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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 37, n. 3, 3601 (2015) www.sbfisica.org.br DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173731794 Hist´oriadaF´ ısica e Ciˆ encias Afins Panorama geral da obra astronˆomica de Kepler (General overview on Kepler’s astronomical work) C.M. Porto 1 Departamento de F´ ısica, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Serop´ edica, RJ, Brasil Recebido em 6/11/2014; Aceito em 1/2/2015; Publicado em 30/9/2015 Nesse trabalho apresentamos uma vis˜ao panorˆamica da obra astronˆomica de Johannes Kepler. Tratamos, em ordem cronol´ogica, dos quatro principais livros relacionados ao tema por ele escritos, a saber, Mist´ erio Cos- mogr´ afico, Astronomia Nova, Harmonia dos Mundos e Epitome de Astronomia Copernicana, a fim de evidenciar as etapas hist´oricas do desenvolvimento do pensamento cient´ ıfico do autor. Procuramos ressaltar a presen¸ca nesse pensamento de um elemento filos´ofico-teol´ ogico e de uma concep¸c˜ ao f´ ısica fortemente determinantes, pa- ralelamente a um orienta¸ aometodol´ogicaj´asignificativamentet´ ıpica da ciˆ encia moderna, ent˜ ao nascente. Palavras-chave: Kepler, revolu¸ aoastronˆomica. In this work we give a general overview on Johannes Kepler’s astronomical work. We treat, in a chronological order, the four most important books related to the issue written by him, namely, the Mysterium Cosmographi- cum, the Astronomia Nova, The Harmony of the Worlds and Epitome of Copernican Astronomy, in order to make clear the historical stages of the development of the author’s scientific thought. We tried to emphasize the rather determining presence in his thought of a philosophical-theological element and a physical conception, as well as a methodological inclination already typical of the emerging modern science. Keywords: Kepler, astronomical revolution. 1. Introdu¸c˜ ao Johannes Kepler nasceu em 1571, na cidade de Weil, Alemanha. Figura entre os grandes personagens que deram curso `a imensa transforma¸c˜ ao no pensamento ocidental ocorrida nos S´ eculos XVI e XVII e denomi- nada de “Revolu¸c˜ ao Cient´ ıfica” [1–4]. Kepler deu contribui¸c˜ oes em v´arias ´areas do conhe- cimento, como a Matem´atica, a ´ Optica e a Astrono- mia [5], por´ em foi a esta ´ ultima que seu nome ficou inde- levelmente associado, sobretudo atrav´ es das leis dos mo- vimentos planet´arios por ele formuladas. No entanto, sua importˆancia para a ciˆ encia vai al´ em do conte´ udo objetivo dessas leis; Kepler reformulou profundamente aconcep¸c˜ ao cient´ ıfica prevalecente em sua ´ epoca, intro- duzindo o embri˜ ao de v´arias ideias que, posteriormente, sob o desenvolvimento de outros cientistas e pensado- res, tornaram-se a base da vis˜ao f´ ısica moderna [1, 6]. Na realidade, h´a na obra de Kepler um forte ele- mento norteador, de natureza filos´ofico-teol´ ogica, que se expressa em uma cren¸ca enf´atica no ordenamento ma- tem´atico do Universo [6] e se revela, por exemplo, em seu modelo cosmol´ogico dos s´olidos geom´ etricos e em suas harmonias celestiais. Esse elemento, que constitui uma base epistˆ emica (no sentido da palavra que lhe d´a Foucault [7]) de seu pensamento, foi, de longe, o que gerou maiores desconfortos `a posteridade, sendo du- ramente criticado por historiadores do Iluminismo [8]. Mesmo em ´ epoca bem mais recente, na primeira me- tade do S´ eculo XX, Alexandre Koyr´ e chama a aten¸c˜ ao para o fato de que a obra de Kepler n˜ao teve, durante a vida de seu autor, qualquer seguidor e que suas vis˜oes cosmol´ ogicas foram rejeitadas por seus contemporˆaneos e pelos que vieram ap´os [6]. Ainda segundo Koyr´ e, as cita¸c˜ oes de Kepler durante a primeira metade do S´ eculo XVII praticamente se resumiram a Pierre Gassendi e Ismael Boulliaud. No entanto, esse elemento acima mencionado, que o leitor atual muitas vezes tende a considerar descon- certantemente idiossincr´atico, n˜ao foi o ´ unico princ´ ıpio norteador presente em sua obra; nem sequer o mais de- terminante para os desenvolvimentos que constitu´ ıram seu legado mais importante para a ciˆ encia futura. Este ıtulo poder´ ıamos certamente conferir a sua concep¸c˜ ao de que o modelo astronˆomico assentasse suas bases so- bre a identifica¸ ao de uma estrutura f´ ısica causal real dos movimentos planet´arios e n˜ao em uma mera des- cri¸c˜ ao geom´ etrica deles [6] [8]. Foi essa concep¸c˜ ao que 1 E-mail: [email protected]. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 37, n. 3, 3601 (2015)www.sbfisica.org.brDOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173731794

Historia da Fısica e Ciencias Afins

Panorama geral da obra astronomica de Kepler(General overview on Kepler’s astronomical work)

C.M. Porto1

Departamento de Fısica, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropedica, RJ, BrasilRecebido em 6/11/2014; Aceito em 1/2/2015; Publicado em 30/9/2015

Nesse trabalho apresentamos uma visao panoramica da obra astronomica de Johannes Kepler. Tratamos,em ordem cronologica, dos quatro principais livros relacionados ao tema por ele escritos, a saber, Misterio Cos-mografico, Astronomia Nova, Harmonia dos Mundos e Epitome de Astronomia Copernicana, a fim de evidenciaras etapas historicas do desenvolvimento do pensamento cientıfico do autor. Procuramos ressaltar a presencanesse pensamento de um elemento filosofico-teologico e de uma concepcao fısica fortemente determinantes, pa-ralelamente a um orientacao metodologica ja significativamente tıpica da ciencia moderna, entao nascente.Palavras-chave: Kepler, revolucao astronomica.

In this work we give a general overview on Johannes Kepler’s astronomical work. We treat, in a chronologicalorder, the four most important books related to the issue written by him, namely, the Mysterium Cosmographi-cum, the Astronomia Nova, The Harmony of the Worlds and Epitome of Copernican Astronomy, in order tomake clear the historical stages of the development of the author’s scientific thought. We tried to emphasize therather determining presence in his thought of a philosophical-theological element and a physical conception, aswell as a methodological inclination already typical of the emerging modern science.Keywords: Kepler, astronomical revolution.

1. Introducao

Johannes Kepler nasceu em 1571, na cidade de Weil,Alemanha. Figura entre os grandes personagens quederam curso a imensa transformacao no pensamentoocidental ocorrida nos Seculos XVI e XVII e denomi-nada de “Revolucao Cientıfica” [1–4].

Kepler deu contribuicoes em varias areas do conhe-cimento, como a Matematica, a Optica e a Astrono-mia [5], porem foi a esta ultima que seu nome ficou inde-levelmente associado, sobretudo atraves das leis dos mo-vimentos planetarios por ele formuladas. No entanto,sua importancia para a ciencia vai alem do conteudoobjetivo dessas leis; Kepler reformulou profundamentea concepcao cientıfica prevalecente em sua epoca, intro-duzindo o embriao de varias ideias que, posteriormente,sob o desenvolvimento de outros cientistas e pensado-res, tornaram-se a base da visao fısica moderna [1, 6].

Na realidade, ha na obra de Kepler um forte ele-mento norteador, de natureza filosofico-teologica, que seexpressa em uma crenca enfatica no ordenamento ma-tematico do Universo [6] e se revela, por exemplo, emseu modelo cosmologico dos solidos geometricos e emsuas harmonias celestiais. Esse elemento, que constitui

uma base epistemica (no sentido da palavra que lhe daFoucault [7]) de seu pensamento, foi, de longe, o quegerou maiores desconfortos a posteridade, sendo du-ramente criticado por historiadores do Iluminismo [8].Mesmo em epoca bem mais recente, na primeira me-tade do Seculo XX, Alexandre Koyre chama a atencaopara o fato de que a obra de Kepler nao teve, durante avida de seu autor, qualquer seguidor e que suas visoescosmologicas foram rejeitadas por seus contemporaneose pelos que vieram apos [6]. Ainda segundo Koyre, ascitacoes de Kepler durante a primeira metade do SeculoXVII praticamente se resumiram a Pierre Gassendi eIsmael Boulliaud.

No entanto, esse elemento acima mencionado, queo leitor atual muitas vezes tende a considerar descon-certantemente idiossincratico, nao foi o unico princıpionorteador presente em sua obra; nem sequer o mais de-terminante para os desenvolvimentos que constituıramseu legado mais importante para a ciencia futura. Estetıtulo poderıamos certamente conferir a sua concepcaode que o modelo astronomico assentasse suas bases so-bre a identificacao de uma estrutura fısica causal realdos movimentos planetarios e nao em uma mera des-cricao geometrica deles [6] [8]. Foi essa concepcao que

1E-mail: [email protected].

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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fez Kepler, por exemplo, rejeitar modelos astronomicosanteriores para a orbita do planeta Marte em favorde uma nova proposta, gradualmente elaborada a par-tir das evolucoes de sua analise do problema, mesmoquando essas versoes anteriores produziam erros bas-tante toleraveis do ponto de vista observacional.

Alias, essa questao da forma das orbitas planetariasevidencia um aspecto metodologico de seu pensamentoja bastante caracterıstico da ciencia empırica moderna,entao nascente: formulacao de hipoteses e confrontacaometiculosa com as observacoes experimentais [8,9]. Foi,portanto, de nosso interesse salienta-lo, apresentandoas diversas etapas da detalhada analise kepleriana doproblema. Nesse ponto, a historiografia da ciencia foifacilitada pela peculiar disposicao de Kepler em apre-sentar as sucessivas tentativas e elaboracoes de seu pen-samento [6].

Esse trabalho tem por objetivo, portanto, apresen-tar uma visao historica panoramica dos desenvolvimen-tos astronomicos propostos por Kepler, tendo em pers-pectiva os estudos de historia da fısica presentes emdiversas matrizes curriculares de cursos de licenciaturanesta ciencia. Nao se trata, decerto, de uma leituraoriginal dessa obra cientıfica, que encontra excelentesanalises nas referencias citadas [6, 8, 10], mas uma ten-tativa, ancorada em nossa experiencia docente na areae na percepcao de uma relativa escassez de literaturadidatica em portugues relacionada ao tema, de contri-buir para a elaboracao de material que possa ser apro-veitado no ensino de disciplinas de carater historico.Optamos por acompanhar a sequencia cronologica dasobras, de forma a analisar os progressos gradualmenteefetuados pelo autor. Assim sendo, dedicamos umasecao a cada um dos principais livros relacionados di-retamente ao tema: o Misterio Cosmografico [11], de1596, a Astronomia Nova [12], de 1609, a Harmoniados Mundos [13], de 1619 e, por fim, o Epitome de As-tronomia Copernicana [14], publicado em tres partes,entre 1618 e 1621.

No tocante a bibliografia apresentada, com a preo-cupacao de sugerir as referencias mais acessıveis e, as-sim, reforcar o carater de divulgacao deste texto, demospreferencia, sempre que possıvel, as edicoes brasileiras,solicitando de antemao perdao pela omissao das queeventualmente nao forem do nosso conhecimento.

2. O Misterio Cosmografico

Kepler adquiriu de seu mestre, o astronomo MichaelMastlin, a firme conviccao da correcao do sistema co-pernicano, admirando a maneira pela qual, atraves dahipotese heliostatica, diversas caracterısticas dos movi-mentos planetarios se explicavam de forma bem maisnatural do que no sistema ptolomaico. Entretanto, opensamento de Kepler nao se satisfazia com os suces-

sos obtidos por Copernico. Pelo contrario, ansiava poruma explicacao causal mais fundamental para diversosaspectos da estrutura do Universo, como, por exemplo,o numero de planetas e a duracao de seus perıodos derevolucao em torno do Sol, que, em seu entendimento,mantinham-se no nıvel meramente constatatorio no sis-tema copernicano.

E eu nao hesito em afirmar que tudoo que Copernico estabeleceu a posteriori edemonstrou atraves de observacoes ou pormeio de axiomas da geometria, tudo issopode ser demonstrado a priori e sem qual-quer dificuldade, (...) [15]

e, ainda,

E havia entao, particularmente, tres coi-sas que eu buscava com obstinacao por queeram dessa maneira e nao de outra, a sa-ber: o numero, a grandeza e o movimentodas esferas. O que me impelia a atacaresse problema e a bela harmonia das coi-sas imutaveis, Sol, Estrelas Fixas e o espacointermediario, com Deus-Pai, o Filho e oEspırito Santo, similitude que eu desenvol-verei mais a fundo na minha Cosmografia.Eu nao duvidava de que, uma vez que as coi-sas imutaveis apresentavam essa harmonia,as coisas moveis tambem devessem apresen-tar alguma. [16]

Com esse objetivo em vista, Kepler mergulhou emuma analise de possıveis relacoes matematicas entre asorbitas dos planetas. Investigou proporcoes entre osraios do que seriam as esferas planetarias tradicionais,buscando identificar se esses raios guardavam entre sialguma relacao numerica simples. Fez o mesmo, naomais para os raios diretamente, mas para a diferencaentre eles. No entanto, suas investigacoes nesta direcaonao tiveram exito.

A partir daı, Kepler se voltou para uma tentativa denatureza geometrica, buscando relacionar, atraves deconstrucoes geometricas envolvendo, por exemplo, figu-ras planas, os raios de esferas cristalinas subsequentes.Novamente, suas tentativas nesse sentido se mostraraminfrutıferas.

Foi entao que ocorreu a Kepler buscar relacoes, naomais entre os raios das esferas planetarias e numerosou figuras planas, mas entre esses raios e solidosgeometricos. Seu pensamento voltou-se, pois, para ospoliedros regulares, conhecidos desde os gregos e emnumero de cinco: tetraedro, cubo, octaedro, dodeca-edro e icosaedro. Imaginou, entao, um sistema cos-mologico-geometrico de poliedros regulares inscritos e

2A esfera de Mercurio estaria inscrita em um octaedro, por sua vez inscrito na esfera de Venus; esta esfera estaria inscrita em umicosaedro; a da Terra em um dodecaedro; a de Marte em Tetraedro; a de Jupiter em um cubo, finalmente inscrito na esfera de Saturno

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circunscritos em esferas; cada esfera planetaria circuns-creveria um dos solidos perfeitos e, ao mesmo tempo, es-taria inscrita em outro, como mostra a Fig.1.2 Como hacinco poliedros desta natureza, haveria a necessidade deseis esferas cristalinas para a realizacao deste esquema.Uma vez que cada planeta estaria acoplado a uma es-fera cristalina, explicaria-se, deste modo, a existenciade exatamente seis planetas, e nao cinco ou sete, ale-atoriamente. No entendimento de Kepler, superava-seassim o nıvel simplesmente descritivo da concepcao doCosmos proposta por Copernico, estabelecendo-se umabase explicativa mais fundamental para sua estrutura.

Com efeito, que poderıamos dizer ouimaginar de mais admiravel ou de maisproprio a persuadir do que isso: o queCopernico, a partir dos “fenomenos”, a par-tir dos efeitos, a posteriori, estabeleceu, pormeio de uma conjectura mais feliz do quepropriamente assegurada, como um cegoque assegura sua marcha por uma bengala(como ele mesmo se acostumara a dizer aRheticus), isso que ele cria que se passavaverdadeiramente dessa forma, sim, muitobem, e isso que se demonstrara perfeita-mente estabelecido a partir de argumentosa priori, das causas e da Criacao. [17]

A euforia de Kepler foi ainda mais intensa quandoobservou que, para o funcionamento geometrico destesistema cosmologico era necessario que os raios das esfe-ras inscritas e circunscritas correspondessem bem apro-ximadamente as distancias entre o Sol e os planetas,estabelecidas segundo o modelo de Copernico.

Enfim, no dia 20 de julho, em meio auma torrente de lagrimas (a exemplo da-quele que gritou “Heureka”!), eu descobri omodo e a causa do numero seis de esferas ede suas distancias, (...) [18]

Para esta comparacao, Kepler utilizou as distanciasreais entre o Sol e os planetas e nao a distancia entreesses e o centro da esfera terrestre, o qual nao coincidiacom a posicao do Sol, ja que, de acordo com o mo-delo copernicano, este se situava excentricamente. Aofaze-lo, Kepler atribuıa ao posicionamento do Sol umaimportancia compatıvel com o novo status adquiridopor aquele astro no Universo copernicano.

Esse modelo cosmologico foi apresentado em seulivro O Misterio Cosmografico, de 1596, enviado aMastlin, que o acolheu muito favoravelmente.

Figura 1 - Modelo cosmologico dos solidos geometricos de Kepler.

Alem dessa construcao geometrica, Kepler apresen-tou nesse livro um outro elemento, que seria o em-briao de um importantıssimo desenvolvimento para adinamica dos movimentos planetarios, tal como os des-creveu posteriormente. Esse elemento a que nos referi-mos foi a discussao a respeito da causa dos movimentosdos planetas.

Kepler analisou os diferentes perıodos de revolucaodos planetas em torno do Sol em termos de suasdistancias aquele astro. Observou que, quanto maiora distancia, maior o perıodo. Isso poderia ser explicadopelo fato de que, quanto maior a distancia, maior aextensao da orbita. Entretanto, o perıodo nao aumen-tava proporcionalmente a distancia, porem mais rapi-damente. Kepler concluiu entao que o aumento da ex-tensao da orbita nao era a unica razao para o aumentodo perıodo; para ele a “acao” motora responsavel pelomovimento decresceria com a distancia.

E preciso agora refletir sobre o meio dedeterminar a proporcao que buscamos. Viu-se anteriormente que, se somente a ampli-tude da esfera contribuısse para aumentar operıodo, deverıamos encontrar a mesma di-ferenca entre os movimentos e as distanciasmedias. Por exemplo, a relacao entre os 88dias do perıodo de Mercurio e os 225 dias doperıodo de Venus deveria ser a mesma queentre o semi-diametro da esfera de Mercurioe o da esfera de Venus. Ora, o enfraqueci-mento da alma motriz no caso do astro maisafastado se mistura a relacao entre os mo-vimentos. [19]

Diante disso, havia duas alternativas: uma “acao”motora diferente para cada planeta, de naturezaanımica, isto e, um princıpio de movimento proprio docorpo celeste, que, por alguma razao, diminuıa com adistancia ao Sol, ou uma unica acao motora para todos,cuja fonte seria o Sol e que, por este motivo, diminuıaconforme o planeta estivesse mais distante dele (Sol).

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Para Kepler a segunda interpretacao constituiria umaalternativa mais logicamente fundamentada.

Entretanto, se quisermos nos aproximarainda mais da verdade e encontrar qualquerregularidade nas proporcoes, de duas coisasuma: seria preciso admitir (2) que quantomais afastadas estejam as almas motrizesdo Sol, mais elas serao fracas; ou entao (3)que ha apenas uma alma motriz, localizadano centro de todas as esferas ( quer dizer,no Sol), que move tao mais vigorosamenteum corpo qualquer quanto mais proximo eleesteja dela e que, nos corpos mais afasta-dos, em razao de seu afastamento e da di-minuicao de sua forca, se enfraquece. Damesma forma, entao, que a fonte da luz estano Sol e o princıpio do cırculo esta no lugardo Sol, quer dizer, no centro, eis que a vida,o movimento e a alma do mundo retornama este mesmo Sol, de sorte que aos fixos per-tence o repouso, aos planetas o ato segundo,que e o movimento, ao Sol o ato primeiroele mesmo, que e incomparavelmente maisdigno do que os atos segundos em todas ascoisas(...) [19]

Assim, Kepler concluiu que, de fato, o princıpio mo-triz dos movimentos planetarios estava localizado no Sole, deste modo, a distancia realmente determinante se-ria aquela entre os planetas e este astro e nao entre osplanetas e o centro da esfera terrestre, onde nao haviacorpo material algum, porquanto o modelo mantinha acaracterıstica excentrica do sistema ptolomaico, apenasinvertendo os papeis do Sol e da Terra.

Kepler ainda analisou nesse livro possıveis relacoesnumericas especıficas entre os perıodos das orbitas pla-netarias e seus raios. Chegou a alguns resultados preli-minares, porem equivocados em relacao ao que posteri-ormente se mostrou correto e que ficou conhecido comosua terceira lei. Esta so seria apresentada na obra Har-monia dos Mundos, quase vinte anos mais tarde.

3. Astronomia Nova

Em 1609, Kepler publicou sua obra Astronomia Nova.Entre essa publicacao e a do Misterio Cosmograficopassaram-se mais de dez anos e ocorreu um eventoverdadeiramente crucial para a trajetoria cientıfica doautor: em 1600 ele se tornou colaborador do grandeastronomo dinamarques Tycho Brahe, obtendo acessoao imenso conjunto de dados astronomicos por elecoletados, notorios pela sua abrangencia e precisao.Em particular, Brahe deu a Kepler conhecimento de

seus dados observacionais referentes ao planeta Marte,atribuindo-lhe a tarefa do estudo e da descricao do mo-vimento desse planeta, segundo as bases do modelo queele proprio, Tycho, havia concebido. Kepler conferiu aesse encontro e a tarefa que dele decorreu um caraterquase sobrenatural, uma intervencao da ProvidenciaDivina em favor da elaboracao de sua obra astronomica.

E verdade que a voz Divina, que nos en-coraja a estudar astronomia, se expressa noproprio mundo, nao em palavras ou sılabas,mas nas proprias coisas e na conformidadedo intelecto e dos sentidos humanos coma sequencia dos corpos celestes e de suasdisposicoes. Entretanto, existe um outrotipo de destino, por cuja agencia varios in-divıduos sao impelidos em direcao a de-terminadas artes, que os deixam certos deque, assim como sao uma parte da obra daCriacao, igualmente partilham em algumamedida da providencia divina. [20]

e

Eu, portanto, uma vez mais, pensoque aconteceu por arranjo divino queeu chegasse no momento em queele[Longomontanus] estava envolvido comMarte, cujos movimentos proporcionam ounico acesso possıvel aos segredos da as-tronomia, sem o qual nos permanecerıamospara sempre ignorantes desses segredos. [21]

De fato, a orbita de Marte, pelas suas carac-terısticas, mais precisamente, sua maior excentricidadese comparada a dos demais planetas, excetuando-seMercurio, ofereceu a Kepler um desafio de grande vulto,resistindo as tentativas de modela-la atraves das for-mas circulares ate entao adotadas desde a antiguidade(ainda que fosse de forma combinada e nao elementar) elevando-o, finalmente, ao abandono desse padrao circu-lar. Nessa analise, Kepler retomou e aprofundou diver-sos elementos ja esbocados no Misterio Cosmografico.

3.1. O problema da nao uniformidade dos mo-vimentos planetarios

Realmente, de inıcio, Kepler tentou modelar os dadosde Brahe referentes a Marte em termos de uma orbitacircular em torno do Sol, situado, no entanto, ligeira-mente fora de seu centro. Kepler tentou reproduzir osdados observacionais atribuindo ao planeta velocidadesdiferentes ao longo da orbita: conforme os pontos daorbita estivessem mais proximos ou mais afastados doSol, a velocidade do planeta nessas posicoes seria, res-pectivamente, maior ou menor.

3O equanto seria um ponto em torno do qual os planetas, em sua orbita, descreveriam angulos a ritmos constantes, isto e, tomando-ocomo vertice do angulo subentendido pelo arco de cırculo descrito pelo planeta em um certo tempo, para intervalos de tempo iguais,esses angulos seriam iguais

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Nessa analise Kepler restabeleceu a ideia doequanto,3 utilizada por Ptolomeu e repudiada porCopernico, para quem a violacao do princıpio da uni-formidade dos movimentos celestes era uma das prin-cipais distorcoes a serem eliminadas pelo seu modeloheliostatico. De fato, segundo Kepler, assim comono modelo ptolomaico, haveria um ponto, nao mate-rial, em torno do qual os planetas descreveriam arcosa um ritmo constante. Entretanto, em lugar de as-sumir a priori, concordando com Ptolomeu, que esseponto se localizasse simetricamente disposto ao Sol emrelacao ao centro da orbita, Kepler procurou determi-nar sua localizacao a partir dos dados experimentais.Realizada essa analise, porem, constatou que as ob-servacoes astronomicas lhe forneciam dados conflitantesem relacao ao posicionamento do equanto; era como seesse ponto se deslocasse ao longo da reta que unia ocentro da orbita ao Sol, comportamento esse bastanteimplausıvel.

Ainda que surpreendido pela mencionada cons-tatacao, Kepler prosseguiu sua analise, utilizando osdados de Marte apresentados por Brahe para estudar asituacao do planeta Terra. Como se sabe, o modelo deCopernico propunha o Sol estatico, com os planetas agirar em torno dele, presos as esferas cristalinas introdu-zidas por Aristoteles; conforme ja dissemos, nesse mo-delo o Sol nao se situava no centro do Universo, e, porconseguinte, das esferas celestes, mas em uma posicaoexcentrica. Entretanto, Tycho Brahe propos um mo-delo astronomico alternativo ao de Copernico, em quea Terra se mantinha estatica, com o Sol orbitando emtorno dela, enquanto os demais planetas giravam emtorno dele. Segundo o modelo de Copernico, o movi-mento que nos atribuımos ao Sol seria, na verdade, ummovimento aparente, devido ao movimento de nossoproprio planeta. Ja segundo Brahe, o movimento doSol seria um movimento real, enquanto a Terra perma-neceria parada. Kepler considerou indistintamente asduas possibilidades e, a partir dos dados experimentaisrelacionados a Marte, chegou a conclusao de que, quemquer que realmente se movimentasse, fosse a Terra ouo Sol, tambem descreveria uma orbita com velocidadenao uniforme.

Partindo entao das premissas copernicanas, Keplerprocurou descrever o movimento da Terra em tornodo Sol em termos de uma orbita circular, nao cen-trada nele. Do mesmo modo, partindo das premissasde Brahe, procurou descrever o movimento do Sol emtorno da Terra de maneira analoga. Em ambos os ca-sos, Kepler observou que os dados indicavam movimen-tos tao mais rapidos quanto mais proximos os corpos,seja a Terra ou o Sol, estivessem daquele em torno doqual orbitavam. Haveria um equanto para ambos osmovimentos, qualquer que fosse o caso.

Contudo, agora que temos a confirmacaode uma astronomia mais aprimorada, deve

ficar claro, que de fato, e necessaria aexistencia de um equanto na teoria do Solou da Terra. [22]

3.2. Quem move os planetas?

Confrontado com a nao uniformidade do movimento,que para ele constituıa uma evidencia,

Pois, quer seja a Terra ou o Sol a sermovido, foi certamente demonstrado que ocorpo que e movido e movido em uma ma-neira nao uniforme, isto e, mais lentamentequanto mais afastado do Sol, e mais rapida-mente quanto mais proximo a ele. [23]

Kepler se voltou para a necessidade de explicacao destefenomeno.

Nesse ponto, novamente se manifesta um aspectoda metodologia e da concepcao cientıfica de Keplerque o distingue claramente de seus antecessores: elenao se contentou com uma mera descricao cinematicados movimentos celestes, mas buscou uma compreensaodinamica das causas desses movimentos. Ao contrariode Ptolomeu, Copernico e Brahe, nao bastava para eledescrever com exatidao como se movem, mas porque semovem dessa maneira.

Meu proposito nesta presente obrae, principalmente, reformar a teoria as-tronomica (especialmente do movimento deMarte) nas tres formas de hipoteses, de talmodo que os calculos a partir das tabe-las correspondam aos fenomenos celestes.(...) Entretanto, embora tenha estabele-cido esse primeiro objetivo e perseguido-oanimadamente, tambem fiz uma incursao aMetafısica de Aristoteles, ou melhor, eu in-vestiguei a fısica celeste e as causas naturaisdo movimento. [24]

Segundo esse ponto de vista, a primeira questao ob-viamente que surge e: quem move os planetas? Notocante a esse ponto, Kepler era plenamente fiel a dou-trina aristotelica de que todo movimento exige umagente motor (somente em 1632 Galileu exporia emsua obra Dialogo sobre os dois Maximos Sistemas doMundo a concepcao da permanencia inercial do movi-mento). Portanto, antes de tudo era preciso identificaresse agente.

Lembremos que no modelo cosmologico-astronomicode Aristoteles os corpos celestes estavam presos as esfe-ras cristalinas homocentricas, que, ao girarem em tornodo centro do Universo (finito), movidas por inteligenciasimateriais associadas a cada uma delas, arrastavam osplanetas, fazendo com que descrevessem os movimen-tos orbitais observados. Em que pese a modificacao in-troduzida por Copernico nessa estrutura cosmologica,

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substituindo a Terra pelo Sol como referencia estaticaem torno da qual orbitavam os demais corpos celestes,ele ainda conservou a concepcao das esferas cristalinase, portanto, manteve intacta a natureza da explicacaoaristotelica dos movimentos observados. No entanto, asobservacoes efetuadas por Tycho Brahe de cometas, cu-jas trajetorias claramente transporiam as fronteiras de-limitadas pelas esferas planetarias, colocaram em xequea existencia material dessas esferas; afinal, como seriapossıvel que eles, em seu movimento, as atravessassem?Mas, o abandono da ideia da realidade material das es-feras celestes implicava tambem o abandono da ideia doagente motor externo, de natureza imaterial, dos movi-mentos planetarios.

Aceito esse cenario, novamente restavam duas al-ternativas para explicacao do movimento dos plane-tas: atribuir-lhes um princıpio interno de movimento,ou seja, uma alma interna motora, ou considerar umaoutra fonte externa, distinta das antigas esferas. Asreservas de Kepler em relacao a concepcao animistaeram bastante severas. Com efeito, Kepler era bas-tante cetico sobre a possibilidade de que uma inte-ligencia propria dos corpos governasse o seu movi-mento segundo uma determinacao matematica tao pre-cisa quanto aquela que observamos nas orbitas pla-netarias:

Alem disso, ultrapassa a nossa compre-ensao como essa forca animal poderia guiaros planetas atraves do espaco do Universo,onde nao ha esferas solidas, como TychoBrahe provou. [25]

Para Kepler, constituıa um elemento adicional deimplausibilidade o fato de as orbitas serem descritasem torno de um ponto central onde nao se situava, emnenhum dos modelos astronomicos propostos, qualquercorpo material, e, assim, as supostas almas motrizes te-riam de efetuar os movimentos tomando por base essareferencia imaginaria.

O planeta deve agora executar umaorbita perfeitamente circular atraves dopuro eter por meio de sua forca inerente,epicıclica no primeiro modelo e excentricano segundo. E portanto claro que o mo-vente teria duas tarefas: primeiramente, de-veria ter uma faculdade forte o suficientepara manter seu corpo em movimento, e,em segundo lugar, deveria ter suficiente co-nhecimento para encontrar um contorno cir-cular atraves do puro eter, que nao e, em simesmo, dividido desta forma. Essa e umafuncao da mente. Por favor, nao me falemque a alma tem uma aptidao inata parao movimento circular, exatamente como anatureza da pedra em cair em linha reta.Por que eu rejeito que Deus tenha criado

qualquer movimento perpetuo nao retilıneoque nao seja governado por uma mente.(...)Alem disso, e completamente impossıvelpara qualquer mente realizar uma trajetoriacircular sem a referencia de um centro oude algum corpo que que apareca sob ummaior ou menor angulo, conforme sua apro-ximacao ou seu recuo. Pois um cırculoe tanto definido como levado a perfeicaopelo mesmo criterio, qual seja, igualdade dedistancia ao centro. Nao importa quantasdessas faculdades motrizes voce estabelece,um cırculo, mesmo para Deus, nao e senao oque foi dito. Geometras, obviamente, mos-tram que, se dermos tre pontos sobre umacircunferencia, podemos tracar um cırculocontınuo, porem isso pressupoe que algumaporcao da circunferencia seja dada. Quem,entao, mostrara ao planeta esse espantosolugar, em conformidade com o qual seratracada o resto de sua trajetoria? [26]

Alem disso, se, por um lado, Kepler compartilhavacom Aristoteles a ideia de que todo movimento exige um(agente)“motor”, dele discordava em relacao a sua teo-ria dos lugares naturais. Com efeito, para Aristoteles oUniverso possuıa um ordenamento global que reservavaaos corpos um lugar adequado, conforme sua natureza,de tal forma que, uma vez deslocados desse lugar na-tural, esses corpos espontaneamente se movimentariamem direcao as posicoes originais. Para Kepler, nadade semelhante a essa predisposicao natural existia. SeuUniverso, embora tambem finito, nao possuıa esse orde-namento hierarquico segundo a natureza dos corpos. Seum corpo, quer terrestre ou celeste, fosse deixado emqualquer lugar, aı tenderia a permanecer; antes, pelocontrario, ofereceria uma resistencia ao deslocamentopara onde quer que fosse.

E entao, como foi demonstrado, consi-deremos estes axiomas, de grande certeza:primeiramente, que o corpo de um planetae inclinado por natureza a permanecer emrepouso em qualquer local em que seja co-locado. [27]

Para Kepler essa resistencia estava ligada a di-mensao material do corpo; quanto maior o corpo, maiora resistencia oferecida. Kepler denominou essa re-sistencia de “inercia” (note-se que o conceito de inerciaaqui introduzido e oposto a ideia de inercia formuladapor Galileu e traduzida quantitativamente por Newtonno conceito de massa inercial, isto e, a quantidade demateria do corpo, ja que traduz a ideia de que o movi-mento se mantem somente pela acao da forca motriz eque se extingue tao logo se extinga aquela). Por conse-guinte, nao seria em tendencias espontaneas dessa na-tureza que encontrarıamos a razao do movimento doscorpos planetarios.

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Observemos finalmente que, atraves dessas consi-deracoes, Kepler desfez um elemento fundamental dacosmologia aristotelica, qual seja, a divisao radical doUniverso em dois mundos essencialmente diferentes,terrestre (sublunar) e celeste ( supralunar), submeti-dos, por conseguinte, a leis completamente distintas.Portanto, a fısica, que ate entao se referia apenas a re-alidade terrestre, feita de uma materia distinta da domundo supralunar, passava a se aplicar tambem aos cor-pos celestes, segundo as mesmas regras. Nas palavrasdo grande historiador da ciencia Alexandre Koyre:

Apesar disso, a concepcao keplerianapossuiu uma importancia capital para ahistoria da ciencia. A questao: “a quo mo-veantur planetae”? [a partir do que se mo-vem os planetas?4] - que ele foi o primeiro,ou ao menos um dos primeiros, a se colocar- reuniu-se ao famoso problema: “a quo mo-veantur projecta”? [a partir do que se mo-vem os projeteis?5] - em torno do qual haviase cristalizado a crıtica da dinamica aris-totelica. E pode-se dizer que a ciencia mo-derna, uniao da fısica celeste e da fısica ter-restre, nasceu no dia em que foi possıvel dara mesma resposta a essa dupla questao. [28]

3.3. A forca do Sol sobre os planetas

Como vimos, examinando os dados dos planetas pro-porcionados por Tycho Brahe, porem referentes asposicoes de afelio e perielio (isto e, pontos da orbitaque estao mais afastados ou mais proximos do Sol, res-pectivamente), Kepler constatou que a velocidade domovimento planetario era inversamente proporcional adistancia do planeta ao Sol. Na verdade, hoje sabe-mos que se trata de uma conclusao equivocada, umavez que e verdadeira somente nas posicoes especifica-mente consideradas e nao de forma geral. Entretanto,Kepler tomou-a como se fosse geral. Esta premissa par-cialmente equivocada, aparentemente extraıda da ex-periencia, contribuiu, contudo, de maneira significativa,para a elaboracao de uma concepcao dinamica do mo-vimento planetario.

De fato, se o parametro relevante para a deter-minacao da velocidade do movimento era a distanciado planeta ao Sol, nada mais razoavel de se imagi-nar do que o Sol desempenhasse um papel fundamen-tal na dinamica do movimento, como Kepler ja ha-via comecado a pensar desde o Misterio Cosmografico.Somando-se esse aspecto com a concepcao de que a con-tinuidade deste movimento, como alias de qualquer ou-tro, requeria a atuacao permanente de um agente mo-tor, tornou-se para Kepler igualmente natural concluirque do Sol proviesse essa forca motriz dos planetas.

E entao, como foi demonstrado, consi-deremos estes axiomas, de grande certeza:primeiramente, que o corpo de um planetae inclinado por natureza a permanecer emrepouso em qualquer local em que seja co-locado. Em segundo lugar, que ele e trans-portado de uma posicao longitudinal paraoutra pelo poder que emana do Sol. [27]

Se assim fosse, a intensidade dessa forca diminui-ria tao mais quanto mais distante dele estivesse o pla-neta. Novamente segundo uma concepcao aristotelicado movimento, a velocidade seria proporcional a forcamotriz; por conseguinte, nas posicoes em que estivessemais distante do Sol, menor seria sua velocidade, emconcordancia com os dados observacionais de que Ke-pler dispunha.

A atribuicao deste papel motor ao Sol fornecia aKepler um argumento solido para descartar a ideia deque pontos nao ocupados por corpos materiais pudes-sem desempenhar qualquer papel relevante para a de-terminacao das orbitas planetarias, como ate entao vi-nham fazendo os modelos de Ptolomeu, Copernico eBrahe. Dito de outro modo, para Kepler nao apenasfazia sentido que os movimentos dos planetas fossemreferenciados a posicao real do Sol, como tambem naofazia sentido que o fossem em termos de qualquer outroponto.

Um ponto matematico, seja ou nao ocentro do Universo, nao pode afetar o mo-vimento de corpos pesados nem tampoucoatuar como um objeto em direcao ao qualeles tendam. Que os fısicos provem que essaforca esta em um ponto em que nao ha qual-quer corpo nem e compreendido de uma ou-tra maneira que nao seja a de uma merarelacao. [29]

E, tambem

Concebamos um poder motor que, si-tuado sobre o concentrico B e, ele mesmo,desprovido de corpo, move-se em torno deum corpo situado em A com um acao uni-forme de forces, mantendo uma distanciaconstante desse ponto. Seja agora um ou-tro poder residente no corpo do planeta C,capaz de manter sua atencao sobre o poderincorporeo em B, estimando e mantendo suadistancia desse poder, e movendo-se unifor-memente em torno dele. Assim, como an-tes, esse poder tera varias tarefas. Mas seratambem incrıvel em si mesmo que um po-der imaterial resida em um nao corpo, semova no espaco e no tempo, mas nao tenhasujeito, movendo-se ele mesmo (como disse)

4T.A.5T.A.

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de lugar para lugar. E estou fazendo essashipoteses absurdas para estabelecer, ao fim,a impossibilidade de que todas causa do mo-vimento de um planeta seja inerente a seucorpo ou a algum lugar de sua orbita. [30]

Postos esses fundamentos, surgia para Kepler umanova questao essencial: qual a natureza da forca exer-cida pelo Sol sobre os planetas? Ele baseou sua respostaem uma analogia entre essa suposta forca e a luz; essaforca motriz seria um elemento imaterial, emanado doSol como a luz. No entanto, ao contrario da luz, que eemitida esfericamente em todas as direcoes, a emanacaoda forca solar ocorreria de forma planar. Essa diferencaproporcionava uma consequencia importantıssima comrelacao a maneira como a intensidade da forca variariaconforme a distancia a fonte.

Com efeito, Kepler considerava que a forca solar,sendo, como a luz, um elemento imaterial, nao seria ab-sorvida pelos corpos presentes nos espacos por onde sepropagasse, de tal sorte que a quantidade total atravesdo espaco permaneceria constante, rarefazendo-se a me-dida que se afastasse da fonte. Entretanto, como a luze emitida em todas as direcoes, sua conservacao impli-caria que a quantidade presente em esferas concentricasde diferentes raios seria constante e, para isso, sua in-tensidade teria de variar com o inverso do quadrado doraio, ou seja, da distancia da fonte ao ponto conside-rado. Ja a forca solar, na medida em que seria emanadade maneira planar, se conservaria ao longo de cırculosconcentricos e nao esferas, de sorte que sua intensidadedecairia linearmente com a distancia a fonte e nao como quadrado dela. Essa caracterıstica era essencial parao modelo dinamico de Kepler, em que a velocidade dosplanetas variaria de acordo com o inverso da distanciaao Sol.

Por outro lado, a analogia entre a forca motriz solare a luz impunha ao modelo dinamico um outro questi-onamento: o que ocorreria quando um outro corpo secolocasse entre o Sol e um planeta? Assim como a luz,a forca motriz proveniente do Sol seria barrada pelocorpo? Se assim fosse, a forca sendo responsavel pelomovimento do planeta, esse movimento se interrompe-ria momentaneamente. Entretanto, isso nao e obser-vado; aparentemente a forca motriz nao seria barradapor corpos materiais.

Como justificar, porem, essas diferencas cruciais en-tre as caracterısticas da emanacao da forca motriz e daemissao da luz? Para Kepler, a explicacao residia nofato de que a analogia entre a forca motriz e a luz eraapenas parcial.

Mas e respondido primeiramente que aanalogia entre a luz e a o poder motor naodeve ser perturbada por uma precipitadaconfusao de suas propriedades. A luz e obs-truıda pelo opaco, mas nao e obstruıda porum corpo, ja que a luz e luz e nao age sobre

o corpo e sim sobre a superfıcie (ou comose fosse sobre a superfıcie). O poder motorage sobre o corpo, sem relacao com sua opa-cidade. Deste modo, uma vez que nao estacorrelacionado ao opaco, da mesma formanao e obstruıdo pelo opaco. [31]

A principal inspiracao de Kepler para o modelodessa forca solar era dado pelo magnetismo terrestre,entao recem elucidado por William Gilbert. Assimcomo ocorreria para essa forca solar, a acao magneticade um ima sobre um objeto ferroso tambem nao sofreinterferencia de corpos materiais, a nao ser que tambemsejam ferrosos ou imantados. Alem disso, e sobretudo,a acao magnetica era o exemplo conhecido a epoca deacao exercida entre corpos sem contato direto.

Kepler concebeu entao um modelo dinamico em quea forca motriz emanava do Sol na forma de raios. Se-gundo ele, o proprio Sol, embora fixo em sua posicao,girava em torno de seu proprio eixo, de maneira queos raios emitidos acompanhavam esse movimento, ar-rastando assim os planetas ao longo de sua trajetoria.Em um primeiro momento poderıamos imaginar que,na medida em que eram arrastados pelos mesmos raiosemanados do Sol, que, por sua vez, compartilhavama velocidade angular do Sol, todos os planetas se mo-veriam com a mesma velocidade angular. Entretanto,sabe-se que nao e o que ocorre e, de acordo com Ke-pler, isso se devia as diferentes inercias dos planetas;cada planeta, conforme as suas dimensoes materiais,ofereceria diferentes resistencias a acao motriz do Sol.Suas velocidades, portanto, seriam diferentes.

Vencido, contudo, esse obstaculo, surgiu um outro:se os planetas sao arrastados ao longo de suas orbitaspelos raios emanados do Sol, entao por que essas orbitasnao sao cırculos com centro naquele astro motor? A res-posta so poderia ser a de que alguma outra forca, quenao a acao solar anteriormente postulada, teria de serresponsavel por aproximacoes e afastamentos eventu-ais do Sol ao longo do perıodo de revolucao em tornodaquele astro. Kepler considerava que nao restava aele naquele momento, contra sua disposicao original,outra solucao que nao atribuir novamente aos propriosplanetas um movimento, de carater anımico, de apro-ximacoes e afastamentos do Sol.

Particularmente felizes e mais adequa-dos a nossa investigacao sao os fenomenosexibidos pela propulsao de barcos. (...) Emgrande medida, da mesma forma, o podermotor [ do Sol ] propagando-se pelo mundocomo por meio de uma “especie” e um tipode torrente veloz, que arrasta os planetas,bem como, talvez, todo o vento etereo, deoeste para leste. Nao e adequado para atraı-los para o Sol ou para arrasta-los para longedele, o que seria uma tarefa infinitamenteproblematica E, portanto, necessario que os

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planetas mesmos, como os esquifes, tenhamseus proprios poderes motores, como mari-nheiros, que, por meio de sua preciencia, re-alizem nao apenas a aproximacao e o recuodo Sol, mas tambem (e isso deve ser cha-mado de segundo argumento) as declinacoesdas latitudes;(...) [32]

e, ainda,

E, entretanto, em sexto lugar, a apro-ximacao e o recuo de um planeta em relacaoao Sol provem de um poder que e propriode cada planeta. [27]

Essa solucao respondia a aparente contradicao deum sistema ancorado em uma forca emanada do Sol aarrastar os planetas e o fato de eles nao manterem umadistancia fixa aquele astro. Contudo, esse sistema aindacomportava outras dificuldades.

Com efeito, para que a trajetoria dos planetas fossecircular, como imaginava Kepler desde o inıcio, poremexcentrica em relacao ao Sol, seria preciso que resul-tasse de uma combinacao de um epiciclo e um defe-rente, isto e, de um cırculo menor cujo centro descre-vesse um outro cırculo, como alias ja ocorria no propriomodelo de Copernico. No entanto, essa deveria ser umacombinacao muito peculiar, em que os ritmos dos mo-vimentos epicıclicos e deferentes estivessem finamenteajustados. Isso talvez nao representasse um problemapara uma perspectiva puramente cinematica da des-cricao astronomica, porem era desconcertante para aconcepcao dinamica de Kepler: por que a forca solara agir sobre o planeta determinaria um ritmo precisopara o movimento do centro do epiciclo, que nao eraum ponto material? Dito de outra forma, como expli-car em termos de uma acao entre corpos materiais adeterminacao de um movimento preciso de um pontonao material, tal como o centro do epiciclo?

(...) essa nocao implica muitos absurdos.Particularmente esse que torna necessarioatribuir a mesma velocidade ao centro Ndo epiciclo, em seu movimento em torno doSol, que ao planeta D [ em seu movimento] em torno do centro B de seu excentrico,com o resultado de que esses movimentosse acelerariam e se retardariam sincroniza-damente. Observando que essas aceleracoese esses retardamentos provem da maior oumenor distancia entre o corpo do planeta e oSol, seria necessario assumir que o cento doepiciclo, que esta sempre a mesma distancia,move-se com uma maior, ou menor, veloci-dade, conforme o planeta esta mais afastadoou mais proximo do Sol. [33]

3.4. A forma elıptica das orbitas

Diante dessa contradicao, Kepler convenceu-se de quea ideia de uma orbita planetaria perfeitamente circulardeveria ser afastada.

A partir daı imaginou primeiramente uma trajetoriaoval, mas ainda resultante de combinacoes de cırculos.O carater oval da orbita proporcionaria a vantagem deliberar o sistema da artificialidade do ajuste fino en-tre os movimentos circulares combinados. No entanto,ao longo do embate entre a modelagem teorica e osdados observacionais, Kepler convenceu-se de que talsistema de epiciclos e deferentes, ainda que com resul-tantes ovais e nao mais circulares, nao se coadunavacom as observacoes proporcionadas pela experiencia.Deste modo, decidiu-se pelo passo final, mais radical,do abandono da ideia das formas circulares elementaresdo movimento planetario, passando a adotar a hipotesedo movimento irredutivelmente elıptico.

Mas meu trabalho exaustivo nao es-tava completo: restava ainda um quartopasso a ser dado em direcao as hipotesesfısicas. Atraves de provas laboriosıssimase por meio de calculos com base em umenorme numero de observacoes, eu desco-bri que o curso de um planeta nos Ceus naoe um cırculo(...), mas uma oval, perfeita-mente elıptica. [34]

Nesse instante, foram superados duas dezenas deseculos do pensamento cosmologico e astronomico, emgrande medida impulsionado por Platao, centrado noparadigma da circularidade fundamental dos movimen-tos celestes [6, 35].

Assumindo a forma elıptica das orbitas, Keplerainda chegou, por vias geometricas tortuosas, a cha-mada lei das areas, ou seja, aquela que prediz que a me-dida das areas determinadas por um arco de orbita des-crito pelo planeta e proporcional ao tempo necessariopara descreve-lo. Em realidade, essa demonstracao en-volve equıvocos que curiosamente se compensam, emparticular, como ja antecipamos, a ideia de que a velo-cidade do movimento planetario e inversamente propor-cional, em qualquer ponto, a distancia do Sol a posicaoconsiderada, o que nao e um resultado geral. No en-tanto, a lei das areas e uma verdade experimental, queKepler pode verificar atraves dos dados observacionaisde que dispunha.

4. Harmonia dos Mundos

Os avancos realizados por Kepler na elucidacao dadinamica do movimento planetario haviam sido imen-sos: por exemplo, a natureza da acao solar sobreos planetas, a forma elıptica de suas orbitas e a ex-plicacao da relacao entre velocidade e distancia ao Sol(ainda que imperfeita). Entretanto, algumas relacoes

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matematicas, ja vislumbradas por Kepler, envolvendoaspectos desses movimentos como a conexao entre asdistancias dos planetas ao Sol e o perıodo da orbitaprecisavam ser melhor compreendidos. Essa foi a prin-cipal inovacao trazida pelo livro Harmonia dos Mundos,publicado em 1619.

Nesse livro, novamente observamos a enfase na or-dem matematica do Cosmos como expressao maxima daperfeicao Criadora. Observamos o retorno da cosmolo-gia poliedrica, surgida no Misterio Cosmografico. En-tretanto, a estrutura geometrica inicialmente propostapor Kepler nao havia se mostrado capaz de explicar adinamica do Cosmos, apenas aspectos estaticos da con-figuracao geral, como o numero de planetas e os valo-res aproximados das distancias solares. Todavia, essasdistancias nao eram de fato elementos estaticos; pelocontrario, variavam a cada instante, segundo uma leidinamica bem caracterıstica. Portanto, apenas a estru-tura geometrica do Cosmos proposta inicialmente naoera capaz de esclarecer os detalhes desses movimentosplanetarios; era preciso a incorporacao de novas relacoesmatematicas, dessa vez envolvendo o elemento tempo.

O elemento tempo intervem, primeiramente, atravesda velocidade angular dos planetas em torno do Sol,contribuindo para a identificacao de relacoes ma-tematicas, de carater arquetıpico, mais uma vez revela-doras da profunda intencionalidade existente por detrasda configuracao do Cosmos. Kepler associou as dife-rentes velocidades angulares dos planetas ao longo daorbita a frequencias musicais. Em particular, ele com-parou os valores maximos e mınimos dessas frequenciaspara cada planeta, observando que a razao entre elescorrespondia a numeros inteiros, ou seja, a intervalosconsonantes. Para Kepler, cada planeta, ao se mo-vimentar, emitia notas musicais que correspondiam auma musica celeste, tao silenciosa quanto harmoniosa.Em realidade, ele de certo modo reeditava, em outrasbases, uma ideia do pensamento pitagorico, que outroraja falara a respeito de uma musica celeste.

No entanto, mais importante e consequente para aciencia astronomica foi a descoberta de Kepler, a par-tir dos dados observacionais de Tycho Brahe, de que operıodo da orbita de cada planeta guardava uma relacaofuncional de expoente fracionario 3/2 com a distanciamedia do planeta ao Sol (T 2 ∼ R3). Mais ainda,essa relacao era a mesma para todos os planetas. Semduvida, essa descoberta, que ficou celebrizada como suaTerceira Lei do Movimento planetario, se tornou maisum motivo de euforia para Kepler, em sua busca apai-xonada pela ordem matematica do Universo.

5. Epıtome de Astronomia Coperni-cana

Epıtome significa resumo. Portanto, o livro Epıtomede Astronomia Copernicana, composto entre os anosde 1618 e 1621, e, antes de mais nada, uma obra de

sıntese. Nele Kepler faz uma grande exposicao de suaastronomia, reunindo os elementos que constituıram seupensamento desde o princıpio.

O livro comeca com um apanhado de informacoes arespeito da evolucao e do estado da ciencia astronomica.Na segunda parte, que se inicia com o livro IV, Ke-pler em certa medida retorna a linguagem analogicado Misterio Cosmografico, em contraposicao a analiseastronomica mais tecnicista da Astronomia Nova. Ke-pler estabelece diversos paralelos envolvendo a estru-tura cosmologica trinitaria do Universo, composta doSol, ao centro, da esfera das estrelas, a delimitar-lhesua abrangencia, e, por ultimo, do espaco eterio inter-mediario, por onde se movimentam os planetas; essaestrutura cosmologica e comparada a Santıssima Trin-dade: o Sol, associado ao Pai; a esfera estelar, rela-cionada ao Filho e a regiao intermediaria, relacionadaao Espırito Santo. Grande destaque e dado por Keplerpara a centralidade da posicao do Sol, justificada tendoem vista que aquele astro e a fonte da luz e do calorem que esta embebido este Universo, bem como de seumovimento, cabendo-lhe, portanto, tal qual ja lhe haviaatribuıdo Copernico, a localizacao central, mais nobre.

Kepler retorna, entao, a descricao da estruturageometrica do Cosmos, apresentada no Misterio Cos-mografico, retomando a questao dos poliedros regula-res e suas relacoes com as distancias celestes. No en-tanto, Kepler tambem avanca na discussao de naturezamais tecnica. Ele reapresenta, didaticamente, na formade perguntas e respostas, as questoes relacionadas ascausas dos movimentos celestes: se esta descartada aexistencia das esferas homocentricas, entao o que movi-menta os planetas? Os planetas possuem uma inercia,que exige a acao de um motor externo para que seumovimento se realize; por diversas razoes esse motor sopode ser o Sol.

Por que razoes voce e levado a fazer doSol a causa motriz ou a fonte do movimentodos planetas?

1. Porque e visıvel que, na medida emque qualquer planeta esta mais distante doSol do que o resto, ele se move mais lenta-mente - de tal modo que a razao entre osperıodos e a razao entre as potencias 3

2 dasdistancias ao Sol. Desta forma concluımosque o Sol e a fonte do movimento.

2. Abaixo, ouviremos o mesmo se apli-car aos planetas individuais - de tal formaque quanto mais proximo o planeta cheguedo Sol, em qualquer tempo, ele e dotado deum aumento de velocidade exatamente narazao do quadrado.

3. Tampouco e a dignidade ou a aptidaodo corpo solar oposta a isso, uma vez queele e muito belo e de uma perfeita esferici-dade, e muito grande e e a fonte de luz e

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calor, de onde emana para os vegetais todaa vida: a tal ponto que podem-se julgar luze calor como certos instrumentos ajustadospelo Sol para causar movimento nos plane-tas.

4. Mas, em especial, todas as estima-tivas de probabilidade sao satisfeitas pelarotacao do Sol, no mesmo lugar, em torno deseu proprio eixo imovel, na mesma direcaoem que o planetas avancam: e em umperıodo menor do que o de Mercurio, o maisproximo do Sol e o mais rapido dos plane-tas. [36]

Como se da a acao do Sol, em resumo, como ea dinamica do movimento planetario? Todas essasquestoes, bem como outras relacionadas, sao retoma-das e expostas didaticamente ao leitor.

Contudo, neste livro, ele apresenta uma importantemodificacao em relacao a sua concepcao astronomica talcomo elaborada na Astronomia Nova: o movimento deaproximacao e afastamento dos planetas com relacao aoSol, antes atribuıdo a um princıpio anımico dos propriosplanetas, era agora atribuıdo a uma outra forma deatuacao daquele astro, de natureza magnetica.

Kepler atribuiu aos planetas e ao Sol propriedadesmagneticas que resultariam em uma interacao seme-lhante a de dois imas. Mais precisamente, ele imagi-nou a existencia no interior dos planetas de uma es-trutura magnetica direcional caracterizada por fibras(como mostra a Fig. 2), cujas extremidades apresen-tariam comportamentos opostos do ponto de vista dainteracao com o Sol: uma extremidade seria atraıda en-quanto a outra seria repelida. Assim, conforme a dis-posicao espacial dessas fibras, haveria a preponderanciaou de um carater atrativo ou de um carater repulsivo daforca solar, fazendo com que o planeta se aproximasseou se afastasse do Sol.

A interacao com o Sol da estrutura magnetica defibras atribuıda por Kepler aos planetas com o Sol eraresponsavel por outro importante efeito na dinamicados movimentos planetarios: segundo Kepler, o Sol pro-duz uma pequena deflexao na orientacao das fibras, quepossuem uma grande resistencia inercial a essa rotacao.Entretanto, essa pequena deflexao produz pequenas va-riacoes na forca solar que fazem com que a trajetoriaplanetaria seja exatamente elıptica.

No Epitome Kepler retoma o tema, recentente-mente abordado na Harmonia dos Mundos, da relacaoentre os perıodos das orbitas dos planetas e asdistancias deles ao Sol. Entretanto, enquanto no livroanterior, a relacao era apresentada como uma conclusaoempırica, no Epitome Kepler procura explica-la em ter-mos de princıpios mais fundamentais.

Figura 2 - O modelo de fibras magneticas dos planetas para ex-plicar sua interacao com o Sol. De acordo com Kepler, um dosextremos das fibras e atraıdo pelo Sol, enquanto o outro e repe-lido. A partir da figura vemos que, dependendo da posicao aolongo da orbita, um desses extremos esta mais proximo do Soldo que o outro, de tal modo que, conforme o caso, prevalece umaatracao ou uma repulsao e o planeta se aproxima ou se afasta doastro central.

Desde a Astronomia Nova, Kepler ja havia esta-belecido uma relacao entre a distancia do planeta aoSol e a intensidade da forca motriz. Dentro da con-cepcao aristotelica, ainda adotada por Kepler, a veloci-dade do movimento seria proporcional a intensidade daacao motriz e, portanto, inversamente a distancia. Noentanto, a resistencia que os planetas ofereciam ao mo-vimento, isto e, suas “inercias”, eram proporcionais assuas dimensoes materiais. Kepler especificou no novolivro o significado dessas dimensoes, atraves dos con-ceitos de massa e de densidade. Segundo ele, a diversi-dade do Universo nao seria compatıvel com a ideia deque todos os corpos celestes tivessem a mesma massaou a mesma densidade. Em vista disso, quanto maior amassa, mais lentamente o planeta se moveria, em razaode sua inercia. Por outro lado, essa massa seria umacombinacao de seu volume e sua densidade.

Assim sendo, sempre partindo da ideia de que o Uni-verso foi estruturado pelo Criador em termos de pro-porcoes matematicas simples, Kepler buscou relacoesentre as densidades, os volumes e as distancias ao Soldos diversos planetas, de tal modo que verificassemsua lei da dependencia entre perıodo e distancia so-lar media. Finalmente, ele considerou que tivesse ob-tido exito nessa busca, estabelecendo, segundo sua con-cepcao geometrica e harmonica, as distancias dos pla-netas ao Sol e os seus diametros.

No comeco dessas consideracoes sobre omovimento, voce disse que os perıodos dosplanetas se encontram exatamente na razaoda potencia 3

2 de suas orbitas ou cırculos.Eu pergunto qual a causa disso?

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Quatro causas concorrem para estabe-lecer a medida dos perıodos. A primeirae o comprimento da orbita; a segunda e opeso ou a quantidade [“copia”] de materiaa ser transportada; a terceira e a intensi-dade da virtude motriz; a quarta e o volume[“moles”] ou espaco no qual a materia trans-portada se arrola.(...)Mas a jornada circu-lar dos planetas estao na razao simples dosintervalos. Pois, da mesma forma que SAesta para SD, assim tambem o cırculo com-pleto BA esta para o cırculo ED. Porem opeso, ou a quantidade de materia nos dife-rentes planetas, esta na razao da potencia12 dos intervalos, como foi provado antes,de tal modo que sempre o planeta maisalto possui mais materia e e movido maislentamente, e acumula mais tempo em seuperıodo, uma vez que, mesmo antes, suajornada mais longa demandaria mais tempopara realizacao. Pois, tomando-se SK comoa media proporcional entre SA e SD, os in-tervalos dos dois planetas; como SK estapara a distancia maior, assim a quantidadede materia no planeta A esta para a quanti-dade no planeta D. Mas a terceira e a quartacausas se compensam uma a outra na com-paracao dos diferentes planetas; porem arazao simples entre os intervalos, combi-nada a razao de potencia 1/2, constitui arazao entre as potencias 3/2 deles. Destemodo, os perıodos estao entre si na razaodas potencias 3/2 dos intervalos. [37]

Kepler finalizou sua contribuicao para a ciencia as-tronomica com a publicacao em 1627 das “Tabuas Ru-dolfinas”, um compendio de posicoes plenatarias e es-telares geradas por Kepler a partir de dados observa-cionais obtidos por Tycho Brahe, por sua vez inseridosem um modelo planetario heliocentrico constituıdo pororbitas elıpticas, tal como concebido por ele mesmo,Kepler.

6. Conclusao

A obra astronomica de Kepler se estende essencial-mente desde 1596, com o Misterio Cosmografico, ate1627, data da publicacao das “Tabuas Rudolfinas”. Elacontem diferentes elementos, que levaram a julgamen-tos distintos por sua posteridade.

Ha nela, de saıda, um forte elemento filosofico-teologico, que assume a forma de diretriz teorica parasua concepcao astronomica e cosmologica. Assim, ve-rificamos claramente no pensamento de Kepler a in-fluencia de elementos neoplatonicos e neopitagoricos,expressos em sua enfase central na ideia de um Cosmosordenado segundo relacoes matematicas de natureza

geometrica e harmonica, como manifestacao maximada perfeicao da Criacao Divina. Essa vertente se tra-duziu, por exemplo, em seu modelo cosmologico dossolidos geometricos inscritos e circunscritos, propostosja na primeira obra, e nas relacoes harmonicas entre asdistancias dos planetas ao Sol e seus perıodos orbitais,que se converteram no que ficou conhecido como suaterceira lei do movimento planetario.

No entanto, ha outros elementos presentes na obrade Kepler, de natureza metodologica, que podem comampla justica ser incluıdos na concepcao de cienciasurgida na era Moderna. Em particular, verificamoscomo a sua abordagem a respeito da questao da formadas orbitas planetarias se deu a partir de um esquemade formulacao de hipoteses e confrontacao com dadosempıricos. De inıcio, Kepler se manteve na tentativade descrever os movimentos dos planetas em termos defiguras circulares. No entanto, essa tentativa foi termi-nantemente frustrada pelos dados observacionais. As-sim Kepler abandonou esse paradigma, duas vezes mile-nar, da circularidade, primeiro em favor de uma formaoval, tambem inconciliavel com os dados de que dispu-nha, e, por fim, das formas elıpticas. Note-se o que osestudiosos nao se furtaram de enfatizar: a rejeicao dacircularidade se deu por uma incompatibilidade muitopequena entre as previsoes teoricas e os dados expe-rimentais; mais precisamente, uma diferenca angularde apenas oito minutos verificada na orbita do planetaMarte, o que nos permite interpretar como um exemplocontundente da conviccao metodologica de Kepler danecessidade de confirmacao experimental das hipotesesassumidas.

Afora as questoes epistemologicas referentes ametodo, temos o conteudo cientıfico propriamente ditodessa contribuicao astronomica: alem de chegar a formaelıptica das orbitas (Primeira Lei do movimento pla-netario) e a relacao entre os perıodos orbitais e asdistancias medias ao Sol (Terceira Lei), Kepler tambemformulou a chamada “lei das areas” (segunda lei). To-davia, mais do que isso, Kepler foi responsavel porreformulacoes cruciais do pensamento cientıfico, porexemplo, estabelecendo a universalidade das leis fısicas,isto e, a aplicabilidade do raciocınio fısico ao domınioceleste, antes reservado exclusivamente a astronomia,rompendo assim a dicotomia aristotelica entre doismundos materialmente distintos e radicalmente sepa-rados. Novamente segundo Koyre, pode-se dizer que aciencia moderna nasceu quando se unificaram em umamesma resposta as questoes: ‘o que move os planetas?’e ‘o que move os projeteis?’.

De fato, Kepler promoveu essa unificacao impondo anecessidade de uma explicacao fısica para o movimentodos planetas, a qual formulou em termos de uma forca,de natureza magnetica, do Sol sobre eles. Some-se aisso o tratamento essencialmente matematico que deua questao, com a hipotese de uma acao solar de inten-sidade inversamente dependente da distancia, que, se

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Panorama geral da obra astronomica de Kepler 3601-13

posteriormente nao se mostrou correta, certamente es-tabeleceu uma diretriz para a concepcao cientıfica daacao gravitacional que encontraria uma forma acabadacom Isaac Newton. Por todos esses meritos, seu nomesurge hoje na historiografia da ciencia como uma figuracentral no desenvolvimento da chamada “Revolucao Ci-entıfica” dos Seculos XVI e XVII.

Finalmente, a obra de Kepler corresponde a obra deum homem tomado pelo proposito de compreender e re-velar a perfeicao do planejamento Divino. Para ele, suasdescobertas tiveram o valor de verdadeiras epifanias; oSenhor lhe havia concedido contemplar a terra prome-tida do alto da montanha. Na reedicao do MisterioCosmografico, em 1621, ele proprio afirma: “nunca an-tes tinha sido dado a alguem se lancar de maneira taoafortunada em tao maravilhosa obra, e tao digna doobjeto ao qual foi devotada”.

Mas, foi dito anteriormente que, alemdessa forca motriz do Sol existe uma inercianatural dos proprios planetas em relacaoao movimento: de onde, em razao de suamateria, eles sao inclinados a permanecer nomesmo lugar. Deste modo, o poder motordo Sol [“potentia vectoria”] e a impotenciaou inercia material do planeta estao emguerra um com a outra. [38]

Referencias

[1] A. Koyre, Etudes Newtoniennes (Gallimard, Paris,1968).

[2] E. Burtt, As Bases Metafısicas da Ciencia Moderna(Ed. UNB, Brasılia, 1983).

[3] A. Koyre, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Fo-rense Universitaria, Rio de Janeiro, 2006).

[4] T.S. Kuhn, A Revolucao Copernicana (Edicoes 70, Lis-boa).

[5] M. Caspar, Kepler (Dover, New York, 2012).

[6] A. Koyre, The Astronomical Revolution (Dover, Lon-don, 1992).

[7] M. Foucault, As Palavras e as Coisas (Martins Fontes,Sao Paulo, 1981).

[8] B. Stephenson, Kepler’s Physical Astronomy (Prince-ton University Press, Princeton, 1994).

[9] C.R. Tossato and R.P. Mariconda, Scientiae Studia 8,3 (2010).

[10] J.L.E. Dreyer, A History of Astronomy from Thales toKepler (Dover, Newt York, 1953).

[11] J. Kepler, Le Secret du Monde (Societe Les Belles Let-tres, Paris, 1984).

[12] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge UniversityPress, Cambridge, 1993).

[13] J. Kepler, The Harmonies of the World (PrometheusBooks, Amherst, New York, 1995).

[14] J. Kepler, Epitome of Copernican Astronomy (Pro-metheus Books, Amherst, New York, 1995).

[15] Ver Ref. [10], p. 34.

[16] Ver Ref. [10], p. 22.

[17] Ver Ref. [10], p. 52.

[18] Carta de Kepler a Mastlin, de 2 de agosto de 1595,apud Ref. [10], p. xii.

[19] Ver Ref. [10], p. 138.

[20] Ver Ref. [11], p. 183.

[21] Ver Ref. [11], p. 185.

[22] Ver Ref. [11], p. 372.

[23] Ver Ref. [11], p. 51.

[24] Ver Ref. [11], p. 48.

[25] Apud Ref. [1], p. 189.

[26] Ver Ref. [11], p. 126-127.

[27] Ver Ref. [11], p. 407.

[28] Ver Ref. [3], p. 14.

[29] Ver Ref. [11, p. 54.

[30] Ver Ref. [11], p. 128.

[31] Ver Ref. [11], p. 393.

[32] Ver Ref. [11], p. 405.

[33] Ver Ref. [11], p. 409.

[34] Ver Ref. [11], p. 68.

[35] C.R. Tossato, Cadernos Espinosianos V, 35 (1999).

[36] Ver Ref. [13], p. 895.

[37] Ver Ref. [13], p. 905-906.

[38] Ver Ref. [13], p.899.