraído do vídeo: Oitava Conferência Nacional de Saúde (1986) – Parte 1 disponibilizado

na internet pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP/UNB). Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=0w4vnghg1Fo . Acesso em 16 de setembro de 2014.

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para a reformulação do Sistema de Saúde do Brasil, tais como representantes de

instituições religiosas, representantes dos direitos da mulher, entre outros.

Os outros 50% das vagas foram atribuídas ao setor saúde. Todos os ministérios

foram representados desde o ministério da saúde até o ministério das forças armadas,

passando pelos ministérios econômicos e todas as instituições que a nível estadual,

municipal ou da união que tratavam da saúde. Esse movimento de busca de articulação

com outros ministérios pode ser considerado como indício importante de tratar a saúde

de uma forma ampliada e não mais de forma setorializada.

Além disso, os sindicatos, associações e os conselhos de todos os profissionais

de saúde e os empresários da área de saúde também foram contemplados. A tabela

apresentada abaixo ajuda a sistematizar a distribuição das vagas.

Quadro 2 - Distribuição de Vagas para Delegados na VIII CNS

Órgãos do

Estado

Vagas

Sociedade Civil

Vagas

Ministério da

Saúde

80

Associações e órgãos de representação de

produtores privados de serviços de saúde

75

Ministério da

Previdência e

Assistência

Social

80

Entidades das diversas categorias de profissionais

do setor saúde

100

Ministério da

Educação

40

Sindicatos e associações de trabalhadores urbanos

e rurais (CONTAG, CONCLAT, CUT,

CONTAG)

150

Outros

Ministérios e

Órgãos Federais

100

Confederação Nacional de Associações de

Moradores (CONAM)

50

Secretarias

Estaduais

110

Entidades comunitárias e outras entidades civis

100

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Secretarias

Municipais

90

Partidos políticos

25

Total 500

500 Fonte: Elaboração própria a partir dos relatórios da VIII CNS.

Com relação à esta composição de delegados, Escorel e Bloch (2005) apontam

que a incorporação da participação da sociedade civil organizada configurou uma “nova

institucionalidade” caracterizando a Conferência como um fórum, que passou a ter

“vida própria”, constituindo-se em um “ente” à parte, autônomo e independente, mesmo

sendo um evento convocado pelo poder Executivo federal. Rodrigues Neto (NETO,

1988 apud BRASIL, 2006) revela que:

“A 8ª Conferência faz com que esta questão transborde, faz com

que a questão da saúde tenha que ser assumida pela sociedade

como um todo. Ela é assumida como uma questão central, como

uma questão do seu objetivo, que deveria, então, ser

transformada, ao ser conquistada, em um objetivo de governo, e

não mais em um objetivo de um, dois ou três Ministérios ou de

um determinado grupamento social representado pelos

profissionais de Saúde. (...) Me parece que esse é o grande salto

que se dá, a grande chance, a grande potencialidade que o

Movimento [sanitário] ganha (...) Nesse sentido, a 8ª

Conferência propõe já não mais a questão do Sistema Único de

Saúde como uma exclusividade, mas propõe a Reforma

Sanitária. E passa a ser um movimento da sociedade, ou

pretende ser um movimento da sociedade” (p.47).

Como sinalizado acima, a participação da sociedade foi fundamental para

impulsionar as propostas do movimento sanitário e para mostrar a força do discurso pró-

reforma sanitária. Nesse sentido, é possível compreender que a forte participação

popular foi utilizada pelos organizadores da VIII CNS - composta majoritariamente por

reformistas da saúde - como uma estratégia de pressão política para a passagem do

INAMPS para MS. Segundo Sérgio Arouca em seu discurso, a Conferência nasce:

“no instante que o debate sobre a reformulação do sistema de

saúde no Brasil, infelizmente, quase que ficou restrito a uma

simples reforma administrativa, com a discussão da

transferência ou não do INAMPS para o Ministério da Saúde. Só

que não é esta a questão. O que está em questão é uma coisa

muito mais séria, muito mais profunda do que uma simples

reforma burocrática e administrativa” (AROUCA, 1987, p.38).

Sérgio Arouca declara ainda que a convocação da VIII CNS também se deu em

resposta às críticas de que a proposta de reformulação do sistema de saúde ainda não

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havia sido debatida o suficiente pela sociedade brasileira e “que qualquer mudança no

sistema de saúde não podia ser feita simplesmente por uma lei” (AROUCA, 1987, p.39)

referindo-se ao episódio da lei delegada de Carlos Sant´anna e a reprovação desta lei por

parte do MPAS.

No debate da própria Conferência Carlos Sant´anna retoma este episódio e

declara que a realização da VIII CNS nasce do impasse institucional entre

representantes do INAMPS e do MS. Segundo ele, com o início do novo governo de

Tancredo Neves/José Sarney foram elaborados documentos decisivos - resultantes de

décadas de seminários, reuniões e simpósios - que culminaram na criação de um

programa de Governo da Nova República que indicavam ações governamentais na

direção do sistema único de saúde, sob um comando único. No entanto, no momento em

que as ações foram divididas em equipes de governo para implementação emergiram

impasses, como explica Carlos Sant´anna:

“No momento em que essas ações iam ser implementadas

formaram-se as equipes de governo, e nas equipes formadas,

uma parte de todos esses elementos que compuseram esses

documentos foi para o Ministério da Previdência, para o

INAMPS; outra parte foi para o Ministério da Saúde. Esta

circunstância gerou um impasse institucional e reabriu uma

discussão que parecia ultrapassada e vencida; mas é exatamente

na raiz dessa circunstância que nasceu a 8ª Conferência

Nacional de Saúde, porque, então, valorizaram-se as pessoas

mais que as instituições. Exatamente porque, o relacionamento

pessoal e as pessoas que estavam ocupando as posições foram

consideradas mais importantes do que o ordenamento

institucional, surgiu uma nova questão, de que a discussão da

estrutura e do sistema de saúde não estava suficientemente

debatida, especialmente porque não estava debatida pelos

usuários do sistema, por organizações como a CUT, a

CONCLAT, a CONTAG, a CNTI e outras que poderiam e

deveriam participar do debate.”( CONFERÊNCIA NACIONAL

DE SAÚDE, 1987, p. 163).

Segundo Carlos Sant´anna era de fato importante a abertura de um novo e amplo

debate que fosse uma pré-Constituinte, mas que este debate fosse conclusivo e norteasse

as decisões a serem tomadas no novo governo. Como apontado na fala acima, além dos

tensionamentos existentes entre os grupos reformistas da previdência e os da saúde

havia ainda uma resistência à proposta de unificação por parte dos sindicatos e

associações de trabalhadores. Isso porque, para este grupo, a previdência e os benefícios

oriundos dela eram resultantes de conquistas e de lutas políticas que não poderiam ser

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perdidas. Francisco Antonio de Castro Lacaz , representante do DIESAT, em debate do

painel I da Conferência faz a seguinte colocação acerca do posicionamento dos

trabalhadores:

“A Previdência Social, alguns dizem, é um processo de

cooptação das classes populares, mas ela é, também, se a gente

for buscar a origem histórica da Previdência Social no Brasil, o

resultado das lutas sociais do início do século. E nós entendemos

que ela é considerada um direito dos trabalhadores e uma

conquista desses trabalhadores, que não pode ser utilizada pelo

Estado como forma de financiamento da assistência a toda

população” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987,

p.123).

Seguindo esta discussão Néio Lúcio Fraga Pereira - representante da CONAM,

reitera a necessidade de rever as formas de financiamento até então utilizadas, propondo

que o Estado financie a saúde, e não os trabalhadores. Além disso, pontua que é

consenso a proposta de unificação do SNS e de um comando único para cuidar da

questão da saúde, mas que as verbas devem vir do Estado evitando que os trabalhadores

descontados pela Previdência Social sustentassem basicamente a assistência à saúde.

Diante deste contexto, a VIII CNS foi utilizada pelos reformistas da saúde como

uma arena privilegiada para reafirmar uma proposta de reformulação do SNS baseada

em Reforma Sanitária, propriamente dita, e não apenas uma reforma burocrática e

administrativa. A unificação do sistema de saúde “pelo alto”, através da transferência

imediata do INAMPS ao MS, portanto, deveria possibilitar um fortalecimento político-

institucional do setor saúde e desvincular a contribuição previdenciária como um

condicionante para o acesso aos serviços de saúde, implementando, assim, um modelo

de atenção à saúde universal (FARIA, 1997). Nesse sentido, a discussão da Conferência

teve um apelo mais forte ao debate ideológico e à discussão da saúde como um direito

social, do que às questões relacionadas à organização administrativa do novo SNS a ser

criado.

Já os reformistas da previdência, embora compartilhassem das ideias de

universalização do setor saúde, apresentavam propostas voltadas para a modernização

da máquina previdenciária e para a promoção de eficiência e agilidade ao INAMPS, de

forma gradual e não ao nível federal (FARIA, 1997). Para esse grupo, a transferência

imediata do INAMPS sem que houvesse uma reforma no interior do sistema

previdenciário enfraqueceria a capacidade negociadora do INAMPS e a fragilizaria as

relações institucionais no setor. Nesse sentido, as AIS eram apontadas como uma

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estratégia exitosa que poderia servir como estratégia ponte na direção de uma unificação

“por baixo” e gradual.

Dentre os representantes deste grupo que apresentaram trabalhos e discursaram

estavam: Dr. Adib Jatene- Membro da Comissão do Ensino Médico do Ministério da

Educação; Hésio Cordeiro- Presidente do INAMPS; João Yunes43- Secretário de Saúde

do Estado de São Paulo. De maneira geral, as propostas apresentadas por esses atores

não alcançaram um espaço relevante no debate, pois pautavam-se em discussões

pontuais sobre financiamento do setor saúde – que não era uma questão relevante para

os reformistas da saúde naquele momento. Segundo Faria (1997),

“os reformistas da previdência eram compreendidos como atores

que visavam travar a política reformista proposta pelos

reformistas da saúde, porque sempre apresentavam as questões

operacionais, como a questão tributária ou os mecanismos

gradativos de descentralização do sistema, como determinantes

na condução da reforma” (FARIA, 1997. p.52).

No capítulo a seguir, serão mais bem elucidados os conflitos entre estes dois

grupos com relação a temática da unificação do sistema de saúde na VIII CNS.

Com relação à estrutura44 programática da VIII CNS esta se configurou da

seguinte maneira:

1º dia - (17 de março de 1986):

A Conferência inicia-se com a Cerimônia de abertura com a Apresentação da

Conferência por Otávio Clementino de Albuquerque, Secretário do Comitê Executivo

da 8ª CNS, seguido pelos discursos oficiais de:

Quadro 3- Discursos Oficiais Proferidos na Abertura da VIII CNS

Ministro do Ministério da Saúde

Roberto Figueira Santos

Ministro do Ministério da Previdência e

Assistência Social

Raphael de Almeida Magalhães

43 Médico; Dr. pela Faculdade de Medicina da USP. Em 1985, era Professor Adjunto pela Faculdade de

Saúde Pública da USP. Foi secretário de Estado da Saúde de São Paulo de 1983 a 1987. 44 Neste capítulo será apresentado brevemente a estrutura da VIII CNS. No capítulo 4 serão apresentados

e discutidos com mais detalhes o conteúdo dos trabalhos apresentados.

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Diretor da Organização Pan Americana da

Saúde (OPAS)

Carlyle Guerra de Macedo

Presidente da República Federativa do

Brasil

José Sarney

Em seguida foi proferida a conferência intitulada “Democracia é Saúde” pelo

presidente da Conferência Sérgio Arouca. Nesse discurso Arouca discorre sobre o

processo de convocação e os principais objetivos da VIII CNS: discutir acerca da

reformulação do SNS e identificar as principais propostas para o setor saúde a serem

levadas à Assembleia Constituinte.

Antes da apresentação dos trabalhos que discutiriam as temáticas pré-definidas,

foram apresentados as sínteses dos relatórios das pré-conferências estaduais, que

também serviriam de base para a discussão da Conferência.

2º dia - (18 de março de 1986)

No segundo dia foram apresentados os trabalhos cujas temáticas estavam pré-

definidas. No primeiro painel intitulado: “A saúde como direito inerente à cidadania e

a personalidade”, foram apresentados os seguintes trabalhos por seus respectivos

autores:

1) Direito à saúde, cidadania e Estado - Jairnilson Silva Paim45

2) A Construção Social da Cidadania - José Geraldo de Souza46

3) Saúde como Direito de Todos e Dever do Estado - Hélio Pereira Dias 47

4) Cidadania, Direitos Sociais e Estado - Sônia Maria Fleury Teixeira48

Cada painel foi seguido por um debate composto por representantes do mais

diversos seguimentos (associações, conselhos, movimentos sociais, etc.) e por grupos de

trabalho com participantes e delegados. Neste primeiro dia a composição do debate

pode ser observada no quadro abaixo:

45Médico; Dr. em Saúde Pública; Professor Adjunto do Departamento de Medicina Preventiva da

Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. 46 Assessor Jurídico da Fundação Universidade de Brasília em 1986. 47 Advogado; Assistente Jurídico do Ministério da Saúde e Assessor do Ministério da Saúde em 1986. 48 Psicóloga; Doutora em Ciência Política; Professora da FGV; Era vice-presidente da ABRASCO em

1986.

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Quadro 4- Participantes do Debate do Painel I

Instituição Representante

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Padre Predrinho

Guareschi

Confederação Nacional das Associações de Moradores

(CONAM)

Néio Lúcio Fraga Pereira

Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CDNM)

Carmem Barroso

Central Única dos Trabalhadores (CUT)

Arlindo Chinaglia Júnior

Federação das Industrias do Estado de São Paulo (FIESP)

Bernardo Bedrikow

Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de

Saúde dos Ambientes de Trabalho (DIESAT)

Francisco Antônio de

Castro Lacaz

Conselho Federal Medicina (CFM)

Gabriel Oselka

Estes trabalhos trouxeram para o debate a defesa de uma temática considerada o

lema da Reforma Sanitária: a saúde como direito. De acordo com as ideias apontadas

pelos expositores a saúde deveria ser compreendida como um direito social atrelado ao

conceito de cidadania e, portanto, um dever do Estado. Como ponto de partida para

elucidar essa compreensão, os expositores trouxeram as experiências dos países

capitalistas centrais na Europa e os sistema nacionais de saúde existentes cuja

compreensão de saúde e pautada na questão do direito social, como no caso da

Inglaterra e o seu National Health Service (NHS)49·

49 O termo National Health Service (Serviço Nacional de Saúde em português) refere-se ao serviço de

saúde da Inglaterra. O NHS surgiu em 1948 no contexto ós-guerra e contempla a assistência médica como

essencial no Plano Beveridge e provê cobertura universal, baseando-se nos princípios de equidade e

integralidade.

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O painel caracterizou-se pelo forte discurso político-ideológico, sobretudo pela

participação de alguns representantes do setor acadêmico e do movimento sanitário. Por

essa razão, é preponderante dentre as propostas a defesa de uma concepção ampliada da

saúde, onde mais do que ofertar serviços médicos era também necessário operar

mudanças à um nível mais estrutural tal como a garantia de políticas sociais e

econômicas que melhorem as condições de vida da população.

Tanto nos painéis quanto na sessão de debates, a temática da unificação do

sistema de saúde com a passagem do INAMPS ao MS, organizando um novo órgão de

comando único apareceu como uma proposta unânime entre os participantes. Já a

estatização do SNS gerou divergências, pois para alguns participantes esta deveria

ocorrer de forma imediata e sem a presença do setor privado, enquanto que para outros

deveria ocorrer de forma gradual - já que o SNS ainda era muito dependente dos

serviços prestados pelo setor privado, sendo a estatização imediata inviável naquele

momento.

A questão do financiamento aparece superficialmente em todo este painel já que,

como já citado, a temática explorada tinha cunho mais ideológico do que

organizacional. No entanto, é preponderante nos trabalhos apresentados a proposta de

financiamento pelo tesouro, assim como a criação de novas formas de financiamento.

3ª dia - (19 de março de 1986)

No terceiro dia foi apresentado o painel II, intitulado “Reformulação do

Sistema Nacional de Saúde”, com os seguintes trabalhos:

1) Reformulação do Sistema Nacional de Saúde: Algumas considerações - Adib

Domingos Jatene

2) Participação Social em Saúde - João Yunes

3) O Sistema Unificado de Saúde como Instrumento de Garantia da

Universalização e Equidade - José Aberto Hermógenes de Souza50

4) A Participação de Todos na Construção do Sistema Unificado de Saúde -

Hésio de Albuquerque Cordeiro

Da mesma forma, após a apresentação dos trabalhos deste foi realizado um

debate com a seguinte composição de participantes:

50Médico Sanitarista; Secretário Geral do Ministério da Saúde em 1986. Posteriormente presidiu a

Comissão Nacional da Reforma Sanitária.

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Quadro 5- Participantes do Debate do Painel II

Instituição Representante

Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de

Janeiro (FAMERJ)

Antônio Ivo de

Carvalho

Federação Nacional dos Médicos (FNM)

Francisco Xavier

Beduschi

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

(CONTAG)

José Francisco da

Silva

Ministério do Trabalho

José Luiz Riani

Costa

Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

(ABRASCO) e Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

(CEBES)

Sebastião Loureiro

Prefeitura de Itabuna- Estado da Bahia

Ubaldo Dantas

Diferentemente do painel I, neste painel foi preponderante a discussão mais

específica da reformulação do sistema, ou seja, uma discussão mais operacional e

organizacional. Isso porque, dentre os expositores era predominante a participação de

atores cuja trajetória institucional esteva ligada ao MS ou ao INAMPS. Portanto, a

preocupação girava em torno de questões como: “Qual a melhor forma de garantir o

direito à saúde? Quais arranjos institucionais possíveis viabilizam essa garantia?” Além

disso, é muito marcante neste painel a presença de propostas de novas formas de

relacionamento entre os setores público e privado.

A questão da unificação do sistema de saúde é também central nesse painel, e é

igualmente unânime entre os atores que a reformulação do SNS só será possível com a

unificação do INAMPS E MS em um novo órgão de comando único. No entanto, é

neste painel que o conflito quanto à forma de unificação do sistema – citado

anteriormente- se expressa, já que foram apresentados trabalhos de representantes do

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MPAS e do MS (aqui com peso maior de representantes do grupo de reformistas da

previdência).

Com relação ao direito à saúde, embora a ideia seja trazida pelos expositores

como algo unânime, esta temática não é aprofundada e nem problematizada. Logo, não

fica claro nos discursos se direito social expressa a ideia de extensão da oferta de

serviços médicos ou se refere-se à um direito social, tal como debatido no primeiro

painel.

4º dia - (20 de março de 1986):

No quarto dia foram apresentados os trabalhos do painel III, intitulado

“Financiamento do Setor Saúde”. São eles:

1) Correção do Financiamento do Setor Saúde- Adolpho Chorny51

2) Alternativas do Financiamento da Atenção à Saúde- André César Médici52 e

Pedro Luiz Barros Silva53

3) Novas diretrizes para o Financiamento do Setor Saúde- Humberto Gomes de

Melo54

Estes trabalhos foram seguidos também por um debate com a seguinte

composição de participantes:

Quadro 6- Participantes do Debate do Painel III

Instituição Representante

Confederação das Misericórdias do Brasil

Geraldo Justo

Secretário de Saúde e do Bem-Estar Social do Paraná

Luis Cardoni Junior

Confederação Nacional das Classes Trabalhadoras

(CONCLAT) Luis Roberto de Oliveira

Associação Médica Brasileira (AMB)

Nelson Guimarães

Proença

51 Professor da Escola Nacional de Saúde Pública em 1986. Graduado em Administração de Empresas; É

de nacionalidade Argentina e vive no Brasil desde 1976; Foi dele o desenvolvimento e a execução do

primeiro curso de planejamento estratégico em saúde no país, ministrado no Instituto de Medicinal Social

da UFRJ. 52 Economista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Professor da Escola Nacional de Saúde

Pública da FIOCRUZ. 53 Sociólogo e Professor Assistente do Instituto de Economia da Universidade de Campinas. 54 Médico; Representante do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS) em 1986

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Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA) Vítor Gomes Pinto

Entre os expositores deste painel, há uma preponderância de uma perspectiva

mais programática e a discussão estava em torno de propostas e novas estratégias de

financiamento. Dentre as principais propostas estavam: a criação do fundo nacional de

saúde e fundos estaduais de saúde; a captação de recursos adicionais para investimentos

com agências como BNDES/FINSOCIAL, BM e CEF/FAS; a importância da gestão

colegiada, interinstitucional do sistema de saúde; e a necessidade de desatrelar o

financiamento do sistema previdenciário a fim de garantir a universalidade dos serviços

de saúde. Neste painel a reformulação do sistema também é defendida através da

unificação do SNS e da reorganização das atribuições do setor público e privado, onde o

primeiro deveria ser predominante e o segundo subordinado ao controle do Estado.

Além dos trabalhos apresentados no painel III e dos grupos de trabalho, foi

realizada no quarto dia da Conferência a mesa-redonda intitulada “Constituinte e

Saúde”; cujo principal objetivo era definir quais temas seriam levados à Assembleia

Nacional Constituinte para serem inseridos na Constituição. Participaram desta mesa-

redonda:

Quadro 7- Participante da Mesa-redonda: “Constituinte e Saúde”

Nome Função

Roberto Figueira Santos

Ministro do MS

João Pimenta da Veiga

Deputado Federal

Carlos Correa de Menezes

Sant´anna

Ex-Ministro do MS e na época Deputado Federal

Waldir Pires Ex-Ministro da MPAS

Cristóvam Buarque Reitor da Universidade de Brasília (UnB);

Secretário- Geral da Conferência Nacional dos

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Luciano Mendes de Almeida Bispos do Brasil (CNBB);

Guaracy da Silva Freitas

Representante do Conselho da Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB);

Wilson Fadul

Ex-Ministro da saúde em 1963, no debate da III

CNS.

5º dia - (21 de março de 1986)

No quinto e último dia foi realizada a consolidação dos três temas centrais:

Direito à saúde, Reformulação do Sistema e Financiamento do setor saúde em uma

mesa com participantes: Arlindo Fábio Gomes de Souza55 (presidente da mesa),

Francisco Eduardo Campos 56(assessor), Roberto Luis Brant Campos57 (assessor), além

de delegados e participantes. Nesta mesa foram debatidos os relatos de experiências,

trabalhos e comunicações relacionados com os três temas centrais, a fim de consolidar

os principais pontos consensuados para a construção do Relatório Final.

Embora o Relatório Final tenha compilado o consenso resultante de cada tema

discutido, foi possível identificar alguns temas que mais geraram discordância e

conflitos no debate:

1) O primeiro deles referia-se à necessidade de reformulação do conceito de

saúde para uma concepção ampliada redefinindo as noções de promoção,

proteção e recuperação da saúde. Portanto, mais do que uma reorganização

administrativa e financeira, era necessária uma reestruturação mais profunda,

que exigisse uma reestruturação de ações políticas que viabilizassem uma

Reforma Sanitária.

2) O segundo tema foi a natureza do SNS: Se estatizado ou não, e se de forma

imediata ou gradual. A proposta de estatização imediata não foi aceita, pois

na assembleia final houve um consenso sobre a necessidade de primeiro

fortalecer e expandir o setor público, já que este ainda era muito dependente

dos serviços do setor privado. Além disso, decidiu-se que a participação do

55 Sociólogo; Sanitarista; Especialista em Administração e Planejamento em Saúde (Ensp/ Fiocruz);

Coordenador da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (1986-1987). 56 Médico; Coordenador do Internato Rural da Residência em Medicina Social e do Nescon/UFMG

(1978-1982); Secretário de Recursos Humanos do Ministério da Saúde (1985), coorganizador da 8ª

Conferência Nacional de Saúde; 57 Médico Sanitarista;

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setor privado deveria estar sob o caráter de serviço público “concedido” e o

contrato regido sob as normas do Direito Público;

3) O terceiro tema foi o processo de unificação do INAMPS ao MS, se por

“baixo” ou pelo “alto”. No Relatório Final decidiu-se que a Previdência

Social deveria se encarregar das ações próprias de "seguro social" (pensões,

aposentadorias e demais benefícios) e a saúde deveria ser entregue, em nível

federal, a um único órgão com novas características. O setor saúde deveria

ser financiado por receitas oriundas de impostos gerais e incidentes sobre

produtos e atividades nocivas à saúde, mas enquanto esse orçamento não

existisse, a Previdência Social deveria destinar os recursos para o novo órgão

e ir retraindo-se na medida do crescimento das novas fontes; No Relatório

Final foi ainda decidido que a transferência do INAMPS ao MS seria

imediata;

4) Embora no tema financiamento houvesse um grande consenso sobre os

princípios que deveriam orientar a política de financiamento setorial, o

relatório final foi apenas indicativo e não conclusivo ao abordar esse tema, o

que sugeria uma necessidade de um maior aprofundamento no tema em um

momento posterior (CORDEIRO, 1991).

Estes conflitos serão analisados mais detalhadamente no capítulo seguinte, pois

como será demonstrado, estes temas atravessam os sentidos de universalidade presentes

no debate da VIII CNS.

Logo em seguida, foram realizadas a apresentação, discussão e aprovação do

Relatório Final e moções58,59. O documento levado à plenária final para a aprovação foi,

portanto o resultado dias de discussão, nos 135 grupos de trabalho, sendo 38 de

delegados e 97 de participantes, além das conferências proferidas e dos debates

(ESCOREL & BLOCH, 2005; BRASIL, 1986). Como consta no Relatório Final da VIII

CNS, a comissão relatora cumpriu o regulamento de forma rigorosa, incorporando todas

as modificações aprovadas pela assembleia, de delegados e sinalizando apenas as

principais contradições encontradas no debate (BRASIL, 1986).

O relatório final da VIII CNS traduziu, portanto, as diretrizes predominantes na

quase totalidade dos grupos de trabalho, destacando-se aí os discursos-chaves do

58 Nos anais da Conferência foram incluídos sete trabalhos acerca de temáticas específicas que foram

utilizados para contribuir ao debate da VIII CNS. Ver em ANEXO III. 59 Nos grupos de trabalho também foram discutidos temas específicos com o objetivo de aprofundar

aspectos técnicos e científicos relacionados com o temário central. Ver ANEXO IV.

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Movimento da Reforma Sanitária já que o objetivo final deste Relatório era reunir as

principais propostas a serem levadas à Assembleia Constituinte. Em síntese, os

principais desdobramentos foram (BRASIL, 1986; BRASIL, 2006):

A saúde deveria ser compreendida como Direito, ou seja, em seu sentido

mais abrangente a saúde seria a resultante das condições de alimentação,

habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,

emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de

saúde. O Relatório Final explicitava que o direito à saúde significa a

garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de acesso universal

e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação de

saúde, em todos os seus níveis, a todos os habitantes do território

nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua

individualidade. Para isso era necessário o Estado assumir explicitamente

uma política de saúde integrada às demais políticas econômicas e sociais,

assegurando os meios que permitam efetivá-las. Entre outras condições,

isso deveria ser garantido mediante o controle do processo de

formulação, gestão e avaliação das políticas sociais e econômicas pela

população.

A reformulação do Sistema Nacional de Saúde (SNS) seria resultante da

criação de um sistema único de saúde e a transferência imediata do

INAMPS para o MS, com a separação progressiva dos recursos para

financiamento da previdência, representando a construção de um novo

arcabouço institucional que separasse totalmente saúde e previdência;

A criação de um comando único no nível federal que deveria ser também

reproduzida nos níveis estaduais e municipais, através da reformulação

imediata das AIS, de forma que possibilitasse o amplo e eficaz controle

da sociedade organizada em suas instâncias de coordenação (CIS, CRIS,

e CIMS)60;

A afirmação do princípio da participação das entidades representativas na

formulação da política e no planejamento, gestão, execução e avaliação

60 CIS - Comissão Interinstitucional de Saúde; CRIS - Comissão Regional Interinstitucional de Saúde;

CIMS - Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde.

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das ações de saúde através da constituição de um novo Conselho

Nacional de Saúde composto por representantes de: ministérios da área

social; governos estaduais e municipais; entidades civis de caráter

nacional, a exemplo de partidos políticos, centrais sindicais e

movimentos populares. A esse conselho seriam conferidas atribuições de

orientação do desenvolvimento e de avaliação do Sistema Único de

Saúde, incluindo a definição de políticas, orçamento e ações;

A formação de conselhos de saúde nos níveis municipal, regional e

estadual, com composição de representantes eleitos pela comunidade

(usuários e prestadores de serviços) e com atuação que abrangesse o

planejamento, a execução e a fiscalização dos programas de saúde.

Houve ainda a criação da Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CRNS)

como uma estratégia de inclusão dos princípios da Reforma Sanitária proposta na

Conferência na nova Constituição Brasileira. A CRNS, de natureza “consultiva”, tinha

como atribuições formular sugestões para o reordenamento institucional e jurídico do

sistema de saúde. Composta de forma paritária (12 representantes governamentais e 12

representantes da sociedade civil – nestes se incluíam centrais sindicais, federações

profissionais, confederações empresariais, entidades de prestadores privados), a CNRS

funcionou de agosto de 1986 a maio de 1987 (BRASIL, 2006). Nesse espaço de tempo,

esta Comissão buscou o aprofundamento do Relatório Final da 8ª CNS, à sistematização

de propostas e à articulação nacional do movimento sanitário. Seu objetivo principal era

formular um texto sistematizado para o setor saúde que pudesse subsidiar as discussões

da Assembleia Nacional Constituinte (FARIA, 1997).

Segundo Arlindo Fabio Gomez de Sousa (apud ESCOREL & BLOCH, 2005),

“A Comissão [Nacional da Reforma Sanitária] foi uma

consequência da Oitava [Conferencia Nacional de Saúde]. Ela

foi criada para dar continuidade e concretude às deliberações da

conferência. Buscou-se criar um fórum que colocasse em ação o

que fosse necessário para implementar as decisões da Oitava.

Mas o ensinamento que pode tirar dela é que o processo político

é mais complexo, mais demorado, exige maior negociação,

pactuação, maior identificação dos atores e compromissos dos

atores envolvidos no processo.” (p.97).

Nesse sentido a VIII CNS e seus desdobramentos, tais como o Relatório Final e

a CNRS, constituíram-se como pilares fundamentais para que as propostas da Reforma

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Sanitária fossem incorporadas na elaboração do capítulo da Saúde na Constituição

Federal de 1988 e, posteriormente, na criação do SUS.

No entanto, logo após a VIII CNS e diante de um contexto político voltado para

um fortalecimento de bases políticas mais conservadoras devido ao fracasso dos planos

de estabilização durante o governo Sarney, algumas propostas defendidas na

Conferência e na CNRS acabam se modificando, como a unificação do INAMPS ao

MS. Desta vez, as ameaças de substituição de líderes e Ministros da reforma

contribuíram como argumentos de não transferência do INAMPS ao MS o que gerou

uma preocupação com o retrocesso no encaminhamento da reforma no setor saúde e

previdenciário (FARIA, 1997).

Segundo depoimento de José Gomes Temporão (BRASIL, 2006) é nesse

contexto que surge a ideia do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS)

como uma estratégia do grupo dos reformistas vinculados à previdência para garantir

uma unificação gradual do MS e INAMPS, através do aprofundamento das experiências

de descentralização ocorridas com as AIS. Em depoimento Hésio Cordeiro relata como

surgiu a ideia do SUDS:

“(...) nós sugerimos ao Raphael [de Almeida Magalhães] que ele

iniciasse um processo de unificação a partir dos estados, e foi aí

que surgiu a idéia do SUDS como uma estratégia ponte, uma

estratégia transitória para a chegada ao Sistema Único de Saúde,

e o Raphael topou” (BRASIL, 2006, p.79).

Logo, apesar da força política que teve a VIII CNS, o que se conseguiu de

imediato foi a proposta de implementação do SUDS como uma “estratégia- ponte” para

o SUS através da descentralização das ações, realizando uma unificação do INAMPS ao

MS pelas bases, ou seja, pelos estados e munícipios. Este sistema, além de trazer um

avanço na política de descentralização da saúde, sobretudo na descentralização do

orçamento, deu prosseguimento às estratégias de hierarquização, regionalização e

universalização da rede de saúde. Contudo, a sua estrutura não rompe com aquela

anterior, permanecendo assim o poder institucional e político do INAMPS e a estrutura

no MPAS (FARIA, 1997).

Concomitante a implementação do SUDS, ocorria a discussão da Assembleia

Constituinte em 1987-1988, onde a proposta do SUS consegue aprovação. Segundo

Faria (1997), o debate constituinte foi igualmente acirrado e revelando certas

resistências por parte dos prestadores de serviço privado do setor saúde e da medicina

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autônoma. Estas disputas não barraram a aprovação do SUS e seus princípios, mas

dificultaram a definição de políticas importantes para o processo de implementação.

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CAPÍTULO 4 - OS SENTIDOS DE UNIVERSALIDADE NA VIII CNS

Agora que já foram apresentados o contexto político-institucional que antecedeu

a VIII CNS e as condições de possibilidades de emergência dos diferentes discursos

acerca da temática da universalidade, assim como a estrutura e organização da

Conferência, este capítulo mergulhará mais detalhadamente nos discursos e falas dos

debates ocorridos nesta Conferência que possibilitem a compreensão do objeto desse

estudo: identificar os principais sentidos do princípio de universalidade no debate da

VIII CNS.

Como já citado anteriormente, durante o percurso metodológico foi necessário

buscar nos materiais indícios que vinham ao encontro da questão da pesquisa. Portanto,

para guiar um primeiro contato com material e iniciar a análise identificou-se palavras-

chaves prévias que deveriam ser utilizados como eixos para nortear a leitura. Foram

elas: Cobertura Universal, Sistemas de Saúde Universais, Acesso Universal e Acesso

aos serviços de saúde.

Contudo, no decorrer das primeiras leituras concluiu-se que estas palavras-

chaves não seriam suficientes para abarcar a questão da universalidade no debate da

VIII CNS e, assim, apreender os sentidos existentes. Isso porque, quando apareciam

neste debate, as palavras-chaves escolhidas para a análise eram abordadas de forma

muito breve e sem grande aprofundamento ou não tinham relação com a questão do

debate do princípio da universalidade.

Logo, durante o processo de análise e de uma segunda leitura mais minuciosa do

material, compreendeu-se que outros eixos norteadores seriam mais úteis à análise, pois

a discussão acerca da universalidade estava atrelada a conceitos específicos daquele

contexto histórico-político e não aos mesmos conceitos que emergem no debate atual,

como no início deste trabalho se cogitou. Dessa forma optou-se, trabalhar com eixos

que, mesmo não definindo o conceito de universalidade - objeto do estudo -, apareciam

atravessando o tema de maneira significativa. Ou seja, para compreender os sentidos de

universalidade existentes no debate da VIII CNS é preciso compreender os eixos que o

atravessam. Portanto, os eixos encontrados para guiar a análise foram os seguintes:

Direito à Saúde; Acesso aos serviços de Saúde; Responsabilidade do Estado;

Unificação do SNS; Estatização do SNS; Setor Privado como Concessão. Abaixo

segue esquema construído com o intuito de auxiliar o leitor na compreensão dos eixos

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encontrados para guiar a análise e como estes atravessam a temática da Universalidade

no debate da VIII CNS:

Figura 1- Eixos que Atravessam a Temática da Universalidade no Debate da VIII CNS

4.1- Os Sentidos de Universalidade na VIII CNS

Uma primeira questão que se pôde inferir no processo analítico deste objeto nos

debates da VIII CNS é que a busca por uma definição do sentido de universalidade

não era a questão central ou preponderante no momento. O termo universalidade foi

muito utilizado nos discursos de diversos atores, porém de maneira “rasa”- se assim

pode-se dizer, sem que houvesse qualquer indício da necessidade de aprofundamento do

sentido desse conceito. Em contraponto, em relação a outros “conceitos-chaves” do

debate, tais como direito à saúde e responsabilidade do Estado, o que se observou foi

uma explícita preocupação em defini-los, de modo que ao final do debate fosse possível

chegar a algum tipo de consenso entre os participantes.

Portanto, a percepção desta primeira questão leva-nos a inferir e confirmar a

hipótese levantada no início da pesquisa de que a discussão e preocupação com o

sentido atribuído à universalidade faz parte de um debate recente no Brasil e que

naquele dado contexto político-institucional (década de 1980) não havia uma

preocupação em melhor definir o sentido de universalidade, tal como atualmente.

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Uma segunda questão concluída durante o processo analítico dos sentidos de

universalidade é que, quando utilizada nos discursos e falas, a universalidade era

preponderantemente relacionada à ampliação do acesso. Embora não tenha sido

identificado um consenso nas falas dos atores sobre o que deveria ser ampliado e quais

os serviços deveriam ser ofertados, foi possível destacar dois temas principais que

foram identificados como eixos que atravessavam a temática da universalidade e, por

essa razão, a análise dos mesmos se mostrou importante para a compreensão do objeto

de estudo. São eles: 1) Ampliação do acesso ao direito à saúde; 2) Ampliação do

acesso aos serviços de saúde;

O primeiro deles referia-se à ampliação do acesso ao direito à saúde. Ou seja,

a ampliação de serviços que garantissem a saúde entendida através de uma concepção

ampliada de saúde, considerando a saúde como direito social e atrelado à cidadania.

Seriam, portanto, aqueles serviços que possuem a capacidade de intervir nas condições

de vida e de trabalho, determinantes da saúde de uma dada população e na estrutura

jurídico-política perpetuadora de desigualdades na distribuição de bens e serviços

(PAIM, 1987). Nesse sentido, a manutenção do estado de saúde da população estaria

vinculada a ações articuladas de um conjunto de serviços e políticas relativas ao

emprego, renda, previdência, educação, alimentação, ambiente, lazer, entre outros.

Segundo Jairnilson Paim em trabalho intitulado “Direito à Saúde, Cidadania e Estado”

apresentado no painel I da Conferência:

“A noção de direito à saúde vem sendo difundida em muitos

países nas últimas décadas enquanto componente da doutrina

dos Direitos Humanos. Considera que todo indivíduo,

independentemente da cor, situação sócio-econômica, religião e

credo político, deve ter a sua saúde preservada. Nesse sentido

caberia um esforço social visando a mobilização dos recursos

necessários para a promoção, proteção, recuperação e a

reabilitação da saúde (PAIM, 1987, p.45).

Como citado acima, o conceito de saúde ampliado encontra-se estritamente

ligado à concepção de direito à saúde e esteve fortemente presente nos trabalhos

apresentados pelos expositores e nas arenas de debate da VIII CNS. Sérgio Arouca em

seu discurso como Presidente da Conferência trouxe à tona a concepção de saúde que

esperava que fosse debatido e pensado: uma concepção ampliada que não reduzisse a

saúde como ausência de doença e que fosse ao encontro da concepção defendida pela

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Organização Mundial da Saúde de que saúde é o completo bem-estar físico, social e

mental. E acrescenta:

“(...) Não é simplesmente não estar doente, é mais: é um bem-

estar social, é o direito do trabalho, a um salário condigno; é o

direito a ter água, à vestimenta, à educação, e, até a informações

sobre como se pode dominar este mundo e transformá-lo. É ter

direito a um meio ambiente que não seja agressivo, mas, que,

pelo contrário, permita a existência de uma vida digna e decente;

a um sistema político que respeite a livre opinião, a livre

possibilidade de organização e de autodeterminação de um

povo”(AROUCA, 1987, p.36).

Logo, o conceito ampliado de saúde está inserido dentro da temática direito à

saúde, pois não há como garantir este sem que sejam ofertados serviços que alterem as

condições de vida de uma dada população através de ações intersetoriais e de políticas

sociais e econômicas. Além disso, não se pode esquecer que o contexto político ao qual

está inserida a VIII CNS é o da redemocratização política no país e, nesse sentido,

direito à saúde é garantido também através da democracia. Sérgio Arouca explica:

“Isto é, passou-se a perceber que não era possível melhorar o

nível de vida da nossa população enquanto persistisse, neste

País, um modelo econômico concentrador de renda e um modelo

político autoritário. Para romper o ciclo econômico que levava

nossa população a viver cada vez mais em piores condições, um

passo preliminar era a conquista da democracia. (...) Portanto, o

lema que surgiu dentro do sistema de saúde durante os últimos

anos – “democracia é saúde”- significava que para se conseguir

começar, timidamente, a melhorar as condições de saúde da

população brasileira, era fundamental a conquista de um projeto

de redemocratização deste País” (AROUCA, 1987, p.37).

Na análise deste estudo, identificou-se que a defesa pela ampliação do direito à

saúde é o grande mote do debate para a maioria dos atores da VIII CNS, sobretudo para

os expositores do painel I - cujo título era “Saúde como Direito Inerente à Cidadania e

à Personalidade”-, onde a discussão acerca da nova configuração do SNS é mais

político-ideológica do que técnica e organizacional, como já apontado anteriormente.

Ao defender a universalidade como ampliação do acesso ao direito à saúde e

compreender a saúde como um conceito ampliado, consequentemente, fazia-se uma

crítica ao modelo de saúde previdenciário. Segundo Sonia Fleury (1987) em trabalho61

apresentado também no painel I, o modelo previdenciário havia estabelecido uma pré-

61 Título do trabalho: “Cidadania, Direitos Sociais e Estado”.

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cidadania, já que o direito à saúde era garantido apenas aos trabalhadores formais.

Dessa forma, a política social do Estado que deveria garantir o direito à saúde de forma

universal, equânime, redistributiva e descentralizada conformou-se de modo invertido e

ao fornecer serviços apenas aos segurados aumentou a desigualdade, a regressividade e

a centralização.

Ainda conforme o discurso desta autora, uma proposta de reverter esse modelo

de atenção à saúde e, assim, garantir uma ampliação do acesso ao direito à saúde

naquele contexto seria através da

“(...) democratização do próprio Estado, para que um controle

social efetivo seja exercido, de maneira transparente,

desconcentrada e descentralizada. Só assim será possível

redefinir a política nacional de saúde de maneira efetiva,

atribuindo ao Estado democrático a competência não só de

normatização e financiamento, mas de real controle e dever e

assegurar a universalização do direito à saúde”(FLEURY, 1987,

p.110).

Já durante o debate do painel I realizado com diferentes representantes da

sociedade civil é interessante notar que o direito à saúde aparece sob diferentes nuances

e como cada ator enfatiza diferentes pontos relevantes acerca da mesma temática. Por

exemplo: Néio Lúcio Fraga Pereira – representante da Confederação Nacional das

Associações de Moradores (CONAM) – em participação no debate, descreve o direito à

saúde como algo para além da reorganização dos serviços de saúde que

(...) “passa pela luta da reforma agrária, pela reforma urbana,

pela suspensão do pagamento da dívida externa e rompimento

com o FMI. De onde vai vir, companheiros, o financiamento da

saúde, se hoje é uma sangria desatada do fruto do trabalhador

brasileiro, para enriquecer as multinacionais e o imperialismo?

Então, a compreensão que temos é que a luta pela saúde tem que

ser incorporada junto com todas as lutas que o movimento social

brasileiro está levando hoje.”(CONFERÊNCIA NACIONAL

DE SAÚDE, 1987, p.116).

Para a representante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM),

Carmem Barroso, o direito à saúde, além de estar relacionado ao conceito ampliado de

saúde, deve também significar o direito de participar das políticas públicas de saúde e

respeitar as necessidades específicas de grupos da população, tais como o das mulheres.

Da mesma forma, os debatedores Arlindo Chinaglia Junior representante da

Central Única de Trabalhadores (CUT) e Francisco Antônio de Castro Lacaz

representante do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos

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Ambientes de Trabalho (DIESAT) irão discutir o direito à saúde sob o viés do direito à

saúde do trabalhador. Segue trecho do discurso de Francisco Antônio de Castro

(DIESAT) acerca da posição dos trabalhadores quanto ao direito à saúde:

“Entendemos que o direito à cidadania, o direito à saúde, é

conquistado, não é doado, não é uma dádiva do Estado. No

Brasil, hoje, nós temos um contingente muito grande de

subcidadãos, de subempregados, desempregados, trabalhadores

sem registro em carteira. (...) Em relação à questão da saúde no

trabalho, ela envolve aspectos não só de acesso aos serviços de

saúde, mas de uma política social e de direitos e conquistas

civis. Ela envolve, por exemplo, a estabilidade no emprego; o

direito de greve; as condições de trabalho sob o controle dos

trabalhadores; a informação e a conscientização dos riscos no

trabalho; a reabilitação; os benefícios previdenciários e salários

dignos” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987, p.

122).

O sentido de universalidade como ampliação do acesso ao direito à saúde

também se mostrava mais presente nos discursos dos expositores do painel III referente

ao Financiamento do Setor Saúde. Destaca-se o trabalho apresentado por André Cesar

Médici e Pedro Luiz Barros Silva, intitulado “Alternativas Do Financiamento Da

Atenção À Saúde. Parte I: Financiamento à saúde: direito securitário ou atributo de

cidadania”, que disserta acerca de algumas experiências de financiamento de sistemas

de saúde nos países capitalistas centrais da Europa, destacando como exemplo o caso da

Inglaterra. Neste trabalho, os expositores defendem a ampliação do acesso ao direito à

saúde como uma proposta ideal para o novo SNS brasileiro e também fazem uma crítica

ao modelo previdenciário, utilizando argumentos semelhantes aos expostos pelos

participantes do painel I, citado anteriormente.

O segundo eixo encontrado na análise referia-se à universalidade como a

ampliação do acesso aos serviços de saúde, atrelado à oferta de serviços médicos. Este

sentido aparece em alguns discursos da Conferência de maneira discreta, com pouca

força e, sobretudo, nos trabalhos apresentados pelos expositores do painel II -

“Reformulação do Sistema Nacional de Saúde”. Este painel contou com a participação

de atores62 cuja trajetória institucional no MS ou no INAMPS foi significativa, o que

justifica um não aprofundamento de um debate mais político-ideológico - como no

painel I - e um enfoque maior na discussão de propostas técnicas e organizacionais para

o novo SNS. Dentre os trabalhos apresentados, destaca-se a fala de Adib Jatene que

62 Adib Domingos Jatene; João Yunes; José Alberto Hermógenes de Souza; Hésio de Albuquerque

Cordeiro.

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diferente dos demais expositores da Conferência foca seu discurso na questão da

garantia da ampliação do acesso aos serviços médicos, sobretudo, dos serviços médico-

hospitalares. Segue trecho do trabalho intitulado “Reformulação do Sistema Nacional de

Saúde: algumas considerações”, apresentado no painel II da Conferência:

“É claro que o setor hospitalar está melhor aparelhado talvez

porque a preocupação com a doença é maior. Enquanto que para

manter a saúde e fazer prevenção da doença é necessário um

trabalho de conscientização e criação de uma mentalidade

preventiva (...) O que realmente precisamos é melhorar e

ampliar o atendimento hospitalar e, simultaneamente,

empreender uma vigorosa ação no campo da atenção primária,

esta, seguramente, responsabilidade governamental. (...) O

segundo aspecto sobre o qual gostaria de fazer uma

consideração diz respeito aos recursos para financiar todo o

sistema de saúde. Não pretendo nesta minha intervenção incluir

os aspectos do problema relacionado com as condições

sanitárias, serviço de água e esgoto, alimentação, habitação,

higiene do trabalho, salário, etc., mas restringir-me aos recursos

para a assistência médico-hospitalar. Uma boa parte da nossa

rede hospitalar é anterior à universalização do atendimento feita

pelo INAMPS.” (JATENE, 1987, p.130).

Embora o autor não se oponha explicitamente à ideia de direito à saúde - que

como já explicitado é o grande mote da discussão da VIII CNS -, há um silenciamento

em seu discurso acerca de uma concepção de saúde ampliada e uma ênfase na utilização

do termo universalidade como ampliação do acesso aos serviços médicos.

Com relação ao discurso apresentado acima, durante debate do painel II foi

possível identificar o conflito existente entre aqueles atores que enfatizavam a questão

da universalização como ampliação do acesso aos serviços de saúde e os que

enfatizavam a ampliação do acesso ao direito à saúde. Sebastião Loureiro, representante

da ABRASCO e do CEBES, inicia seu discurso fazendo a seguinte crítica à fala de

Adib Jatene:

“Em primeiro lugar, o Dr. Adib Jatene coloca a questão da

saúde, ao que me pareceu, muito limitada à questão da

assistência médica. O nosso entendimento é que saúde é uma

questão muito ampla, e, embora outros expositores tenham

apresentado aqui esta nova concepção ampliada de saúde, como

foi discutida na sessão anterior, na mesa-redonda de ontem,

gostaria de frisar que a CEBES e a ABRASCO têm um conceito

de saúde que não se restringe à assistência médica, à saúde. Este

conceito de saúde envolve o cuidado com o ambiente, envolve o

controle de agrotóxicos, envolve uma série de outras atividades

que têm relação direta com a saúde; envolve, também a relação

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com outros órgãos, com outras políticas sociais que têm

implicação com a questão da saúde. Este é um primeiro ponto

que eu gostaria de deixar bem claro” (CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE, 1987, p.159).

Como resposta à crítica, Jatene justifica que não houve em seu discurso uma

preocupação em aprofundar a temática da saúde como conceito ampliado, porque

acreditou que outros debatedores participantes assim o fariam.

Da mesma forma, foi possível perceber em outros discursos a necessidade de

diferenciação entre o acesso de serviços de saúde e o acesso ao direito à saúde. O que

demonstra a preocupação de certos expositores em demarcar uma posição contra uma

visão reducionista de saúde, como por exemplo, no trecho abaixo da apresentação de

Jairnilson Paim no primeiro painel:

“Com base nessas considerações é possível resgatar a ideia do

direito à saúde como noção básica para a formulação de

políticas. Esta se justifica na medida em que não confunda o

direito à saúde com direito aos serviços médicos ou mesmo com

o direito à assistência médica.(...) Esta ambiguidade também se

faz presente na expressão “necessidade de saúde” quando se

procede um deslocamento da dimensão do estado de saúde para

a questão dos serviços. Tem o sentido de ocultar as condições

necessárias para a obtenção da saúde, permitindo “considerar-se

a assistência médica como o principal fator determinante do

nível de saúde.” (PAIM, 1987,p.86).

O autor prossegue ainda ressaltando que os serviços de saúde possuem uma

responsabilidade intransferível para com a saúde da população, no entanto, o perfil de

saúde de uma coletividade depende de condições vinculadas à própria estrutura da

sociedade, associadas a um conjunto de políticas sociais amplas. Portanto, a ampliação

do direito à saúde, não corresponderia a uma noção básica e exclusiva do processo

setorial de formulação de políticas de saúde, mas a um elo integrador que permearia as

políticas sociais do Estado e balizaria as políticas econômicas.

Logo, é possível apreender a existência de uma pequena tensão com relação a

que tipo de ampliação de acesso deve ser o ideal ao novo SNS a ser proposto. Contudo,

tornou-se claro na análise que a ideia de ampliação do acesso ao direito à saúde era o

discurso predominante, entoado com mais força na arena de debate, sendo assim o

grande mote de todo o temário da VIII CNS.

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Um terceiro eixo que emerge atravessando os sentidos de universalidade

relaciona-se à seguinte questão: a quem é atribuída a responsabilidade em garantir a

ampliação do acesso à saúde? Na análise foi possível inferir como unanimidade nos

discursos da VIII CNS a defesa da ideia de que a garantia do acesso à saúde é um

dever do Estado, ou seja, a responsabilidade deve ser do Estado. Um exemplo disto

pôde ser observado na fala de Carlyle Macedo, representante da OPAS, em um dos

primeiros discursos de abertura da Conferência. Para Carlyle Macedo a saúde deveria

ser compreendida como um direito e, portanto, um valor, um bem público, que não

resulta apenas da existência de serviços de saúde, mas do acesso a um ambiente e a

condições de vida dignas. Por essa razão, além de uma responsabilidade individual, essa

concepção de saúde implica na responsabilização do Estado na garantia do acesso à

saúde. Segue abaixo um trecho de seu discurso:

“Esse direito [à saúde], esse bem público e esse valor têm que

ser assegurados na medida em que todos esses três componentes

são atendidos da mesma forma. É aí que a saúde deixa de ser

responsabilidade de só uma parte da sociedade para ser

reponsabilidade de todos, os indivíduos, da sociedade e do

Estado. E essa responsabilidade se expressa numa obrigação do

poder público, e ao mesmo tempo no dever de cada cidadão”

(MACEDO, 1987, p. 25).

Além de Carlyle Macedo, diversos atores expuseram opinião semelhante como,

por exemplo, Jairnilson Paim e Hélio Dias em trabalho apresentado no painel I. Por

partirem do mesmo pressuposto de que saúde é um direito e que deve ser compreendida

como um conceito ampliado, ambos defenderam a ideia de que o Estado deveria

assumir integralmente a responsabilidade pelo setor saúde. Complementando essa

posição em debate do painel II da Conferência, Antonio Ivo de Carvalho- representante

da Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (FAMERJ) -,

defende que além da garantia de saúde para a população, o Estado deve ser responsável

também pela política de medicamentos e pela política de tecnologia em saúde

(CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987).

No entanto, foi possível identificar uma exceção no discurso de Adib Jatene

(JATENE, 1987) quanto à responsabilidade do Estado na garantia da saúde e à

distribuição de recursos. Para este ator os recursos deveriam ser equacionados em

diferentes níveis, a saber:

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1) Recursos destinados à atenção primária, sob a responsabilidade do Estado,

cujos recursos seriam provenientes de impostos e taxas.

2) Recursos do INAMPS, que por terem caráter de seguro, deveriam cobrir a

população cujo nível de renda não lhe permitisse auto-suficiência em relação

à assistência médico-hospitalar.

3) A utilização de seguros saúde (públicos ou privados) por aqueles que

tivessem renda que lhes permitisse esta cobertura, assim como, a utilização

de recursos particulares para o custeio individual à assistência.

Essas propostas, embora abordem a temática dos recursos e financiamento para

o novo SNS – que será discutido mais a frente –, indicam uma tensão no que se refere à

reponsabilidade do Estado. Isso porque, a fala de Jatene63 revela um posicionamento

divergente de grande parte dos discursos da VIII CNS ao admitir que o Estado possa ser

único responsável pela ampliação da atenção primária à população, mas não dos demais

níveis de complexidade em saúde, tal como os serviços médicos-hospitalares. Esta

colocação nos remete à discussão de atenção primária abordada no capítulo 1, onde foi

possível identificar a partir da década de 1970 uma tensão discursiva entre atores do

setor saúde, que defendiam uma ação mais focalizada do Estado – ofertando serviços de

saúde de atenção primária, enquanto outros defendiam uma extensão de cobertura de

caráter mais universal, onde serviços de outros níveis de complexidade também eram

ofertados.

Além disso, a sugestão de utilização dos recursos do INAMPS para a cobertura

da população cuja renda não fosse auto-suficiente para o custeio com os serviços de

saúde e utilização de seguros saúde, vai de encontro à defesa de unificação do SNS e à

distribuição equânime de oferta de serviços de saúde.

63 Posteriormente, esta forma de organização proposta por Jatene retorna ao debate as saúde no governo

de Fernando Henrique Cardoso, com a interação com o MARE (Bresser Pereira). No documento

‘Reforma Administrativa da Saúde’ do MARE, discutido no período em que Jatene atuava como Ministro

da Saúde (1995-1996), é possível reconhecer semelhanças entre as propostas. Isso porque a Reforma

administrativa do MARE trazia objetivava garantir um melhor atendimento ao cidadão através de um

controle mais adequado do sistema que possibilitasse minimizar custos e melhorar a qualidade dos

serviços pagos pelo Estado. Dentre as suas principais propostas estava a separação operacional entre o

Subsistema de Entrada e Controle; e o Subsistema de Referência Ambulatorial e Hospitalar, o que

permitiria o surgimento de um mecanismo de competição administrada. Além disso, propunha uma

reforma administrativa na área da compra ou demanda de serviços hospitalares e ambulatoriais, com o

intuito explícito de não abranger todo o SUS, mas sim a assistência ambulatorial e hospitalar – que eram

entendidas aqui como a parte mais fundamental do SUS, revelando uma visão pautada no modelo

hospitalocêntrico e médico-centrado que ia de encontro com as propostas defendidas pela Reforma

Sanitária. Ver mais em: BRESSER PEREIRA, L.C. Reforma Administrativa do Sistema de Saúde.

Cadernos MARE da Reforma do Estado 13: 7–37. Brasília, 1997.

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De maneira diferente, Adolpho Chorny em seu trabalho apresentado no painel

III da Conferência enfatiza justamente a importância da equidade no financiamento de

recursos. Em sua fala, além de defender o dever do Estado na garantia da saúde, o ator

destaca a necessidade de uma distribuição equânime dos recursos a fim de superar as

desigualdades na oferta de serviços de saúde, característicos do modelo previdenciário.

Em sua fala Chorny aponta:

“Em todas essas colocações que vêm sendo feitas, quando se

fala que saúde é direito para todos, universalização, equidade,

fala-se do conjunto da população brasileira, como se fossem

todos iguais. Embutida neste tratamento de todos como iguais

existe uma profunda injustiça. Não são todos iguais. Há quem

tem e quem não tem, e o Estado deve ser desigual no tratamento

dos desiguais. Para tanto deveremos buscar formas de

financiamento que considerem diferencialmente a população, de

modo que quem menos tem, menos contribua” (CHORNY,1987,

p. 170).

Eugênio Vilaça em trabalho apresentado como contribuição ao debate nos

Grupos de Trabalho, intitulado “Reordenamento do Sistema Nacional de Saúde: Visão

Geral”, faz uma análise do sistema de saúde então vigente desde sua conformação até o

momento de crise da previdência e reitera a necessidade de responsabilizar o Estado

pela garantia de saúde da população. Logo, os serviços de saúde precisariam ser de

caráter público, o que não necessariamente significava estatizá-lo, mas sim compreender

o Estado como um gestor público. Segue o trecho com a ideia apresentada pelo autor:

“Mas o mote [direito à saúde] só terá significação se se

complementar com a afirmação de que saúde é um dever do

Estado, sem o que os ideais de universalização equidade ficam

destituídos de sentido. (...) Colocar a saúde como dever do

Estado não quer dizer estatizá-la, mas reconhecer o seu caráter

de serviço público e o papel do Estado como gestor público. O

que será, na prática, a aceitação do exercício pleno dos poderes

normativo, fiscalizador, regulador, extrativo e coercitivo do

Estado sobre o conjunto do Sistema Nacional de Saúde –

incluindo os setores filantrópico e privado - de modo a recolocá-

lo no exercício da substantibilidade de seus objetivos, a

melhoria das condições sanitárias da população” (VILAÇA,

1987, p. 276).

A identificação do eixo Responsabilidade do Estado abriu margem para a

identificação de outra questão na análise dos temas que atravessam os sentidos de

universalidade: Sendo o Estado responsável pela ampliação do acesso à saúde, como

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este deveria garanti-la? Qual seria a melhor maneira de garantir a ampliação desse

acesso? Os eixos a seguir, portanto, relacionam-se às propostas de reorganização do

novo SNS. São eles: Unificação do SNS, Estatização do SNS e Relação

Público/Privado (novas formas de relacionamento).

Dentre os eixos acima, a Unificação do SNS já foi identificado neste trabalho

como sendo um dos temas cruciais para a reformulação do SNS e que, ao mesmo

tempo, gerava tensionamentos entre os atores do setor saúde e da previdência durante o

período de crise no INAMPS que antecedeu a VIII CNS. Cabe ressaltar que neste trecho

do trabalho se focará na discussão acerca da Unificação do SNS dentro do debate da

VIII CNS, pois o panorama desse conflito já foi elucidado nos capítulos anteriores.

Como já citado, a proposta de unificação do INAMPS ao MS era uma proposta

unânime entre os participantes, no entanto, a forma como essa unificação seria

realizada, operacionalizada, era o principal fator de tensionamento entre os diferentes

atores presentes na VIII CNS. No debate da Conferência o que se pode perceber é que

essa disputa veio à tona nos discursos e nas propostas de organização do sistema por

cada ator, destacando-se como pontos-chave dessa discussão os trabalhos apresentados

no painel II da Conferência, onde a temática da reformulação do SNS era central. Nestes

trabalhos foi possível identificar as duas diferentes propostas de operacionalização da

unificação do SNS: 1) a defesa de uma unificação “por cima” através da

transferência do INAMPS ao MS; 2) a defesa de uma unificação “por baixo”

através do fortalecimento do processo de descentralização, passando o INAMPS ao

MS de maneira gradual.

Para aqueles atores favoráveis à unificação “por baixo” era preciso antes

fortalecer os estados e municípios, evitando assim a centralização das ações. Segundo

Francisco de Assis Machado64 em trabalho apresentado já no fim da Conferência, era

importante frisar a importância desse fortalecimento das “bases” para configuração de

um novo SNS conjuntamente à transferência ao nível federal:

“Quanto à condução do Sistema Nacional de Saúde, torna-se

necessário antes de formular uma opinião, explicitar o que deve

ser entendido como SNS. Nossa concepção do futuro Sistema

Nacional de Saúde é a adotada pela Reunião de Trabalho sobre

as Ações Integradas de Saúde, realizado em Curitiba, em agosto

de 1984, sob patrocínio do CEBES e da ABRASCO: a de um

64 Médico sanitarista;

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Sistema Unificado e Federado de Saúde. Isto é, a de um Sistema

em que as ações de saúde sejam unificadas e coordenadas por

um único órgão dentro de cada esfera de governo e cuja

condução se dê conjunta e solidariamente pelo município, estado

e pela União. Esta condução poderá ser feita através de

colegiados organizados em nível municipal, estadual e federal

sempre com a representação das três esferas de governo, o que

parece indispensável, desde que a intenção seja a de fortalecer

um modelo de organização político-administrativo orientado por

princípios federativos” (MACHADO, 1987, p.304).

Da mesma forma, Raphael de Almeida Magalhães - Ministro da MPAS -, aponta

em seu discurso a descentralização como caminho para a melhoria dos serviços e para

um relacionamento mais “fecundo e produtivo com a rede contratada” (MAGALHÃES,

1987, p.22). Segundo o então Ministro do MPAS, vinha se destacando perante as

propostas de cunho político e conceitual a estratégia de uma consolidação gradual dos

sistemas estaduais e municipais de saúde, através do fortalecimento AIS, que se

reformuladas corresponderiam ao processo de municipalização.

Nesse sentido, as AIS foram apresentadas por diferentes atores durante a VIII

CNS, sobretudo por aqueles que representavam o grupo de reformistas da previdência,

como estratégia-ponte para a condução desse fortalecimento das ações de saúde nos

municípios e estados e, consequentemente, da unificação do SNS. A fala de José

Alberto Hermógenes De Souza, em trabalho intitulado: “O Sistema Unificado de Saúde

como Instrumento de garantia de universalização e equidade”, corrobora com esta ideia

como forma de uma condução da unificação. Segue o trecho:

“No caminho para a construção desse novo sistema, entende-se

que cumpriu, e ainda cumprirá durante algum tempo, papel

fundamental, a proposta de Ações Integradas de Saúde. (....)

deve-se buscar o aperfeiçoamento dos mecanismos de

planejamento e programação, a partir dos níveis locais, da

coordenação da execução e do acompanhamento pelos

diferentes níveis envolvidos.” (SOUZA, 1987, p.144).

Da mesma forma, Hésio Cordeiro, presidente do INAMPS em 1986, em seu

trabalho apresentado no painel II intitulado: “A participação de todos na construção do

Sistema Unificado de Saúde” explicita a posição do grupo dos reformistas da

Previdência e a aposta na reformulação das AIS como estratégia de unificação do SNS:

“Creio que a construção de um sistema unificado e a construção

e a aplicação de uma reforma sanitária devem ter um forte

conteúdo de descentralização, de democratização e participação

de todos os segmentos da população. Deve ser altamente

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descentralizado, certamente com base nas experiências das

secretarias de saúde, na base das experiências das Ações

Integradas de Saúde, na reformulação e na renovação dessas

experiências” (CORDEIRO, 1987, p. 146).

Para Vilaça (1987), as AIS poderiam significar um estratégia de reformulação do

SNS e permitir a superação da forma de organização vigente naquele momento,

respeitando as identidades organizacionais, instituindo uma gestão pública sobre todas

as instituições de forma direta ou indireta, relacionando o setor público com todos os

seus recursos e com todas as suas atividades integradas. Para isso, no entanto, seria

necessário considerar três medidas:

1. Abandonar a compreensão das AIS como um programa de atenção médica,

onde a relação do INAMPS junto à outras instituições públicas fossem

baseadas em apenas relações conveniais de repasse de recursos.

2. Institucionalizar o planejamento estratégico como um processo social

complexo, que trata de influenciar a direcionalidade de um projeto, a partir

das perspectivas de um conjunto de forças sociais em conflito ou em aliança.

3. Estabelecer e preparar os lugares institucionais e os recursos humanos para

melhor desempenho das funções de condução estratégica das AIS.

4. Ressaltar que as AIS, como estratégia, são um movimento permanente de

inteligência política e que não teriam a sua terminalidade determinada no

momento de unificação administrativa do nível federal.

Por fim, Vilaça ainda destaca que as AIS seria considerada uma estratégia de

reformulação setorial enquanto existissem diferentes organizações conformando um

sistema plural, com algum nível de descoordenação (VILAÇA, 1987).

Indo de encontro a esta ideia em debate após as apresentações do painel II, José

Luiz Riani Costa65 aponta que as AIS naquele período configuravam-se apenas como

uma experiência de compra de assistência médica pelo setor público e não, de fato, um

programa onde ações integradas estivessem presentes. Sebastião Loureiro neste mesmo

debate afirma ainda que, embora as AIS fossem uma proposta estratégica, não

65 Médico; Doutor em Saúde Coletiva (Unicamp); Especialista em Políticas Públicas e Gestão

Governamental; Secretário de Segurança e Medicina do Trabalho/Ministério do Trabalho (1986-1988);

Secretário Municipal de Saúde de Rio Claro/SP (1997-1998); Professor Universitário; Representante do

Ministério do Trabalho na VIII CNS.

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cumpririam o papel de dar saúde para todos e nem a tornaria mais acessível a toda

população, sendo assim, uma proposta insuficiente para a condução da unificação do

SNS.

Portanto, para estes atores mais do que uma integração administrativa entre o

MS e INAMPS a unificação do SNS deveria representar a construção de um sistema

único e abrangente. Segundo Sebastião Loureiro, era preciso antes diferenciar o

significado de Sistema Unificado de Saúde e de Sistema Único de Saúde, pois sistema

unificado representaria uma integração administrativa e burocrática, enquanto que a

ideia de sistema único pressupunha a criação de um outro órgão que unificasse todos os

serviços de saúde que até aquele momento encontravam-se dispersos por toda a

burocracia estatal.

“O que nós queremos, como já foi dito, não é fazer uma

integração administrativa e burocrática, mas ter um outro

sistema de saúde que não se resuma, unicamente, à integração

do INAMPS com o Ministério da Saúde. Nós queremos um

sistema de saúde que integre, além desses órgãos, com ações no

setor saúde específicos, os hospitais universitários, os hospitais

das Forças Armadas, os serviços de saúde do trabalhador, o

saneamento e todos os órgãos que têm a ver com saúde (...)”

(CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987, p. 160).

Seguindo esta ideia e contrariando a proposta de utilização das AIS como

estratégia para a unificação do SNS, Carlos Sant´anna em participação do debate do

painel II da Conferência declara sua posição. Segundo ele, no período de criação das

AIS, o INAMPS havia se tornado um mero intermediador de repasses de recursos, numa

relação de compra e venda de assistência médica entre poder público e o setor privado,

que aos poucos foi se degenerando. Ainda no regime autoritário, as AIS surgiram

apenas como uma estratégia racionalizadora de um esquema “que era infernalmente

esquizofrênico, setorizado e louco”(p.163) como era o INAMPS. Portanto, para Carlos

Sant´anna, a proposta de transformar as AIS num plano de governo não era viável, pois

configuravam-se apenas como uma estratégia.

“(...) as AIS são uma estratégia temporária, elas representam um

mecanismo temporário de ação. São uma etapa, uma fase, mas

não podem de forma nenhuma se transformar num plano

nacional de saúde. Como encontramos um sistema

completamente esquizofrênico, na forma como os próprios

documentos o adjetivam, era preciso dar uma certa ordem à

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esquizofrenia setorial” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE

SAÚDE, 1987, p.164).

Carlos Sant´anna destaca ainda que a implementação das AIS durante a

conformação institucional daquele dado momento dependeu muito mais das relações de

entendimento pessoal entre os representantes das diferentes instituições do governo. Em

1985, por exemplo, ele cita que as AIS tiveram uma ampla implementação porque os

ministros da Previdência, da Educação e da Saúde tinham um bom relacionamento,

assim como o presidente do INAMPS para com as equipes de saúde. Ubaldo Dantas66,

como representante de um município em debate após o painel II da Conferência, reitera

a colocação de Carlos Sant´anna no que se refere aos conflitos entre os representantes

das instituições de saúde e o quanto isto prejudicava a implementação das ações de

saúde. Em sua fala aponta que o processo de municipalização se via muitas vezes

prejudicado devido aos entraves e falta de clareza de qual projeto seguir. A seguir segue

trecho de seu depoimento sobre este contexto:

“Não há sentido em se continuar com dois Ministérios; não há

sentido em que o município fique na adivinhação de qual vai ser

a próxima decisão tomada pelo bom humor de dirigentes, de

ministros, para que as ações possam realmente acontecer de uma

maneira coerente, certa e até planejada, planejada para mudar o

que nós esperamos em matéria de saúde, de Brasil e de

oportunidade democrática” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE

SAÚDE, 1987, p. 162).

Portanto, para estes expositores era necessário apresentar na VIII CNS uma

proposta de institucionalização de um novo sistema nacional de saúde que permitisse

uma continuidade de implementação das ações independentes das conjunturas

relacionais e conflitos políticos. Frente a esse fato, o então deputado faz um apelo aos

participantes dos grupos de trabalho da VIII CNS que ao concluírem seus respectivos

estudos e relatórios, não se detessem a realizar apenas diagnósticos acerca do sistema de

saúde, mas sim propostas concretas para o novo SNS.

“É importante, portanto, que os grupos de trabalho ao

concluírem os seus estudos e mandarem seus relatórios, por

favor, não façam meramente diagnóstico; se puderem, inclusive,

evitem o diagnóstico. O que importa é saber: vamos deixar esse

sistema de saúde como ele está, fragmentado, torto? Vamos usar

66 Prefeito da cidade de Itabuna no estado da Bahia.

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as AIS, que foram mera estratégia do regime autoritário? (...)

Pois muito bem, o que é preciso é que os grupos de trabalho

indiquem que reformulações vamos fazer. Algumas irão para a

Constituinte, sem dúvida e debateremos isto amanhã à noite,

mas outras poderão ser implementadas imediatamente, através

de mensagens que o Executivo enviará ao Congresso Nacional

para a mudança do sistema único”(CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE, 1987, p. 164).

Já o Ministro do MS, Roberto Figueira Santos, em seu discurso na abertura da

Conferência aponta que as AIS estavam sendo utilizadas na direção correta,

representando um aprendizado válido para o convívio entre instituições que, a despeito

dos seus objetivos comuns, eram díspares quanto a gerência de serviços a seu cargo.

Porém, as AIS não poderiam ser consideradas como solução definitiva sendo a VIII

CNS um lugar privilegiado para o reconhecimento da unificação dos serviços. Segue

trecho de seu discurso:

“Fazemos votos para que a Conferência reconheça como

imprescindível a unificação dos serviços de saúde, a curto prazo,

e que assinale, de forma justa e com insofismável clareza, a

fonte dos recursos que hão de sustentar a prestação destes

serviços. (...) Com efeito, de nada adianta a unificação dos

serviços caso parte destes continuassem a merecer

financiamento oriundo da contribuição dos trabalhadores, de

mistura com o que deles se arrecada para aposentadoria e

pensão, enquanto as atividades preventivas, de relevância ao

menos igual, continuasse sujeita às minguadas fatias oriundas do

Tesouro Nacional” (SANTOS, 1987, p.17).

O outro eixo relacionado à reorganização do SNS refere-se à Estatização do

SNS. Assim como o eixo referente a unificação do SNS, este eixo aparece na discussão

da VIII CNS como uma tentativa de responder qual seria a melhor maneira de ampliar o

acesso aos serviços de saúde. A proposta de estatização defendida na conferência

significava conceber o Estado como único responsável e prestador dos serviços de saúde

e pode ser observado, principalmente, nos trabalhos e debates do painel I - onde a

discussão predominante era político-ideológica. Na análise destes discursos observou-se

a defesa de duas posições predominantes e distintas quanto ao eixo: 1) A defesa de uma

estatização imediata; 2) A defesa de uma estatização gradual.

A primeira proposta, estatização imediata, foi defendida principalmente pelos

representantes de sindicatos e associações de trabalhadores, como a CUT. Para esses

participantes a prestação de serviços de saúde deveria passar de forma imediata para a

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reponsabilidade do Estado, através da prestação direta. Segue trecho com a fala do

representante da CUT, Arlindo Chinaglia Júnior:

“(...) Sob a égide de que a estatização pode ser autoritária

podemos assistir à abertura da porta, escancaradamente, apesar

do discurso, à iniciativa privada. Então, Professora Sônia

[Fleury], defendemos a estatização sim, mas com o controle dos

trabalhadores. Aí não haverá autoritarismo. Portanto,

convocamos aqui todos os presentes para defender a estatização

e, ao mesmo tempo, defender a democracia do Estado, defender

a participação dos trabalhadores”(CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE, 1987, p.120).

Para Francisco Xavier Beduschi67 a oferta de serviços deveria ser feita pela

prestação direta pelo Estado, pois o setor privado não atenderia a demanda e prioridades

da população e sim ofertariam serviços que gerassem mais lucros. No entanto,

compreendia que, em um primeiro momento, seria necessário repartir o espaço com o

setor privado, pois o setor saúde naquele período era fortemente dependente da oferta de

serviços privados. Dessa forma, a participação direta do Estado deveria ser uma meta,

mas esta estatização ocorreria de forma gradual. Segue trecho de sua fala que aborda

esta temática:

“Achamos, também, e é um ponto muito importante, que a

prestação direta dos serviços de saúde pelo Estado é a única

garantia que a população tem de sua continuidade, de que o

sistema seja participativo e democrático e que as prioridades

maiores sejam as realmente almejadas e necessitadas pela

comunidade. Achamos que a convivência com a iniciativa

privada no setor saúde deverá ocorrer na medida em que haja

necessidade de se repartir um espaço, mas que a participação

direta pelo Estado deverá ser uma meta a ser conseguida dentro

de um prazo, dentro de um direcionamento da saúde, no sentido

da real promoção da saúde e não do tratamento da doença”.

(CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987, p. 153).

Com relação ao tensionamento entre os atores que defendiam a estatização

imediata e aqueles que defendiam a estatização gradual, Nelson Rodrigues68 traz em

entrevista à Revista Trabalho, Educação e Saúde (2008) um depoimento que ilustra

muito bem essa situação dentro do debate da VIII CNS, Segundo ele,

67 Representante da Federação Nacional dos Médicos (FNM). 68 Médico; Sanitarista; Coordenador do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de

Londrina/PR de 1970 à1976; Secretário Municipal de Saúde de Campinas/SP de 1983 à 1988; Presidente

do CONASS de 1989 à1990; Coordenador da Secretaria Executiva do Conselho Nacional de Saúde de

1997à 2002; Professor de Medicina Preventiva da Unicamp.

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“(...) tinha uma vertente que era inclusive majoritária no início

da VIII Conferência, que não queria papo com o setor privado.

Quem trouxe isso para a VIII Conferência foi a CUT. E trouxe a

proposta da estatização total do sistema público de saúde, a

ponto de o pessoal um pouco mais moderado, ou mais realista –

eu estava entre eles, o Arouca também – fazer um esforço muito

grande no desenrolar da VIII Conferência para a discussão ficar:

‘estatiza já’ ou ‘estatiza no processo’. E pudemos ganhar

‘estatizar no processo’. São os dois lados!” (SANTOS, 2008, p.

652).

Nelson Rodrigues tinha o entendimento de que o Estado não poderia abrir mão

imediatamente, ou romper naquele momento com o privado, porque a maioria dos leitos

estava na mão daquele setor, o que exigia uma complementaridade do privado em

relação ao público na oferta de serviços de saúde. Nesse sentido, a estatização gradual

seria uma opção mais adequada à realidade do setor saúde naquele período. Segundo

ele:

“Ao fazer um rompimento, ou uma estatização já, a população ia

ficar desassistida, na prática, instalando um caos no setor saúde.

A opção pela estatização progressiva se colocou também com

uma perspectiva de, aos poucos, o público ir incorporando o

privado. É exatamente isso. Se a perspectiva for estatizar

progressivamente, enquanto não estatizar tudo, enquanto houver

necessidade de contratar ou conveniar o setor privado, pela

Constituição, o setor privado tem que oferecer serviços como se

público fosse” (SANTOS, 2008, p. 653).

Nesta perspectiva, embora houvesse o reconhecimento da forte dependência do

setor privado para a oferta de serviços de saúde, a estatização dos serviços através da

prestação direta pelo Estado, deveria ser compreendida como um objetivo final, com a

incorporação gradativa do setor privado ao público.

Contudo, se para alguns atores da VIII CNS a estatização (mesmo que gradual)

era a principal proposta para a reorganização da oferta de serviços do novo SNS, para

outros a viabilidade deste processo gerava preocupação. Dessa forma, o último eixo

analisado neste estudo foi o Setor Privado como Concessão, ou seja, a proposta de

reorganização do sistema de saúde através da ação conjunta, mista, entre o setor público

e o privado na oferta de serviços, onde este último atuaria sob a responsabilidade do

Estado.

Jairnilson Paim, em trabalho apresentado no primeiro dia da Conferência, já

apontava que este seria uma pauta importante a ser decidida no debate da VIII CNS,

pois o contexto organizacional do sistema de saúde vigente demonstrava contradições.

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Isso porque, apesar dos serviços de saúde serem geridos pelo Estado, não poderiam ser

considerados públicos por não abranger a toda população. Dessa forma o ator na

Conferência declara que:

“O que permanece aberto, todavia, para discussão, é se os

serviços devem ser uma concessão do poder público e se a saúde

pode ser considerada essencialmente um serviço público. (...)

Uma última observação merece registro: público não significa

estatal. Na realidade, o que se tem observado na história

brasileira é a gestão privada das coisas públicas. Mesmo os

serviços de saúde estatais podem não ser efetivamente públicos

enquanto forem impeditivos da gestão pública das instituições”

(PAIM, 1987, p.56).

Durante o processo de análise deste estudo, foi possível inferir no desenrolar do

debate da VIII CNS e nos trabalhos apresentados, que a defesa do caráter

essencialmente público dos serviços de saúde foi uma unanimidade entre os

participantes. No entanto, da mesma maneira que alguns atores defendiam a estatização

gradual devido a dependência do setor público aos prestadores de serviços privados,

alguns atores propuseram que o setor privado atuasse como prestador de serviços ao

Estado, através da concessão de serviços. Segundo Santos em entrevista (2008) ao

explicar como seria a concessão do Estado ao setor privado diz que essa “é uma relação

não só contratual, mas de compromisso público, porque o contratante é o Estado, é o

poder público, e, ao contratar, contrata uma oferta de serviços planejada pelo Estado”

(p.652).

Sonia Fleury em trabalho apresentado no painel I aponta que a saúde, ao ser

compreendida como um direito social, deve ser compreendida como um bem público e

estar sob a responsabilidade do Estado. Porém, não descarta a possibilidade de novas

formas de relacionamento entre o setor público e privado para a oferta de serviços,

devido, segundo ela, ao panorama de sucateamento dos serviços públicos que redundou

no incremento dos serviços médico-hospitalares privados no país. Segue trecho de sua

fala na Conferência:

“A saúde e, portanto, a assistência, são serviços essenciais e não

podem ser vistos de outra forma do que como um bem público.

O que isto quer dizer em termos da Configuração do Sistema

Nacional de Saúde? Seria a sua estatização? Não

necessariamente. Há que considerar que a situação consolidada

garante atualmente ao Estado (via recursos previdenciários) o

controle financeiro, mas não passa o mesmo com a oferta de

serviços. (...) Já existem experiências na sociedade brasileira em

que serviços essenciais, como os transportes e

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telecomunicações, são monopólios estatais, sendo a prestação de

serviços realizada por empresas privadas, consideradas, como

concessão. Neste caso, o serviço é assumido como um bem

público essencial, permitindo ao Estado mecanismos legais de

controle e intervenção sobre os prestadores privados. É

necessário avaliar a aplicabilidade destas experiências ao setor

saúde (FLEURY, 1987, p.110).

Vilaça (1987), em seu trabalho aponta que a reformulação na organização do

setor saúde deveria ter, como âmbito, os subsetores público, filantrópico e subsetor

privado delegado (concessão), com suas respectivas modalidades assistenciais. Ou seja,

a reformulação deveria se dar no espectro de modalidades assistenciais passíveis de uma

gestão pública. Já com relação ao setor privado, segundo ele:

“A reformulação pretendida não deverá incorporar as

modalidades do subsetor privado típico, que estarão sujeitas às

legislações específicas, às licenças para o seu funcionamento, às

normas sobre construções ou instalações aprovadas pelo

Ministério da Saúde, além de fiscalização por parte das

Secretarias de Saúde, calcada no poder de polícia”(VILAÇA,

1987, p. 278).

Para Luís Roberto de Oliveira representante da CONCLAT, o novo SNS deveria

ter a oferta de serviços predominantemente pelo setor público e o setor privado

subordinado ao controle do Estado.

“A CONCLAT defende, nesta Conferência, a instituição de um

sistema único de saúde sob comando único e que opere de

acordo com uma política nacional de saúde que prestigie de

maneira predominante o setor público e o setor privado não

lucrativo representado pelas Santas Casas, pelos hospitais

beneficentes e que o setor privado lucrativo entre de maneira

complementar e subordinado ao controle oficial, ao controle do

Estado” (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1987.

p.228).

Da mesma forma, André Cesar Médici69 e Pedro Luiz Barros Silva70 em trabalho

apresentado no painel III da Conferência, intitulado Alternativas do Financiamento da

Atenção à Saúde, apontam que a relevância do setor privado na oferta de serviços deve

ser considerada na proposição de novas formas de relacionamento entre público e

privado na saúde.

69 Economista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Professor da ENSP. 70 Sociólogo e Professor Assistente do Instituto de Economia da Universidade de Campinas.

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“Parece claro que dada a importância da participação dos

prestadores privados de serviços é necessário rever as suas

formas atuais de relacionamento com a Previdência Social,

principal financiadora de suas operações. Nessa direção, e de

forma coerente com a diretriz política - a atenção à saúde é um

direito de cada cidadão e dever do Estado - os serviços por ela

englobados deve, ser concebidos como PÙBLICOS,

independentemente da natureza do agente operador. Tal

perspectiva gera a necessidade do estabelecimento de normas e

procedimentos jurídicos, econômicos e administrativos que

sustentem adequadamente esta diretriz” (MÉDICE & SILVA

1987, p. 201).

Um dado relevante que deve ser elucidado, é que o setor privado não participou

da VIII CNS, alegando pouca representatividade na composição de delegados da

Conferência. Sérgio Arouca em trabalho apresentado como conferência no início do

evento, admite que a representatividade do setor privado seria de suma importância para

a discussão, dada a sua relevância na oferta de serviços do sistema de saúde vigente,

mas que a VIII CNS tinha como peculiaridade a participação popular e, por essa razão,

foi dado ao setor privado uma representatividade proporcionalmente menor. Segue

abaixo trecho com fala de Arouca a respeito deste impasse:

“Há uns dias atrás, algumas entidades ligadas ao setor privado se

retiraram da Conferência, alegando que, como representavam

uma grande percentagem dos serviços de saúde prestados ao

País, deviam ter maior número de delegados. Mas se

equivocaram. No meu entender, essa proporção de serviços

prestados não corresponde à proporção da população brasileira.

E esta é uma Conferência da população brasileira e não uma

Conferência dos prestadores de serviços.

Mas eu lamento profundamente a sua ausência, porque nesta

Conferência está se tratando é de criar um projeto nacional que

não pretende excluir nenhum dos grupos envolvidos na

prestação de serviços, na construção da saúde do povo

brasileiro. Assim, a eles queria deixar uma mensagem: que,

mesmo na ausência, vamos estar defendendo os seus interesses,

desde que estes não sejam os interesses da mercantilização da

saúde. Portanto, todo aquele empresário que está trabalhando

seriamente na área da saúde, na qualidade da sua competência

técnica e profissional, não precisa se sentir aterrorizado, porque

aqui ele vai ser defendido” (AROUCA,1987, p.39).

A ausência do setor privado como representante na VIII CNS, portanto, não

permitiu que a questão relação público/privado ganhasse uma discussão de maior

dimensão, já que sobressaiu o consenso entre os atores de que o setor privado deveria

atuar como prestador de serviços ao Estado. Logo, não é possível inferir se a

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participação do setor privado alteraria nas decisões pactuadas e levadas ao Relatório

Final.

4.2- Consensos: Quais Sentidos de Universalidade Vigoraram Após o Debate da

VIII CNS?

A partir das discussões, propostas e trabalhos apresentados nos dias da

Conferência, o Relatório Final da VIII CNS foi construído contendo os principais

consensos acerca dos temas em pauta. Nesta perspectiva, é interessante analisar o

consenso referente ao sentido de universalidade levado a este documento final, assim

como dos eixos encontrados na análise do estudo. Como já citado anteriormente, estes

eixos atravessavam a temática da universalidade e, portanto, influenciaram na

construção dos diferentes sentidos de universalidade que foram e são utilizados no

cotidiano das práticas e no debate político de saúde após a Conferência.

Com relação à Universalidade, como já mostrado no início deste capítulo, a

utilização do termo no debate da Conferência estava atrelado à ideia de ampliação do

acesso. No entanto, verificou-se que a ampliação deste acesso poderia se dar em dois

sentidos distintos: um relacionado à ampliação dos serviços de saúde (serviços médicos

e hospitalares) e outro relacionado à ampliação do direito á saúde, atrelado à uma

concepção de saúde ampliada. Este último, por sua vez, já se mostrava com mais força

nos discursos e trabalhos apresentados na Conferência e, por essa razão, a ideia de

ampliação do acesso ao direito à saúde foi pactuada como consenso na reunião de

construção do Relatório Final.

Embora, a análise deste documento final permita identificar trechos onde a ideia

de universalidade é utilizada como ampliação de acesso ou cobertura, a leitura completa

do mesmo permite inferir que a todo tempo esta ampliação refere-se à uma concepção

de saúde ampliada. Ou seja, ao falar de ampliação de cobertura, o documento estava se

referindo à ampliação de serviços estruturais que garantissem o direito à saúde. No

exemplo a seguir, o termo universalização é utilizado como ampliação de cobertura:

“O novo Sistema Nacional de Saúde deverá reger-se pelos

seguintes princípios (...) universalização em relação à cobertura

populacional a começar pelas áreas carentes ou totalmente

desassistidas” (BRASIL, 1986, p.10).

No entanto, o documento aponta que o conceito de saúde ali defendido

corresponde a sua concepção maia abrangente, ou seja, “resultante das condições de

alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego,

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lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde” (BRASIL, 1986,

p.04). Portanto, a garantia do direito à saúde implicaria, necessariamente, a garantia de:

- trabalho em condições dignas, com amplo conhecimento e

controle dos trabalhadores sobre o processo e o ambiente de

trabalho;

- alimentação para todos, segundo as suas necessidades;

- moradia higiênica e digna;

- educação e informação plenas;

- qualidade adequada do meio-ambiente;

- transporte seguro e acessível;

- repouso, lazer e segurança;

- participação da população na organização, gestão e controle

dos serviços e ações de saúde;

- direito à liberdade, à livre organização e expressão;

- acesso universal e igualitário aos serviços setoriais em todos os

níveis” (BRASIL, 1986, p.04).

Essa concepção admitia ainda que saúde é resultante das formas de organização

social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Por

essa razão, haveria a necessidade do Estado assumir explicitamente uma política de

saúde consequente e integrada às demais políticas econômicas e sociais, assegurando os

meios que permitissem a sua efetivação.

Com relação ao eixo Responsabilidade do Estado, no Relatório Final a posição

consensuada não foi diferente daquela predominante durante o debate da Conferência.

Logo, neste documento a ampliação e a garantia do direito à saúde foi defendida como

dever do Estado, sendo considerada de caráter essencialmente público. No tema I do

Relatório Final, o item 11 aponta que o Estado tem como responsabilidades básicas

quanto ao direito à saúde, os seguintes itens:

“- a adoção de políticas sociais e econômicas que propiciem

melhores condições de vida, sobretudo, pra os segmentos mais

carentes da população;

- definição, financiamento e administração de um sistema de

saúde de acesso universal e igualitário;

- operação descentralizada de serviços de saúde;

- normatização e controle das ações de saúde desenvolvidas por

qualquer agente público ou privado de forma a garantir padrões

de qualidade adequados;”(BRASIL, 1986, p.07).

No que concerne ao eixo Unificação do SNS, como já demonstrado, as análises

deste estudo apontaram que este foi um tema que gerou diversos conflitos e

tensionamentos no debate da Conferência, pois, eram reflexos de disputas que já

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estavam em jogo no cenário do setor saúde e na previdência. No entanto, para a

construção do Relatório Final, foi consensuado entre os atores participantes a defesa de

uma unificação “pelo alto”, ou seja, a transferência imediata do INAMPS para o MS e

a constituição de um comando único do sistema de saúde, porém com uma separação

progressiva dos recursos para financiamento da previdência. Segue trecho do Relatório

Final referente à unificação e reestruturação do SNS:

“O entendimento majoritário foi o de que a Previdência Social

se deveria encarregar das ações próprias de “seguro social”

(pensões, aposentadorias e demais benefícios) e a saúde estaria

entregue em nível federal, a um único órgão com características

novas. O setor seria financiado por várias receitas, oriundas de

impostos gerais e incidentes sobre produtos e atividades nocivas

à saúde. Até que se formasse esse orçamento próprio da saúde, a

Previdência Social deveria destinar os recursos, que ora gasta

com o INAMPS, para o novo órgão e ir retraindo-se na medida

do crescimento das novas fontes” (BRASIL, 1986, p.3).

Dessa forma, a proposta levada ao documento final defendia a construção de um

novo arranjo institucional, separando totalmente a saúde da previdência e criando um

novo Sistema Único de Saúde. No nível federal este novo sistema seria coordenado por

um único Ministério, especialmente concebido para esta finalidade.

Ainda com relação a reorganização do sistema de saúde, defendeu-se neste

documento final que as AIS fossem reformuladas de forma imediata, a fim de

possibilitar o controle da sociedade organizada através das suas respectiva instâncias de

coordenação (CIS, CRIS, CLIS e /ou CIMS). No entanto, ressalvou-se que a existência

das AIS não deveria ser utilizada como justificativa para adiar a implantação do novo

Sistema Único de Saúde.

Em relação ao eixo Estatização do SNS, durante o processo de construção do

Relatório Final a proposta de estatização imediata foi recusada. No entanto, chegou-se a

um consenso sobre a necessidade de fortalecimento e expansão do setor público,

optando-se assim pela proposta de uma estatização gradual do setor saúde.

“O principal objetivo a ser alcançado é o Sistema Único de

Saúde, com expansão e fortalecimento do setor estatal em níveis

federal, estadual e municipal, tendo como meta uma progressiva

estatização do setor” (BRASIL, 1986, p. 12).

Contudo, assim como no debate da Conferência, fica explícito no Relatório Final

uma preocupação quanto a viabilidade de estatizar um sistema de saúde ainda altamente

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dependente da oferta de serviços privados. Portanto, concluiu-se que para atender a

demanda da população ainda seria necessário contar com a participação do setor

privado sob o caráter de serviços público “concedido” e por contrato regido sob as

normas do Direito Público.

Dessa forma o último eixo analisado, Setor Privado como Concessão, aparece

no Relatório Final como o consensso de que

“Os prestadores de serviços privados passarão a ter controlados

seus procedimentos operacionais e direcionadas suas ações no

campo da saúde, sendo ainda coibidos os lucros abusivos. O

setor privado será subordinado ao papel diretivo da ação estatal

nesse setor, garantindo o controle dos usuários através dos seus

segmentos organizados. Com o objetivo de garantir a prestação

de serviços à população, deverá ser considerada a possibilidade

de expropriação de estabelecimentos privados nos casos de

inobservância das normas estabelecidas pelo setor público”.

(BRASIL, 1986, p. 12).

Essa nova forma de relacionamento entre setor privado e setor público deveria,

portanto, ser implementada da seguinte forma: 1) os estabelecimentos privados que já

estabeleciam contratos com o INAMPS deveriam estabelecer novo contrato-padrão

regido pelos princípios do Direito Público, passando o serviço privado a ser

concessionário do Serviço Público; 2) os contratos deveriam ser reavaliados sob

critérios de adequação ao perfil epidemiológico da população a ser coberta e de

parâmetros de desempenho e qualidade; 3) as novas relações deveriam possibilitar a

intervenção governamental, sempre que fosse caracterizada a existência de fraude ou

conduta dolosa; 4) revisão de incentivos concedidos à chamada medicina de grupo.

O que se pôde apreender, portanto, na análise dos consensos pactuados para o

Relatório Final é que sobressaiu no debate da VIII CNS um discurso mais político-

ideológico do que aquele mais organizacional. Isso significa dizer que as propostas

apresentadas neste documento final - ao considerar uma concepção de saúde ampliada e

ao afirmar a saúde como um direito social cuja responsabilidade pela garantia deveria

ser do Estado- apontavam para uma defesa de uma reformulação profunda nas políticas

de Estado que, necessariamente, transcendiam o setor saúde e exigiam uma nova

concepção de Estado.

Como citado no capítulo 3 deste estudo, um dos resultados da VIII CNS foi a

criação da CNRS como uma estratégia de garantir a inclusão dos princípios da Reforma

Sanitária pactuados na Conferência naquela que seria a novo Constituição brasileira em

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1988. Por essa razão, foi atribuído à essa comissão a tarefa de formular sugestões para o

reordenamento institucional e jurídico do sistema de saúde através do aprofundamento

do Relatório Final da VIII CNS e à sistematização de propostas articuladas junto ao

movimento sanitário. Portanto, além do Relatório Final da VIII CNS, foi igualmente

importante analisar documentos7172 elaborados pela CNRS a partir de agosto 1986, a

fim de auxiliar na compreensão de quais sentidos de universalidade e dos eixos que

atravessavam esta temática se destacaram após à Conferência. O documento III

elaborado pela CNRS, em específico, apresenta uma síntese dos resultados dos Grupos

de Trabalho realizados por esta Comissão e um texto sistematizado para o setor saúde

subsidiar as discussões da Assembleia Nacional Constituinte.

Neste documento foi possível identificar, por exemplo, que o conceito de

Universalidade, permaneceu sendo utilizado no mesmo sentido que aquele pactuado no

Relatório Final da VIII CNS: Universalidade como ampliação do acesso ao direito à

saúde. Seguem trechos referentes a universalidade e direito à saúde consensuado neste

documento:

“§ 1º – O direito à saúde implica para o cidadão o acesso a:

– condições dignas de vida e trabalho;

– informação sobre os riscos de adoecer e morrer;

– opção quanto ao tamanho da prole;

– dignidade, gratuidade e qualidade no atendimento e

tratamento, com direito à escolha e à recusa;

– participação na gestão das atividades públicas e privadas com

impacto sobre a saúde” (BRASIL, 1986c, p.13 ).

Da mesma forma o eixo correspondente à Responsabilidade do Estado,

permaneceu como a ideia de ser dever do Estado a garantia de acesso à saúde em seu

conceito ampliado.

“Art. 2º – É dever do Estado:

– a democratização da saúde, através de políticas econômicas e

sociais orientadas para a eliminação ou diminuição dos riscos de

doença e de morte;

– proteção, recuperação e reabilitação da saúde, pela garantia de

acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde em

todos os níveis.” (BRASIL, 1986c, p.13 ).

71 Esta Comissão foi resultante da VIII CNS e, portanto, uma breve análise dos consensos acerca do

sentido de universalidade e dos eixos que atravessam a temática apresentaram-se como importantes para a

conclusão deste estudo. Foram analisados os três documentos síntese dos grupos de trabalho desta

Comissão, priorizando-se a análise no documento final construído como documento recomendação para o

debate do setor saúde na Assembleia Constituinte. 72 Não foram analisados os debates e o processo de construção destes documentos, pois o objetivo era a

análise do conteúdo consensuado no documento final.

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No entanto, com relação a alguns eixos analisados pode-se perceber que alguns

discursos de modificaram. Um exemplo disto é a questão da Unificação do SNS, pois

neste documento não há mais uma aparente pressão para que ocorra uma unificação

imediata e “pelo alto”. Como no na fala abaixo do Ministro da Saúde, Roberto Figueira

Santos, as AIS passam a ser defendidas como estratégia prioritária de transição para o

novo SNS, diferentemente da proposta consensuada no Relatório Final da VIII CNS.

“O momento exige reforçar as Ações Integradas de Saúde, o que

irá permitir, nos curto e médico prazos, a superação da atual

forma de organização plural e desintegrada por uma outra que,

respeitando as identidades organizacionais, coloque, sob gestão

pública, todas as instituições relacionadas com o setor publico,

integrando-as, em todas as suas atividades e com todos os seus

recursos, de modo que possam responder às necessidades

prioritárias da população. Resulta, daí, uma necessária

reafirmação da vontade política de consolidação das Ações

Integradas de Saúde Como o eixo estratégico da Reforma

Sanitária, fazendo-as avançar, concretamente, para além de uma

simples relação convenial entre entidades do setor

público”(BRASIL, 1986a, p. 27).

Da mesma forma, o Ministro do MPAS – Raphael de Almeida – admite neste

documento que as AIS assumiam naquele momento uma condição de estratégia setorial

e mostrava potencialidade, tanto na mobilização de forças políticas articuladas e

poderosas quanto na reestruturação do setor público como prestador de serviços de

saúde, sendo necessário aprofundá-las e aperfeiçoá-las.

Há ainda no documento I um trabalho elaborado por técnicos do MS e do

INAMPS e encaminhado aos Ministros da Saúde, da Previdência e Assistência Social e

à CIPLAN, intitulado “Bases para o Aperfeiçoamento das Ações Integradas de Saúde

como Estratégia para a Reforma Sanitária Brasileira”, cujo objetivo era apresentar

formalmente as AIS como estratégia prioritária para o novo SNS. Assim como a fala

dos Ministros da Saúde e do MPAS esse documento expressa a necessidade de

aperfeiçoamento das AIS e a defesa de uma reforma sanitária que ocorreria de forma

gradual, iniciando-se pelas bases do SNS através da descentralização. Segue trecho

deste documento:

“A experiência concreta das Ações Integradas de Saúde na

reorganização dos serviços constitui o eixo estratégico das

mudanças, baseado no direito universal de acesso igualitário aos

serviços, na descentralização acelerada para as instâncias

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estaduais e municipais através, principalmente, da programação

orçamentação integradas das ações de saúde, e na ampla

participação da população na gestão dos serviços.

A reforma sanitária brasileira enfrenta o desafio da integração

das ações de saúde, aprofundando as relações de integração

entre as Instituições de saúde (conquistadas pelas AIS) e

avançando na plena identificação de responsabilidades, no que

diz respeito à de cobertura assistencial à população e a

resolutividade das práticas concretas, desenvolvidas pelos

profissionais de saúde” (BRASIL,1986a, p.40).

O termo Estatização, por sua vez, somente aparece no documento da CNRS no

item financiamento da saúde em uma discussão acerca do papel do setor prestador

privado no sistema de saúde. Conforme o documento, identificou-se no debate após a

VIII CNS duas propostas para esta questão: uma primeira73 que apontava para a

estatização da rede privada de serviços através da expropriação desta rede pelo Estado

ou pela desapropriação destes estabelecimentos; uma segunda que propunha ao invés da

estatização, uma modificação na relação contratual entre o setor público e o setor

privado, através de um contrato padrão de direito público onde os prestadores privados

se subordinassem às normas técnicas e financeiras de prestação dos serviços, bem como

se submetessem aos critérios públicos de fiscalização técnica, financeira e operacional.

Essa última proposta corresponde ao eixo analisado neste estudo como Setor Privado

como Concessão.

73 Em nota no documento II da CNRS, consta que representantes da CUT, ABEN, CONAM e FNM

apoiavam um SNS constituído pelo conjunto de instituições e estabelecimentos de saúde estatais de

natureza pública, nos níveis federal, estadual e municipal, e com atribuição de prestação direta de serviços

de promoção, proteção, tratamento, recuperação e reabilitação da saúde, com atendimento universal e

igualitário em todos os níveis, sem discriminação. O Sistema Nacional de Saúde seria gerenciado por um

órgão único no nível federal, estadual e municipal, respectivamente Ministério da Saúde, Secretaria

Estadual de Saúde e Secretaria Municipal de Saúde, e com a participação, em nível de decisão, das

entidades populares na formulação, controle e avaliação da política nacional de saúde nos níveis federal,

estadual e municipal. Seria, também, atribuição do SNS, através de legislação específica, a supervisão e

controle das ações promovidas pela iniciativa privada. Após a promulgação da nova lei do SNS deveria

ser feito levantamento dos recursos necessários a implantação do sistema estatal que atendesse os

objetivos da universalização e da boa qualidade do atendimento. A estatização se daria através do

estabelecimento imediato de um projeto de transição do setor privado para o estatal, com suspensão dos

recursos aplicados no setor privado, com utilização destes recursos na ampliação e plena ocupação dos

serviços próprios. Intervenção nos serviços fraudadores e desapropriação dos serviços necessários

estrategicamente ao pleno funcionamento do sistema. Durante o período de realização do levantamento,

esgotada a capacidade estatal instalada, poderiam ser comprados serviços de entidades privadas através de

contratos com normas estabelecidas pelo direito público, assegurando mecanismos de controle por parte

do Estado da qualidade dos serviços prestados.

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Segundo consta no documento, a primeira vertente – Estatização - não havia

“caminhado muito”, pois a questão da expropriação não se colocava numa sociedade

com as características da brasileira.

“Expropriar os estabelecimentos de saúde detém, como pré-

condição, uma mudança radical de todo o espectro de relações

sociais, econômicas e políticas no Brasil. Em segunda instância

porque desapropriar a rede privada traria implicações

econômicas que não passam pela realidade dos cofres públicos

brasileiros. Se o orçamento estimado para o setor não tem

condições imediatas para reaparelhar a rede pública, que dirá

para comprar estabelecimentos privados. Além do mais,

desapropriar tais estabelecimentos seria transferir recursos para

um segmento do empresariado nacional, que já foi beneficiado

pelo setor público duplamente; seja pelo investimento

subsidiado, seja pela reserva de mercado garantida pelo custeio

do INAMPS. Portanto, essa opção seria socialmente injusta e

economicamente inaceitável.” (BRASIL, 1986c,p. 86).

No entanto, seria interessante aproveitar desta vertente a ideia de canalizar o

gasto público unicamente para o investimento e para o custeio na rede pública de

serviço, aceitando novos contratos e credenciamentos com os prestadores privados nas

modalidades, e regiões onde fosse indispensável tal procedimento, quando houvesse

necessidade imperiosa do serviço sem meios públicos de oferecê-lo no curto prazo.

Já a segunda vertente, setor privado como concessão, já vinha obtendo

progressos nos anos de 1985 e 1986, na medida em que o INAMPS chegou a formular

uma nova proposta de contrato padrão. Contudo, a aprovação deste novo contrato

encontrava resistências em quase todo o setor privado lucrativo, diferente da rede

filantrópica, que atuava em colaboração com o setor público na estratégia de

universalização das ações de saúde.

Nas recomendações contidas neste documento como proposta para uma nova lei

do SNS no que concerne ao setor privado como concessão consensuou-se que seria

assegurado o livre exercício da atividade liberal em saúde e a organização de serviços

de saúde privados, obedecendo os preceitos éticos e técnicos determinados pela lei aos

princípios que norteariam a política nacional de saúde. Além disso, a utilização de

serviços de saúde de natureza privada pela rede pública deveria ser realizada em caráter

complementar, segundo normas estabelecidas pelo direito público (BRASIL, 1986c).

Nesta perspectiva, ainda no item das recomendações para a nova lei do SNS,

foram apontadas três componentes institucionais para a estrutura organizacional do

novo sistema de saúde: 1) O Setor Público, que corresponderia ao conjunto de

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instituições e estabelecimentos de saúde de natureza pública, federal, estadual e

municipal. 2) O Setor Privado Contratado, que corresponderia ao conjunto de

serviços de saúde desenvolvidos por pessoas físicas ou jurídicas, de natureza privada,

financiados com recursos públicos para a prestação de serviços à população e

vinculados ao setor público por normas estabelecidas pelo direito público. 3) O Setor

Privado Autônomo, que corresponderia ao conjunto de serviços de saúde

desenvolvidos por pessoas físicas ou jurídicas de natureza privada, destinados ao

atendimento de pessoas que os procuram livremente e os remuneram diretamente ou

através de mecanismos consorciados civis, independentemente de qualquer subsídio ou

financiamento do setor público (BRASIL, 1986c).

De maneira geral, é possível observar neste documento elaborado pela CNRS

uma maior ênfase em propostas referentes a questões mais organizacionais, como a

reorganização do SNS de forma gradual através da descentralização e a reformulação

das AIS. Além disso, há na construção deste documento uma participação mais efetiva

de atores do INAMPS e MPAS que compunham o grupo de reformistas da previdência,

o que pode ser identificado como um fator explicativo para algumas mudanças de

ênfases percebidas nos eixos analisados, como a Estatização do SNS e a Unificação do

SNS. Como elucidado acima, a questão da estatização surge enfraquecida no consenso

final do documento da CNRS e, em contrapartida, a proposta do setor privado atuando

como concessão e em caráter complementar ao Estado torna-se a proposta mais viável.

Da mesma forma, a defesa por uma unificação imediata e “pelo alto” tal como pactuado

no Relatório da VIII CNS, perde espaço no discurso para aquela que defendia a

unificação pelas bases do SNS, defendida pelos atores reformistas da previdência.

Abaixo o quadro comparativo entre o Relatório Final da VIII CNS e o Relatório

da CNRS sistematiza quais sentidos de universalidade, assim como os eixos que o

atravessavam, foram consensuados nestes documentos:

Quadro 8- Comparativo entre Relatório Final da VIII CNS e Relatório da CNRS

Eixos

Relatório Final da VIII CNS

Relatório da CNRS

Universalidade

Ampliação do acesso ao

direito à saúde

Ampliação do acesso do

direito à saúde

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Responsabilidade

do Estado

Dever do Estado na garantia

do acesso ao direito à saúde

Dever do Estado garantia do

acesso ao direito à saúde

Unificação do SNS

Unificação imediata e “pelo

alto”

Unificação gradual e “por

baixo”

Estatização do SNS

Estatização Gradual e total

como meta final

Estatização passar a não ser a

meta final

Setor Privado como

Concessão

Em caráter complementar,

segundo normas estabelecidas

pelo direito público

Em caráter complementar,

segundo normas estabelecidas

pelo direito público

Portanto, a apesar da VIII CNS ter representado um importante marco de

mobilização social e política para o setor saúde no Brasil, algumas proposições não

conseguiram ganhar força no embate político ocorrido após a Conferência e outros

discursos tornaram-se preponderantes e afirmados. As propostas contidas no documento

final da CNRS já demonstravam sutis modificações que foram então encaminhadas e

ofertadas no debate da Assembleia Constituinte.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como elucidado neste estudo, o princípio de universalidade é um conceito que

possui diferentes sentidos no debate do setor saúde no Brasil. O reconhecimento desta

premissa e de um tensionamento no debate atual no Brasil – a mudança discursiva do

princípio de universalidade como sistemas universais para cobertura universal –

suscitou a necessidade de compreender o processo discursivo desse conceito em um

momento marcante da história das políticas de saúde no país: A VIII CNS.

O mergulho nos materiais referentes à VIII CNS, assim como o retorno ao

contexto político e institucional ao qual estava inserida, permitiu averiguar os principais

sentidos de universalidade que se apresentavam no debate, os principais atores que os

vocalizam e certas condições de possibilidades no contexto daquele período que

influenciaram a maior expressão de um sentido de universalidade em detrimento de

outros sentidos.

Uma primeira conclusão deste estudo ao que se refere ao objeto investigado – os

sentidos de universalidade encontrados no debate da VIII CNS – é que a busca por uma

definição do conceito de universalidade não era uma questão relevante naquele dado

momento. Diferente de outros conceitos-chaves identificados no debate – tais como

direito à saúde, responsabilidade do Estado e conceito ampliado de saúde – não se

observou uma explícita preocupação em consensuar entre os participantes um sentido

para este termo. Dessa forma, o termo universalidade foi utilizado de maneira mais

superficial, sem que houvesse algum indício de um aprofundamento sobre o conceito ou

tentativa de defini-lo.

Portanto, esta primeira percepção permite inferir e confirmar a hipótese

levantada no início da pesquisa de que a discussão e preocupação com o sentido

atribuído à universalidade faz parte de um debate recente no Brasil e que naquele dado

contexto político-institucional (década de 1980) não havia uma preocupação em definir

o sentido de universalidade, tal como atualmente.

Uma segunda conclusão do estudo inferida na análise do debate da VIII CNS é

que o termo universalidade foi utilizado nas falas e discurso preponderantemente como

ampliação do acesso. Contudo, não foi identificado um consenso entre os atores acerca

do que deveria ser ampliado e quais serviços ofertados, mas reconheceu-se dois temas

que se destacavam: A ampliação do acesso ao direito à saúde e a ampliação do acesso

aos serviços de saúde.

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O primeiro significava a defesa de uma expansão de serviços que garantissem a

saúde a partir de uma concepção ampliada, considerando-a como um direito social.

Logo, estavam atrelados à proposta de oferta de serviços capazes de intervir nas

condições de vida e de trabalho determinantes da saúde da população assim como na

estrutura política de um dado Estado a fim de superar as desigualdades na distribuição

de bens e serviços (PAIM, 1987). Nesse sentido, era preciso considerar a garantia do o

direito ao trabalho, condições dignas de moradia, educação, lazer, alimentação, entre

outros, através de políticas sociais e econômicas.

Durante o processo analítico também identificou-se que os atores que

vocalizavam a universalidade como ampliação do acesso ao direito à saúde eram,

majoritariamente, aqueles envolvidos com o discurso político-ideológico. Ou seja, tinha

como principais representantes professores, pessoas inseridas no cenário acadêmico,

representantes de sindicatos, militantes de movimentos sociais e atores do movimento

sanitário, principalmente os do grupo de reformistas da saúde.

Já a ampliação do acesso aos serviços de saúde significava a defesa da oferta de

serviços médicos e à ampliação dos serviços médico-hospitalares. Este sentido emerge

em poucos discursos, mas torna-se significativo no debate na medida em que gera

tensionamentos entre os participantes. Embora não houvesse uma oposição explicita à

ideia de direito à saúde durante o debate da VIII CNS, a fala de alguns atores –

sobretudo os representantes do INAMPS, MPAS, MS e de atores do movimento

sanitário do grupo de reformistas da previdência – revela um silenciamento quanto ao

tema e os discursos pautavam-se predominantemente em torno de questões

organizacionais e técnicas, sem que houvesse um aprofundamento do debate político.

Dentre estes dois temas concluiu-se que a ideia de universalidade como

ampliação do acesso ao direito à saúde apresentava-se como o discurso predominante,

entoado com mais força na arena de debate da VIII CNS e que foi consensuado pelos

participantes como a proposta para o Relatório Final. Na análise, foram identificados

como condições de possibilidade para a emergência deste sentido o processo de

redemocratização do Estado no final da década de 1980 e a disseminação de propostas

para uma reforma ampla nos setores sociais atreladas à ideia de garantia de direitos de

cidadania.

Além disso, a forte participação da sociedade civil, dos movimentos sociais, das

associações de trabalhadores, de atores ligados ao grupo de reformistas da saúde, dentre

outros que defendiam a ampliação do acesso ao direito à saúde, pode ser também

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considerada como um fator explicativo para a emergência desse sentido no debate da

VIII CNS. Este mesmo fator possibilita justificar ainda a permanência desse sentido

como o mais proeminente no debate da saúde do Brasil, pois muitos destes atores –

representantes de um discurso mais político-ideológico – continuaram a disseminar este

sentido, nas arenas de debate da saúde, na produção bibliográfica, nas atividades

acadêmicas, no cotidiano das práticas de saúde e pelos lugares políticos e institucionais

que ocuparam no período posterior à Conferência.

Portanto, a interpretação do princípio da universalidade como sinônimo do Art.

196 da Constituição Federal de 1988, que diz:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação” (BRASIL, 1988, p.33).

revela uma influência do sentido de universalidade oriundo do consenso da VIII CNS

que permaneceu no debate da saúde, apesar do mesmo ter sido explicitado nos

documentos oficiais de forma bem mais simplificada, como acesso às ações e serviços

para sua promoção, proteção e recuperação. Logo, o que se evidenciou foi uma disputa

pelo discurso, onde a concepção de universalidade atrelada ao direito à saúde e a

sistemas de saúde sob responsabilidade do Estado tornou-se mais forte e preponderante

nos discursos, embora outros sentidos se apresentassem e concorressem entre si.

Evidenciou-se ainda neste estudo, a existência de outros eixos temáticos no

debate da VIII CNS que, apesar de não definirem o conceito de universalidade

apareciam atravessando o tema de maneira significativa e influenciando na construção

dos diferentes sentidos que foram e são utilizados no cotidiano das práticas e no debate

político de saúde após a Conferência. São eles: Responsabilidade do Estado, Unificação

do SNS, Estatização do SNS e Setor Privado como Concessão.

A análise destes eixos permitiu concluir que no debate da VIII CNS,

sobressaíram as propostas relacionadas à ideia de saúde como conceito ampliado e

como um direito social. Dessa forma, a responsabilidade do Estado pela garantia à

saúde, a unificação imediata com a criação de um comando único, a estatização gradual

do SNS e a proposta de um novo relacionamento do setor público com o setor privado

através de contrato de compromisso público, foram consensuadas como propostas para

o Relatório Final da Conferência.

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115

Contudo, a análise destes mesmos eixos no documento elaborado pela CNRS

como recomendação para o debate da saúde na Assembleia Nacional Constituinte já

evidenciam modificações importantes após a VIII CNS. A unificação do SNS “pelo

alto” e de forma imediata foi substituída pela proposta de unificação gradual e “por

baixo” devido a pressões políticas e a forte participação de atores do grupo de

reformistas da previdência na construção deste documento. Da mesma forma, a

viabilidade da proposta de estatização do SNS passa a ser contestada e a mesma perde

sua força após a VIII CNS. No documento elaborado pela CNRS, a estatização –

mesmo a gradual – já não mais aparece como uma meta a ser alcançada enquanto que a

proposta do setor privado como concessão do Estado vai ganhando mais força no

debate.

Portanto, é possível observar que logo após a VIII CNS foi perdendo espaço na

arena política e nos documentos oficiais, os temas que reforçavam o sentido de

universalidade como ampliação do acesso ao direito à saúde e à ideia de sistemas de

saúde com a prestação de serviços direta pelo Estado. Embora, como já citado, este

sentido tenha permanecido forte no discurso político-ideológico e nas práticas

cotidianas do debate da saúde no Brasil.

E como as conclusões elucidadas neste estudo podem contribuir para a

compreensão do debate atual que identifica uma mudança discursiva da universalidade

como sistemas de saúde universais para cobertura universal?

A apreensão de que o conceito de universalidade no período analisado era

utilizado como ampliação de acesso, demonstra que não havia uma tensão discursiva em

relação ao termo. No entanto, identificou-se a disputa entre a defesa da ampliação do

direito à saúde versus a ampliação da oferta de serviços de saúde.

O que se percebe no debate atual, na verdade, é uma reedição deste conflito,

onde o conceito de sistemas de saúde universais está atrelado à ideia de direito à saúde e

o conceito de cobertura universal está atrelado à ideia de ampliação da oferta de

serviços de saúde. Porém, diferentemente do debate constituído na VIII CNS, a

ampliação da oferta de serviços de saúde no período atual admite o setor privado

lucrativo como um prestador de serviço.

Portanto, o que se observa no presente cenário da saúde é uma ênfase, ou uma

emergência, do sentido relacionado à ampliação de oferta de serviços – atualmente

denominada cobertura universal – em detrimento da ideia de direito a saúde,

representado pela defesa dos sistemas de saúde universais.

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Esta constatação, por sua vez, torna de grande importância uma investigação que

pretenda explorar melhor as condições de possibilidades que permitiram e vem

permitindo no cenário atual a emergência deste sentido de universalidade. Vale

destacar, que este sentido emergente distancia-se significativamente dos valores e ideais

concebidos e propagados pelo movimento sanitário. Portanto, faz-se mister a indagação

dos motivos que hoje levam o debate da saúde no Brasil a afastar-se cada vez mais das

propostas que possibilitariam a realização de uma efetiva Reforma Sanitária.

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ANEXOS

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ANEXO I - EXEMPLO DA TABELA UTILIZADA PARA A ANÁLISE

DOCUMENTAL

RELATÓRIO FINAL DA VIII CNS

FICHA:

Data: 17 a 21 de março de 1986

Ministro da saúde: Roberto Figueira Santos

Ministro da Previdência e Assistência Social: Raphael de Almeida Magalhães

Comissão Organizadora da 8ª CNS:

Presidente: Professor Antonio Sérgio da Silva Arouca

Vice- Presidente: Doutor Francisco Xavier da Silva Arouca

Relator geral: Professor Guilherme Rodrigues da Silva

Participantes: 4.000 pessoas, dentre as quais 1.000 delegados

Breve descrição do documento:

O documento descreve as principais discussões e decisões ocorridas durante a 8ª CNS.

Os temas discutidos foram: Saúde como Direito; Reformulação do Sistema Nacional de

Saúde e Financiamento Setorial.

Observações:

Em um primeiro momento, o sentido de universalidade que emerge nesse documento

relaciona-se, sobretudo, a ideia de construção de um sistema universal e a saúde como

um conceito amplo.

Trecho Página Sentido/ Análise

Universalidade

“(...) a partir da 8ª CNS deverá ser

deflagrada uma campanha nacional em

defesa do direito universal à saúde,

contra a mercantilização da medicina e pela

melhoria dos serviços públicos ...

p.08

- Saúde aqui como direito social, desvinculado à ideia de

mercantilização.

“b) atinentes às condições de acesso e

qualidade:

- universalização em relação à cobertura

populacional a começar pelas áreas

carentes ou totalmente desassistidas;

p.11 item

2-

Reformul

ação do

SNS

- Aqui pareceu ser um sentido mais voltado para a extensão

da cobertura, sobretudo pelo destaque “a começar pelas áreas

carentes ou totalmente desassistidas”.

Direito à Saúde

“Direito à saúde significa a garantia, pelo

Estado, e condições dignas de vida e de

acesso universal e igulitário às ações e

serviços de promoção, proteção e

recuperação de saúde, em todos os seus

níveis, a todos os habitantes do território

nacional, levando ao desenvolvimento

pleno do ser humano em sua

individualidade.”

p. 04

Tema 1-

Saúde

como

Direito

- Direito à saúde aqui expressa um sentido mais amplo do

conceito de saúde. Além disso, ressalta a responsabilidade

do Estado em garantia desse direito.

“ As limitações e obstáculos ao

desenvolvimento e aplicação do direito à

saúde são de natureza estrutual”

p.05 - Nesse sentido, para a efetivação do direito à saúde, faz-se

necessário uma mudança de caráter estrutural , logo

atribuindo mais uma vez a importância e o papel do Estado

como aquele que deve garantir o direito à saúde.

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Item 11- “ O Estado tem como

responsabilidades básicas quanto ao direito

à saúde:

- a adoção de políticas socias e economicas

que propiciem mehores condições de vida,

sobretudo, para os segmentos mais carentes

da população;

-definição, financimento e administração

de um sistema de saúde de acesso

universal e igualitário;

-operação descentralizada de serviços de

saúde;

-normatização e controle das ações de

saúde desenvolvidas por qualquer agente

público ou privado de forma a garantir

padrões de qualidade adequados.

p.07 - Idem a observação acima. Destaca : sistema de saúde de

acesso universal e igualitário

Item 12- “ Para assegurar o direito à saúde

a toda a população brasileira é

imprescindível:

- garantir uma Assembleia Nacional

Constituinte livre, soberana, democrática,

popular e exclusiva;

- assegurar na Constituição, a todas as

pessoas, as condições fundamentais de uma

existência digna, protegendo o acesso a

emprego, educação, alimentação,

remuneração justa e propriedade da terra

aos que nela trabalham, assim como o

direito à organização e o direito de greve;

-suspender imediatamente o pagamento dos

juros da dívida externa e submeter à

decisão da nação, via Assembléia Nacional

Constituinte, a proposta de não pagamento

da dívida externa;

-implantar uma reforma agrária que

responde às reais necessidades e aspirações

dos trabalhadores rurais e que seja

realizada sob controle destes;

- estimular a participação da população

organizada nos núcleos decisórios, nos

vários níveis, assegurado o controle social

sobre as ações do Estado.

- fortalecer os Estados e Municípios,

através de uma ampla reforma fiscal e

tributária;

- estabelecer compromissos orçamentários

ao nível da União, estados e municípios

para o adequado financiamento das ações

de saúde.

p.07

“(...) para que se inscrevam na futura

Constituição: (...)

-a garantia da extensão do direito à saúde

e do acesso igualitários às ações e serviços

de promoção, proteção e recuperação da

saúde, em todos os níveis, a todos os

habitantes do território nacional;

p.08 -idem com destaque para “direito à saúde e do acesso

igualitário(...) a todos os habitantes do território nacional”.

Não há, portanto uma ideia de focalização.

Estatização do

Sistema Nacional de

Saúde

“A questão que talvez mais tenha mais

mobilizado os participantes e delegados foi

a natureza do novo Sistema Nacional de

Saúde: se estatizado ou não, de forma

imediata ou progressiva. A proposta de

estatização imediata foi recusada, havendo

consenso sobre a necessidade de

fortalecimento e expansão do setor

público.”

p.02 - Esse trecho demonstra uma tensão no debate: entre os que

apoiavam a estatização imediata e os que apoiavam a

progressiva. Já aponta a meu ver uma dificuldade de instaurar

um sistema de saúde de cunho universal...

“a caracterização dos serviços de saúde

como públicos e essências.”

p.09 -ênfase no caráter público dos serviços de saúde.

“4- o principal objetivo a ser alcançado é o

Sistema único de saúde, com expansão e

fortalecimento do setor estatal em níveis

federal, estadual e municipal, tendo como

meta uma progressiva estatização do

setor.”

p.12 - Estatização progressiva. Saúde responsabilidade do Estado.

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Acesso Universal “Direito à saúde significa a garantia, pelo

Estado, de condições dignas de vida e de

acesso universal e igulitário às ações e

serviços de promoção, proteção e

recuperação de saúde, em todos os seus

níveis, a todos os habitantes do território

nacional, levando ao desenvolvimento

pleno do ser humano em sua

individualidade.”

p.04 Tema

1- Direito

à saúde

- Mesmo sendo aqui o termo acesso universal, parece ser esse

um sentido ainda voltado para a questão de sistema universal

de saúde, principalmente por entender que é dever do Estado.

“ Deste conceito amplo de saúde e desta

noção de direito como conquista social,

emerge a ideia de que o pleno exercício do

direito à saúde implica em garantir: (...) –

acesso universal e igualitário aos serviços

setoriais em todos os níveis.”

p.04 Idem

b)(...)

-equidade em relação ao acesso dos que

necessitam de atenção.

p.11 item

2-

Reformul

ação do

SNS

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ANEXO II - QUADRO COM A COMISSÃO ORGANIZADORA DA VIII CNS

Presidente

Doutor Antonio Sérgio da Silva Arouca

Vice Presidente

Doutor Francisco Xavier Bedusch

Relator geral

Doutor Guilherme Rodrigues da Silva

Relatores

Doutor Solon Magalhes Viana

Doutor Roberto Passos Nogueira

Comitê Executivo Secretário

Doutor Otávio Clementino de

Albuquerque

Secretário Adjunto

Doutor Edimilson Francisco dos Reis

Duarte

Tesoureiro

Doutora Maria Salete de Lima

Membros

Senador Lourival Baptista

Deputado Arnaud Carneiro

Doutor Ronei Edmar Ribeiro

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ANEXO III- QUADRO COM OS TRABALHOS UTILIZADOS PARA A

CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE DA VIII CNS

Trabalhos Expositor

Descentralização e Democratização do

Sistema de Saúde

Cristina de Albuquerque Possas

Reordenamento do Sistema Nacional de

Saúde

Eleutério Rodriguez Neto

Reordenamento do Sistema Nacional de

Saúde

Eugênio Vilaça Mendes

Participação Social em Saúde Francisco de Assis Machado

Participação Social em Saúde:

Experiência do Paraná

Luiz Cordoni Júnior

Descentralização e Municipalização Nelson Rodrigues dos Santos

Financiamento do Setor Saúde Vítor Gomes Pinto

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ANEXO IV – LISTA DOS TEMAS ESPECÍFICOS TRABALHADOS NOS

GRUPOS DE TRABALHO DA VIII CNS

TEMAS ESPECÍFICOS

1. Saúde e trabalho

2. Vigilância epidemiológica (grandes endemias, doenças evitáveis por

imunização, AIDS).

3. Saúde e Sistema Ecológico

4. Saúde, Produção e Distribuição de Alimentos

5. Medicamentos e Imunobiológicos

6. Saúde Oral

7. Sangue e Hemoderivados

8. Reprodução Humana

9. Práticas Alternativas de Saúde

10. Recursos Humanos

11. Saúde e Políticas Sociais

Migrações

Direito previdenciário

Cultura

Lazer

12. Saúde mental

13. Saúde e Proteção ao Consumidor

14. Infecção Hospitalar

15. Ciência e Tecnologia

16. Administração em saúde

17. Saúde e os Direitos da Mulher

18. Saúde e Violência

19. A Saúde e os Direitos da Criança

20. Proteção à Saúde do índio

21. Proteção à Saúde dos Deficientes Físicos

22. Proteção à Velhice e às Políticas Sociais

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