Peco Para Ler Vieira

Embed Size (px)

DESCRIPTION

teoria

Citation preview

http://sibila.com.br/mapa49prosadrummond.htmlPARA LER VIEIRA: AS 3 PONTAS DAS ANALOGIAS NOS SERMESAlcir PcoraE como se para um mistrio to alto fosse pouco tempo um dia,e pouca celebridade uma festa,a torna hoje a celebrar com repetida venerao esta nossa igreja.(Antnio Vieira, Sermo da Santa Cruz, 1638)E no em outro dia seno hoje!Grandes suspeitas me d este Santo que vem ajudar-nos a celebrar a nossa festa,mais que desejoso de celebrarmos a sua.(Idem, Sermo de So Roque, 1644) H tempos, formulei a hiptese de uma unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes do Padre Antnio Vieira (1608-1697) . Em termos restritos, ela est em oposio direta ao lugar comum da fortuna crtica do jesuta que entende sua obra como essencialmente contraditria. Em termos mais amplos, ope-se tese corrente da existncia da literatura brasileira como reflexo ou representao de certa brasilidade, cujos traos prefiguradores poderiam ser descobertos, isolados e conservados em diversos lugares da produo letrada colonial, considerada ainda portuguesa ou internacional, at serem integrados, como sistema, ao capital intelectual do pas no sculo XIX. Contrariamente idia de um Vieira contraditrio, penso que a sua pregao ordena-se sistematicamente segundo uma matriz sacramental, entendida como uma tcnica de produo discursiva do que se supe ser uma ocasio favorvel manifestao da presena divina, cuja latncia nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover o auditrio. Mov-lo, aqui, significa basicamente, em termos individuais, reorient-lo na direo das finalidades crists inscritas na natureza divinamente criada; em termos de ao coletiva e institucional, implica dizer que o sermo deve estar apto a formular hipteses para uma poltica pragmtica e legtima a ser conduzida pelos Estados catlicos na histria. Nessa perspectiva, no verossmil postular, como se costuma, haver contradio em Vieira porque ele contempla ou confunde ostensivamente aspectos temporais e espirituais, seja em sua atuao missionria, seja em sua pregao da doutrina crist. Para o jesuta, no mbito da histria, aspectos temporais e espirituais, na medida em que so efeitos que, em ltima instncia, reportam-se a Deus, no podem ter completa autonomia de ser em relao ao outro. Da mesma maneira, nenhum desses aspectos pode ser absoluto na determinao do gnero do sermo, que contempla justamente a descoberta da articulao entre ambos. Quanto s questes relativas maior ou menor brasilidade dos sermes, penso que o melhor, decididamente, seja dissolv-las. Cada um dos sermes integra-se ao conjunto da produo internacional jesutica da Contra-Reforma e, ao mesmo tempo, participa do encargo de propor uma poltica de expanso do Estado portugus na Amrica. E os sermes jamais propem tal poltica como se fora um projeto de dominao externa sobre colnias virtualmente autnomas e oprimidas, quer dizer, como se j houvesse aqui sentimento nativista espontneo, lutas de classes e vontade de independncia frente metrpole, caracterizada, por sua vez, como entidade externa e intrusa. Mais verossimilmente, para Vieira, trata-se de sustentar e ampliar o mesmo Estado que se desdobra nas vrias partes de um mundo em expanso, com base tanto na doutrina neotomista de conduo do gentio ao orbe cristo, isto , de sua integrao hierrquica ao corpo mstico e institucional da cristandade, quanto no enfrentamento caso a caso de dificuldades surgidas nas vrias frentes de colonizao. Nenhum Brasil, portanto, parece necessrio postular nesse perodo, a no ser o que se pode contar como parte atuante de um Imprio que busca integrar os vrios pontos de sua expanso, ao mesmo tempo em que procura lidar com uma ruptura europia radical, manifesta em termos do cisma religioso.Com base nessa hiptese, tenho procurado examinar o alcance do verossmil da unidade teolgico-retrico-poltica como categoria pertinente para a anlise de obras, de diferentes gneros, produzidas nos sculos XVI, XVII e, ao menos, em parte do sculo XVIII. No entanto, gostaria de considerar essa unidade, aqui, no de um ponto de vista terico, mas operacional e heurstico. Tenho em mente discorrer, em particular, a propsito de certa tcnica bsica de leitura dos sermes seiscentistas, til para reposio verossmil de alguns de seus sentidos no mbito da liturgia catlica, em geral pouco considerada nas anlises contemporneas. A tcnica bsica a que me refiro a de estabelecimento de analogias entre trs linhas semnticas necessariamente envolvidas no sermo: primeira, a das comemoraes do ano eclesistico ou litrgico (tempo santo); segunda, a das passagens escriturais do Evangelho do dia, definidas, por sua vez, pelo calendrio litrgico; terceira, a das circunstncias presentes na enunciao do sermo, entendidas como circunstncias do tempo comum ou histrico do sermo, que, segundo a ortodoxia catlica, no nega, nem est em contradio com o tempo santo.A seguir, explico-me melhor a respeito de cada uma dessas linhas de ponderao analgica.A. O ano litrgico ou eclesisticoO ano eclesistico, como sabido, diz respeito srie de tempos e dias santos, definidos pela Igreja, que comea com a Primeira Domingo do Advento e fecha na ltima semana depois de Pentecostes. A celebrao peridica dessas solenidades refere a memria, guarda e ensino dos mistrios e dogmas da Igreja, entendidos ortodoxamente como legados de Cristo. Assim, um pregador, quando diz o seu sermo, deve ajust-lo necessariamente aos significados doutrinrios da ocasio. Apenas a ttulo de lembrana, especificaria que o calendrio eclesistico compe-se basicamente de 3 tempos santos, a saber: 1 tempo: do Advento Septuagsima. Os temas genricos dos sermes desse perodo so a promessa da vinda do Messias; o mistrio da Encarnao; o nascimento de Jesus, sua juventude e ministrio (portanto, a graa de Deus ao enviar seu filho terra); e, por ltimo, o chamado segundo advento, isto , a volta de Cristo como juiz ao fim da histria. Todo o perodo adventcio significa catolicamente uma preparao para o Natal, e o seu primeiro Domingo contado 4 semanas antes dele (caindo, assim, em novembro). Nesse perodo, portanto, as principais solenidades so: o 1 Domingo de Advento (ou Dominga, como se dizia no XVII), que constitui justamente a abertura do calendrio litrgico; o Natal; e a Epifania, que trata da manifestao divina como chamado (ou vocao, como se dizia) verdadeira religio, que se comemora no Dia de Reis, em 6 de janeiro. 2 tempo: da Septuagsima Ascenso. Os temas tratam genericamente da redeno e misericrdia de Cristo. As principais datas a balizar esse perodo so: a Septuagsima, que conta os 70 dias faltantes para a Pscoa, quando se celebra a ressurreio de Cristo; a Sexagsima, que celebra os 60 dias antes dela e que, no caso de Vieira, d nome ao mais conhecido de seus sermes -- paradoxalmente, no tenho notcia, em toda a imensa fortuna crtica a respeito dele, de um s artigo em que a festa tenha sido seriamente considerada como capaz de trazer alguma elucidao aos argumentos e metforas ali empregados); a Qinquagsima, que est a 50 dias da Pscoa, ainda em fevereiro; a Quaresma, que nomeia o perodo de 46 dias que vai da 4 feira de Cinza (assim mesmo, no singular, como se diz no sculo XVII) e vai at o 1 Domingo da Pscoa; e, ainda, a Semana Santa, que fecha esse perodo, contando-se do Domingo de Ramos (entrada de Cristo em Jerusalm) ao Domingo de Pscoa. Este, por sua vez, conta-se como o primeiro domingo depois da lua cheia do equincio de maro. O perodo, como todos sabem, vai de fevereiro a finais de abril. Ainda neste segundo tempo santo, convm referir a Quinzena da Pscoa, perodo que inclui a Semana Santa mais a semana seguinte, que vai do Domingo de Pscoa ao Domingo da Pascoela, ainda em abril. 3 tempo: da Ascenso a Pentecostes. Neste intervalo so celebrados basicamente os benefcios do Esprito Santo. Fazem parte dele as festas da Ascenso e de Pentecostes, que se do respectivamente a 40 e 50 dias depois da Pscoa, celebrando-se, nesta ltima, a descida do Esprito Santo sobre os Apstolos em lnguas de fogo. Tais referncias genricas dos tempos litrgicos, por sua vez, esto articuladas necessariamente, na composio dos sermes, aos passos dos Evangelhos previstos para serem lidos nas missas a cada dia do ano. Assim, quando o pregador faz o seu sermo, ele o apresenta justamente como um comentrio apropriado, mais ou menos dilatado, leitura que se acabou de fazer do Evangelho do dia, ouvida pelos fiis presentes cerimnia da missa. Com base nesse texto, as tpicas mais gerais ditadas pelo calendrio litrgico subdividem-se ou especificam-se segundo novas linhas de ponderao ou de proliferao de analogias conceituosas. B. O Evangelho do diaPara que a exposio se torne menos bvia e mais demonstrativa, considere-se, por exemplo, um sermo do tempo adventcio, que justamente abre o calendrio litrgico. O Sermo da Primeira Dominga do Advento, que Vieira refere ter pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1650, est entre os mais celebrados e conhecidos dos duzentos e poucos que deixou registrados em sua editio princeps. No se trata, porm, aqui, de examin-lo com mincia, mas de utiliz-lo como forma de apresentar essa chave de leitura, que considera prioritrias as relaes significativas propiciadas pelas categorias litrgicas.Como se viu j, os mistrios tpicos do Advento so: a promessa do Messias; a Encarnao; o nascimento de Jesus; a sua juventude e ministrio; o Juzo Final. Antes de seguir adiante, segundo o eixo analgico de 3 pontas que mencionei, obrigatrio deter-me na considerao do Evangelho do dia. No caso, trata-se de Lucas 21, 25-33 -- cuja lembrana na Igreja justamente a do ltimo ponto referido: o Juzo Final. Talvez parea excessiva a idia de se ler o Evangelho do dia to logo se considere determinado sermo, mas efetivamente no se trata aqui de propor nenhuma forma reciclada de beataria. O que Vieira e os catlicos lem como ritual de f, considero-o aqui como articulao de sentido prevista nas determinaes de gnero, nem mais, nem menos. Isto dito, na Vulgata, Lucas 21, 25-33 reza o seguinte:LUK 21 25 et erunt signa in sole et luna et stellis et in terris pressura gentium prae confusione sonitus maris et fluctuumLUK 21 26 arescentibus hominibus prae timore et expectatione quae supervenient universo orbi nam virtutes caelorum movebunturLUK 21 27 et tunc videbunt Filium hominis venientem in nube cum potestate magna et maiestateLUK 21 28 his autem fieri incipientibus respicite et levate capita vestra quoniam adpropinquat redemptio vestraLUK 21 29 et dixit illis similitudinem videte ficulneam et omnes arboresLUK 21 30 cum producunt iam ex se fructum scitis quoniam prope est aestasLUK 21 31 ita et vos cum videritis haec fieri scitote quoniam prope est regnum DeiLUK 21 32 amen dico vobis quia non praeteribit generatio haec donec omnia fiantLUK 21 33 caelum et terra transibunt verba autem mea non transient Dentre os temas principais do Advento, portanto, o Evangelho em questo selecionou aquele relativo ao tempo terrvel do Juzo Final, tendo em vista mover o auditrio penitncia e emenda dos costumes. Mas possvel ir bem alm disso e especificar alguns lugares de significao particularmente relevantes na tradio exegtica da passagem, disponvel na inveno retrica do sermo. Vale dizer, importa agora, sobretudo, levantar as tpicas do repertrio tradicional da parentica e da teologia bblica associadas ao tema do Juzo Final. Entre elas, a ttulo de exemplo, alguns lugares comuns da teologia bblica empregados a propsito da categoria mstica do Juzo so: A articulao semntica entre julgar e reinar. Tais termos, aparentemente distantes numa gramtica contempornea, aparecem estreitamente ligados na Bblia (por exemplo, em Jz 16, 17: Ento o Senhor fazia surgir juzes que os libertavam dos assaltantes.) Essa articulao est patente tambm no livro dos Juzes, cujo esquema geral, segundo Pesch, basicamente quaternrio: Israel peca/ Deus pune/ Israel se arrepende e suplica/ Deus salva por meio de um juiz (que pode ser maior, isto , carismtico, inspirado; ou menor, tratando-se to somente de ocupar o posto de lder ou governante);O alerta contra os abusos praticados pelos Juzes. Aos juzes cabe garantir a cada um o lugar que lhe devido segundo a vontade de Deus no corpo de seu povo; todo poder cuja fonte no se fundamente na justia, que reporta a Deus, vcio daquele que manda (por ex: Lev. 19,15: No cometais injustias em juzo... Julga o prximo conforme a justia);A implicao de castigo e salvao, na ocasio do Juzo. A purificao do povo por meio do julgamento tem o propsito de reaproxim-lo de Deus e, portanto, deve ser compreendido no interior de uma economia salvfica;O anncio da proximidade do Juzo. Tal proximidade, por sua vez, acentua a seriedade do julgamento e a exigncia de uma deciso imediata de emenda da vida (Mc 1, 15: Completaram-se os tempos, est prximo o reino de Deus, convertei-vos e crede no Evangelho); A salvao para todos os que confessam na f. As decises que contam para a salvao j so tomadas durante esta vida, sobretudo na perspectiva joanina (Por exemplo em Jo 3, 18: Quem cr nele, no julgado, e quem no cr, j est julgado, porque no creu no nome do Filho...).Todos os lugares referidos so conhecidos da tradio da leitura bblica associada ao tema do Evangelho em questo. Vieira, como qualquer pregador eficiente do perodo, domina perfeitamente esses lugares; para diz-lo corretamente, eles j esto dados no repertrio possvel a ser selecionado em seu sermo. Quer dizer, so lugares argumentativos que esto desenvolvidos ainda antes que Vieira sequer comece a compor o sermo pela primeira vez. Mas antes de falar propriamente das escolhas feitas pelo jesuta na produo desse Sermo da Primeira Dominga do Advento, que interessa aqui mais como exemplo de articulao disponvel ou provvel do que como andamento argumentativo especfico, gostaria de considerar rapidamente a terceira ponta em jogo na produo das analogias de base de um sermo de matriz ibrica seiscentista. C. As circunstncias da enunciao Vieira, como sabido, chegou ele prprio a editar os seus sermes, aps reescrev-los nos ltimos 18 anos de sua vida por ordem do Geral dos jesutas, Padre Giovanni Paolo Oliva, um fino homem de letras. Nesse caso, as circunstncias a considerar nos sermes compem um domnio verdadeiramente complexo. Em primeiro lugar, possvel falar em circunstncias diretas da pregao, que levam em conta a prpria atribuio do jesuta, ou de comentaristas, do local e data onde ela teria sido efetuada oralmente -- no caso, a Capela real lisboeta, com a presena na missa do prprio rei D. Joo IV e de alguns de seus principais conselheiros. Em segundo lugar, cabe falar em circunstncias indiretas, ou seja, aquelas que atuaram no momento da reescrita do sermo. Por vezes, como aqui, ele est distante muitos anos do suposto ato original da pregao, com alteraes enormes na situao de sua produo. Apenas para dar uma breve idia do tipo de distncia envolvida aqui, basta observar que, desde a data atribuda de pregao, 1650, at a data possvel de sua reescritura tendo em vista a edio ordenada pelo Geral, passaram-se mais de 30 anos, pois o sermo s publicado na Terceira Parte da editio princeps, em 1683. A considerar o local da pregao e o da reescrita, a distncia no se reduz. Houve deslocamento no apenas de cidade, mas de continente: da Capela do Pao Real da Ribeira, em Lisboa, ao Colgio da Companhia de Jesus, na cidade da Bahia, Provncia do Brasil. No preciso, aqui, esmiuar essas diferenas, mas apenas evidenciar as variveis complexas que elas envolvem. Em termos da situao em jogo nas circunstncias diretas do sermo, pode-se lembrar, ao menos, dos 5 ou 6 anos anteriores a ele, nos quais Vieira ocupou-se com importantes misses diplomticas nas cortes de Haia, Paris e Roma, que lhe foram confiadas pelo primeiro rei Bragana, D. Joo IV. Nesse perodo, empenhara-se tambm na reforma dos estilos da Inquisio, que dava como necessria e decisiva para o retorno providencial dos cristos-novos a Portugal. As suas atuaes nesses episdios, entre outros, como sabido, trouxeram-lhe inmeras amizades e obstculos naquela mesma corte que estaria assistindo abertura do ano litrgico no ano de 1650. J nas circunstncias indiretas do sermo, pode-se aludir a um Vieira septuagenrio, vivendo na Bahia, sem mais nenhuma expectativa razovel de retorno ao conselho real de Lisboa. Agora, a sua preocupao centrava-se, ao que consta, nas questes hermenuticas lanadas nos escritos ainda parcialmente inditos conhecidos como Clavis Prophetarum; nas disputas internas e externas da Ordem em relao aos negcios indgenas, e nas violentas desavenas, na cidade da Bahia, entre o grupo poltico de sua famlia, os Vieira Ravasco, e o dos Sousa e Meneses. Diante dessas diferenas acentuadas, algumas perguntas acabam sendo inevitveis; por exemplo: de que modo as circunstncias diretas poderiam ser relidas pelas indiretas? Isto , de que modo 1650 apropriado por 1683? Qual a fala de 1650 que apenas se acaba de escrever em 1683? De que maneira as tpicas litrgicas e bblicas determinantes do sermo permitiriam a (re)construo dessa fala? Seja como for, interessante notar que, se 1650 o tempo de disputa do Vieira valido em busca de proeminncia junto ao rei, 1683 o o tempo de exlio definitivo da corte, quando a antiga disputa j estava definida contra o jesuta. Assim, no parece abstruso imaginar que, da superposio dos tempos nos sermes, resulte um Padre Vieira que j no tem a perder por escrito o que pleiteava na suposta situao original da prdica. Essa circunstncia poderia lev-lo, por exemplo, a tornar mais ousada ou mais dura a censura ao Rei e Corte na verso reescrita em comparao com a que ele havia produzido na prdica diante d eles? So questes que exigem o cotejo de outros papis e que ficam aqui apenas para assinalar a complexidade desse jogo de duplos temporais presente nos sermes. Cabe considerar agora os argumentos efetivamente empregados no sermo de modo a amarrar as 3 pontas de significao analgica de que venho falando. D. Os argumentos do Sermo do Advento, 1650.Assim, considerando finalmente o sermo produzido por Vieira, interessante notar que ele o inicia por uma ponderao misteriosa, como era prtica comum nos sermes engenhosos seiscentistas. Pergunta Vieira pela razo oculta sob o mistrio de caberem todos os homens de todas as pocas no mesmo Vale do Josaf, onde desceria o Cristo no tempo do Juzo Final; amplifica o mistrio com a comparao irnica do vale do Juzo com a praa do Pao da Ribeira, onde os enormes squitos de poucos grandes do reino, bastavam para tomar toda a sua extenso. Para apresentar a sua resposta ao caso, Vieira prope ao seu auditrio, maneira inaciana, uma imaginao ou composio de lugar da cena do Juzo, de tal modo que as autoridades temporais e espirituais portuguesas, supostamente ali presentes, deveriam, ento, imaginar-se como rus na expectativa do seu julgamento final naquele dia sublime, em que podero salvar-se ou danar-se eternamente. Para o propsito particular desta comunicao, interessa apenas notar que, centrado na encenao do momento dramtico da separao entre os bons e os maus, o sermo levado a afirmar 3 aspectos decisivos do Juzo: a ressurreio na f significar uma reparao, com arbtrio, da fortuna do nascimento; no haver privilgio de estado, seja da nobreza, da realeza ou do eclesistico: a investidura no determinar a salvao ou a condenao, mas to somente as obras da vida; reis e cortes sero objeto de juzo especialmente rigoroso, por incorrerem em dois pecados principais: o pecado da omisso, quando se deixa de fazer o que o cargo obriga e onde a ocasio exige ao decidida, e o pecado de conseqncia, quando a corrupo do voto ou de um ato inicial traz sucessivos desmazelos. Ou seja, governantes e ministros devero pagar com a prpria condenao eterna os desastres em cascata causados pelas aes necessrias e justas que deixam de fazer na hora certa e pelas errneas e injustas que fazem quando no deviam. Bem defendidos os pontos elencados acima, Vieira j pode ento revelar a razo oculta do mistrio de caberem todos, vivos e mortos, a um s tempo, no estreito vale de Josaf. Prope ento que, na situao da vida presente, os homens que tm poder sentem-se imortais e incham de vaidade e soberba, ocupando grandes espaos com falsos bens, enquanto, no tempo do Juzo, esses mesmos outrora poderosos -- que, por isso mesmo, tinham muitos outros homens a sua conta, sem que tenham sabido zelar por eles --, em vez de inchar, encolhero, mirraro de tanto medo da sentena que se abater sobre eles. Cabero ento todos, facilmente, onde antes no cabiam uns poucos. Combina-se, pois, um andamento ameaador, acentuado pela composio cenogrfica do tempo fatal do Juzo, e uma ponderao que se resolve, seno de maneira maldosa, ostensivamente irnica. Tal combinao certamente um dos trunfos dos sermes bem temperados de Vieira. Entretanto, o que mais me interessa notar que os lugares argumentativos destacados acima, ajustados ao desfecho da razo oculta, mostram que Vieira, durante todo o sermo, esteve operando fortemente balizado pela trplice articulao semntica que referi. Evidncia ostensiva disso a metfora que finalmente decide o sermo, qual seja, mirrar de pavor. Se ainda cabe lembrana do incio deste texto, ela estava dada j no Evangelho de Lucas ([...] arescentibus hominibus prae timore et expectatione [...]) . O sermo determina, pois, uma espcie de razo de lugar na Repblica, que se ilustra na comparao entre os antigos costumes virtuosos dos ministros, onde cada coisa era cabida, isto , decorosa, e as prticas dos seus pares contemporneos, nos quais ampliando a soberba j no cabem a honra, o decoro, a poltica e, enfim, perde-se a alma. Assim, para encerrar, diria que o sermo tem seu incio antes ainda de o padre Vieira compor uma s linha dele. Quando comea a pregao j uma mquina de composio est em andamento, pronta a fornecer-lhe os principais anlogos da inveno e metforas da elocuo, bem como os cruzamentos entre eles. Esse aspecto bsico do gnero parentico, que postula uma hermenutica na qual as tpicas polticas ajustam-se tradio bibliolgica e litrgica, segundo o jogo complexo dos tempos de sua produo, pode, entretanto, ficar soterrado sob as consideraes to entusisticas quanto anacrnicas da genialidade de Antnio Vieira. Seja l o que se queira indicar com os termos gnio, genial, genialidade, e sem pretender sequer recus-los, parece-me, contudo, mais pertinente ou funcional referir a produtividade prpria dos lugares convencionais do gnero, sobretudo considerado em sua insero na tradio catlica. No h nada a temer: Vieira no perde nada com isso; ele no se torna um reprodutor vulgar de frmulas do passado. Ao contrrio: ele se torna uma autoridade no gnero ao emular a tradio e propor novas formas particulares de atualiz-lo e de torn-lo eficaz para novos auditrios. Cf. Teatro do Sacramento (Editora da Unicamp/ Edusp, 1994). Ou, na traduo portuguesa do Manual do Cristo, do Padre Leonardo Goffin, cuja primeira edio alem de 1690: Naquelle tempo, disse Jesus a seus discpulos: Haver signaes no sol, na lua e nas estrellas e n terra, consternao das gentes por causa da confuso do bramido das ondas; mirrando-se os homens de susto na expectao do que vir sobre todo o mundo, porque as virtudes do co se abalaro. E ento, vero o Filho do Homem vindo sobre uma nuvem com grande poder e magestade. Quando, pois, estas cousas comearem a cumprir-se, olhae e levantae as vossas cabeas, porque se approxima vossa redempo. E propoz-lhe esta comparao: Vde a figueira e as mais arvores; quando comeam a produzir fructo, conheceis que est proximo o estio. Assim tambem quando virdes estas cousas cumprir-se, sabei que est proximo o reino de Deus, Em verdade vos digo que no passar esta gerao emquanto no se cumprirem todas estas cousas. Passaro o co e a terra, mas as minhas palavras no passaro. Cf. Juzo/Julgamento, de W. Pesch, no Dicionrio de Teologia Bblica, organizado por Johannes B. Bauer, Volume II (S. Paulo, Loyola, 1983).Cf., por exemplo, o primeiro prembulo do primeiro exerccio de meditao dos Exerccios Espirituais: la composicin ser ver com la vista de la imaginacin el lugar corpreo donde se halla la cosa que quiero contemplar (...) (in Obras de San Ignacio de Loyola, Madrid, B.A.C., 1997). Citao p. 236. (...) mirrando-se os homens de susto na expectao (...)