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PAPERS 1 (Português) O sonho como interpretação do inconsciente Comitê de Ação da Escola Una 2018-2020 Lucíola Macêdo (EBP) Valeria Sommer-Dupont (ECF) Laura Canedo (ELP) Manuel Zlotnik (EOL) María Cristina Aguirre (NLS) Paola Bolgiani (SLP) Coordenadora: Clara María Holguín (NEL) Equipe de tradução Coordenadora: Valeria Sommer-Dupont Responsáveis Tradução: Silvana Belmudes Responsáveis Revisão da tradução: Melina Cothros Edição - Realização gráfica Secretaria: Eugenia Serrano / Colaboradores: Daniela Teggi - M. Eugenia Cora

PAPERS 1 (Português) · 2020-01-03 · Não obstante, Freud reconheceu que no terreno onírico também havia um limite ao simbólico e o designou “Umbigo do sonho”: “… o

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  • PAPERS 1 (Português) O sonho como interpretação do inconsciente

    Comitê de Ação da Escola Una 2018-2020 Lucíola Macêdo (EBP) Valeria Sommer-Dupont (ECF) Laura Canedo (ELP) Manuel Zlotnik (EOL) María Cristina Aguirre (NLS) Paola Bolgiani (SLP) Coordenadora: Clara María Holguín (NEL)

    Equipe de tradução Coordenadora: Valeria Sommer-Dupont Responsáveis Tradução: Silvana Belmudes Responsáveis Revisão da tradução: Melina Cothros

    Edição - Realização gráfica Secretaria: Eugenia Serrano / Colaboradores: Daniela Teggi - M. Eugenia Cora

  • SUMÁRIO

    EDITORIAL, Manuel Zlotnik 03

    1- Jorge ASSEF / “O sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje”- EOL 06

    2- Carolina KORETSKY / “A interpretação do sonho: do sentido à falha”- ECF 10

    3- Amanda GOYA / “Concluir” - ELP 14

    4- Laura RUBIÃO / “O sonho e os limites da interpretação” - EBP 19

    5- Cyrus SAINT AMAND POLIAKOFF / “O sonho está queimando” - NLS 23

    6- Fernando GOMEZ SMITH / “Uma pragmática do sonho” - NEL 27

    7- Silvano POSILLIPO / “O sonho e os litorais do Un-bevue” - SLP 31

    Irene KUPERWAJS (A.E.) “Um sonho que mostra o real” 36

    Paola FRANCESCONI (A.M.E.) “Da Outra cena a uma cena” 38

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  • Editorial Manuel ZLOTNIK

    O sonho nos mostra que o inconsciente, com seu incansável trabalho de cifrar, interpreta. Lacan chama isto de interpretação selvagem. Neste Paper 1 vocês se encontram diante da temática do sonho como interpretação do inconsciente, problemática que antes de Lacan se considerava de modo diferente, ou seja, o sonho como uma formação do inconsciente em estado bruto e a tarefa do analista sendo a de interpretá-la, decifrá-la, outorgar-lhe um sentido.

    Que o inconsciente já é um intérprete no sonho, antes do analista, isto é um fato a esta altura irrefutável; portanto, a questão a ser pensada e resolvida é: o que faz o psicanalista diante disto? Qual é o camino que pode seguir, se o inconsciente já se adiantou a ele?

    Os trabalhos que se seguem a este editorial, não só buscam elucidar esta encruzilhada, como também conferem precisão à noção de sonho como interpretação do inconsciente.

    No principio vocês encontrarão o trabalho de Jorge Assef, que apresenta muito claramente as bases desta problemática: de um lado a interpretação propriamente freudiana e a interpretação do inconsciente; depois o umbigo do sonho como obstáculo com o qual ambas se encontram, finalmente a interpretação propriamente lacaniana como alternativa a essa dificuldade. Assim avança a noção de uso do sonho como o que permite ao analisante ir além do ponto de angústia do pesadelo, apontando para outro tipo de despertar.

    Em seguida temos o trabalho de Carolina Koretzky que situa o texto em que Lacan introduz a noção de sonho como interpretação do inconsciente, interpretação selvagem, em contraste com a interpretação ponderada do analista, que aponta para o despertar, fornecendo um precioso exemplo clínico de uso do sonho.

    Seguindo o percurso, vocês encontrarão a contribuição de Amanda Goya, centrado na pergunta acerca do estatuto dos sonhos

  • PAPERS 1 / Editorial

    conclusivos de um final de análise que precedem uma demanda de passe. Um trabalho muito interessante, pois com a conhecida oposição entre inconsciente transferencial e inconsciente real, propõe um enodamente entre eles ambos, nesses sonhos que são acontecimentos culminantes do final de um tratamento.

    Na sequência, neste Paper, Laura Rubião nos traz um trabalho muito preciso sobre o despertar em Freud e nos propõe uma hipótese: o despertar é produto do limite da possibilidade de representar, por parte do inconsciente, o Unerkannt, e nos convoca a pensar por essa perspectiva a leitura que Lacan faz do sonho da injeção de Irma, a partir da suspensão radical do sentido.

    Em seguida, Cyrus Saint Amand Poliakoff desenvolve de modo muito incisivo e poético o par continuidade-descontinuidade entre sonho e despertar. Ali, inconsciente transferencial e inconsciente real, verdade e acontecimento, como polaridades, nos são propostos em sua ligação com o nó do sonho.

    Fernando Gómez Smith, em sua contribuição, faz uma consideração radical, na qual nos propõe situar a interpretação do sonho do lado do inconsciente e o despertar do lado do analista, estabelecendo deste modo uma interessante dicotomia entre sujeito suposto saber e sujeito saber manobrar.

    Finalizamos a série com o trabalho de Silvano Posillipo, que nos indica muito bem a interpretação do analista em relação ao sonho, propondo-a como introdução do ato na re-tradução do texto do sonho. Vale a pena se deter ao final de seu texto para captar como desenvolve esta ideia.

    Como bonus track, temos nesta edição dos Papers duas contribuições: a de Irene Kuperwajs, AE e a de Paola Francesconi, AME.

    Com um sonho que marca a entrada de sua última análise e que a levará ao passe, Kuperwajs nos mostra o trauma inaugural do choque de lalíngua com o corpo, fornecendo-nos um belíssimo exemplo clínico do uso do imaginário no derradeiro ensino de Lacan.

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  • PAPERS 1 / Editorial

    Francesconi nos mostra com grande precisão que, quando sonhamos que estamos sonhando, na realidade não está se duplicando a cena, mas se produz ali uma redução a um índice de real.

    Isto é apenas um modesto aperitivo do magnífico Paper 1 que vocês estão prestes a ler. Desfrutem!

    Tradução: Teresinha N.M Prado

    Revisão: Maria Rita Guimarães

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  • O sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje

    Jorge ASSEF - EOL A tradução exata de Die Traumdeutung é “A interpretação do sonho” o que permite um equívoco entre: 1) Interpretar os sonhos, nos remetendo a potência simbólico-imaginária das formações do inconsciente; 2) O sonho intérprete, que nos remete à experiência do real.

    Assim, com um equívoco incluído, nasce a psicanálise em 1900.

    Interpretar os sonhos

    Se Freud apresentou o sonho como a via régia para acessar o inconsciente é porque ele replica as leis da linguagem segundo a face metafórica que promove um efeito capitón que retorna e modifica os anteriores e a face metonímica que introduz uma via alusiva ou o meio-dizer.

    Até aqui encontramos a comunhão entre o campo imaginário-simbólico e o sonho enquanto formação do inconsciente, resultado de um trabalho de articulação significante, isto é o que chamamos com Lacan inconsciente transferencial. O modelo clássico da interpretação dos sonhos que Freud nos ensinou discorre por essa via, produzindo sentido em torno do padecimento do sintoma, as consequências da história, as marcas da novela familiar, etc.

    Não obstante, Freud reconheceu que no terreno onírico também havia um limite ao simbólico e o designou “Umbigo do sonho”: “… o inconsciente verdadeiramente real.” . 1

    O sonho intérprete

    Freud, S., A interpretação dos sonhos, Edição Standard brasileira das obras psicológicas 1completas de Sigmund Freud, v. 5. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1987, p. 554.

  • PAPERS 1 / O sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje

    Para Lacan o umbigo do sonho além de ser um furo de sentido, é uma cicatriz que faz nó no corpo, mas que não pode (pode ser dito) dizer-se porque está enraizado na linguagem: “No campo da palavra há algo que é impossível reconhecer, de modo que o Um ali tem outro valor (…) designa a impossibilidade, o limite” . O “Um” ao qual se 2

    refere Lacan trata daquele S1 isolado que “… contingencialmente percutiu o corpo fazendo surgir um falasser, iniciando a série e, através da iteração em sua articulação com outros significantes, se tornou causa de gozo” . 3

    Em todos os casos, a noção de “umbigo” implica que o próprio sonho porta a marca das limitações dos registros simbólico e imaginário, e muitas vezes se torna o intérprete dessa experiência, conseguindo assim captar um efeito de real. É ali que a associação livre desaparece, pois o sentido escapa. Sem dúvida esse tipo de sonhos permite pensar o modelo da interpretação propriamente lacaniana, aquela que isola um S1 perturbando a articulação significante.

    O uso do sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje

    Voltemos ao equívoco.

    Por um lado, o sintagma “O uso do sonho e sua interpretação” nos leva à primeira via que localizamos como o campo do inconsciente transferencial, onde a interpretação dos sonhos consiste em decifrar e voltar a cifrar.

    Esta vertente é necessária, ainda hoje, em nossa clínica. Serve para promover a confiança no sujeito suposto saber e permite instalar o dispositivo, já que, acreditar no inconsciente através da transferência é a primeira condição para todo tratamento possível.

    Também ao longo de uma análise a interpretação tipo cifrado-decifrado é a chave, às vezes para escandir uma linha de associações, outras para pontuar um período de tempo do acontecido. Entretanto,

    Lacan, J., “Réponse de Jacques Lacan à Marcel Ritter”, Lettres de l’École Freudienne, n.18, 2Paris, ECF, 1976, p.12.

    Serra, M. “Un sueño es un despertar que empieza”, inédito. 3

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  • PAPERS 1 / O sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje

    Miller esclarece que este tipo de interpretação dos sonhos “… não é a via de um verdadeiro despertar para o sujeito” . 4

    Ora, com a noção de despertar nos aproximamos do inconsciente real.

    Justamente, o outro sentido do sintagma “o uso do sonho e sua interpretação” nos conduz também aqueles sonhos que operam levando em conta em que medida uma análise envolve uma experiência do real, o pesadelo é um exemplo. A propósito disso Miller coloca que uma interpretação eficiente atua como um pesadelo: “… um pesadelo do qual não se pode escapar” , e destaca que 5

    percebemos o progresso do tratamento justamente nesse indício preciso: quando o sonho consegue prolongar-se mais além do ponto de angústia que antes era seu limite.

    Claramente o que conta nesse ponto é uma posição analisante sustentada, pois para que o “instante de despertar” produzido por 6

    uma interpretação não funcione defensivamente, como acontece no pesadelo, faz-se necessária uma decisão subjetiva, essa é a coragem que Lacan atribui a Freud diante da garganta de Irma . 7

    Quando um efeito de real aparece no sonho comovendo o sujeito, às vezes tomando a forma do rastro de um objeto a, ou de uma marca do trauma, ou de um desmantelamento de uma construção defensiva, e essa comoção consegue ir mais além do pesadelo abrindo uma fresta até esse resto ininterpretável que chamamos “umbigo do sonho”, é possível que o sonho em si escreva algo novo, por exemplo, “… um saber fazer com os significantes da própria história facilitado pela possibilidade de jogar com a homofonia linguística” . 8

    Miller, J.-A.., “Adios al significante”, Conferencias Porteñas, tomo 2, Buenos Aires, Paidós, 42010, p.279.

    Miller, J.-A., “La ponencia del ventrílocuo”. Introducción a la Clínica lacaniana, España, 5Gredos, 2017, p.444.

    Lacan, J., Seminario 14. La Lógica del Fantasma, clase del 25 de enero de 1967. Inédito.6

    Lacan, J., O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, cap. 713, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p.236.

    Merlet, A., “Le passe encore”, Quarto, n.110, Bruxelles, ECF, 2016, p.55. 8

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  • PAPERS 1 / O sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje

    Aqui temos uma lista extraída dos testemunhos de passe: Eidolon, Rinoceronte, Twingo, Niterói, ZZZ. Todos eles, através da transferência, poderiam dar conta da proposta que Lacan nos faz: …O real se especifica também por um Um, no sentido de um impossível. E isso, deve ser demonstrável, e toda a experiência analítica não faz senão convergir em demonstrá-lo” . 9

    Esses sonhos são reveladores do uso atual que fazemos dos sonhos na direção do tratamento enquanto instrumento do despertar e 10

    poderiam se enquadrar no que coloca Miller: “O une bévue faz apelo a um significante que seria novo, não para que haja um significante suplementar, mas sim porque em vez de ser contaminado pelo sono, esse significante novo desencadearia um despertar . 11

    Que esse tipo de sonhos apareçam ao final das análises não é por acaso, já que, como coloca Lacan: “Toda uma psicanálise talvez se desdobre antes do que talvez pudesse de fato acontecer, ou seja, que tocássemos um ponto de despertar” , claro que aqui jogamos com a 12

    erótica do tempo de cada analisante.

    Tradução: Ana Tereza Groisman

    Revisão : Glacy Gonzales Gorski

    Lacan, J. “Réponse de Jacques Lacan à Marcel Ritter”, op. cit., p.14.9

    Laurent, E., O despertar de um sonho ou o esp d’um desp. Disponível em: https://10congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/19-09-11_el-despertar-del-sueno-o-el-esp-de-un-sue.html.

    Miller, J.A., El ultimíssimo Lacan, Buenos Aires, Paidós, 2014, p. 145.11

    Lacan, J., Meu ensino, sua natureza e seus fins, Rio de janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 93.12

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    https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/19-09-11_el-despertar-del-sueno-o-el-esp-de-un-sue.html

  • A interpretação do sonho: do sentido à falha

    Carolina KORETZKY - ECF No Seminário De um Outro ao outro, Lacan retoma sua “Resenha com interpolações do seminário da Ética” no qual lança uma 1

    distinção preciosa em relação ao que chamamos “interpretar” um sonho: a interpretação selvagem, feita pelo inconsciente, e a interpretação ponderada , feita pelo analista. 2

    Para Lacan, o analista deveria começar considerando um fato: que “por meio do sonho só lhe vem do inconsciente o sentido incoerente que ele fabula para revestir o que ele articula como frase” . Se para 3

    Freud a essência o sonho reside no trabalho do sonho é porque este último produz uma transformação linguageira em imagem, é o que ele chama de consideração à representabilidade . Esse mecanismo do 4

    sonho consiste em tornar visível os pensamentos, isto é, transformar pensamentos abstratos em linguagem pictórica . A técnica de recorte 5

    significante do relato permite evitar a dispersão por essa roupagem imaginária, muitas vezes maluca. A lógica do retorno do recalcado condiciona a interpretação porque, uma vez reconstituída essa frase, o desejo inconsciente, interdito e infantil, pode se enunciar.

    Mas, Lacan prossegue: “o que lhe vem assim já é interpretação que se pode chamar de selvagem e a interpretação racional que ele substitui só serve para fazer com que apareça a falha que a frase

    Lacan, J., “Resenha com interpolações do Seminário da Ética”, Falo, nº 3, jul-dez. 1988, pp. 19-18.

    NT: raisonnée, no original. Seguimos aqui a tradução dada a esse termo no Seminário, livro 216: de um Outro ao outro, Rio de Janeiro, JZE, 2008. Entretanto, na tradução da “Resenha com interpolações do Seminário da Ética” op. cit., a tradução foi por “racional”.

    Lacan, J., “Resenha com interpolações do Seminário da Ética”, op. cit., p. 18.3

    Freud, S., “A interpretação dos sonhos” (segunda parte), Edição Standard Brasileira das 4Obras Psicológicas de Sigmund Freud, vol. V, Rio de Janeiro, Imago, 1972.

    NT: Na edição brasileira aparece tanto “transformação em imagens” quanto “método 5pictórico”.

  • PAPERS 1 / A interpretação do sonho: do sentido à falha

    denota.” O sonho é então uma interpretação porque ele é um rébus, 6

    quer dizer, uma tradução em imagens de termos significantes, e por outro lado, porque sua formação conduz à criação um sentido novo. Então, se ele já é interpretação, o que faz o analista ao substituir essa interpretação dita selvagem por uma outra chamada ponderada? Se o sonho é interpretação selvagem – na medida em que cria um sentido novo–, pode-se dizer que a interpretação dita ponderada deve visar outra coisa que não a produção de sentido. Para Lacan, na escuta do relato do sonho, a questão do analista não é tanto: o que quer dizer isso? E sim: o que é que, ao dizer, isso quer? 7

    Nessa última questão, a busca do sentido do sonho é menos predominante do que a busca do desejo que motiva sua formação. O deciframento visa o desejo que anima aquele que dorme ao fazer esse sonho. Não é o sentido da frase principal de um sonho, mas a falha o que vem em primeiro plano: “nessa interpretação ponderada, não se trata de nada além de uma frase reconstituída, e perceberão o ponto de falha em que, como frase, e não, em absoluto, como sentido, ela permite ver o que claudica. E o que claudica é o desejo.” 8

    É na fata de significação que o desejo é apreendido. Com efeito, se “ O desejo do sonho nada mais é senão tomar sentido, (...) não é essa a via de um verdadeiro despertar para o sujeito. Freud ressaltou o fato de que a angústia rompe o sono quando o sonho vai desembocar no real do desejado. Quer dizer que o sujeito só acorda para continuar a sonhar” . 9

    Estranha expressão de Lacan: “o real do desejado”! Tentemos descobrir o que ela recobre a partir de um exemplo de Serge Cottet. O paciente sonha com uma sessão de análise exaustiva ao final da qual o analista diz: “Você quer repousar? Deite-se.” Cottet lembra a maneira pela qual um analista submetido à ortodoxia freudiana teria procedido diante de um evidente sonho de transferência: é uma

    Lacan, J., “Resenha com interpolações do Seminário da Ética”, op. cit., p. 18.6

    Lacan, J., O seminário, livro 16: de um Outro ao outro, op. cit.7

    Idem., p. 193.8

    Lacan, J., “Resenha com interpolações do Seminário da Ética”, op. cit., p. 19.9

    �11

  • PAPERS 1 / A interpretação do sonho: do sentido à falha

    figuração pelo contrário porque o sonho mostra um paciente felicitado pelo analista por ter trabalhado muito, quando na realidade, o trabalho analítico avança lentamente através de sessões nas quais predominam anedotas e tagarelice. Para o analista, esse sonho diz o contrário do que ele tem realmente vontade de lhe dizer, “acorda, você não se esforça muito”. O analista intervém por uma pontuação que retoma quase ao pé da letra a frase central do sonho: “Deite-se” e acrescenta em seguida, “mas você já está deitado!” Essa intervenção que o analista acrescenta ao texto do sonho assinala o ponto de enunciação do sujeito e mostra a falha da frase do sonho. Se esse sonho “faz pleonasmo com a própria experiência” é porque 10

    ele figura uma sessão que se reduplica ao infinito. O sonho ilustra bem a tese lacaniana segundo a qual “a gente acorda para continuar a sonhar” porque o próprio sonho contradiz e elude o impasse da cura. Cottet propõe ler o sonho como apresentando duas sequências invertidas no tempo: não é como no sonho, uma sessão seguida de um relaxamento como recompensa, mas um relaxamento muito prolongado que tende para a entrada em análise. Essa interpretação invertida em relação à interpretação feita pelo inconsciente corresponde à posição de gozo do paciente: após um período de permissividade sexual, esse sujeito recorreu a uma mulher em posição de autoridade, que veio aliviá-lo de um trabalho de defesa para diferir ao máximo seu gozo, “ele apaga seu gozo para não despertar a cólera de seu mestre” . 11

    Eis o “real do desejo”: é a pulsão. Esse sonho é uma ironia porque é realmente verdadeiro que ele trabalha enormemente, “ele se esgota para dizer o mínimo possível sobre a fantasia que o atormenta. Os trabalhos forçados pelo sintoma obsessivo bem merecem recompensa” . Se a interpretação proposta pelo analista é orientada 12

    para o real, é porque ela “arranca sua interpretação do Nome-do-

    Cottet, Serge., “Allongez-vous, rallongez-vous”, La cause freudienne, Revue de 10psychanalyse, no 51, Navarin éditeur, 2002, p. 63.

    Idem.11

    Idem.12

    �12

  • PAPERS 1 / A interpretação do sonho: do sentido à falha

    Pai” , quer dizer, porque ela visa passar da transferência à pulsão. O 13

    inconsciente interpreta selvagemente: no sonho, ele dá ao analista o lugar do pai (interditor ou benevolente) que ele sempre teve na transferência, posicionando o sujeito na vida num entre-dois, entre angústia e culpabilidade. O assinalamento da falha na frase do sonho, “mas você já está deitado” não acrescenta nenhum sentido que venha reforçar o lugar do analista na transferência. Bem ao contrário, essa interpretação ponderada, permite ao sujeito o reconhecimento da permissão de gozar que ele busca obter do Outro. O real de seu sintoma, sua fobia da relação sexual, está mascarada por essa permissão ligada ao Nome-do-Pai, que finalmente se revela ser apenas uma ficção. Da transferência à pulsão, de um Outro ao outro, essa passagem permitiu que o paciente pudesse se dirigir à mulher nos mesmos termos de sua enunciação: “deite-se”.

    Tradução: Ângela C. Bernardes

    Revisão: Paula Galhardo Cepil

    Idem., p. 65.13

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  • Concluir Amanda GOYA - ELP

    Dure o que durar a prática da análise, segundo reflexões de Lacan no texto O momento de concluir , não deixa de ser um exercício de bate-papo que não carece de riscos e que é preciso levar a sério, porque 1

    o que se diz tem consequências ; a principal: capturar aquilo em que 2

    se está aprisionado, “o inconsciente é isto, acrescenta: a face real daquilo que nos mantém emaranhados” . 3

    Como saber quando uma análise foi concluída?

    Em muitos dos testemunhos dos AE, constatamos que a decisão de finalizar a análise e demandar o passe à Escola costuma ser precedida, inclusive precipitada, por algum sonho, daqueles que denominamos “conclusivos”.

    De que matéria são feitos estes sonhos? Qual é o uso que o futuro passante faz deles?

    Seguindo a linha sugerida por Jésus Santiago , o sonho pode ser 4

    conjugado em uma dimensão de eternidade, consubstancial ao sentido, modo temporal propício ao inconsciente transferencial que apela à decifração. Outra temporalidade reclama o inconsciente real, assim como outra maneira de nomear a função que conecta o sonho com seu umbigo, seu resto não interpretável, e que nos textos de

    N.T., O termo do texto em espanhol é “charlatanería”, cuja tradução literal seria 1“charlatanice”. Porém, esta última não condiz com o termo original em francês, enunciado por Lacan nesse Seminário: “bavardage”, cujo equivalente em português seria ‘bate-papo’, prosa. Optamos pelo primeiro, pois o segundo tem acepções outras que não condizem com esse contexto.

    Cf., Lacan, J., Seminário 25: “Momento de concluir”, lição de 15/11/77, inédito.2

    Ibíd., lição de 10/01/78: Et l'inconscient, c'est ça, (…) c'est la face de Réel de ce dont on 3est empêtré.

    Cf. Santiago, J., “Clínica do despertar impossível: eternidade, duração e tempo”. Rebus 03, 4Textos de orientação. Disponível online. URL: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/clinica-del-despertar-imposible.html

    https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/clinica-del-despertar-imposible.html

  • PAPERS 1 / Concluir

    orientação reitera, a se chamar: “uso do sonho” , “uso do real que 5

    está na base da formação do sonho” , assinala Santiago. 6

    O deciframento do sonho se opõe ao uso? Ou poderia mascarar as possibilidades de seu uso? É o que o autor se pergunta. E propõe aos analistas lacanianos que façam um uso do sonho pela mediação que o tempo permite a partir da função do corte. Tempo lógico, entende-se, pois onde enquadraríamos o corte se não estivesse em compasso com o ritmo próprio do tempo lógico?

    Vários testemunhos relatam um acontecimento culminante no final do tratamento, em que simultaneamente se enlaçam o inconsciente transferencial e o real, através de um sonho que interpreta o desejo de passe ao mesmo tempo em que transfunde a força pulsional que empurra o falasser em direção à porta de saída: concluir e demandar o passe.

    Dois exemplos: Uma mulher, francesa: Aurélie Pfauwadel. Um homem italiano: Domenico Cosenza. Tive a sorte de escutá-los em nossa sede em Madrid.

    Ela, cuja ferida original, constituída pelo abandono de um pai mulherengo, e que tinha encontrado a bússola de seu desejo na alienação à Outra mulher a quem ela supunha o saber, obtém uma nomeação: “a paixão pela a-proximação” , a partir de um sonho 7

    próximo ao final. Nomeação que não é estranha à sua maneira de nomear sua paixão histérica: “A-proximar-se do objeto do pai” . 8

    Dois sonhos conclusivos precipitam o final; em um, ocorre a visita em carne e osso de Scarlett Johansson, que de repente se transforma em uma paciente sua. A analista lhe diz: “Não abro os olhos, mas te

    Cf. Harari, A., “A diferença absoluta do sonho”. Rebus 03, Textos de orientação. Disponível 5online. URL: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/la-diferencia-absoluta-del-sueno.html

    Cf., Santiago, J., “Clínica do despertar impossível: eternidade, duração e tempo”. op.cit.6

    Pfauwadel, A., “La pasión por la a-proximación”, El Psicoanálisis 32, abril 2018, Barcelona, 7p. 321.

    Ibid., p.325.8

    �15

    https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/la-diferencia-absoluta-del-sueno.html

  • PAPERS 1 / Concluir

    escuto. Continue” . E conclui: “O saber-fazer-aí adquirido diante do 9

    olhar, permite-me ocupar o lugar de analista. O espelhismo deslumbrante da Outra mulher, por mais glamorosa que seja, não faz mais obstáculo à escuta. Esta estrela que é Scarlett, também remete à analista, cujo nome significa ‘estrela’” , a qual havia escolhido no 10

    instante de ver o torvelinho de seu corpo dançando um tango.

    O ato final acontece quando um sonho ressalta uma frase dirigida à analista: “‘Não estou de acordo (accord) com você!’ Os significantes a-corpo (a-corps) e desacordo (dé ssacord), produzidos no exato entrecruzamento de meu enganche no corpo do Outro e de meu enganche (agrafe) no saber do Outro foram as últimas pepitas do inconsciente das quais me servi para separar-me dela” . “Pepitas do 11

    inconsciente”, luminosa metáfora da dupla função dos sonhos conclusivos: interpretar o desejo de passe e propulsar ao ato de passar pelo dispositivo.

    Ele , cuja neurose girava em torno de uma missão fantasmática que 12

    lhe tirava a respiração: salvar ao Outro de sua queda, apoiada em uma asma precoce da qual havia padecido, precipita o final de sua última análise a partir de um encontro com a voz do analista que, finalmente, fica despojada de seu valor de demanda.

    Mas, são dois sonhos que escandem o final: o primeiro se produz ... “na noite seguinte ao terremoto que aconteceu no centro da Itália. A cena é muito simples: a terra treme, eu caio” . O sonho lhe revela 13

    que ele não cai por ser distraído, conforme o pediatra interpretou suas repetidas quedas na infância. “É um real sem lei que se abria e começava a tremer, provocando minhas quedas. [...] O segundo sonho concerne ao analista, é o último, de fim da análise. Estou no consultório do analista, comunico que decidi concluir. Despede-se de modo afável. Estou no metrô e o encontro, mas ele se transforma em

    Ibid., p.326.9

    Ibid., p.326.10

    Ibid., p.326.11

    Cf. Cosenza, D., “Otro respiro”, El Psicoanálisis 32, abril 2018, Barcelona, p. 261.12

    Ibid., p.234.13

    �16

  • PAPERS 1 / Concluir

    uma mulher, uma paciente de sua sala de espera, qualquer uma. Tento aproximar-me para lhe falar, mas não há comunicação” . 14

    Um misterioso laço conecta este último sonho de desinvestimento transferencial com uma impactante revelação que vem à luz nas últimas sessões, proporcionando a chave secreta do caso. Visita o analista, então, para acrescentar algo que faltava dizer e que, surpreendentemente, presentificou-se após sair da sessão.

    Um acontecimento traumático anterior ao seu nascimento: uma queda de sua mãe quando estava grávida do primeiro, cuja consequência foi a perda deste primeiro menino, “que por uma tradição familiar teria recebido o meu nome. O do avô paterno”. “De repente, algo se ilumina sobre a base real que está no fundo da construção de minha fantasia obsessiva de salvar o Outro da queda; de ser o salvador do Outro. Devo salvar o Outro porque se o Outro cai, o menino morre. [...] Esta cena se escreveu no real do inconsciente, deixando uma marca indelével em meu destino pulsional. [...] Essa cena estava ali desde sempre, mas eu não a via. Tal como a carta roubada de Lacan, estava diante dos meus olhos desde sempre, mas não conseguia lê-la. [...] Estava em jogo a vida do menino, do irmão não nascido que, de repente, eu descobria, não sem um calafrio, com que havia me identificado. [...] Assim se abre o meu caminho em direção ao passe” . 15

    Caminho que cada passante percorre durante certo tempo, movido por um desejo de transmitir, como assinala Lacan no texto O momento de concluir: “aquilo em que estamos emaranhados” , nas 16

    suas próprias palavras.


    Ibid., p.274.14

    Ibid., p.275.15

    Cf. Lacan, J., Seminário 25: “Momento de concluir”, inédito, lição de 10/1/1978, op. cit.16

    �17

  • PAPERS 1 / Concluir

    Poderá contrariar esta elucidação, a tendência generalizada ao adormecimento, da qual os psicanalistas lacanianos não estão isentos?

    Tradução: Glacy Gorski

    Revisão da tradução: Teresinha N. M. Prado


    �18

  • O sonho e os limites da interpretação Laura RUBIÃO - EBP

    A hipótese de que os sonhos teriam a mesma estrutura do sintoma neurótico inaugura um campo fecundo de investigação clínica ao jovem Freud, às voltas com a afirmação da Psicanálise no ambiente científico de seu tempo. O conteúdo manifesto dos sonhos guardava, sob uma fachada de incongruência e ininteligibilidade, um apelo ao sentido inconsciente.

    Freud delimita com precisão o seu método, distinguindo-o de um simbolismo extático pautado na captura de um conteúdo semântico universal ou na revelação de um significado pré-fixado.

    A publicação de “A interpretação dos sonhos” é precedida de um exercício de interpretação de muitos sonhos biográficos, produtos da angústia do próprio Freud e do que podia ser recolhido da enunciação de seus pacientes. Cedo ele conclui que o sonho nada mais é do que o relato do sonho, indissociável, portanto, das condições (materiais) de sua representabilidade. Basta seguir as criteriosas análises de sonhos contidas neste livro, para verificar a importância textual dos vocábulos e o modo como Freud trabalha, rigorosamente, sob os auspícios da instância da letra. O sentido, só poderia ser buscado, como insiste Lacan, como efeito da significação à qual se subordina o sonhador . 1

    Outro aspecto crucial da análise dos sonhos é que, sendo o desejo indestrutível, não haveria um alvo decisivo da decifração. Freud lida não somente com o êxito interpretativo, mas também com o que se lhe opõe sob a forma de lacunas e falhas: elaboração e censura oníricas, facilitações e resistência. Todo sonho, ele diz, contém em si

    Lacan, J., A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos, Rio de Janeiro, 1Jorge Zahar Editor, 1998, p.599.

  • PAPERS 1 / O sonho e os limites da interpretação

    o fracasso do desejo de dormir, um efeito despertante gerado pela 2

    intensidade das catexias das moções pulsionais. Ele já havia chamado a atenção para o ponto em que o “sonho mergulha para o desconhecido” , assinalando uma espécie de curto circuito ou de 3

    parada radical do processo de elaboração onírica.

    A que consequências clínicas teriam levado esse encontro prematuro com a questão do limite da arte interpretativa? Freud relaciona esse estancamento da atividade onírica que leva com frequência ao despertar, à produção de desprazer, decorrente de um aumento de tensão intrapsíquica. Os sonhos de angústia são, nesses casos, os mais expressivos. É curioso notar que os exemplos recolhidos por Freud apontam sempre para uma angústia de castração correlata de 4

    um desejo de punição, de sorte que o que se anuncia como corte ou expressão do limite da possibilidade de representar, é reintegrado, via interpretação, a um cenário ou a uma borda fantasmática que pudesse novamente fazer falar o sentido recalcado. Se o sonho desperta, diríamos, a interpretação faz dormir.

    Como Freud teria se servido do limite radical da interpretação que ele mesmo intui no trabalho com os sonhos? Ele o teria assimilado sempre ao muro da castração e à emergência de uma ideia incompatível no sentido da fantasia edipiana?

    Lacan elevou a famosa passagem do umbigo dos sonhos à dignidade de uma ferramenta clínica crucial para o reconhecimento da emergência do real que brota do próprio tecido significante. Na nota passo a passo para a leitura do seminário 23, Miller coloca em destaque o interesse de Lacan pelo termo Unerkannt: “Lacan traduz o Unerkannt por ‘não reconhecido’. Ele o identifica ao que Freud nomeia

    Freud, S., A Interpretação dos sonhos. Edição standard brasileira das obras psicológicas 2completas de Sigmund Freud, v. 5, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p.613

    Freud, S., A Interpretação dos sonhos, op. cit., p.560.3

    Freud, S., (1900). A Interpretação dos sonhos, op. cit., p.620-625.4

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  • PAPERS 1 / O sonho e os limites da interpretação

    urverdrängt, o recalcado primordial ou original (...) onde se vê “um nó no dizível” comparável ao furo na pulsão” . 5

    Dois famosos sonhos interpretados por Freud e revisitados por Lacan, nos permitem vislumbrar a presença desse ponto opaco que testemunha a presença real do gozo e que, no entanto, aguarda, na análise, uma possibilidade de leitura.

    Na análise do sonho de Irma, Freud se vê às voltas com a encruzilhada da solução (losüng) histérica que, tanto refuta a existência de uma substância orgânica causadora da doença, quanto a elucidação do sintoma pela via semântica - com a qual ele, no entanto, não deixa de sonhar. Lacan muda o foco das coisas e nos propõe ler aí uma série que vai da boca que se fecha (esquivando-se ao sentido) ao buraco que se escancara, passando pelo balbucio dos “universitários” que gaguejam coisas sem sentido, até emergência da fórmula da Trimetilamina, que se impõe como pura cifra de gozo. 6

    Mas é na análise do segundo sonho de Dora que vemos com mais clareza o modo como o elemento obscuro e enigmático escapa a Freud, que prefere sustentar-se em sua posição de intérprete do pai, não dando espaço à pergunta central sobre o que quer uma mulher. 7

    Dora recebe uma carta da mãe que lhe anuncia a morte do pai com as seguintes palavras: “Agora ele está morto e, se você quiser, pode voltar.” Ela está perdida, numa cidade estranha, não encontra a 8

    estação e é tomada por uma angústia de imobilidade. Chega e todos já estavam no cemitério. Em seguida, sobe ao quarto e vai ler um livro. Dora não segue em direção ao pai, detém-se diante de um escrito e, em suas associações, lembra-se de como postara-se embevecida diante da imagem da Madona. O que ela de fato quer?

    Miller, J.M., Nota passo a passo. In: Lacan, J. O seminário, livro XXIII, Joyce, o sinthoma. 5Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2007, p.237-8.

    Lacan, J., O seminário, livro II, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Rio de 6Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1987, p. 187-217.

    Miller, J.-A., Sobre o desencadeamento da saída de análise (conjunturas freudianas), 7Aposta no passe. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2018, p.31-44.

    Freud, Sigmund., Fragmento da análise de um caso de histeria. Edição Standard Brasileira 8das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.91.

    �21

  • PAPERS 1 / O sonho e os limites da interpretação

    Lacan novamente nos convida a ler o sonho a partir de seus furos e ressalta o quanto Dora está capturada pelo Mistério da feminilidade. 9

    Assim como em Irma, o feminino se abre aqui para um ponto de não reconhecimento, de suspensão radical do sentido.

    É verdade que esses dois sonhos datam dos primórdios da psicanálise e que Freud em “Além do princípio do prazer” assinala a estranha presença da pulsão de morte nos sonhos dos traumatizados da guerra, conferindo todo um peso teórico e clínico à questão do elemento ininterpretável que aí se apresenta. As teorias do trauma e da compulsão à repetição realçam a presença desse ‘nó no dizível’, vetor principal da formulação tardia de Lacan sobre o Inconsciente Real.

    Lacan, J., Intervenção sobre a transferência, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 91998, p.220.

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  • O sonho está queimando Cyrus SAINT AMAND POLIAKOFF - NLS

    Ao retornar a Freud, Lacan interpreta Freud. Como uma interpretação lacaniana, sua leitura da teoria freudiana do sonho marca a junção precisa na qual as construções psicanalíticas de Freud já se interpretam elas mesmas. O sonho freudiano de interpretação a serviço do sentido se tornou o pesadelo freudiano. Freud indexa a Interpretação dos sonhos com o sonho da criança queimando. Por que Freud estabelece este pesadelo como um paradigma do Capítulo VII do seu livro sobre os sonhos?

    Pai, não vês que estou queimando?

    Esse é um sonho relatado a Freud, tomado emprestado de outro sonho, “re-sonhado” por seu paciente. O sonho do inconsciente a serviço do Nome-do-Pai está queimando. Ele queimou diante de Freud que não conseguiu desviar seu olhar. O sonho, estruturado pelo desejo, ardendo com um núcleo incandescente, o pesadelo do encontro com o real da pulsão.

    Com uma pequena ajuda do Seminário XI e das formulações de Jacques-Alain Miller, a tese freudiana de 1900 sobre o sonho desmente o vetor do inconsciente real no exato momento em que Freud se propõe a construir o que hoje entendemos como inconsciente transferencial. A recursiva e paradoxal lógica dos sonhos de Freud tropeça no nó descoberto da relação entre dois significantes: dormindo e acordado. O próprio sonho é uma amarração do inconsciente enquanto transferencial e do inconsciente “digo: o inconsciente, seja, o real” . 1

    No capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud se refere a Aristóteles, que colocou o sonho como “pensamento que persiste […]

    Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, Outros Escritos. Rio de Janeiro, 1Jorge Zahar Ed., 2003, p. 567.

  • PAPERS 1 / O sonho está queimando

    no estado do sono” . Pensamento à parte, se isolarmos o “persiste”, 2

    as formações do inconsciente, acordado e dormindo, estabelecem uma continuidade. O inconsciente persiste interpretando, cantarolando de palavra em palavra na cadeia de associações utilizada por Freud, apontando para a produção de sentido em jogo no funcionamento psíquico do sonhar e do despertar. A continuidade aqui é a lógica da fantasia que encontra consistência no sonho e na vida, acordado ou dormindo. Essa é “a vida é um sonho” que Lacan interrogou. 3

    No entanto, Freud permaneceu curioso em relação aos sonhos de angústia. O aspecto traumático do sonho expõe a função de descontinuidade. Aqui podemos localizar o outro lado da interpretação dos sonhos, o vetor que vai contra o sentido. A operação de corte na psicanálise produz uma descontinuidade na produção de sentido através da cadeia significante para introduzir um ponto de ruptura no devaneio da nossa vida cotidiana. Seguindo o eixo do inconsciente real, quando sonhamos, podemos produzir um corte. Na teoria dos sonhos de Freud, o momento de despertar, próximo demais do real para o conforto do sonhador, produz uma interrupção momentânea na junção entre sonho dormindo e o sonho acordado. A angústia do despertar interrompe o sonho para que continuemos a dormir na vida desperta depois de um breve encontro com o real da pulsão. E assim prosseguimos de bolha em bolha, de sonho a devaneio, um colar de pérolas de significantes, mas não sem ficar sem fôlego entre cada episódio semântico.

    Podemos isolar os dois vetores do inconsciente como interpretação em metáforas que Freud emprega na Interpretação dos sonhos. No lado do inconsciente transferencial, Freud descreve o sonho como o corpo de frutificação de um cogumelo que cresce do micélio da rede

    Freud, S., Obras Psicológicas Completas. A interpretação dos sonhos, Volume V. Rio de 2Janeiro, Imago Ed., p. 503.

    Lacan, J., O seminário, livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de 3Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1998, p. 55.

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  • PAPERS 1 / O sonho está queimando

    de significantes, o sonho como um fungo da ordem simbólica. Mais 4

    tarde Freud apresenta o sonho como fogos de artifício: leva “horas para preparar e tudo termina em um instante”. O sonho tem a 5

    qualidade de erupção. O sonho reluz como uma reação química que se acelera quando o material significante reprimido queima através da atmosfera do imaginário. Ele aparece como um evento perceptivo que exige ser entendido e também permanecer em silêncio. Se lermos o capítulo VII da Interpretação dos sonhos a partir da Orientação Lacaniana, o sonho assume a qualidade de um acontecimento. É um encontro no qual o ser falante acumula sentido. Interpretar um sonho pode estimular a produção de sentido ao redor dessa erupção enigmática. Ou então, o analista pode direcionar o sonho de volta à sua função de furo. Orientado pelo inconsciente real, o sonho é um acontecimento do ser falante no qual linguagem e corpo colidem.

    O curso de uma análise pode oscilar entre verdade e acontecimento, duas polaridades sublinhadas por Eric Laurent em seu texto de orientação para o Congresso da NLS de 2020. No desenvolvimento 6

    da teoria dos sonhos de Freud, ambas polaridades aparecem no nível do texto e não uma antes da outra, mas inextricavelmente vinculadas pelo nó do sonho. No Seminário XI, ao reler o sonho da criança queimando, Lacan desafia essa orientação. Freud escreve que o pai da criança desejava prolongar sua vida. Para Lacan, o pai foi despertado pelo fogo ofuscante que se acende em torno da impossibilidade de ver morte. A vida seria apenas um sonho se não fosse o cerne da experiência psicanalítica: o real. O sonho é formado como o encontro com o real que sempre nos escapa. Lacan o saúda como um “compromisso” , um encontro marcado. Na medida em que 7

    nosso encontro com o Outro do significante articula o inconsciente

    Freud, S., Obras Psicológicas Completas. A interpretação dos sonhos, Volume V. Rio de 4Janeiro, Imago Ed., p. 556.

    Ibid., p. 524.5

    Laurent, E., “Interpretation: From Truth to Event”, in The Lacanian Review 8, NLS, Paris, 62019.

    Lacan, J., O seminário, livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de 7Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1998, p. 47.

    �25

  • PAPERS 1 / O sonho está queimando

    transferencial, sonhamos para análise. Sonhamos para pavimentar a estrada Real , colocando cada pedra enquanto atravessamos a 8

    paisagem do sentido e significado.

    Mas e o nosso encontro marcado com o real que Lacan pontua no Seminário XI? O momento de despertar é um tiquê, um encontro com o real que é sempre quase desencontro; um vácuo sem fôlego encontrado entre a bolha do sonho e a bolha da vida. Somos acordados pelo real da pulsão, o núcleo ardente e vazio que jamais pode ser visto, mas que nos obriga a olhar de novo e de novo. O sonho tem a função do pequeno carretel do Fort-Da, uma representação da repetição movida pelo trauma. O inconsciente 9

    como interpretação, cifrando (Fort) e decifrando (Da), envelopa um furo, isola-o para sonhador. O sonho da criança queimando evoca o inconsciente real, a sonolência do simbólico é acordada pelo alarme de incêndio do encontro impossível, o espaço entre fantasia e trauma do real.

    Tradução: Luciana Silviano Brandão Lopes

    Revisão: Bruna Meller

    Royal em inglês: relativo à realeza. A homofonia com o termo "real", o real dos três 8registros propostos por Lacan, não existe na língua inglesa.

    Ibid, p. 62. 9

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  • Uma pragmática do sonho Fernando Gómez Smith - NEL

    Ao propor em seu ultimíssimo ensino uma nova versão do 1

    inconsciente, Lacan estabelece uma clínica sob a perspectiva do sinthoma. Nela se destaca o uso do sonho, diferentemente do deciframento, e se orienta para uma prática do Um sustentada na primazia do gozo do corpo. “Segundo J.-A. Miller, há sonhos em que um gozo não capturado na máquina ficcional, interditiva, pode estar presente, onde o gozo, como acontecimento de corpo, se torna presente.” Diferencia-se, então, o que no sonho corresponde aos 2

    campos da ficção edípica e o de lalíngua – esta última referida ao chamado umbigo do sonho, que interpreta o traumatismo inaugural.

    Lacan, no Seminário 10, aponta que a angústia própria do pesadelo é experimentada como “a angústia do gozo do Outro” . Sobre essa 3

    afirmação, Palomera disse que: “… o pesadelo coloca em jogo um gozo obscuro que não se apresenta na forma de linguagem: dele não se pode dizer nada, é opaco, impensável e inominável” . 4

    É a presentificação do real, o umbigo do sonho, que submete o falasser a um gozo que lhe é estrangeiro, mas que, na realidade, lhe é próprio e é vivido dessa maneira pelo afrouxamento do nó. O pesadelo como experiência maciça de angústia encarna o impacto, mostrando que o gozo se sente no corpo. O gozo atropela a imagem e deixa vivenciar esse sobressalto, esse pulo do corpo que desperta para seguir sonhando.

    O despertar revela que as marcas do real não estariam no despertar em si, e sim naquilo que no sonho provoca o despertar. Aponta o não

    Cf. Miller, J.-A., Curso da Orientação Lacaniana, “O ser e o Um”, inédito, lição de 2 de março 1de 2011.

    Baudini, S. e Naparstek, F., “Apresentação do XII Congresso da AMP”. Rebus 01, Textos de 2orientação para o XII Congresso da AMP. Disponível na internet.

    Lacan, J., O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005, p. 73. 3

    Palomera, V., “Dormir no es tan fácil”. Blog da Escuela Lacaniana de Psicoanálisis. 4Disponível na internet: http://blog.elp.org.es/1018/dormir-no-es-tan-facil/

    http://blog.elp.org.es/1018/dormir-no-es-tan-facil/

  • PAPERS 1 / Uma pragmática do sonho

    querer saber nada, para esquecer o real encontrado no sonho e continuar sonhando – porém, desta vez, com os olhos abertos.

    Se o enodamento funciona, o gozo que se apresenta no sonho é moderado; mas, quando o simbólico no nó se afrouxa , se 5

    experimenta como acontecimento de corpo esse gozo que desperta numa dupla manobra, como aponta Hebe Tizio: “… ativa o sujeito e libera o corpo dessa opressão ao permitir-lhe recuperar sua atividade onírica” . É o corpo que desperta, é uma recomposição de uma 6

    realidade ao se restituir a defesa, ao mesmo tempo em que se presentifica o real nesse despertar.

    A nova, a clínica

    Do ultimíssimo ensino se desprende uma nova perspectiva para a prática, a partir da qual é importante interrogar sobre a formação e a posição do analista na experiência analítica. O analista é quem deve colocar em ato a interpretação selvagem a partir de uma orientação que vá mais na vertente do ato que da palavra.

    Orientar-se pela perspectiva da fantasia é diferente de orientar-se a partir do HáUm, e essa mudança tem consequências na escuta do analista. Assim, de entrada, o que se escuta é o que itera, é esse gozo singular que está fora do sentido e que não faz laço.

    Nessa clínica o relevo incide sobre o uso de uma pragmática em que o forçamento está orientado para desestruturar o sistema simbólico, para nos introduzir no uso lógico do sinthoma. A clínica do sinthoma propõe uma nova disciplina da interpretação: o analista pesadelo, o analista cirurgião . 7

    Assim, em seu último ensino, Lacan faz uso do nó borromeano, uma modalidade de tratamento da disrupção do gozo pela une-bévue. “Para isso, ele reformula os termos clássicos dos instrumentos da operação analítica – o Inconsciente, a Transferência, a Interpretação

    Tizio, H., “El sueño es una pesadilla moderada”. El Psicoanálisis, n. 33, outubro 2018, 5Barcelona, p. 63.

    Ibid., p. 63.6

    Cfr. Koretzky, C,. Sueños y despertares. Buenos Aires, Grama Ediciones, 2019. p. 211.7

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  • PAPERS 1 / Uma pragmática do sonho

    – propondo termos novos: o falasser, o ato, a jaculação, submetidos à lógica do HáUm (Yad´l´Un), jaculação central em todas as consequências, tal como Jacques-Alain Miller explicita. Este conjunto de retomadas define o quadro teórico de uma prática da clínica das loucuras sob transferência e do tratamento da disrupção de gozo…” . 8

    Uma orientação que se dirige à captura desse traço de une bévue, traduzido como uma-equivocação [inadvertencia ]. 9

    Surge uma nova concepção da interpretação em sua dimensão de forçamento. “É uma interpretação que não aponta para a concatenação ou para a produção de uma cadeia significante. Há uma nova meta de apertamento [serrage] do nó em torno do acontecimento de corpo e da inscrição que pode ser notada como (a) num uso renovado” . 10

    Um analista numa função muito distinta de interpretar o sentido, estaria melhor numa posição de saber manobrar, saber cortar. O corte da sessão é como um despertar abrupto, como se um sonoro relógio despertador arrancasse de um sonho e apontasse mais que ao conteúdo do inconsciente à sua modalidade de advento: ruptura, surpresa, uma irrupção que assinala um impossível de dizer.

    Por essa via a interpretação se torna, em vez de sujeito suposto ao saber, sujeito saber manobrar. Manobrar, enfatizando o uso, não o deciframento, não a interpretação significante, e sim cernir, constatar, verificar, surpreender… o pesadelo. É uma interpretação em que o S1 está por conta do analista, porém é o analisante quem aporta o S2.

    Uma interpretação cuja essência “é o retorno da palavra à escritura, a que foi escrita na equivocação” . O que Lacan chamou 11

    interpretação selvagem e Miller de interpretação como despertar, que tem a ver com o que ocorre no pesadelo. Por isso, Miller propõe que

    Laurent, É., “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. In: Opção Lacaniana n.79. 8São Paulo, Eolia, 2018, p. 62.

    Cf. tradução, no texto acima, de Éric Laurent, p. 62.9

    Lacan, J., O Seminário, livro 22: R.S.I. Aula de 11 de fevereiro de 1975. Inédito. Tradução 10livre.

    Laurent, É., “La interpretación: de la verdad al acontecimiento”. Discurso pronunciado en 11Tel-Aviv, 2 de junho de 2019. Inédito.

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  • PAPERS 1 / Uma pragmática do sonho

    “…a interpretação eficiente do analista é um pesadelo” . É uma 12

    travessia do “Isso quer gozar, ao Isso não quer dizer nada, porque o inconsciente mascara o Isso mediante a palavra” . 13

    Tradução: Carmen Cervelatti

    Revisão: Tatiane Grova


    Miller, J.-A., “La ponencia del ventrílocuo”. Introducción a la clínica lacaniana, Conferencias 12en España, ELP-RBA, Barcelona, 2007, p. 444.

    Cf. Ibid. p. 452.13

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  • O sonho e os litorais do Un-bevue Silvano POSILLIPO - SLP

    É que Freud, em Interpretação dos sonhos, não faz melhor:

    sobre o sonho, com a associação livre, sobre o sonho sonha. 1

    A interpretação do sonho, como qualidade da prática do psicanalista, é tomada como exemplo clínico da existência funcional do inconsciente. Seguindo o esquema do ato falho, como no caso do nome “Signorelli” ,vemos que além dos fragmentos literais que se 2

    deslocam, endereçando a intenção de um significante a outro, Freud chega a um ponto de impasse, oblíquo em relação ao jogo da metonimia e da metáfora, e do qual nada sabe dizer além da inquietude que o toma como sujeito para além do fantasma.

    No sonho “da bela açougueira” , o significante “salmão”, evocado no 3

    sonho da paciente de Freud, ultrapassa a grade interpretativa no jogo das partes sobre o saber do analista, e adverte a um leitor atento de que este saber, suposto como tal na transferência, resta como um obstáculo insuperável à interpretação: o verdadeiro enigma do gozo que aí se apresenta e que o significante em questão indica, mas não pode alcançar.

    Se de um lado podemos compreender o valor interpretativo do Inconsciente no seu trabalho com o significante, seja como palavra ou como imagem, de outro lado, como o ultimíssimo Lacan mostra e J.-A.Miller elucida, há aí um litoral: borda que ultrapassa o Outro e que permite entender a continuidade lógica entre o inconsciente

    Lacan, J., O Seminário livro 25 Le moment de conclure, lição de 11.04.1978, inédito, 1tradução da autora.

    Freud, S.,”Psicopatologia da vida cotidiana”, Edição Standard Brasileira das Obras 2Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago,1974, vol.6, pp19-26.

    Cf. Freud, S., “A interpretação dos Sonhos”, Edição Standard Brasileira das Obras Completas 3de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1967, vol. 4, pp.155-162.

  • PAPERS 1 / O sonho e os litorais do Un-bevue

    interprete e o inconsciente real.

    Real, condição do simbólico , que no sonho se enoda na trama, cujo 4

    relato, na interpretação de segundo grau, não pode ser novamente sublimado.

    O Real diz no seu dizer, mas não fala, resta silencioso, ancorado na pulsão de morte . 5

    Resistencia é o significantefreudiano para indicar o modo do encontro com o real na tyché: a barra entre o significante e o gozo que viria a representar o seu significado (se houvesse um) não é só impossível de recuperar, mas uma escritura ilegível, marca de ex-istência fora de qualquer significação.

    A análise não é uma sublimação bem sucedida, é mais um fracasso, diz Lacan um “imbroglio” , se se pretende fazer do inconsciente um 6

    universal.

    Trata-se de tentar dizer qual é o lugar do Real em relação ao Esp-de-um laps, outro modo de designar o inconsciente real ; lapso 7

    necessario ao falante para introduzir-se no laço com o Outro no sonho.

    O Um do gozo, o Um-sozinho, não poderia sustentar-se no corpo-Outro. Se o significante tem essa função mortificante sobre o corpo de gozo, ao mesmo tempo é condição para fazer desses lugares traumáticos o campo das erotizações, das repetições, sempre faltosas, sobre a tomada do objeto, para que o sujeito possa crer na Verdade.

    O amor é um bom parceiro-semblante com o saber para completar o vazio da relação sexual impossível. Na transferência os sonhos situam o trabalho onírico no campo de atração do saber, servem como uma

    Cf. Lacan, J., O Seminário livro 16. De um Outro ao outro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar 4Editor, 2011,p. 30.

    Ibid, p. 15. 5

    Lacan, J., O Seminário livro 24,L’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre, lição de 611.01.1977, inedito.

    Ibid, lição de 16-11-1976 e de 14-12-1976.7

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  • PAPERS 1 / O sonho e os litorais do Un-bevue

    pergunta voltada para a conclusão do sentido da cena aparelhada pela semântica do inconsciente.

    A clínica da histeria orienta Freud para o que definirá a rocha da castração, ponto de chegada a partir da significação da falta; e ele ainda tinha a disposição o umbigo do sonho, testemunha de uma fuga do sentido cujo limite é S(A/) . 8

    No duplo reverso da elaboração, se apreende como a interpretação do sonho está já em vigor na transformação onirica. Transformação, diz Lacan, verdadeira virtude do inconsciente interprete, que, enquanto inconsciente, não pensa, não calcula, não deseja, mas dá a entender . Cifra para que o falante se mantenha, através da 9

    decifração, na relação com o Outro. Para o número do gozo, a metaforização da cifra.

    Resta a letra, resto da separação operada no Real. O Simbolico não pode dizer o Todo e o Imaginario veicula uma parte fora da imagem que a letra captura.

    A letra, em A carta roubada ,a partir do texto de Poe , está fora da 10

    imagem, é na cena que age seu poder. Feminiliza como objeto de sedução aquele que sonha com sua posse, o sonhador que acredita ter sob controle a realidade; realidade que faz uso de lalingua, como peças soltas que circundam e recaem nas letras, nos fragmentos estranhos à trama, ao recit do sonho: o significante procura o literal no litoral de lalingua.

    O trabalho onirico de interpretar, construção da verdade mentirosa, produz por metonimia um mais-de-gozar, e o risco significativo para o analisante de um incremento de gozo através da interpretação de sentido.

    Em Radiofonia Lacan insiste sobre o sentido como algo que se perde,

    Cf. Bassols, M.,“A interpretação como mal-entendido”, Opção Lacaniana n.18. São Paulo, 8EOLIA. 1997. Pp.62-65.

    Cf. Lacan, J., O Seminário, livro 14 A lógica da fantasia, inedito, lição de 19-4-67.9

    Cf. Lacan, J., O seminario sobre a carta roubada, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar 10editor, 1998, p.13-66.

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  • PAPERS 1 / O sonho e os litorais do Un-bevue

    que se encontra com o impossível a não poder senão perder . 11

    Onde está o sujeito no sonho? Como a experiência demonstra, frequentemente é reduzido ao olhar, objeto e sujeito coincidem; podemos encontrar aí a virtude maior do inconsciente interprete em manter o lapso do real. Lapso do real e não lapso no real, sublinhando a participação do vazio na construção do sonho, isto é, a causa que o trabalho do sonho enoda nas três dimensões tóricas.

    O sonho gira nos seus ditos, como um analisante, para poder dizer, mas a causa resta fora do sentido e da produção principal.

    O inconsciente interprete é, portanto, uma maquina entrópica e trabalha para o Real:o buraco dos sonhos, diz Lacan, é o que resta da causa depois de colocar a trabalho a cifra, a produção de sentido necessária, a fim de conceder ao sonhador a garantia de viver em conexão com seu próprio gozo. Lacan no Seminario L’Une-bévue diz que o sonho, como qualquer formação do inconsciente é um falso que aspira ao verdadeiro, tem valor de troca . No discurso analítico se 12

    produz S1s que vão na direção da interpretação, cujo efeito de verdade, porém, é sempre aleatorio, por isso, quando se compreendem os efeitos, estes não são analíticos, como lembra J.A.Miller . 13

    No trabalho analitico o sujeito é confrontado com a própria divisão subjetiva, mas é preciso sair da ontologia da revelação, de crer na boa fé freudiana no inconsciente.

    A que se reduz a interpretação analítica do sonho? Como introduzir o ato na retradução do texto do sonho?

    A resposta do analista está na leitura. Apreender a letra mais que o significante em seus efeitos de sentido ; cortar o sentido em seu 14

    Laurent, E., “Interprétation et vérité”, La Lettre mensuelle, 137, mars 1995, p. 5.11

    Cf.Miller ,J.-A., A orientação lacaniana. “O inconsciente real”, La Psicoanalisi, 47/48, 2010, 12p. 210.

    Cf. Miller, J.-A., Los usos del lapso, lição de l 2.2.2000. Buenos Aires: Paidós, 2000.13

    Cf.Miller, J.-A., A orientação lacaniana. “O inconsciente real”, La Psicoanalisi, 47/48, 2010, 14p. 210.

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  • PAPERS 1 / O sonho e os litorais do Un-bevue

    ponto de equívoco, compreendido como o que detecta o traumático ou o trou (furo) na relação com o gozo real. Ser capaz de ler os arredores, os litorais do furo são funções ativas da presença do analista e de seu silencio; silencio dos ditos e das interpretações, que ressoa com a presença, alguma coisa do dizer no corpo do falante, silencio que pode fazer borda a isso que não cessa de não se escrever, a fim de que a palavra do paciente, seu relato, advenha memória de um acontecimento real de corpo, inscrição de gozo na contingência à qual o sonho pertence.

    Tradução: Marcia Zucchi

    Revisão: Andrea Villanova


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  • Um sonho que mostra o real Irene KUPERWAJS

    Ao longo de minha experiência analítica os sonhos funcionaram como pistas, boias que me indicaram por onde andava e para onde ir. Alguns deles enlaçaram ao tecido da análise um real pulsional que repercute o traumatismo inaugural do choque de lalíngua sobre o corpo.

    Um sonho, que marca a entrada em minha última análise, ilustra essa perspectiva.

    Depois da morte do analista – com quem (me havia analisado) me analisei durante oito anos – começo outra análise que me levará ao passe. Um sonho irrompe no primeiro encontro com a analista.

    Tratava-se de uma imagem em que “o analista anterior jaz sobre o divã de seu consultório com os lábios costurados”.

    Este sonho assinalava o objeto oral que se apresentava pela via do silêncio, pura pulsão oral que se fechava em sua satisfação, resto que não havia sido tocado anteriormente.

    Eu não tinha querido saber nada disso

    O gozo autista do sintoma, o calar, se enlaça ao Outro na transferência pela via do sonho. Assim, a analista não somente leva ao deciframento, como também se constitui em parceira do gozo do sujeito.

    “Em boca fechada não entram moscas” é a frase que agrego ao relatá-lo.

    Os lábios costurados, a boca fechada, denotam a palavra presa ao silêncio e à morte. Tratava-se de meus próprios lábios costurados, a boca comendo o silêncio, núcleo do pathos, umbigo do sonho.

    Que me ensina esse sonho?

  • PAPERS 1 / Um sonho que mostra o real

    Que o imaginário no sonho pode indicar um real, ponto de falta que angústia. Como sustenta Jacques-Alain Miller “o imaginário do sonho oferece, às vezes, ao que está forcluído do simbólico, uma ‘ilustração visual patética’ que se paga com angústia”. 1

    Essa imagem do sonho indicava, ao começo da análise, o real pulsional em jogo.

    Abrir a boca para falar tornou possível, no trabalho analítico, localizar o objeto oral e depois o invocante como parceiros do sujeito na construção e atravessamento da fantasia.

    Pude desvelar que em meu programa de gozo a analista havia sido escolhida por seu “falar claro”.

    O encontro com essa imagem e seu efeito de despertar deixaram um traço profundo que orientou minha experiência. Esclarecer-me, “reencontrar isto do qual se está prisioneiro...

    a face real disso no que se está enredado” , levou mais quinze anos. 2

    Quinze anos de trabalho analítico para finalmente constatar que já não se tratava da boca fechada, senão do impossível de dizer e do gozo opaco do sinthoma, do “isso goza ali onde isso não fala”, o silêncio do real.

    Tradução: Jorge A. Pimenta Filho.

    Revisão: Glacy Gonzales Gorski

    Miller, J-A., “Despertar”, Matemas I, Manantial, Bs As, 1987, p.121. 1

    Lacan J., El Seminario 25, Momento de concluir. Clase 10 de enero 1978. Inédito. 2

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  • Da Outra cena a uma cena Paola FRANCESCONI

    “Sonhei que estava sonhando que...”. Qual posição em relação ao trabalho onírico pode indicar este aparente redobramento da Outra cena?

    O sonho é frequentemente a melhor via para localizar as coordenadas de um sujeito em relação ao próprio gozo e ao desejo do Outro. O sonho não apela apenas ao Sujeito Suposto Saber mas indica de onde e como o sujeito faz este apelo, permitindo, assim, ao analista compreender com certa precisão as condições de encenação, por assim dizer, do gozo do sujeito, naquele momento, e o limite da possibilidade de sua inscrição, naquele momento, em seu inconsciente. O que o significante e a letra podem transmitir na Cena e o que, por outro lado é inacessível, o real, o limite ou, ainda, a umbilicação que fura tal cena onírica, o chamado umbigo do sonho. Como diz Lacan é diante disso que Freud se detém, chamando-o recalcamento original "na raiz da linguagem", real, furo, "que é a melhor figuração que se pode dar dele" . Assim, um sonho 1

    geralmente representa a via régia da passagem para o divã, ao próprio e verdadeiro trabalho analítico.

    É um impulso a fazer-se reconhecer, onde os caminhos do dizer da associação livre permitem ao sujeito do inconsciente um fazer-se compreender, que não esclarece imediantamente, como o desejo do Outro o interroga. No sonho, a transposição para a Outra Cena permite uma maior proximidade com as condições de alusividade de lalíngua que agita o sujeito, e de como pode se fazer bom entendedor disso.

    A Outra Cena, na qual tomam lugar questões que dizem respeito ao sujeito e ao seu engajamento no apelo ao SSS, desenham freudianamente o inconsciente como transferencial, como

    Lacan, J., L’ombilic du rêve est un trou, La Cause du désir 102, Navarin Éditeur, Paris 2019, 1p. 36

  • PAPERS 1 / Da Outra cena a uma cena

    interpretação que libera uma resposta e uma possibilidade de invenção de um saber novo.

    Como Jacques-Alain Miller diz, o Seminário XX desloca a ênfase do 2

    Outro para o Um, com consequências decisivas tanto para o inconsciente quanto para o estatuto do gozo. Surge ali um novo inconsciente, não mais transferencial, mas real, centrado no Um do gozo.

    O sujeito da frase citada no início, ... sonha que está diante de três portas, abre-as e fecha-as sucessivamente. Cada uma delas leva a uma das três mulheres que compartilham sua vida fantasmática: a esposa que abraça, separando-se dela, a amante na cama, de costas, privada da face de seu gozo masculino, e a mulher do amor, a quem ele olha do fundo de uma escadinha, linda, mas com a mancha da morte no rosto. Como não reconhecer aqui uma referência ao tema dos três escrínios com os quais Freud dá conta da estrutura subjacente da relação de um homem com o Outro sexo? As três 3

    mulheres, aqui a esposa / mãe, a companheira, a amada impossível. No entanto, nesse sonhar de sonhar esta cena tripartida se desvela um ponto de umbilicação do sonhador, não dirigido ao Outro, mas uma resposta do real, inconsciente que se dá no ritmo da abertura / fechamento das três portas, que o situa no ponto de real, não redutível ao sentido de cada cena e que se passa nos interstícios desta passagem real da encenação à impossibilidade de sua inscrição.

    Como em outros casos, nesta ou em outras formas, tocamos a dimensão em que a falta de sentido na estrutura se conecta ao inconsciente real no sonho.

    Pode-se dizer, talvez, que estejamos lidando aqui com o sonho, não como Outra Cena, mas como Uma Cena, umbilicação do Outro no Um. "Sonhei que estava sonhando que" é o oposto de uma duplicação

    Miller, J-A.,Os seis paradigmas do gozo, Opção Lacaniana Online, Ano 3, n. 7, março de 22012.

    Freud, S., O tema dos três escrínios (1913). Em Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, 3Imago, 1986, vol. XVIII.

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  • PAPERS 1 / Da Outra cena a uma cena

    da cena, mais precisamente, é o índice de um real, não redobramento, mas redução, o avesso da tese pirandeliana do "teatro no teatro".

    Tradução: Andrea Villanova

    Revisão: Marcia Zucchi

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