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Parte III DISCURSO E EDUCAÇÃO Harrison da Rocha Josenia Antunes Vieira

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Parte IIIdIscurso e educação

Harrison da Rocha

Josenia Antunes Vieira

GramátIca tradIcIonal e línGua escrIta: duas faces de um mesmo Poder*

Harrison da Rocha** (UnB)

(...) as classes gramaticais lhe são apresentadas (ao aluno) a partir de de-finições, sem que os critérios de classificação sejam explicitados e sem que os objetivos da própria classificação sejam considerados. Aprende nomes de classes, definições, faz exercícios, mas não consegue entender a razão de tais classificações. Obviamente, a teoria gramatical tradicional que embasa os estudos escolares não tem critérios muito precisos – ora os critérios são morfológicos, ora semânticos, ora sintáticos. Além disso, toda classificação responde a algum objetivo teórico (em língua não há classes naturais e aquelas que construímos respondem a alguma necessidade do estudo teórico que as produziu), e este objetivo nunca é explicitado no ensino da gramática (a classificação parece ter um valor em si) (GerAldi, 1996).

Resumo: Neste artigo, procuro explicar as causas do fracasso do ensino de língua Portuguesa na escola. Chegaremos à conclusão de que as causas são várias, mas o ponto a ser discutido serão aquelas que restringem o ensino apenas à modalidade escrita, tendo em vista que as sociedades se comunicam por meio de vários modos semióticos. Para chegar a essa conclusão, remontarei à Antiguidade Clássica, berço do surgimento da Gramática Tradicional, época em que a modalidade escrita produzida pelas elites passou a ser norma de todos; depois veremos como se situou essa prática na Península ibérica, no Brasil Colônia e até os nossos dias. O surgimento da lingüística, das teorias sobre letramento e sobre os Gêneros discursivos e as mudanças para o ensino apenas abalaram as bases da Gramática Tradicional.

Palavras-chave: ensino de língua Portuguesa; Gramática Tradicional; Gêneros discursivos; letramento; legislação.

Abstract: in this article i discuss the causes for students failure in education of Portuguese language at Brazilian schools. i conclude that the causes are several, but a point to be argued is the focus of education: the written modality. The human communication is produced in different semiotic ways. To conclude that i will retrace to the Classic Antiquity, cradle of the sprouting of Traditional Grammar, time when the written modality

* este artigo já foi publicado resumidamente em: rOCHA, Harrison da et al. Reflexões sobre a língua portuguesa: uma abordagem multimodal. Petrópolis: Vozes, 2007.

** Mestre e doutorando em lingüística pela Universidade de Brasília (UnB); especialista em língua Portuguesa pela UnB; especialista em literatura Brasileira Moderna pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeUB); professor do UniCeUB de língua Portuguesa e de lingüística; membro da Aso-ciación latinoamericana de estudios del discurso (Aled) e da Associação Brasileira de lingüística (ABrAliN); pesquisador do Centro de Pesquisa em Análise de discurso Crítica (CePAdiC). E-mail: [email protected].

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was produced for the elites started to be norm for all; later we will see how this practice was pointed out in the iberian Peninsula, Brazil Colony until nowadays. The sprouting of writings in linguistics, theories of literacy and discursive Genders, the areas of discourse based in verbal genders and changes for education had only affected the bases of Traditional Grammar.

Keywords: education of Portuguese language; Traditional Grammar; discursive Genders; literacy; legislation.

Introdução

O ensino da língua Portuguesa-Padrão ainda é um fracasso em muitos contextos escolares. isso não é novidade para ninguém, seja aluno, seja especialista. O

tema vem sendo discutido por muitos estudiosos. Cada um desses expertos centra-se na problemática de acordo com sua formação e perspectiva teórica.

Quem é o culpado do insucesso? Os alunos? Os professores? Os coordenadores? As instituições de ensino? A política de ensino do Governo? As condições de tra-balho a que os docentes são submetidos? O ensino calcado na modalidade escrita? A Gramática Tradicional (GT)? Tudo isso tem um pouco de verdade, mas centrarei o problema nestes dois últimos tópicos. Veremos que se instaurou um problema à medida que a escrita, como objeto de ensino, norma de poucos, passou a ser imposta a todos. isso tem origem na Antiguidade Clássica. desse modo, revelarei os processos históricos, sociais e políticos que a adotaram como modelo a ser seguido, começando pela Grécia, depois na Península ibérica e Brasil nos séculos XVi, XVii, XViii e XiX.

em seguida, situarei o ensino de língua Portuguesa (lP) nos séculos XX e XXi, para mostrar que, apesar dos muitos estudos sobre a linguagem humana e de algumas mudanças ocorridas para o ensino, não surtiu muito efeito: continua centrado no grafocentrismo, tendo a GT como a representante e a escola como elemento mantenedor do poder das elites.

A oralidade raramente é vista como objeto de estudo e, quando se aplicam a escrita e/ou a oralidade em sala de aula, o foco é quase sempre lingüístico, esque-cendo-se de outros modos de representação. Para o tópico, alguns autores que se têm dedicado a repensar o ensino de lP, independentemente da linha de pesquisa adotada, serão citados, mas, dado o recorte para este artigo, privilegiarei o dis-curso. de outra parte, uma vez que minha abordagem é crítica, recorro à Análise de discurso Crítica (AdC), uma área interdisciplinar e transdisciplinar, o que me possibilita dialogar com várias áreas, como História, educação, Sociologia etc.

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Na seqüência, discutirei a contribuição ou não da lingüística para o estudo das línguas e para o ensino. Farei referência a muitas correntes da lingüística e suas subáreas a fim de mostrar que muitas delas, apesar do discurso científico, foram similares, em parte, à abordagem mecanicista da linguagem.

Para contrapor, serão apresentadas, resumidamente, as novas áreas que têm possibilitado o repensar do ensino de lP: a Teoria dos Gêneros discursivos e a Teoria do letramento. Além dessas, citarei a legislação governamental, incluindo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que provocaram mudanças no ensino de lP, até mesmo na maneira de se fazer o livro didático, mas veremos que estão longe de atingir o ideal.

descaminhos do ensino de língua PortuguesaFaçamos uma incursão histórica a fim de buscar as origens de uma prática redutora

para denunciar de que modo a norma-padrão é um instrumento de manutenção de poder. remontarei a uma tradição milenar na Grécia antiga, berço do surgimento da GT, depois, a Portugal, época de sua formação territorial, e, óbvio, momento de constituição de sua identidade lingüística, ao Brasil Colônia até nossos dias.

Valorização de uma variedade de prestígio e o surgimento da Gramática tradicional

Na história do pensamento grego, verifica-se grande atenção aos fatos de lin-guagem. em Crátilo, Platão trata mais dos problemas de linguagem. Vê-se, assim, que a preocupação com a língua não é recente, e o ensino de língua distanciado da realidade lingüística da sociedade teve seu início já com Platão, com Aristóteles, e depois com os sofistas. Aqui me baseio em Neves (1987).

Ao tomar consciência da discrepância entre os padrões do grego clássico e da linguagem corrente, contaminada por “barbarismos”, colocaram-se em exame os autores cuja linguagem oferecia os padrões ideais que deveriam ser preservados. Ao lado da crítica literária, desenvolveu-se a atividade filológica. Para alcançar os objetivos, os estudiosos sistematizaram o estilo usado pelos grandes escritores para que virasse norma.

da situação cultural que cercou o nascimento dos estudos gramaticais, decor-reram as características determinantes de sua natureza: limitação à língua escrita, especialmente à língua literária, e exclusivamente à grega (...). O fato de os gregos terem utilizado o termo grammatiké para designar a arte de ler e escrever para dar nome ao estudo da língua costumava ser invocado para evidenciar a atenção que, desde o início, foi dada à língua escrita. A gramática dos filósofos não era, pois,

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a gramática no sentido comum tradicional. A grammatiké, que correspondia ao que comumente se chamava gramática e instrumento de cultivo e de preservação de valores, era obra típica da cultura helenística.

Os gramáticos alexandrinos foram mais práticos. Codificaram a gramática grega e lançaram o que seria o modelo da gramática ocidental tradicional. dionísio o Trácio foi o verdadeiro organizador da arte da gramática na Antiguidade, dando-lhe forma que ainda hoje pode ser reconhecida em obras gramaticais do Ocidente. Mas tal fato trouxe um erro fatal para os estudos lingüísticos.

John lyons (1968) afirma que a abordagem dos fenômenos lingüísticos proposta pelos gramáticos alexandrinos incorreu em “dois equívocos fatais”: a separação rígida entre língua escrita e língua falada; a forma de encarar as mudanças das línguas (que é simplesmente mudança e não “corrupção”, “ruína”, ou “decadên-cia”, como eles acreditavam – e muitos até hoje acreditam). Para lyons, esses dois equívocos uniram-se para formar o “erro clássico” no estudo da linguagem, erro que se perpetuou durante dois milênios e, somente no final do século XiX e início do XX, começou a ser criticado e revisto.

e a história se repete na Península Ibérica

Como vimos, essa relação entre prestígio e poder em linguagem vem de longe e pode ser observada desde as origens da língua Portuguesa na Península ibérica. No século Xii, Afonso Henriques proclamou-se rei, e Portugal tornou-se independente. esse rei residia ao Norte, mas posteriormente seus sucessores deslocaram suas re-sidências para o Sul. Primeiramente para Coimbra e, finalmente, para lisboa. em 1255, o rei Afonso iii passou a residir em lisboa, e a cidade, desde então, tornou-se a capital de Portugal. desse fato, surgiu o prestígio da língua falada em lisboa – o que ocorreu com todas as outras línguas –, em contraste com a desvalorização de outras variedades, as do campo, por exemplo.

em razão do poder da Corte, a variedade usada por aquela classe privilegiada passou a ser mais valorizada. Portanto, uma variedade lingüística foi associada aos poderes centrais de Portugal e a uma região econômica e politicamente mais forte. Por exigências políticas e culturais, a variedade falada em lisboa passou a ser as-sociada à escrita. esta conferia à variedade empregada maior prestígio, tornando-a um parâmetro lingüístico a ser seguido.

Para dar maior legitimidade à variedade de prestígio, surgiram as gramáticas da língua portuguesa baseadas na antiga gramática de dionísio o Trácio. A primeira foi a Grammatica da lingoagem portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira; a segun-da, Grammatica da língua portuguesa (1539-1540), de João de Barros; Regras que ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa, de Pedro de

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Gândavo, 1574; e, por último, Ortografia e origem da língua portuguesa, de duarte Nunes de leão, 1576. esses acontecimentos se devem a razões de ordem política e envolvem também questões de poder. Vejamos a seguir.

A descrição gramatical da língua portuguesa foi um meio de elevar o prestígio dessa língua ao padrão dos idiomas clássicos. Quando Antonio de Nebrija publi-cou, em 1492, a primeira gramática de uma língua românica, o espanhol, mexeu com o orgulho de Portugal. Além disso, o espanhol era uma língua de prestígio falada por muitas pessoas em Portugal. Assim, este País precisava firmar a lín-gua portuguesa diante da espanhola. Outra razão foi a sistematização do idioma “nacional” para que pudesse ser difundido e ensinado aos povos e suas regiões recém-conquistadas, sobrepujando outras variedades do português e, em países recém-conquistados, todas as variedades. data, portanto, dessa fase histórica, a elaboração do que hoje podemos chamar de norma-padrão clássica da língua portuguesa. e foi, dessa forma, que esse idioma veio para nosso País no século XVi. Assunto da próxima subseção.

Brasil: do “achamento” territorial a um “perdimento” lingüístico

Segundo Orlandi (1993), os discursos fundadores funcionam como referência básica no imaginário constitutivo de um país e estabilizam-se como referência na construção da memória nacional. O que os caracteriza como fundador é que ele cria uma nova tradição, ele resignifica o que veio antes e institui aí uma memória outra (...). Uma marca muito importante do discurso fundador é a construção do imaginário necessário para dar uma “cara” a um país em formação. Com o discurso fundador “Terra à vista”, inicio esta subseção.

Nesse processo, não posso deixar de mencionar a ação dos jesuítas para o discurso fundador, uma vez que veio carregada de uma prática moral e religiosa. Mas, também, não posso deixar de mencionar o caos lingüístico a que eram sub-metidos os escravos. em meados do século XVi, os jesuítas vieram para as terras posteriormente chamadas Brasil. Tinham a missão, desde essa época, de realizar a premissa medieval do primado da fé defendida pela igreja e pela Coroa Portuguesa, a qual sobrepõe os interesses político-religiosos aos interesses econômicos do lucro. A imagem dos jesuítas é passada de forma positiva, destacando o jesuitismo como “civilizador”, necessário. Mas isso não corresponde à realidade dos fatos.

leiamos o que afirma, a esse respeito, Maestri (2004):

O trabalho deles na realidade foi uma tentativa de homogeneização lingüís-tica do Brasil. A Companhia de Jesus apostou claramente na educação e na escola como forma de disciplinar as consciências. É evidente que os jesuítas

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pretenderam desenvolver um sistema escolar tendo como objetivo inculcar a sua doutrina, mas ele também correspondeu ao desejo de grande número de pessoas, que viram nos seus colégios uma forma de adquirirem um saber que lhes possibilitasse melhorar a sua condição social.

educar significava, primeiramente, formar os índios na fé, nos bons costumes, na virtude, na piedade, na religião. A cultura portuguesa era religiosa, logo a edu-cação do colégio também o era. Assim foi a educação na Colônia. Nas aulas de gramática, aprendia-se e recitava-se de cor a doutrina cristã.

Sempre se menciona a tentativa de educação dos índios. e os negros? Como ficou a educação lingüística dos escravos a essa época? desconhecia-se o cativo, apesar de ser uma força de trabalho importante no início da colonização. O uni-verso lingüístico em terras estranhas a que se submetia o escravo era de natureza caótica. A mistura lingüística constituía uma verdadeira torre de Babel: o português, as línguas indígenas, as diferentes línguas transplantadas da África. desse modo, o cativo tinha a sua frente um aprendizado sumário das línguas e falares locais à medida que era fincado pelos sertões e pelos litorais. Não eram introduzidos à prática do português. eles tinham de aprender o conhecimento da língua dos se-nhores, mesmo que rudimentarmente.

Com o passar dos anos, o cativo poderia se tornar um negro ladino, ao ser introduzido na língua Portuguesa e demonstrar capacidade de aprender. Mas, brutalizados pela escravidão, milhares de africanos jamais transitaram a essa si-tuação. ler, escrever e contar eram habilidades raríssimas entre os trabalhadores feitorizados (MAeSTri, 2004).

No século XViii, a ação dos jesuítas sofre golpe. Os propósitos entre a Coroa Portuguesa e a Companhia de Jesus desabam-se em meio às transformações ocor-ridas em Portugal. essa atitude acompanhou o que aconteceu em outros lugares, pois o iluminismo europeu deu-se entre 1740 e 1770. Os jesuítas passaram a ser recusados pela parcela ilustrada da sociedade portuguesa não só como grupo per-tencente à igreja, mas também como colonizadores e educadores.

em 1750, ocorre a expulsão dos jesuítas no Brasil e, no âmbito da educação es-colar, a reformulação do sistema de ensino da metrópole e das colônias (HilSdOrF, 2003). A conseqüência mais imediata para a Colônia foi o fechamento dos colégios jesuítas e a transferência do controle de suas missões. No caso do ensino, a opção governamental foi a instalação de “aulas régias”, professores concursados de di-ferentes disciplinas, pagos pelo estado, com o fim de substituir, em outras bases filosóficas e curriculares, o trabalho dos jesuítas.

Assim, Marquês de Pombal impôs o uso da língua portuguesa no Brasil e proibiu o uso de quaisquer outros idiomas. isso implicou nova política lingüístico-cultural

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em que a língua portuguesa passa a ser obrigatória. desse modo, o português-padrão começa a se definir a partir da segunda metade do século XViii, uma vez que essa variante passa necessariamente por questões relativas à escolarização, ao uso escrito e a sua normatização.

embora esse ato tenha tido o objetivo de democratização da escola, esta conti-nuou não sendo para todos. Mattos e Silva (2004) diz que a escola não teve vez de se implantar efetiva e generalizadamente no Brasil, restringindo-se apenas a uma minoria economicamente privilegiada e a alguns quantos seres excepcionais, que, desde as origens coloniais, rompiam as limitações impostas pelo desenvolvimento socioeconômico e cultural perverso. Ainda hoje, o povo brasileiro luta para ter acesso à escola pública de boa qualidade. Segundo Houaiss (1985), até o século XViii, havia apenas 0,5% de letrados,1 taxa que aumenta de 20% a 30% ao longo do século XiX até 1920 e que de resto se mantém.

No primeiro recenseamento geral, em 1872, entre os escravos, o índice de analfa-betos atingia 99,9% e, entre a população livre, aproximadamente 80%, subindo para mais de 86%, quando consideramos as mulheres (FAUSTO, 1994). Segundo ainda o mesmo autor, 16,8% da população, entre 6 e 15 anos, freqüentavam escolas. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários. Calcula-se que chegava apenas a 8 mil o número de pessoas com curso superior.

O século XiX, por sua vez, foi palco de fato histórico de grande relevância política e lingüística. Houve transferência do reino Unido de lisboa para o rio de Janeiro. isso significou mais um golpe nas variedades não-padrão. A nova capital teve características do português europeu. isso naturalizou mais ainda a varieda-de lusitanizante, antes reforçadas por Marquês de Pombal, no século XViii, pelo aumento da escolarização e pelo acesso ao ensino da população negra e afro-des-cedente recém-liberta etc.

A essa época, a primeira preocupação do Governo durante a primeira metade do século XiX era a formação de uma elite dirigente. isso implicou a concentração de esforços no ensino Superior e secundário. O primeiro Grau e o Técnico-Comercial quase não receberam estímulos.

Na próxima subseção, mostrarei que muita coisa ainda não mudou nos séculos XX e início do século XXi. O foco será dado à relação entre linguagem escrita e poder e o ambiente escolar como local privilegiado de reificação do prestígio da escrita.

1 O termo “letrado” empregado aqui se refere tão-somente ao letramento formal, aprendido nas escolas, tendo a escrita como a modalidade privilegiada.

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ensino da Gramática tradicional: fracasso anunciadoO ensino de lP-Padrão, através dos tempos, recebeu várias denominações:

Gramática Nacional, língua Pátria ou idioma Nacional, Comunicação e expressão, Português. Mas a mudança, em grande parte, só ficou restrita às denominações, pois o privilégio à língua escrita, calcado em uma abordagem mecanicista e distante do mundo de quem estuda, tem permeado todas essas nomenclaturas.

Guimarães (1996), apud lagazzi-rodrigues (2002), afirma que, para o processo de institucionalização do movimento de gramatização brasileira do português, houve quatro períodos: o 1º e o 2º caracterizam-se por debates sobre questões de língua entre brasileiros e portugueses; o 3º é marcado pelo acordo ortográfico de 1943, pelo debate sobre o nome a ser dado à língua falada no Brasil; e o 4º foi sobre a obrigatoriedade da disciplina lingüística no curso de letras.

Com o crescimento da ciência lingüística, nunca houve tanta crítica sobre a GT como agora. e essas críticas vêm não necessariamente de lingüistas preocupa-dos com a relação entre linguagem, sociedade, poder e ensino, mas daqueles que sempre estiveram interessados apenas na descrição do português. desse modo, esta subseção será atravessada por vários teóricos e seus pontos de vista sobre o ensino de lP.

Perini (1997) apresenta proposta de renovação do ensino de GT nas escolas, para tanto afirma que a gramática formalista, que nos foi ensinada na escola, é composta de duas fases: na primeira aprendemos (ou mais precisamente, não apren-demos) uma nomenclatura complicada e confusa, uma selva de sujeitos, adjuntos, advérbios, orações subordinadas, enfim, um palavrório que parece inventado de propósito para esconder a falta de conteúdo da disciplina; e na segunda, somos submetidos a uma série de ordens e de recomendações do tipo “nunca diga nem escreva isto, porque o certo é aquilo”. e, piorando ainda mais a situação, paira a idéia de que a gramática já estava pronta: obra de cérebros há muito extintos, não muda nem pode mudar.

rocha (2002), mais radical, defende a exclusão da GT do ensino de lP. Para ele, o que deve ser ensinado é a língua pela prática, pelo desenvolvimento das diversas competências lingüísticas dos alunos, em especial o domínio da norma-padrão, sem o estudo da gramática. Segundo o autor, o objetivo das aulas de Português é tornar o aluno proficiente: saber ler, interpretar, redigir os vários tipos de texto. O autor propõe que a gramática fique restrita a estudo por especialistas – lingüistas e estudantes universitários do curso de letras. e afirma: “Se um aluno completa o ensino médio sabendo redigir bem, para que lhe servirá aprender identificar uma oração subordinada?”.

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Possenti (1996) afirma que devermos fazer com que o ensino de português deixe de ser visto como a transmissão de conteúdos prontos e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções.

de outra parte, Bagno (2001) lembra que se deve desenvolver a prática da leitura e da escrita e da releitura e da reescrita, sem a necessidade de decorar nomenclaturas (sejam elas as tradicionais ou as de alguma teoria moderna) nem de empreender exercícios mal formulados e incongruentes de análise e de descrição mecânica dos fatos gramaticais, exercícios baseados em definições imprecisas e em métodos mais do que questionáveis (para não falar dos “truques” e “macetes” que não têm fun-damentação teórica nenhuma!).

radicalismos à parte, apesar de muitos terem escolhido a gramática como “saco de pancada” e de terem razão em muitos pontos, é quase voz geral, inclusive a minha, que a norma-padrão há de ser ensinada. Como se poderia abandoná-la, se as instituições insistem em colocá-la como uma barreira para ascensão social de segmentos que não dominam essa norma? Para que isso ocorra, deve existir uma reformulação de currículos escolares e de mentalidade. Muitos concursos públicos, vestibulares precisariam repensar suas práticas. isso parece muito difícil de ocorrer.

Além disso, a função precípua da escola é ensinar a norma-padrão, tendo em vista que se deve ensinar algo que o aluno ainda não conhece. Além do mais, a GT tem valores que não podem ser negados: ao acumular o testemunho de diferentes épocas, desse modo seria, também, a história de uma variedade prestigiada. Mas não concordo quando ela é escolhida como sendo a única forma de ensinar a língua portuguesa, pois isso tem implicações políticas.

Nos trechos anteriormente citados, nenhum dos autores questionou as relações de poder que se estabelecem nos ambientes escolares e sociais quando se escolhe uma variedade de língua – e na modalidade escrita – de uma determinada classe social para ser a norma de todos. Para mim, a GT contribui, e muito, para natu-ralizar e manter a discrepância social por meio da escrita. Como esta sempre teve privilégios, uma frase isolada, tirada quase sempre de escritores famosos, era/é analisada sob diferentes perspectivas imanentes, a frase pela frase. É assim que a GT faz. A valorização da estrutura tem sido assim há séculos. Vamos analisar, de agora em diante, a trilogia linguagem, escrita e poder.

Segundo Bourdieu (1998), em A economia das trocas lingüísticas, tratar as relações sociais como interações simbólicas é legítimo, porém existem outras relações envol-vidas no processo, como as de força entre os locutores e seus respectivos grupos.

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Todo ato de fala é uma conjuntura: de um lado, existem as capacidades lingüísticas que dão origem a infinitos discursos gramaticalmente aceitos para cada situação; do outro, existem as estruturas lingüísticas como um sistema de sanções.

Para ele, a língua é imposição e objeto de dominação. ela está enredada com o estado. existe uma lei (língua oficial) que dispõe do seu corpo de juristas (gra-máticos) e seus agentes de imposição e controle (professores); ela tem o poder de submeter universalmente ao exame e às sanções do título escolar de desempenho de seus falantes. O fato de erigir um determinado falar como norma de outra existe para suprir a necessidade de intercompreensão entre as comunidades. Para constituir uma nação, é indispensável a língua-padrão (código universal), esta é impessoal e é um trabalho de normatização. Mas, segundo ele, as línguas só exis-tem em estado prático.

É a escola que legitimará a língua oficial. Whorf, apud Bourdieu (1998), em sua teoria da linguagem, vê a ação da escola como instrumento intelectual e moral. O código que rege a língua escrita correta, em oposição à língua falada, “inferior”, adquire força de lei na escola. Os falares populares são menosprezados.

Vejamos o que afirma Kleiman (1995) a respeito do ensino de lP nas escolas:

As práticas desmotivadoras, perversas até, pelas conseqüências nefastas que trazem, provêm, basicamente, de concepções erradas sobre a natureza do texto e da leitura, e, portanto, da linguagem. elas são práticas sustentadas por um entendimento limitado e incorreto do que seja ensinar português, enten-dimento este tradicionalmente legitimado tanto dentro como fora da escola. É dessa legitimidade que se deriva um dos aspectos mais nefastos das práticas limitadoras (...): elas são perpetuadas não só dentro da escola, o que seria de se esperar, mas também funcionam como o mecanismo mais poderoso para a exclusão fora da escola. Os diversos concursos para cargos públicos e para vagas em colégios e universidades, sejam estes a nível federal, estadual ou municipal, ou setor privado, exigem do candidato o conhecimento fragmen-tado e mecânico sobre a gramática da língua decorrente de uma abordagem de ensino que é ativamente contrária a uma abordagem global, significativa, baseada no uso da língua.

Segundo leal (2003), nesse contexto, é claro que não se pode esperar do es-tudante o domínio da leitura e da interpretação de textos e muito menos que ele tenha prazer em ler e desenvolver o hábito de ler. Mas como ter a expectativa de que o estudante desenvolva uma habilidade que, muitas vezes, o próprio professor não tem? Pergunta. Ainda segundo ela:

entretanto, de nada adianta ficarmos criticando o(a) professor(a), é necessá-rio, isto sim, que sejam oferecidas soluções para o problema, cujo centro está, acredito, na falta de definição dos objetivos da educação nacional, na formação do(a) docente e nas condições de trabalho. Considero que, no contexto histórico em que vivemos, o(a) professor(a) deve ser um(a) profissional que, além da

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competência técnica, tenha consciência de que deve contribuir para a formação de sujeitos críticos, conscientes dos problemas e necessidades do país e capazes de poder transformar essa realidade, enfim, verdadeiros cidadãos.

Para Bernstein (1996), toda educação é intrinsecamente uma atividade moral que expressa a ideologia do grupo dominante. A comunicação pedagógica se direciona em favor dos interesses do grupo dominante, produzindo um viés para a desvalori-zação da cultura e consciência do grupo dominado. Os códigos de comunicação são distorcidos em favor daquele grupo: a cultura, a prática e a consciência do grupo dominado são representadas erroneamente, são distorcidas e recontextualizadas como tendo menos valor.

Segundo Bourdieu (1998), existe uma política lingüística envolvida nesse pro-cesso, sugerindo lucro material e simbólico aos detentores da língua oficial. Fica subentendido, portanto, que a língua é meio de ascensão social. Para mim, é nos campos educacionais e do trabalho que o preconceito se mostra mais forte, elimi-nando os não-detentores da norma legitimada. Sobre isso Gnerre (1994) afirma: “Os cidadãos, apesar de declarados iguais perante a lei, são, na realidade, discriminados já na base do mesmo código em que a lei é redigida.”

No ambiente escolar e na sociedade, a escrita goza tanto de privilégios que sua produção é permeada por mitos. Garcez (2001) diz que foram enraizados e confi-gurados em nossa vida escolar, pelos pais, colegas, professores e até pelos livros didáticos, como, por exemplo, que escrever é um dom. Há um conjunto equivocado de influências nesta relação com os atos de escrever, e poucas pessoas conseguem escapar dessas influências.

Marcuschi (2004) assevera que a apropriação da escrita é um fenômeno “ideo-logizável”. isso pode ser observado ao passo que a alfabetização possui aspectos contraditórios; ela pode ser útil ou preocupante aos governantes. Os que detêm o poder pensam que ela deveria se dar de preferência sob o controle do estado e das escolas formalmente instituídas. Nesse caso, o controle e a supervisão do estado orientam o ensino para os propósitos objetivos dele. Contudo, mesmo em culturas amplamente alfabetizadas, o ser humano é inevitavelmente oral nos dias atuais.

Ainda para Bourdieu (1998), o paradoxo de toda pedagogia é que ela pretende instituir um trabalho de ensino da língua pelas regras de gramáticos do passado que expõem as práticas de expressão escrita, e, mais uma vez, ele afirma que as regras existem em estado prático. O uso legítimo da língua tem valor. dias (1996), para completar o raciocínio, diz que a língua-padrão é uma língua platônica, a norma culta adquire uma fixação que faz parecer permanente, principalmente quando é impressa. Os excluídos nesse discurso podem pertencer à “coletividade”, mas o discurso predominante os apaga como membros históricos da nação.

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Finalizo esta parte com rajagopalan (2003) que caracteriza bem o tópico da subseção:

A saúde de uma disciplina se mede pela presteza com a qual ela consegue responder a novas realidades que surgem no mundo em que vivemos e pelo interesse que ela evidencia em atender aos anseios e preocupações típicas de cada época.

a lingüística e o compromisso com a educaçãoPrimeiramente, pergunto: a lingüística tem vínculos com a educação ou pode

ajudar a educação? Antes de responder a essas questões, devo indagar: “Para que serve a lingüística?”. Vejamos algumas opiniões, antes de esboçar a minha, em Xavier e Cortez (2003):

Acho que não serve para nada e serve para tudo. Para mim, ela serve para que eu consiga ter um emprego para que eu consiga sustentar minha casa, criar os meus filhos. Pelo menos, para isso ela serve (BOrGeS NeTO).

Mil e uma utilidades. É como aquele produto aí que se vende: mil e uma utilidades. Quando a gente começa a estudar, a gente está mais atento às uti-lidades práticas. então, você vai dar respostas que estão hoje nessa interface da lingüística aplicada e da educação (ATAliBA de CASTilHO).

(...) A lingüística ou a ciência que a suceder estudando os fenômenos da lingua-gem e dos processos sociais de constituição dos sujeitos e das suas consciências sígnicas é fundamental para a compreensão do fenômeno humano. incluída esta questão na lingüística, questão que vem se desdobrando nos estudos da aquisição da linguagem, da afasia, das relações entre discurso e poder, amplia-se o campo da ciência lingüística (GerAldi).

Concordo com Ataliba de Castilho, quando afirma que a lingüística tem mil e uma utilidades. Para mim, ela serve para que eu reflita sobre a linguagem para que eu conheça melhor a natureza do homem, uma vez que aquela é constituidora deste. Serve-me para refletir sobre o que é língua, sobre suas manifestações, o que está por trás disso, como eu posso entendê-la. e, nas áreas mais modernas, serve-me para entender as relações entre discurso e poder no ensino. Passo às respostas da primeira e da segunda perguntas.

Quase todos os especialistas concordam, e eu estou com eles. Os que discor-dam, o fazem em parte. Para Fiorin, os avanços da lingüística podem ajudar a educação. Para ele, divulgar o avanço dessa área é tão importante como fazer avançar a ciência. Além disso, a lingüística tem o papel de educar para a de-mocracia, educar para a cidadania. Borges Neto afirma que não há compromisso necessário, mas há um compromisso interessante que resulta de a educação ser uma área em que temos o que dizer.

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Para Geraldi, compreender o homem é compreender que a linguagem é cons-titutiva da consciência dos sujeitos, de seus modos de pensar, isso compromete necessariamente a lingüística com a educação. ilari responde: “Ah, sim. Sim, sim, sim (...)”. Koch diz que há um vínculo importante entre lingüística e educação, principalmente do ponto de vista textual. Se eu fizer uma retrospectiva dos estudos lingüísticos, será que todas as áreas da lingüística tiveram preocupação com o ensino ou foram aplicadas ao ensino? Façamos essa viagem.

No estruturalismo, aplicaram as teorias emergentes às línguas e tentaram fazer o mesmo ao ensino, porém consideraram apenas estruturas (Fonologia, Morfologia, Sintaxe etc.), deixando de lado o social, apesar de Saussure ter afirmado que a língua possuía sua contraparte social.

Para o Funcionalismo, surgido nos anos 1930, no seio do estruturalismo, a classificação dos componentes (fonológico, morfológico, sintático etc.) é feita com base na função social que eles desempenham, e não na sua natureza física. As décadas de 1950 e 1960 foram férteis para os estudos lingüísticos. Nos anos 1950, surge a Gerativa. Com a Teoria do inatismo, Chomsky explicou, do seu ponto de vista, a aquisição e o desenvolvimento da linguagem e teve importância também por considerar a criatividade e a produtividade das línguas naturais, aspecto não considerado pelo movimento anterior, o estruturalismo, mas continuou em sua abordagem de análise valorizando estruturas.

Nos anos 1960, a Sociolingüística assumiu o lado social da linguagem. Uma de suas propostas ainda é mostrar a covariação sistemática das variações lingüística e social, por isso derruba muitos preconceitos lingüísticos arraigados sobre linguagem e classe social e, com isso, a noção de erro, principalmente para o ensino, toma nova direção. Nessa mesma década, surge também novo ramo da lingüística, a lingüística Textual. Coube a ela investigar não apenas a palavra e a frase, mas o texto e suas propriedades constituidoras, e assim chegar ao que seria textualidade. A Pragmática, tendo seus pressupostos mais sistematizados a partir das décadas de 1950 e 1960, estuda como os enunciados comunicam significados em um con-texto. interessa-se pelo significado que não é intrínseco à expressão lingüística, mas resulta da soma desta com o contexto.

Na década de 1970, surge a Análise Conversacional. Apesar da flutuação de sentido que o termo conversação carrega, seu objetivo era observar aquilo que os falantes estão fazendo, e como estão fazendo, nos atos de fala, por meio de conceitos e de termos derivados da observação.

Apesar da importância desses movimentos e das subáreas em lingüística e, por conseqüência, para o estudo da natureza da linguagem humana, não têm muito a dizer,

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mais uma vez, sobre a relação entre linguagem e poder, tampouco revelam o papel da linguagem na reprodução da dominação em sala de aula, noções tão essenciais para o ensino de lP. Ao contrário da GT, valorizam sobremaneira a fala. Além desse fato, não questionam a restrição semiótica que se estabelece ao se escolher apenas a modalidade escrita ou falada como as únicas formas de comunicar. A comunicação é um mecanismo cujas capacidades geradoras são ilimitadas.

Para Bourdieu (1998), aquele que acredita que o valor está na complexidade da estrutura sintática comete erro. Aqui, ele inclui Comte, Saussure e Chomsky, que têm a língua como “tesouro universal”, possuído como propriedade indivisa por todo o grupo. A língua é vista como um bem público. erram também, segundo ele, aqueles que acreditam que o uso dominante é o que é legítimo. Todos eles escamo-teiam as questões econômicas e sociais da aquisição da competência legítima e da constituição do mercado onde se impõe o legítimo sobre o ilegítimo. e continua sua crítica: “Os lingüistas incorporam à teoria de difusão da língua apenas aspectos da dinâmica interna desta, ocultando o processo propriamente político de unificação pelo qual os falantes são obrigados a aceitar a língua oficial”.

Para reforço crítico, leiamos o que nos diz, a esse respeito, Garcez (1998):

A língua é produto de um trabalho coletivo e histórico, de uma experiência que se multiplica de forma contínua e duradoura, assegurando intrinsecamente uma margem de flexibilidade e indeterminação. essa indeterminação provém do fato de que nenhum enunciado tem em si mesmo, isoladamente, condições necessárias e suficientes para permitir uma interpretação unívoca (...). A lin-guagem não existe no vácuo, mas imersa numa rede de valores discursivos de vários níveis. Assim, todo o universo lingüístico constrói-se, existe e funciona num universo social, coletivo, e não pode ser abstraído dessa condição.

em que momento a relação entre linguagem e poder foi abandonada pelos estudos lingüísticos? Nos poemas homéricos, já se associam o falar e o agir (...). O poder ligava-se diretamente à ação, mas a palavra era participante. Assim, no poder de Zeus, pai dos deuses e dos homens, manifesta-se a complementaridade da ação e da palavra; representado o ideal humano, Zeus fala forte e age eficaz-mente (NeVeS, 1987). Mas essa relação entre linguagem e ação, entre linguagem e poder, tem sido valorizada por áreas da lingüística mais modernas, como veremos na próxima subseção.

Para um novo Paradigma no ensino de língua Portuguesa desde os anos 1980, vêm surgindo muitas concepções para o estudo do discurso

em áreas da linguagem: letramento, Teoria dos Gêneros, Análise de discurso Crítica e Multimodalidade etc. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004), “isso é sintoma

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de uma modificação no modo de conceber a linguagem” e, por conseqüência, um sintoma de mudança para o ensino. Vejamos duas dessas áreas resumidamente.

teoria dos gêneros discursivos

Os gêneros discursivos, segundo Bakhtin (1997), têm íntima relação com a noção de estilo. de acordo com possibilidades lingüísticas, o falante realiza escolhas e imprime sua marca para o contexto e para o interlocutor; em relação aos gêneros discursivos, a situação é semelhante, mas o estilo é coletivo. determinada cultura possui seus gêneros situados historicamente.

ele afirma que é muito provável que os enunciados produzidos por diferentes locutores, em circunstâncias diferentes, em um determinado domínio de atividade, apresentem soma de traços recorrentes, indicando que pertencem a um mesmo tipo. Assim, podemos afirmar, então, que cada um desses enunciados é a realização individual do estilo geral ao qual ele pertence. leiamos o mesmo autor:

O enunciado, em sua singularidade, apesar de sua individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma combinação absolutamente livre das formas da língua (...) pode-se ler no texto, mas é em função de nosso domínio dos gêneros que os usamos com desenvoltura, que descobrimos de-pressa e melhor a nossa individualidade (...), que realizamos com um máximo de perfeição o projeto discursivo que concebemos livremente.

Para ele, existem dois tipos de gêneros discursivos: os primários e os secundá-rios. Os gêneros primários correspondem uma diversificação da atividade lingüística humana relacionada com os discursos da oralidade em seus mais variados níveis (diálogos, discurso pedagógico, filosófico etc.). Aos segundos agregam-se os gêneros socialmente mais restritos (literatura, Filosofia, ciência, política etc.).

Fairclough (2003) amplia a noção de estilo não só para caracterizar os gêneros discursivos, mas também as identidades pessoais. Por isso é interessante vermos, segundo ele, que os estilos estão ligados à identificação, ou seja, como as pessoas se identificam e são identificadas pelas outras. Os estilos são realizados em uma série de aspectos lingüísticos. Primeiro, aspectos fonológicos: pronúncia, entonação, acento tônico, ritmo. Segundo, vocabulário e metáfora – uma área de vocabulário que varia com a identificação e que intensifica com advérbios, como, por exemplo, “pavorosamente”, “terrivelmente” e “espantosamente”, assim como palavras de in-sulto, que funcionam de uma forma similar (“ensangüentado”, “irritante” etc.).

Para ele, estilos são também aspecto discursivo das formas de ser, identidades. Quem você é, em parte, uma questão de como você fala, como você escreve, assim como é uma questão de incorporação – como você olha, a forma de parar, como se move, e assim por diante. Mensagens tanto sobre identidade social (e.g. classe

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social) como sobre personalidade são conduzidas pelas seleções variáveis feitas pelas pessoas de palavras etc.

isso tudo é o que Coroa (2005) chama de “trabalho simbólico”:

(...) e chamamos de trabalho simbólico aquele que utiliza como ferramenta – como instrumento – os signos ou símbolos. e os signos lingüísticos são as palavras. Nesse sentido de simbólico nada mais eficiente do que a palavra. É pelas palavras que o homem constitui sua atividade lingüística. e é pela ativida-de lingüística que o homem se constitui como sujeito social e se distingue dos demais animais do planeta.

Para Marcuschi (2002), “os gêneros textuais são fenômenos históricos, profun-damente vinculados à vida cultural e social (...) apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo”. desse modo, todo gênero discursivo deve ser visto como um produto do seu tempo e analisado como tal.

em aulas de português de produção e de recepção de texto, é importante que se compreenda a distinção entre gêneros e tipos textuais. A contraparte dos gêneros é a tipologia textual, a matéria-prima lingüística. Segundo Maingueneau (2002), são recursos da gramática, situados no interior dos gêneros, que nos possibilitam criações discursivas concretas, e são classificadas como narração, argumentação, descrição, injunção e exposição. Já os gêneros discursivos são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em momentos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos.

Para aprofundar-me mais sobre essa questão, Faïta (1997) e Coroa (2005) também têm algo a dizer. Para o primeiro, os gêneros do discurso mostram-se ao locutor como recursos para pensar e dizer. Mas podemos, simulando uma atividade em outra, desviar um gênero de seu destino e contribuir assim, em um determinado momento da história, para novas formas de estratificação discursi-va, conseqüentemente para o aparecimento de novas variedades entre infinitas variedades de gêneros. Para Coroa (2005), as tipologias textuais, ou “mescla” como ela chama, servem não só para caracterizarmos os estilos pessoais, mas também os literários. Tudo que depende das escolhas do falante, ao produzir seus textos, tem um componente histórico – porque resulta de experiências pessoais e coletivas – e um componente individual de “intenção” de fazer – um componente de trabalho lingüístico.

letramento

Antes, preciso fazer a distinção entre os campos do letramento, da alfabeti-zação e da escolarização. Para Marcuschi (2004), o primeiro é um processo de

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aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para os usos utilitários. O segundo pode dar-se à margem da instituição escolar; trata-se de um aprendizado mediante o ensino e compreende o domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e de escrever. O último, por sua vez, refere-se à prática formal e institucional de ensino que visa à formação integral do indivíduo. A escola tem projetos educacionais amplos, ao passo que a alfabetização é uma habilidade restrita.

desde a Antiguidade Clássica, como vimos, a linguagem escrita sempre teve privilégio social e histórico. esse grafocentrismo provocou o distanciamento entre a fala e a escrita e implicou estudo de linguagem em termos da dicotomia oral/escrito. No estruturalismo, houve uma inversão de valores: apenas à modalidade oral era atribuído o status de língua (VieirA, 2003).

As restrições a esse modelo dicotômico, ainda segundo Vieira (2003), provocaram o surgimento de novos estudos – intitulados de letramento. desse modo, houve mudanças significativas no modo de encarar as práticas de escrita, opondo-se aos estudos da lingüística sistêmica que considera a escrita apenas como ferramenta ou mero instrumento. Barton (1994) menciona tipos diferentes de letramento, que, de algum modo, ajudam o indivíduo a interagir com outros membros da coletividade.

Tal dicotomia foi substituída, na década de 1980, pela noção de continuum (CHA-Fe, 1982). Naquela década, a tese do continuum logrou êxito, uma vez que ocorreu a superposição do oral e do escrito, porém Street (1993) critica essa abordagem, tratando-a como inadequada para o problema, pois, segundo ele, a diferença entre o oral e o escrito só poderá ser compreendida plenamente à luz do contexto social.

Sobre isso Marcuschi (2004) afirma:

(...) a oralidade e a escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para determinar dois sistemas lin-güísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações lingüísticas, sociais, dialetais, etc. em certas situações, percebe-se que a oralidade sobrepõe a escrita; entretanto, numa dada sociedade, a escrita pode impor-se e adquirir um valor superior à oralidade. Vê-se, então, que são as práticas sociais que determinam o lugar, o papel e o grau de relevância da oralidade e do letramento numa sociedade.

Apesar da controvérsia do termo “letramento”, Kleiman (1995) afirma que o letramento é mais bem compreendido como um conjunto de práticas sociais, coincidindo com Marcuschi (2004). ela sustenta, ainda, que o termo “letramen-to” é usado em vez de “alfabetização” por causa de, em certos grupos sociais, as crianças serem letradas por possuírem estratégias orais letradas, antes mesmo de serem alfabetizadas.

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da mesma forma que há sobreposição entre o oral e o escrito em contextos socialmente situados, há também entre as práticas e os eventos de letramento. Que diferenças há entre eles? As práticas envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais. elas são atualizadas por eventos, que são ocorrências individuais e imediatas da vida social. As práticas são padronizadas pelas instituições e pelas relações de poder; têm propósito determinado e estão inseridas em práticas culturais e metas sociais mais amplas; elas mudam, e novas são freqüentemente adquiridas por meio de processos informais de aprendizagem e de produção de sentidos.

Street (1984) estabelece dois modelos, o modelo Autônomo e o modelo ideo-lógico. ele classifica como modelo Autônomo as atividades de uso da escrita na escola, que subjazem à concepção de letramento dominante na sociedade. No segundo modelo, os estudos sobre letramento são utilizados atualmente em pes-quisas sociais que permitem descrever e entender os microcontextos em que se desenvolvem as práticas, procurando determinar em detalhe como elas são. esse modelo é também chamado de modelo Alternativo, pois destaca explicitamente o fato de que todas as práticas são aspectos, não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder em uma sociedade.

A respeito do letramento, já se sabe que é caracterizado assim: lida necessariamen-te com texto e discurso, podendo associar outras formas semióticas; está associado a diferentes domínios sociais; é historicamente situado; é constituído por meio de práticas sociais e de eventos de letramento; se as práticas de letramento mudarem, novas serão freqüentemente construídas por meio de processos informais de apren-dizagem e de produção de sentidos; destaca-se explicitamente o fato de que todas as práticas são aspectos, não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder em uma sociedade; há diferentes letramentos associados a diferentes domínios da vida; o letramento extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos nesse mundo.

Hamilton et al. (1998) retomam a primeira característica do letramento no pa-rágrafo anterior, ampliam, assim, as noções de letramento e discutem, também, o papel de dados visuais na pesquisa social. em particular, informações que podem ser oriundas de imagens da mídia. O principal ponto dos autores a ser estudado é mostrar que as práticas de letramento não estão presas somente a eventos de ações situadas, mas a momentos de práticas capturadas pela fotografia. Para ela, as fotografias são particularmente apropriadas para documentação de aspectos do letramento desde que estejam associadas a textos.

essa passagem da autora abre as possibilidades de um letramento para além do texto escrito ou falado. Mas ainda está muito restrita para representar toda gama de sentidos produzidos socialmente. O letramento é um processo de construção de

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sentidos, individual e socialmente. e, como todo grupo social é complexo, as prá-ticas de letramento são também um complexo semiótico. desse modo, justifica-se falar em Multiletramentos, que englobaria todos os modos de representação social. depois do surgimento dos novos estudos lingüísticos, de abordagens discursivas e críticas, está havendo mudanças para o ensino de lP – nosso próximo assunto.

algumas mudanças para o ensino de língua Portuguesa

No contexto educacional brasileiro, tem havido mudanças. A nova lei de dire-trizes e Bases (ldB, lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que estabelece as diretrizes da educação nacional; a resolução CNe/CP nº 01, de 18 de fevereiro de 2002, que institui diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica, em nível superior, curso de licenciatura de graduação plena; e os PCN, surgidos depois da lei citada, são elementos orientadores da melhoria da qualidade do ensino brasileiro e devem, portanto, ser observados criticamente quando se busca promover mudanças em processos voltados para o trabalho da escola. O ponto positivo delas é levar o aluno à cidadania pela criticidade e pelo espírito investigativo, científico. Vejamos.

A ldB, no seu art. 32, i e ii, ensino Fundamental, reza que este nível de ensi-no tem como objetivo desenvolver a capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. Para o ensino Médio, art. 35, iii, o objetivo é o aprimoramento do educando como pessoas humanas, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.

Para o nível superior, art. 43, i e Vi, a finalidade é estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo e estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade.

Os PCN sugerem que o trabalho com textos deve ser feito na base dos gêneros discursivos, sejam eles orais ou escritos. Pois, segundo eles, a perspectiva dos es-tudos gramaticais na escola, até hoje, centra-se, em grande parte, no entendimento da nomenclatura gramatical como eixo principal: descrição e norma se confundem na análise da frase, essa deslocada do uso, da função e do texto.

O Projeto Gestar (MeC), cujo objetivo é ajudar, a distância, na formação de professores de lP em regiões carentes no Brasil na aplicabilidade dos PCN, está tendo muita aceitação. inicialmente, o Projeto foi implantado nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Passa por reformulação e uma dessas mudanças é atingir todas as regiões do País.

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Além desse projeto, há outros programas que visam à melhoria do ensino. O Programa Nacional Biblioteca na escola (PNBe), por exemplo, instituído em 1997, cujo objetivo é democratizar o acesso de alunos e professores à cultura e à informação para contribuir para o fomento à prática da leitura e à informação de alunos e professores leitores. O PNBe/2003, assim como o PNBe/2002, amplia-ram o atendimento, atingindo não só alunos de 4ª Série, mas também da 8ª e da educação de Jovens e Adultos.

Quanto aos reflexos nos livros didáticos, rojo e Batista (2003) afirmam que, no campo da produção editorial, o Plano Nacional do livro didático (PNld) deli-neou o “norte” para a qualidade dos livros didáticos. desse modo, o percentual de livros recomendados tem aumentado, vem contribuindo para o ensino de melhor qualidade e possibilitando reformulação dos padrões do manual escolar e criando condições adequadas para a renovação das práticas de ensino nas escolas.

algumas observações

Apesar da importância inegável da Teoria dos Gêneros discursivos e da Teoria do letramento para o ensino de lP, algumas observações podem ser feitas. Afirma-se muito que os gêneros são o resultado de seqüências textuais, matéria-prima lingüística; denomina-se o gênero como “x”, mas não se levantam os muitos recursos que concorreram para formá-lo, não se valoriza o hibridismo; consi-deram-se como construtos sociais, mas as imagens ou outras forma simbólicas ficam de fora. Quanto ao letramento, confunde-se apenas a perspectiva formal, valorizando-se, quase sempre, o que se adquire nos bancos escolares, a escrita; e, mais uma vez, ficam de fora outros modos de representação.

Quanto à legislação, apesar de ser erga omnis, ainda é muito desconhecida de muita gente. de outra parte, há uma multidão de pós-graduados, bacharéis em letras, sem nenhuma formação na legislação, sem formação discursiva, sem co-nhecimento dos PCN, sem experiência de sala de aula, dando aulas como se fosse para bacharelado, e não para licenciatura. A proposta dos PCN é muito boa, mas ainda não conseguiu atingir a parcela significativa de professores desejada.

No tocante à política do livro didático, segundo ainda rojo e Batista (2003), precisa passar por reformulações, seja em razão da própria dinâmica do processo de avaliação, aquisição e distribuição, tendo em vista as alterações ocorridas nos últimos anos. Além disso, precisa priorizar os conteúdos em relação às novas mu-danças ocorridas no cenário comunicacional, internet etc. É necessário considerar outras formas de representação fazendo seu trabalho simbólico por meios de outros modos semióticos, além da fala e da escrita.

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Se não houver a formação adequada, teremos muitos equívocos. Muitas esco-las, tentando fugir do paradigma de insucesso do ensino de lP e dando-se ares de modernidade, quando se aventuram a ensinar fatos de língua por meio de textos, ainda o fazem como pretexto para pinçar categorias lingüísticas, separando-se, quase sempre, ou de estudos literários, ou de gramática ou de leitura. Quando estudam o discurso, baseiam-se apenas em textos orais ou escritos.

Não questionam as relações de poder no interior na linguagem, não consideram a comunicação fazendo seu trabalho para além de frases isoladas, fossilizadas, dia-crônicas, pinçadas de escritores famosos (repito), importantes como testemunhos de uma época, mas inúteis para representar todo o colorido da língua. Não levam o aluno a refletir, interagir, eliminando sua subjetividade ou sua intersubjetividade e conduzindo-o a reproduzir leituras padronizadas e “autorizadas”, eliminando sua potencialidade simbólica e sua criticidade.

Quando os gêneros discursivos são empregados, não se vislumbra mudança, consciência crítica, mas pretexto para trazer o social para a sala de aula – processo apenas de cima para baixo (top-down). Quando se ensina discurso, quase sempre reduzem-se as possibilidades semióticas. isso se caracteriza como um processo de verdadeira política de exclusão lingüística e, por conseqüência, social. e as instâncias de poder agem, também, por meio de imagens, sons, cores, diagramação etc.

considerações finaisNeste artigo, meu objetivo foi procurar as causas do fracasso do ensino de lín-

gua Portuguesa (lP). esse intento levou-me a várias causas, porém escolhi aquelas milenares que restringiam o ensino apenas à modalidade escrita cujo representante oficial é a Gramática Tradicional (GT), tendo o ambiente escolar como contexto ideal para reificar e naturalizar tal prática. Vimos que esta quase nada mudou, apesar das mudanças da política educacional, do surgimento da lingüística, das teorias lingüísticas modernas e das teorias discursivas, como veremos a seguir.

Mesmo depois de tantas mudanças para o ensino de lP, como leis, resoluções, Planos Curriculares Nacionais (PCN) e teorias modernas que influenciaram o en-sino, como as Teorias dos Gêneros discursivos e do letramento, projetos voltados para o ensino ou especificamente para o ensino de lP, o ensino quase nenhuma influência sofreu.

Nem o surgimento da lingüística com seus quase 100 anos não tem ajudado muito para mudar essa realidade perversa, pois, valorizando a fala, achou que apenas descrever as línguas era o suficiente. Privilegiar o oral é um grande avanço.

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Mesmo assim, ainda é uma restrição às maneiras com que as pessoas comunicam-se diariamente. Por último, muitas áreas que valorizam o discurso, apesar de ser uma prática da hora, também cometem seus pecados, pois se baseiam, em grande parte do trabalho, em gêneros orais e escritos.

Vi que o ensino de língua Portuguesa baseado na escrita era reducionista por vários motivos. A escolha da modalidade escrita tem implicações políticas, pois privilegia a variedade que é utilizada pela elite que usa e quer ver usada. O estilo literário é quase sempre escolhido como modelo a ser seguido, mas não é a linguagem corrente no dia-a-dia das pessoas. Saber falar e escrever só são válidos nos moldes da GT – isso já dura mais de 2 mil anos! Além disso, os gêneros discursivos são empregados considerando-se quase sempre as tipologias textuais, deixando de lado a função social. Valorizam-se sobremaneira os gêneros construídos por seqüências lingüísticas, fechando-se outras possibilidades semióticas que ajudaram a construir a peça discursiva. Por último, a valorização de gêneros apenas visuais e dos multi-letramentos ainda está muito longe de ser aceita.

A fala e a escrita diferenciam as possibilidades de comunicação como também as suas conseqüências cognitivas culturais e sociais, pois se, por exemplo, as pos-sibilidades de comunicação são mais limitadas para uma pessoa em relação àqueles que a rodeiam, então, sua oportunidade de participar plenamente na vida política, social, cultural são limitadas. em conseqüência, os sentidos produzidos por aque-les que dominam sua produção continuarão dominando. dessa forma, se os seres humanos produzem e negociam sentidos em vários modos, somente as línguas não são o bastante para concentrar a atenção de quem esteja interessado na produção e na reprodução de sentidos. Assim, se os gêneros são sempre multimodais, a leitura do modo apenas lingüístico resulta problemática e insuficiente.

O mundo letrado exerce grande influência sobre as pessoas. As sociedades, sempre multissemióticas, tornaram-se mais complexas, principalmente com o advento tec-nológico que imprimiu maior velocidade na produção, na distribuição e no consumo de textos/gêneros discursivos/práticas sociais. O mundo contemporâneo também força-nos a viver imersos em imagens visuais. Com isso, as atividades de escrita e os gêneros mais canônicos passaram a ter nova roupagem, tiveram de ser revistos à luz dessa tecnologia emergente. Por isso, é imprescindível que a escola considere o estudo de outras formas semióticas para o contexto escolar.

desse modo, não basta mais aos alunos a capacidade de desenhar o nome em cima de uma linha no papel para se considerar alfabetizado, ou virar-se entre o sistema fônico e o sistema gráfico, ou ser muito bom apenas em textos escritos ou em discursos baseados em estruturas lingüísticas. As escolas precisam adaptar-se

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às exigências da Pós-Modernidade para preparar os aprendizes para lidar com essas mudanças e, por conseqüência, levá-los aos multiletramentos e torná-los eficientes em várias instâncias dentro e fora de sala de aula.

leiamos o que nos afirma Vieira (2004) sobre isso:

As habilidades textuais atuais devem acompanhar os avanços tecnológicos. No momento, a qualidade mais valorizada nos sujeitos letrados é a capacidade de mover-se rapidamente entre os diferentes letramentos, compostos pela fala e escrita, pelas linguagens visuais e sonoras, além de todos os recursos computa-cionais e tecnológicos, mostrando competência na produção e na interpretação de textos de diferentes gêneros discursivos.

O docente a fim de preparar os alunos para participarem efetivamente dessa nova ordem, os docentes de lP precisam conscientizar-se e conscientizar os discentes do âmbito semiótico explícito e/ou implícito em uma variedade de práticas comunica-tivas. eles precisam conceber o currículo com uma estrutura ampla que dê conta de uma enorme variedade de práticas comunicativas. Para serem bem instruídos, sem dúvida, os alunos terão de entender mais do que já sabem atualmente sobre as escolhas comunicativas disponíveis – linguagem oral e escrita – para o uso e sobre os gêneros de comunicação de massa, por exemplo, e quais formas são mais apropriadas em um contexto particular.

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