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Parte I
A Idéia de Sociedade Primitiva
O arrogante desprezo que um povo civilizado nutre pelos seus vizinhos bárbaros tem causado uma negligência singular nas
observações sobre estes, e esta falta de cuidado tem sido agravada às vezes pelo medo, pelo preconceito religioso, e mesmo pelo uso
destes próprios termos – civilização e barbárie – transmitindo às pessoas a impressão de uma diferença não somente em grau, mas
também em espécie.(Henry Summer Maine, Ancient Law (1861), pp. 116-17)*
*Todas as citações do presente livro foram traduzidas pela tradutora. As referências da página das citações, no entanto, são da edições originais utilizadas pelo autor, cujas referências bibliográficas se encontram no final do livro.
Capítulo I
O MITO DA SOCIEDADE PRIMITIVA
A sociedade primitiva foi considerada inicialmente um assunto para estudiosos
do Direito. O pai fundador da antropologia britânica, E.B. Tylor, comentou em 1865
que a investigação de questões tais como a forma do matrimônio primitivo “pertence
propriamente a este tema interessante, mas difícil e praticamente pouco
desenvolvido, da Jurisprudência Comparativa de raças inferiores; e ninguém que não
fosse versado em Direito Civil poderia lhe fazer justiça.”1 Os estudos pioneiros foram
escritos por juristas– Henry Maine, Johannes Bachofen, J. F. Mc Lennan, Lewis
Henry Morgan. As questões que eles investigaram – o desenvolvimento do
matrimônio e da família, da propriedade privada e do Estado – foram concebidas em
termos legais. Sua fonte inicial, seus estudos de casos comuns foram fornecidos pelo
direito romano.
Se há um livro a ser colocado à frente dos estudos vitorianos sobre sociedade
primitiva, é provavelmente Ancient Law de Henry Maine, publicado em 1861, dois
anos depois do A Origem das Espécies. A maior parte das idéias específicas de Maine
foram logo descartadas; porém ele redefiniu uma noção clássica da condição humana
original, e a fez parecer diretamente relevante para os interesses de seus
contemporâneos. Maine supôs que os primeiros seres humanos eram membros de um
grupo coletivo familiar comandado por um pai despótico. Gradualmente, os patriarcas
mais poderosos atraíram párias da sociedade para se juntar a eles. A associação local
se tornou cada vez mais importante. Por fim, as sociedades baseadas no parentesco
foram substituídas por sociedades baseadas no território. Esta transição do sangue
para a terra, do status para o contrato, foi a grande revolução na história humana.
No mesmo ano em que Ancient Law foi publicado, um professor suíço de
direito romano, Johannes Bachofen, releu os mitos gregos como um documeto
sociológico e chegou à surpreendente conclusão que a estrutura original familiar não
era patriarcal, mas sim matriarcal. Em 1865, um jurista escocês, J. F. Mc Lennan,
reagindo às teorias de Maine, obteve semelhante conclusão à de Bachofen, mas
aparentemente sem conhecer o trabalho deste. A publicação de Primitive Marriage
de McLennan por sua vez inspirou um advogado americano, Lewis Henry Morgan, a
desenvolver a mais influente destas imagens novas de instituições sociais primordiais.
Seu livro mais conhecido, Sociedade Primitiva, apareceu dezesseis anos depois de
Ancient Law. O livro ecoou o título de Maine e pertenceu ao mesmo universo de
discurso.
Esses não eram textos convencionais de direito; mas o direito em si não era,
naqueles dias, um campo restrito. Ele incluía a história do direito, e prontamente deu
espaço para histórias especulativas sobre a origem da lei na sociedade primitiva.
Grandes questões filosóficas foram levantadas para debates, os quais delineariam as
recentes teorias sobre história e sobre a natureza humana. A presença maciça de
Darwin pairou sobre todas as discussões a respeito do desenvolvimento humano na
Inglaterra vitoriana, mas os juristas geralmente se sentiam mais em casa com as idéias
de Herbert Spencer e dos utilitaristas. Macaulay, Stubbs, Freeman, e Froude os
confrontaram com novas teorias sobre as origens antigas da constituição britânica2.
Eles também reagiram às descobertas da filologia alemã, mediadas na Grã-Bretanha
por Max Muller. E eles trocaram idéias sobre as origens e a evolução humana nas
novas sociedades “antropológicas”. A Société d’Anthropologie de Paris foi fundada
em 1859, e iniciativas similares se seguiram em Londres em 1863 e em Berlim em
1869 (cada uma, naturalmente, com sua própria revista).
À medida em que a Antropologia começou a ser profissionalizada no final do
século XIX, E.B. Tylor e James George Frazer se estabeleceram como autoridades
principais no assunto na Grã-Bretanha. Juntos eles arbitraram as disputas entre Maine,
McLennan, e Morgan, e definiram as características mais gerais das sociedades
humanas primordiais. A sociedade primitiva era originalmente um todo orgânico, que
então se dividiu em dois ou mais blocos idênticos em construção. (Esta idéia remetia a
Spencer). As unidades constituintes da sociedade eram grupos descendentes
associados, exógamos, geralmente denominados clãs ou grupos familiares [gents], que
mantinham bens e mulheres em comum. Em torno de 1880 havia um amplo acordo
(apesar da discordância contínua de Maine) de que estes grupos eram originalmente
“matriarcais”, traçando uma descendência apenas pela linhagem feminina. O
casamento se fazia em termos de trocas regulares de mulheres entre homens de grupos
de ascendência diferentes. Estas formas sociais, não mais existentes, foram
preservadas nas línguas (especialmente em terminologias de parentesco) e nas
cerimônias de povos “primitivos” contemporâneos.
É impressionante a consonância que havia mesmo em termos de detalhe. Na
década final do século XIX, quase todos os especialistas estariam de acordo com as
seguintes proposições:
1. As sociedades mais primitivas eram baseadas em relações pautadas pelo
sangue.
2. As unidades básicas da sociedade eram “clãs” ou “gentes” – isto é, grupos de
descendência formados pelos descendentes de um homem na linhagem
masculina, ou de uma mulher na linhagem feminina.
3. A propriedade era comum a todos, e as mulheres eram mantidas coletivamente
pelos homens do clã.
4. Os casamentos eram proibidos entre homens e mulheres que fizessem parte do
mesmo clã. (Havia, no entanto, muito debate se teria havido ou não um
período anterior de “promiscuidade primitiva”).
5. Cada clã era concebido como descendente de um deus animal ou vegetal, que
era reverenciado. Isto era “totemismo”.
6. Os “remanescentes” destas instituições poderiam ser identificados nas
cerimônias ou em formas de linguagem das sociedades primitivas
contemporâneas.
7. Finalmente, depois de uma grande revolução, talvez a maior na história
humana, os grupos de descendência definharam, os direitos de propriedade
privada foram estabelecidos, a família moderna nasceu, e um Estado territorial
emergiu.
A rapidez com a qual os antropólogos desenvolveram a idéia de sociedade primitiva
estarrece. No entanto, sua persistência é ainda mais extraordinária. As histórias
convencionais da antropologia transpassam uma sucessão de teorias quase filosóficas,
mas todas estas teorias levaram à mesma idéia de sociedade primitiva. Este protótipo
persistiu por bem mais de cem anos, apesar do fato de que a investigação empírica
sistemática das sociedades “primitivas” remanescentes começou a ser empreendida
em todas as escalas apenas na última década do século XIX.
Nada disso seria particularmente notável se a noção de sociedade primitiva
fosse substancialmente pontual. Mas ela não o é. O conceito como um todo é
fundamentalmente débil. Não há nenhuma via sensata na qual se pode especificar o
que é uma sociedade primitiva. O termo implica algum ponto de referência histórico.
Ele presumivelmente define um tipo de sociedade que antecede formas mais
modernas, análogo à história evolucionária das espécies naturais. Entretanto, as
sociedades humanas não podem ser traçadas retroativamente até um ponto singular de
origem. Tampouco há algum meio de reconstituir formas sociais pré-históricas, ou de
classificá-las e alinhá-las eu uma série temporal. Não há fosséis de organização social.
O ponto inicial do Alto paleolítico
Os seres humanos plenamente modernos se desenvolveram na Africa há cerca
de 150.000 anos. Os primeiros migrantes foram para o Oriente Médio há mais de
40.000 anos e entraram na Europa há cerca de 35.000 anos. Aqui eles gradualmente
deslocaram a população de Neanderthal, que representava uma variação humana
anterior, igualmente de origem africana.
Estes humanos plenamente modernos estão associados a uma grande
revolução cultural. Os primeiros traços desta foram achados no Oriente Médio. Há
cerca de 30.000 anos atrás, chegou na Europa. Em termos arqueológicos, a revolução
marcou a transição da longa era Paleolítica para o Alto Paleolítico. Não foi uma
revolução veloz, e alguns arqueólogos sugerem que ganhou força na Europa apenas
25-20.000 anos atrás. Paralelamente, na África, a mudança das sociedades da Média
Idade da Pedra para as da Alta Idade da Pedra ocorreu há apenas 20.000 anos. No
entanto, apesar de lentas, modificações muito grandes aconteceram no modo de viver
humano. Richard Klein julga que a transição para o Alto Paleolítico “sinaliza a
mudança mais fundamental no comportamento humano que o registro arqueológico
pode revelar” desde a invenção das ferramentas de pedra há 1.5 milhões de anos
atrás3. Lewis Binford enfatiza particularmente “a elaboração do enterro; a arte; os
ornamentos pessoais; os novos materiais, tais como o osso, os chifres e a pedra macia;
o movimento de longa distância e/ou a circulação de bens; e uma variação crescente
de tamanho, duração e conteúdo de lugares”. Esta quantidade de inovações levou
Binford a concluir que uma revolução mais profunda aconteceu. A linguagem se
desenvolveu, linguagem no sentido moderno, um veículo criativo e flexível, e foi a
linguagem que criou as condições para a “aparecimento da cultura”4.
Tais mudanças fundamentais devem ter criado repercussões na maneira pela
qual as comunidades estavam organizadas. No entanto, é muito difícil dizer como
eram as sociedades do Alto Paleolítico. Eram claramente de pequena escala. Sua
economia era baseada na caça e na coleta. Havia provavelmente pouca estratificação.
O fogo era controlado e utilizado para cozinhar, e há sinais do que devem ter sido
fogos domésticos, mas nenhuma conclusão pode ser traçada sobre estes terem sido
unidades domésticas; e, se o eram, quem as habitava, ou se mulheres e homens
possuíam tarefas diferentes. As pessoas enterravam seus mortos, talvez uma indicação
de sentimentos religiosos. Alguns acadêmicos especulam que a arte das cavernas
reflete crenças em um mundo espiritual. Entretanto, pode-se dizer pouco além sobre
as idéias cosmológicas correntes durante o Alto Paleolítico com segurança. Em todo o
caso, não se pode supor que todas as sociedades do Alto Paleolítico eram similares.
Ao contrário, havia provavelmente variações locais em crenças e costumes. Afinal,
havia diferenças tecnológicas significativas entre assentamentos vizinhos, o que levou
à troca de bens, em alguns casos através de longas distâncias.
Em suma, a evidência arqueológica pouco pode nos dizer sobre a natureza das
sociedades do Alto Paleolítico, tampouco sobre a extensão da conformação dessas a
um padrão comum. É apenas com o desenvolvimento da escrita, em torno de 7.000
anos atrás, que uma pré-história sociologicamente informada se torna possível. Há, no
entanto, uma estratégia alternativa para a reconstrução do passado remoto. O próprio
Darwin comparou variações entre espécies vivas a fim de fazer deduções sobre seus
ancestrais comuns. Os antropólogos sempre foram tentados, em uma visão mais
ingênua, a tratar populações vivas como substitutas das sociedades da Idade da Pedra.
Para os antropólogos vitorianos, o povo mais próximo a Idade da Pedra eram ou os
caçadores-coletores americanos ou os aborígenes australianos, mas os representantes
da Idade da Pedra mais famosos na antropologia moderna são os bosquímanos !Kung
do deserto do Kalahari. Estes devem sua proeminência aos estudos conduzidos nas
década de 1960 e de 1970 por Richard Lee e seus associados. Seu objetivo explícito
era encontrar equivalentes vivos das primeiras populações forrageadoras nas planícies
da Africa Oriental. Mas eles imaginaram estar descobrindo o estado natural da
humanidade. “Não podemos evitar a suspeita de que muitos de nós foram levados a
viver e trabalhar entre os caçadores por sentir que a condição humana tendia a ser
mais claramente delineada aqui do que entre outros tipos de sociedades”.5
Os pesquisadores dos !Kung participavam de um novo movimento na
antropologia americana, que deu particular atenção às maneiras pelas quais pequenas
populações de caçadores-coletores se adaptavam a ambientes naturais. Os !Kung não
possuíam ferramentas além de bastões de cavar, recipientes de água feitos de casca de
ovo de avestruz, roupas e bolsas de pele e arcos e flechas simples, e eles tinham que
sobreviver em um semi-deserto.6 No entanto, eles se sustentavam com uma
quantidade surpreendentemente pequena de trabalho. Os adultos trabalhavam em
média o equivalente a dois dias e meio por semana, e ainda assim a sua dieta era mais
que adequada, de acordo com a maior parte dos padrões nutricionais estabelecidos.
Isso contradisse a antiga visão de que caçadores-coletores viviam uma existência
marginal. Marshall Sahlins aclamou os !Kung como uma sociedade afluente original7,
que deviam estar à beira da hipérbole, mas pareceu razoável supor que os antigos
caçadores-coletores, que habitaram ambientes mais brandos, devem ter experenciado
uma prosperidade ainda maior que os !Kung.
A economia dos !Kung se baseava na divisão de trabalho. Ambos homens e
mulheres colhiam alimentos plantados, embora as mulheres gastassem mais tempo
nesta atividade que os homens. No entanto, apenas os homens caçavam. A caça era,
de algum modo, uma atividade paradoxal: arriscada, consumia tempo, era custosa em
termos de gasto de energia. Era também menos confiável que a coleta, e os alimentos
vegetais forneciam o cerne da dieta !Kung. Durante a maior parte do ano, apenas vinte
por cento do influxo de alimentos era proporcionado pelos caçadores. Mas a carne era
apreciada, e em estações de máxima produção a caça providenciava até noventa por
cento da comida para o acampamento, e durante o ano um/uma !Kung garantiria entre
trinta e quarenta por cento de suas calorias através da carne.
Alguns teóricos então argumentaram que o desenvolvimento da caça teve um
papel crucial na evolução humana. Macacos africanos raramente se voltam a caça, a
não ser em situações causuais ou oportunistas. No caso dos humanos, a caça bem
sucedida requer sofisticação técnica, planejamento e cooperação. Parece igualmente
depender, na prática, de uma divisão de trabalho. Homens caçam. Mulheres coletam
os alimentos próximos à casa, onde elas podem manter os olhos nas crianças. Um par
macho-fêmea seria, portanto, mais adequado para se alimentar a si mesmos e aos
filhos de uma mulher, e isso favoreceria a evolução da família.8
Os !Kung passaram logo a ser usados como padrão na interpretação dos
materiais arqueológicos sobre as sociedades do Alto Paelolítico. No entanto,
EdwinWilsem, que havia ele próprio feito um longo estudo de campo sobre os !Kung,
lançou o que veio a ser chamada uma tese revisionista9. Sua crítica central era de que
os evolucionistas tiraram os !Kung de seu contexto histórico real. Os forrageadores do
Kalahari viveram em contato intímo com os grupos pastoris por pelo menos mil anos.
Por dois séculos eles formaram parte de uma complexa sociedade do sul da África,
que incluía fazendeiros europeus e falantes de bantu. Eles não poderiam ser tomados
para representar (em uma frase de Lee que Wilsen lançou de volta a ele) “os
forrageadores em um mundo de forrageadores”. Os !Kung eram uma subclasse em um
Estado moderno.
Os etnógrafos de outros grupos de bosquímanos no Kalahari sugeriram um
enfoque crítico diverso. Eles descobriram a variedade de adaptações que os
bosquímanos fizeram às condições ecológicas locais, e chamaram a atenção para as
diferenças de língua, crença religiosa, padrões de assentamento, e arranjos de
parentesco. Este argumento poderia ser generalizado. Se os !Kung não eram um típico
bosquímano, havia ainda menos razão para supor que eles poderiam servir como o
tipo ideal de todos os caçadores coletores através da história. Os Hazda da Tanzânia,
os pigmeus da floresta ituri no Congo, vários grupos inuit, aborígenes malasianos,
caçadores-coletores amazônicos, eram exemplares igualmente plausíveis, sem
mencionar os favoritos dos vitorianos, os aborígenes australianos. Em 1972, Marshall
Sahlins agregou todos eles em seu Stone Age Economics, baseando-se no fato de que
todos praticavam o “modo de produção familiar”, uma economia de ordem doméstica
modesta, na qual todos se contentavam em ajustar-se com apenas o suficiente para
viver. Julian Steward e Elman Service sugeriram que todas estas pessoas viviam em
bandos patrilineares, mas havia evidência abundante de que a organização local e os
sistemas de parentesco dos caçadores-coletores não era uniforme. E tampouco esses
possuíam quaisquer instituições que lhes fosse única. Alan Barnard mostrou, por
exemplo, que os sistema de parentesco de alguns dos povos bosquímanos de Kalahari
tinha mais em comum com os pastoris vizinhos Khoi ou hotentotes do que com os
sistemas de parentesco de outros bosquímanos Kalahari.10
Em todo o caso, a crítica revisionista se manteve relevante, qualquer que tenha
sido a sociedade forrageadora contemporânea que escolhida como representante da
população da Idade da Pedra. Não houve primeiros caçadores-coletores,
milagrosamente sobrevivendo com suas instituições do Alto Paleolítico intactas,
disponíveis para investigação, mesmo para os mais aventurosos pesquisadores de
campo. Todos os caçadores-coletores viveram por gerações, algumas vezes por
séculos, lado a lado com vizinhos que praticavam o pastoreio ou a agricultura. Eram
todos cidadãos ou sujeitos desfavorecidos do Estado moderno. Suas formas de vida
eram adaptadas a essa situação.
Resulta que, mesmo se se pudesse definir o que significaria sociedade
primitiva, esta não poderia ser estudada empiricamente. Sabemos que as sociedades
do Alto Paleolítico eram populações em pequena escala de caçadores e coletores, mas
não há maneira pela qual a evidência arqueológica pode estabelecer se eles eram
organizados em grupos familiares, se praticavam monogamia ou poligamia, se
adoravam totens, se dividiam seu trabalho entre homens e mulheres, ou se tinham
chefes (muito menos se este ofício era transmitido por herança). As etnografias de
caçadores e coletores presentes contemporâneos registra uma variedade de
instituições sociais e crenças religiosas, mas pode-se aventurar algumas
generalizações plausíveis. O casamento e a família são universais; relações de troca
são altamente valorizadas; apenas homens caçam; não há líderes poderosos; há pouca
diferenciação social, exceto por aquela entre homens e mulheres. Porém, há
diferenças substanciais entre estas sociedades, e mesmo suas características comuns
podem não ter sido compartilhadas pelas populações do Alto Paleolítico. Afinal,
milhares de anos de história intervieram, uma história que tem tratado rispidamente os
caçadores-coletores, direcionando-os a refúgios inóspitos, obrigando-os a adaptarem-
se a vizinhos incômodos. Quando estudados nos séculos XIX e XX suas vidas haviam
sido definitivamente transformadas pelos encontros com fazendeiros, pastores,
comerciantes e missionários.
O termo primitivo deveria ser usado para representar o ponto de partida de
uma história comum, através do qual todas as populações passam, em velocidades
diferentes. Uma história coletiva e progressiva da humanidade é plausível se restrita
ao desenvolvimento tecnológico, e ao crescimento secular da população humana
como um todo. Até recentemente, mil anos atrás, a população humana total era de
aproximadamente oito milhões. Hoje há mais de seis bilhões de pessoas no planeta.
Mais do que qualquer outra coisa, esta é uma medida clássica de sucesso
evolucionário. No entanto, estas observações não podem ser traduzidas em uma
história das sociedades efêmeras com fronteiras incertas, ou expandidas para abarcar a
história das instituições sociais, uma vez que o registro arqueológico permite pouca
informação sociológica.
A persistência de uma ilusão
Em termos claros, a história da teoria da sociedade primitiva é a história de
uma ilusão. É nosso flogisto [phlogisto], nosso éter. A persistência do modelo é
particularmente problemática, uma vez que as suas afirmações básicas foram
diretamente contraditas pela evidência etnográfica e pela própria lógica da teoria
evolucionária. As dificuldades foram claramente colocadas por acadêmicos notáveis
no final do século XIX e início do século XX (marcadamente Maine, Westermarck,
Boas e Malinowski). Ainda assim, os antropólogos se ocuparam por mais de cem anos
com a manipulação de um mito que foi construído por juristas especuladores no final
do século XIX.
Uma maneira comum de justificar a persistência de um mito é supor que este
possui funções políticas. Certamente a idéia de sociedade primitiva poderia e, de fato,
alimentou uma variedade de posições ideológicas. Entre os seus mais celebrados
protagonistas, estavam Engels, Freud, Durkheim, e Kropotkin, homens com agendas
políticas muito diversas. Os comentadores britânicos e americanos da sociedade
primitiva estavam também reagindo a uma variedade de eventos políticos. A rebelião
de Morant Bay na Jamaica e a Guerra Civil nos Estados Unidos reviveram debates
anteriores sobre a escravidão. Os argumentos sobre a escravidão, por sua vez,
levantaram a grande questão se os seres humanos tiveram todos uma origem comum
ou se as raças era espécies separadas, com ancestrais diferentes. Estas questões
dividiram os antropólogos vitorianos, e eles formaram então duas associações rivais, a
Sociedade Etnológica de Londres e a Sociedade Antropológica de Londres.11 O
desenvolvimento do Império Indiano e a colonização da África incitaram questões
mais fundamentais, sobre a natureza do governo e da própria civilização, que foram
calorosamente debatidas em círculos antropológicos. Na Alemanha, especulações
sobre a cultura nacional e o Volksgeist alimentaram a crença comum que as
sociedades eram baseadas em sangue ou terra, mas estas idéias românticas eram
contestadas pelos antropólogos liberais em Berlim. Em suma, ao mesmo tempo em
que a idéia de sociedade primitiva era relevante para um grande número de grandes
questões políticas, ela não era necessariamente associada a uma única posição
política. Além disso, à medida em que os intelectuais começaram a se familiarizar
com o desafio de Lyell e Darwin ao relato bíblico autorizado da História, um número
de antropólogos decidiu que as questões religiosas eram ainda mais urgentes.
No fim, no entanto, pode ser que algo ainda mais fundamental que as
preocupações religiosas ou políticas tenha feito as sociedades primitivas parecerem
tão boas para pensar. Os europeus na segunda metade do século XIX acreditavam que
estavam testemunhando uma transição revolucionária. Marx definiu uma sociedade
capitalista emergindo de uma sociedade feudal; Weber estava para escrever sobre a
racionalização, a burocratização, o desencantamento do velho mundo; Tönnies sobre a
mudança de comunidade para associação; Durkheim sobre a transformação das
formas mecânicas para as orgânicas de solidariedade. Cada um concebia o novo
mundo em contraste com a “sociedades tradicionais”, mas por detrás desta “sociedade
tradicional” eles discerniam uma sociedade primitiva ou primeva, a qual configurava
a verdade antítese da modernidade. A sociedade moderna era definida, acima de tudo,
pelo Estado territorial, a família monogâmica e a propriedade privada. A sociedade
primitiva deve ter sido, portanto, nômade, ordenada por laços de sangue, sexualmente
promíscua e comunista. Houve também uma progressão na mentalidade. O homem
primitivo era ilógico e supersticioso. As sociedades tradicionais eram submetidas à
religião. A modernidade, por sua vez, era a idade da ciência.
Mas, ainda que a sociedade primitiva fosse boa para pensar, produzia mais
uma mitologia que uma ciência. Isto não significa que não houvesse
desenvolvimentos na teoria, mas mesmo as mitologias também não são estáticas. “Um
mito, assim que passa a existir, já é modificado através troca de narrador”, de acordo
com Lévi-Strauss. “Alguns elementos saem, e são substituídos por outros, as
seqüências mudam de lugares, e a estrutura modificada se move em uma série de
estados, variações das quais, no entanto, ainda pertencem ao mesmo conjunto”. Essas
transformações não resultam simplesmente em mudanças pequenas, em diferenças
que podem ser reduzidas a “pequenos incrementos negativos ou positivos”. Antes, as
transformações são realizadas por manipulações sistemáticas do mito como um todo,
e elas produzem “relacionamentos distintos, tais como contrários, contradições,
inversões e simetrias”12.
Não havia nada particularmente primitivo sobre essa forma de pensamento. “O
tipo de lógica no pensamento mítico é tão rigoroso quanto o da ciência moderna”,
insiste Lévi-Strauss, “e a diferença reside não na qualidade do processo intelectual,
mas na natureza das coisas ao qual este é aplicado”.13 Em o Pensamento Selvagem, ele
desenvolveu o tema de que a imaginação “selvagem” (ou inculta, não domesticada)
trabalhava em formas comparáveis ao pensamento científico sofisticado, e aos
processos que produzem grande arte. Até aonde ele está correto, teorias científicas
podem ter muito em comum com os mitos amazônicos, cientistas podem pensar de
algum modo como artistas, e talvez nós todos pensemos, ao menos às vezes, como os
índios amazônicos.
E, ainda assim, há certamente uma grande diferença entre o ideal estabelecido
de pensamento científico e o que Lévi-Strauss chama de “a lógica do concreto”. As
teorias científicas deveriam ser aperfeiçoadas. O entendimento deveria avançar. Não
se volta atrás na ciência. Mas, colocando de forma simples, se um argumento avança
virando um argumento anterior de cabeça para baixo, então em algum momento
alguém irá efetuar uma transformação seguinte colocando-o na posição inicial. Uma
série de transformações estruturais tende a acabar onde se iniciou. E parece que
modelos sucessivos de sociedade primitiva representam transformações diretas,
mesmo mecânicas, de seus predecessores. De fato, este livro é em grande medida
uma consideração das transformações de uma ilusão dentro de um discurso cada vez
mais hermético.
Entra Darwin
É freqüente ver a rejeição da realidade da sociedade primitiva como uma
negação do Darwinismo. Nada poderia ser menos verdadeiro. As teorias darwinianas
direcionam a atenção para variação, para a adaptação a condições locais e,
conseqüentemente, para a diversificação. Uma das poucas coisas que pode
seguramente ser dito sobre as primeiras sociedades humanas é que elas devem ter
representado uma variedade de adaptações. Uma vez que as variações ecológicas
restringem a organização social, especialmente quando a tecnologia é simples, haveria
diferenças consideráveis na estrutura social. Em base puramente teórica, um
darwiniano poderia relutar em acreditar que as primeiras sociedades tiveram todas a
mesma forma, muito menos que elas foram orientadas por alguma dinâmica interna
para gerar uma série comum de transformações. Isto era óbvio para alguns dos
antopólogos vitorianos. Foi por estas razões que Henry Maine, um não-darwiniano,
rejeitou a idéia que todas as sociedades tinham passado pelos mesmos estágios.
Até onde eu saiba, não há nada na história registrada da sociedade que justifique a crença de que, durante o vasto capítulo de seu crescimento, o qual não está ainda totalmente escrito, as mesmas transformações da constituição social sucedessem uma à outra em todos os lugares, de forma uniforme, senão simultânea. Uma grande força residindo nas profundezas da natureza humana, e nunca estagnada, deveria sem dúvida, ao longo do tempo, produzir um resultado uniforme, a despeito das grandes variedades que acompanham a luta inexorável pela existência; mas é um tanto inacreditável que a ação desta força fosse uniforme do início ao fim.14
A origem do homem
“Origem do homem agora provada. – A metafísica deve florescer. – Ele que
entende baboon faria mais pela metafísica do que Locke.”15. Darwin colocou esse
famoso silogismo em seu “Notebook on the Man”, que ele expôs em 1838. Seu tema
central era que todas as atividades mentais podem ser reduzidas a processos neurais.
Mesmo o amor divino era uma função da organização do cérebro – “oh, seu
Materialista!”16 Huxley havia demonstrado que os cérebros humanos eram
estruturalmente similares aos de outros primatas, embora fossem maiores e
presumivelmente mais complexos. “Se as várias faculdades mentais gradualmente se
desenvolvessem, o cérebro quase certamente se tornaria maior”, concluiu Darwin.
“Ninguém, eu presumo, duvida que a grande proporção que o tamanho do cérebro do
homem ocupa em seu corpo, comparado com a mesma proporção no gorila ou no
orangotango, está claramente associada com seus poderes mentais maiores”17
A especialização do cérebro foi uma conseqüência da seleção natural. Os
selvagens viviam nas mesmas condições que os outros animais. A sobrevivência era
extremamente incerta.
“Sabe-se que os selvagens sofrem severamente de fomes recorrentes; eles não reforçam sua comida por meios artificiais. Eles raramente abstém-se do casamento, e geralmente se casam jovens. Conseqüentemente, eles devem estar sujeitos a ocasionais lutas severas pela existência, e os favorecidos sobreviverão sozinhos”18.
Estes indivíduos favorecidos também se reproduziriam fora do grupo.
“Podemos ver que, neste estado mais rudimentar de sociedade, os indivíduos que eram mais sagazes, que inventavam e usavam as melhores armas ou armadilhas, e que eram os mais hábeis ao se defender, criariam um número maior de filhos. As tribos que incluíam o maior número de homens dotados dessa forma, cresceriam em número e suplantariam outras tribos.”19
O desenvolvimento do cérebro também promoveria qualidades sociais e
morais (as quais Darwin reconheceu serem de uma importância maior que a simples
inteligência). Um senso moral podia ser encontrado entre outros animais, mas seu
alto desenvolvimento entre seres humanos foi o resultado de uma seleção natural
“auxiliada pelo hábito adquirido”.20 Inteligência e princípios morais se
desenvolveram juntos. E, à medida em que as sociedades avançaram, elas ficaram
progressivamente adeptas a assimilar valores morais.
“As causas mais eficientes do progresso parecem consistir de uma boa educação durante a juventude, quando o cérebro é inculcável, e de um um alto padrão de excelência, impresso pelos homens mais hábeis e melhores, incorporado nas leis, nos costumes e nas tradições da nação, e reforçados pela opinião pública.”21 “Assim, as qualidades morais e sociais tenderiam a avançar lentamente e a serem difundidas pelo mundo.”22
Havia um paradoxo aqui. As “qualidades morais” se desenvolveram e se
espalharam através da seleção natural. Porém, ainda que elas tenham sido um sucesso
para a comunidade, isto aconteceu com algum custo ao indivíduo.
Não deve ser esquecido que, embora um alto padrão de moralidade garanta pouca ou nenhuma vantagem ao indivíduo e seus filhos sobre os outros homens da mesma tribo, ainda assim um aumento no número de homens bem-dotados e um avanço do padrão de moralidade certamente dará uma vantagem imensa de uma tribo sobre a outra. Uma tribo incluindo muitos membros, os quais, por possuir em alto nível o espírito de patriotismo, fidelidade, obediência, coragem e simpatia, estiveram sempre prontos a ajudar um ao outro, e por se sacrificar pelo bem comum, seriam vitoriosos sobre a maioria das outras tribos: e isso seria seleção natural.23
Mas isto é seleção natural? Parece mais com o que hoje é desdenhosamente
descrito como “seleção grupal”. A doutrina de Darwin tratava da seleção natural
funcionando sobre os indivíduos. No entanto, ele achava que os seres humanos
haviam se tornado espécies domesticadas, e nas espécies domesticadas o reprodutor
impõe suas próprias exigências, selecionando por qualidades que podem não
funcionar muito bem na natureza. Darwin observou com preocupação que os ganhos
da seleção natural estavam sendo dissipados inconseqüentemente nas sociedades
modernas mais avançadas. Riqueza e poder eram herdados, mesmo se os herdeiros
fossem inaptos. As pessoas protegiam seus parentes mais fracos e até os encorajavam
a se reproduzir. Tampouco os indivíduos mais adequados eram necessariamente
recompensados com vasta prole. Darwin lamentava que os homens agora escolhiam
suas mulheres com critérios frívolos, e que homens ambiciosos e bem-sucedidos
tendiam a adiar o casamento e ter poucos filhos, enquanto que os pobres reproduziam
como coelhos.
Darwin concluiu que, à medida em que a tecnologia avançava, a seleção
natural tornava-se menos decisiva. Sobre esse assunto, ele citou as visões de Alfred
Russel Wallace, co-autor da teoria da seleção natural:
Sr Wallace....argumenta que o homem, depois de ter adquirido parcialmente aquelas faculdades morais e intelectuais que os distingüe de animais inferiores, teria se tornado pouco propenso a modificações corporais através da seleção natural ou quaisquer outros meios... Ele inventa as armas, as ferramentas e vários estratagemas para procurar comida e se defender. Quando migra para um clima mais frio usa casaco, constrói abrigos e faz o fogo; e, com a ajuda do fogo, cozinha o alimento que seria indigesto de outra foma. Ele auxilia seus companheiros de muitas maneiras e antecipa eventos futuros. Mesmo em um tempo remoto ele praticava alguma divisão do trabalho.24
“Evolucionismo” ou Darwinismo?
Nas duas décadas que se seguiram à publicação da Origem das Espécies, em
1859, surgiram uma série de monografias que lidavam de uma maneira nova e urgente
com a sociedade primitiva, a evolução do casamento e da família, e a elevação da
ciência em detrimento da magia e da religião. Os autores destes livros (que incluíam
mais notavelmente Maine, Tylor, Lobbock, McLennan e Morgan) desenvolveram um
discurso coerente novo. Referindo-se mutuamente aos seus trabalhos, e a despeito das
diferenças sobre muitas questões que pareciam ser para eles de importância decisiva,
eles geralmente concordavam (embora Maine tenha tido suas dúvidas) que um avanço
direto poderia ser estabelecido a partir da sociedade primitiva, através de vários
estágios intermediários, até a sociedade moderna.
Quando a antropologia se estabeleceu nas universidades no século XX, e as
histórias da disciplina começaram a ser escritas, esses antropólogos pioneiros foram
convencionalmente agrupados como “evolucionistas”. No entanto, J.W. Burrow
protestou contra a invocação ritual do nome de Darwin para explicar a natureza da
antropologia vitoriana. Em termos de profissão, os antropólogos pioneiros eram
juristas, classicistas e teólogos. Eles estavam mais suscetíveis à influência de
historiadores e filósofos do que aos achados dos cientistas naturais, e estavam mais
impressionados pelas lições de filologia comparativa que pela biologia darwiniana.
“Darwin foi sem dúvida importante”, concluiu Burrow, “mas é um tipo de
importância impossível de estimar precisamente. Ele não foi certamente o pai da
antropologia evolucionária, mas possivelmente foi seu tio rico.”25
Admitamos, um tio rico não deve ser desconsiderado. No entanto, a teoria
darwiniana ofereceu um número de pistas distintas, e foi possível selecionar dentre
elas. A tese de que os seres humanos tinham evoluído dos macacos africanos
perturbou profundamente muitos contemporâneos. “Meu querido e velho amigo”
escreveu o capitão aristocrático Robert Fitzroy, outrora do HMS Beagle, para o
companheiro de um das suas viagens, Charles Darwin, “eu, ao menos, não posso
achar nada 'enobrecedor' na idéia de ser um descendente mesmo do mais antigo
primata”.26 Fitzroy estava suficientemente preocupado a ponto de comparecer ao
famoso debate sobre A Origem das Espécies de Darwin, o qual ocorreu em Oxford,
em junho de 1860. O Bispo Wilberforce quis saber se Huxley descendia de um
macaco pelo lado da família de sua avó ou da de seu avô. “O Senhor o entregou em
minhas mãos”, Huxley murmurou ao seu vizinho, e respondeu:
“Se eu tivesse que preferir um primata miserável como avô ou um homem altamente dotado pela natureza e possuidor de grandes meios e influência, mas que emprega estas qualidades com um mero propósito de trazer o ridículo para uma discussão científica séria – eu afirmaria sem hesitação minha preferência pelo primata”.
Houve uma comoção na sala, durante a qual Fitzroy se levantou, agitou uma
cópia da bíblia, implorou à audiência para acreditar na palavra sagrada de Deus, e
expressou seu arrependimento por ter dado a Darwin a oportunidade de coletar fatos
para basear uma teoria tão chocante.27 Darwin, por sorte, estava muito doente para
comparecer à reunião em Oxford (problemas estomacais). No entanto, ele não estava
otimista com a recepção de suas idéias. Ele hesitou por uma década antes de se expor
novamente. Porém, quando ele publicou The Descent of Man em 1871, a doutrina da
descendência comum havia sido amplamente aceita pelos biólogos e antropólogos
britânicos.
Até mesmo os antropólogos mais simpaticamente inclinados trataram o
restante da teoria darwiniana como um menu a la carte. Afinal, o princípio da seleção
natural foi contestado por biólogos que estavam próximos a Darwin. Mesmo o fiel
Huxley era cético. Os antropólogos em geral ignoraram a questão, embora gostassem
de citar o mote de Spencer sobre “a luta pela sobrevivência”. “Nem Maine, tampouco
Tylor ou Mc Lennan fizeram muito uso da teoria da seleção natural”, escreve
Burrows, “e Spencer a utilizou apenas como um adorno para uma teoria que ele já
havia desenvolvido”.28
O considerado pai da antropologia britânica, E.B.Tylor foi um ortodoxo
suficientemente darwiniano “sempre quando ele deve se pronunciar sobre os
problemas físicos relacionados à descendência humana” observou seu biográfo; mas,
caso contrário, seu darwinismo não foi tão longe. “Embora ele usasse
ocasionalmente...a preferencialmente sonora frase 'evolução', a qual Darwin tomou
de Herbert Spencer, talvez sem prestar muita atenção às suas implicações filosóficas,
Tylor prefere decididamente falar simplesmente em 'desenvolvimento' da cultura.”29 O
antropólogo vitoriano mais amplamente lido, James George Frazeer, não mostrou
interesse algum pela teoria darwiniana.30 O antropólogo de Oxford R.R. Marrett
admitiu, em seu livro Antropologia, publicado em 1911, que a “Antropologia é o filho
de Darwin”; mas assim como Tylor, ele enfatizava a teoria da descendência comum e
não tinha nada a dizer sobre seleção natural.
Qual é a verdade que o darwinismo supõe? Simplesmente que todas as formas de vida no mundo estão relacionadas. E que as relações manifestas no tempo e no espaço entre as diferentes vidas são suficientemente uniformes para serem descritas sob uma fórmula geral, ou lei, ou evolução.31
Sua contrapartida em Cambridge, Alfred Haddon, que iniciou a carreira como
biólogo, fez apenas duas breves referências a Darwin em seu History of Anthropology,
publicada em 1934. Ele concluiu, assim como Marett, que a contribuição principal de
Darwin era estabelecer a origem natural das espécies humanas.
Além do mais, o darwinismo perdeu espaço entre os biólogos na última
década do século XIX, mesmo na Inglaterra. Julian Huxley chamou este momento de
“eclipse do darwinismo” e isto durou até a síntese evolucionária das décadas de 1930
e 1940 ter unido a teoria darwiniana e a genética mendeliana.32 Uma teoria lançada em
1800 por um biólogo francês, Jean-Baptiste de Lamarck, voltou a ficar em voga. De
acordo com Lamarck, todas as espécies tinham um desejo inato de progredir e, à
medida em que progrediam, elas se tornavam cada vez mais complexas e eficientes.
Não apenas espécies inteiras mudaram e melhoraram, mas cada indivíduo devia
adquirir características novas e melhores em seu próprio curso de vida, e que eram
transmitidas à seus descendentes. Esta noção de que os traços adquiridos em uma
geração poderiam ser passados às próximas foi compartilhada pela maioria dos
biólogos ainda no fim do século XIX e início do XX, incluindo, ao menos algumas
vezes, o próprio Darwin. Lamarck também acreditou que as mudanças evolucionárias
eram de fato revolucionárias. Os avanços tomavam forma de grandes saltos.
O lamarckismo tinha seus altos e baixos. O grande biólogo francês Cuvier
havia denunciado o lamarckismo logo após a morte de seu autor (usando a ocasião da
discurso fúnebre formal, a qual ele teve que proferir em seu papel de secretário
permanente da Academia Francesa de Ciências). No entanto, muitos biólogos notáveis
na França se descreveriam como lamarckianos até o final do século XIX e, na
Alemanha, Ernst Haeckel era tão darwiniano quanto lamarckista. Um movimento neo-
lamarckista floresceu nos Estados Unidos durante a década de 1880, quando adquiriu
uma tendência fortemente teológica. Na Grã-Bretanha, o mentor de Darwin, Charles
Lyell, havia publicado toda uma crítica a respeito de Lamarck, e o próprio Darwin
olhava a teoria com desprezo. “Que os céus me protejam”, escreveu ele devotamente,
“do absurdo de Lamarck da 'tendência ao avanço', 'adaptações a partir da lenta
disposição dos animais', etc”33 Mas o tratamento de Lyell foi tão suave que ele
converteu o filósofo social Herbert Spencer ao Lamarckismo, e Spencer por sua vez
influenciava um número de pensadores sociais, incluindo vários dos antropólogos
vitorianos.
Burrow está certamente correto: a influência direta da teoria darwiniana sobre
o pensamento das primeiras duas gerações de antropólogos foi difusa e
freqüentemente superficial. Para Tylor, Morgan, Frazer e Marret, Darwin oferecia a
garantia de que a história dos seres humanos era uma, mesmo se pudesse ser conferida
maior ou menor importânciase à diferenciação racial. Ele também propiciou uma
explicação biológica para o progresso gradual de racionalidade – na medida que os
seres humanos se desenvolviam, seus cérebros se tornavam maiores. Mas ele não
perturbou as idéias sobre progresso cultural que os vitorianos herdaram dos filósofos
do século XVIII.34 Ao contrário, Darwin estava confiante que a civilização havia
progredido, e a moralidade junto com ela. Nós deveríamos olhar para trás e exultar:
Dificilmente poderia haver dúvida de que os habitantes de...quase todo o mundo civilizado, estiveram alguma vez em uma condição de barbárie. Acreditar que o homem foi civilizado de forma aborígene e depois sofreu degradação completa em tantas regiões, é ter uma baixa e desprezível visão da natureza humana. É aparentemente uma visão mais verdadeira e mais animadora a de que o progresso tem sido muito mais amplo do que o retrocesso; de que o homem tem emergido, ainda que em passos lentos e interruptos, de uma condição baixa para um padrão mais alto até agora obtido através do conhecimento, na moral e na religião.35
1 E. B. Tylor, 1865, Researches into the Early History of Mankind, p. 277.2 Ver J. W. Burrow, 1981, A Liberal Descent: Victorian Historians and the English Past.3 Richard Klein, 1989, The Human Career.4 Lewis Binford, 1989, 'Isolating the transition to cultural adaptations' in E.Trinkhaus (ed.) The Emergence of Modern Humans, pp. 35-6.5 Richard Lee and Irven DeVore (eds) 1968, Man the Hunter, p. ix.6 R. B. Lee, 1979, The !Kung San: Men, Women and Work in a Foraging Society.
7Marshall Sahlins, 1972, 'The original affluent society' in Sahlins Stone Age Economics, Capítulo 1.
8 Essas teorias foram lançadas em Lee and DeVore, Man the Hunter.
9 Edwin N. Wilmsen, 1989, Land Filled With Flies: A Political Economy of the Kalahari.
10 Ver Alan Barnard, 1992, Hunters and Herders of Southern Africa.
11George W. Stocking, Jr, 1987, Victorian Anthropology, Capítulo 7.
12 Claude Levi-Strauss, 1981, The Naked Man, p. 675.
13 Claude Levi-Strauss, 1963, Structural Anthropology, p. 230.
14 Henry Maine, 1883, Dissertations on Early Law and Custom, pp. 218-19.
15 Howard E. Gruber, 1974, Darwin on Man, p. 281.
16 Adrian Desmond and James Moore, 1991, Darwin, p. 250.
17 Charles Darwin, 1871, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, p.81.
18 Darwin, Descent of Man, p. 906.
19 Darwin, Descent of Man, p. 196.
20 Darwin, Descent of Man, p. 199.
21 Darwin, Descent of Man, p. 220.
22 Darwin, Descent of Man, p. 200.
23 Darwin, Descent of Man, p. 203.24 Darwin, Descent of Man, p. 195-19625 J.W.Burrow, 1966, Evolution and Society, p.11426 Janet Browne, 2002, Charles Darwin: the Power of the Place, p.9427 Para uma narrativa completa da famosa reunião de Oxford, Ver Janet Browne, Charles Darwin: the Power of the
Place,p.9428 Burrow, Evolution and Society, p.11529 R.R.Marrett, 1936, Tylor, p.1930 O índice para a biografia oficial, J.G.Frazer, de Robert Ackerman (1987) possui apenas três breves referências a
Darwin.31 R.R. Marrett, 1911, Anthropology, pp. 8-932 Ver Peter J. Bowler, 1983, The Eclipse of Darwinism.33 Citado em L.J. Jordanova, 1984, Lamarck, p.10634 George W. Stocking, 1987, Victorian Anthropology, Capítulo 535 Darwin,Descent of Man, p.224