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CAPÍTULO III A IGREJA SUCEDE AO IMPÉRIO NO OCIDENTE 1. Mane, tecei, farés De 410 — saque de Roma por Alarico — a 476 — tomada de Roma por Odoacro —, o Império romano do Ocidente agoniza. Depois de depor o último imperador de Roma, Odoacro envia as insígnias imperiais a Zenão, que reinava no Oriente e que, em res- posta, o fez Paíricius dos romanos. Acabava de estourar um velho e enorme abscesso, formado pela lenta infiltração do Império por homens vindos do outro lado do Reno e do Danúbio, cujas hordas tinham sido contidas a custo pelos imperadores. No início do século V, irrompem os godos e alanos, carregando vândalos e suevos e empurrando os burgúndios: todos fugiam dos hunos, que se haviam voltado bruscamente para o Ocidente. Integra- dos ao Império romano como federados ou instalados como conquis- tadores, eles viram a profunda fraqueza do Império por ocasião do ataque de Alarico a Roma. Então, os francos avançaram até a Somme, às portas da Mancha; os burgúndios instalaram-se na região que vai de Savóia a Saône; os vândalos, expulsos da Espanha pelos visigo- dos, pilharam a África cristã; enquanto isso, os anglos forçavam os bretões à expatriação. E forçavam também Jerônimo a perguntar: "Quem poderá acreditar, que historiador poderá fazer compreender à posteridade que Roma combateu em seu próprio território, não pela glória, mas por sua própria salvação?" A jovem Igreja cristã também seria arrastada para a ruína? De fato — levando em conta a incúria do Império do Oriente —, ela era a única força capaz de dominar o drama do Ocidente e dar-lhe um sentido. No entanto, os quadros eclesiásticos tinham' sofrido uma reviravolta — variável, de acordo com as regiões — em virtude dos violentos golpes dos bárbaros. Na Panônia, no Nórico, na Récia, o cristianismo fica abalado por uns dois ou três séculos; a Ilíria se desagrega. Na Renânia, na Bélgica, na Normandia, as listas episco- pais se interrompem nesse período. Na Provença, na Itália — onde o ostrogodo Teodorico age como inteligente herdeiro do Império —, na Aquitânia e depois na Espanha — onde estão instalados os visigodos —, no vale do Rhô-

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CAPÍTULO I I I

A IGREJA SUCEDE AO IMPÉRIO NO OCIDENTE

1. Mane, tecei, farés De 410 — saque de Roma por Alarico — a 476 — tomada

de Roma por Odoacro —, o Império romano do Ocidente agoniza. Depois de depor o último imperador de Roma, Odoacro envia as insígnias imperiais a Zenão, que reinava no Oriente e que, em res-posta, o fez Paíricius dos romanos. Acabava de estourar um velho e enorme abscesso, formado pela lenta infiltração do Império por homens vindos do outro lado do Reno e do Danúbio, cujas hordas tinham sido contidas a custo pelos imperadores.

No início do século V, irrompem os godos e alanos, carregando vândalos e suevos e empurrando os burgúndios: todos fugiam dos hunos, que se haviam voltado bruscamente para o Ocidente. Integra-dos ao Império romano como federados ou instalados como conquis-tadores, eles viram a profunda fraqueza do Império por ocasião do ataque de Alarico a Roma. Então, os francos avançaram até a Somme, às portas da Mancha; os burgúndios instalaram-se na região que vai de Savóia a Saône; os vândalos, expulsos da Espanha pelos visigo-dos, pilharam a África cristã; enquanto isso, os anglos forçavam os bretões à expatriação. E forçavam também Jerônimo a perguntar: "Quem poderá acreditar, que historiador poderá fazer compreender à posteridade que Roma combateu em seu próprio território, não pela glória, mas por sua própria salvação?"

A jovem Igreja cristã também seria arrastada para a ruína? De fato — levando em conta a incúria do Império do Oriente —, ela era a única força capaz de dominar o drama do Ocidente e dar-lhe um sentido. No entanto, os quadros eclesiásticos tinham' sofrido uma reviravolta — variável, de acordo com as regiões — em virtude dos violentos golpes dos bárbaros. Na Panônia, no Nórico, na Récia, o cristianismo fica abalado por uns dois ou três séculos; a Ilíria se desagrega. Na Renânia, na Bélgica, na Normandia, as listas episco-pais se interrompem nesse período.

Na Provença, na Itália — onde o ostrogodo Teodorico age como inteligente herdeiro do Império —, na Aquitânia e depois na Espanha — onde estão instalados os visigodos —, no vale do Rhô-

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ne — onde estão os burgúndios —, a velha civilização greco-romana ainda prolongará docemente sua agonia, não sem manifestar ainda seus últimos alentos. Entretanto, o arianismo desses grandes Estados bárbaros mais ou menos romanizados provoca a inimizade das co-munidade de obediência romana. Na África, particularmente, a luta entre os vândalos arianos e os autóctones católicos se prolongará até 533, quando Belisário reinstala os bizantinos nessa África cristã que, já enfraquecida pela crise donatista, só oferecerá ao Islã uma pe-quena resistência.

Fato curioso: foram as populações germânicas menos tocadas pelo romanismo, os francos, que, passando diretamente do paganismo ao catolicismo, obterão o apoio da Igreja romana, de seus bispos e monges.

2. Bispos e monges diante dos bárbaros É incontestável que numerosos bispos das civitates exerceram

diante dos bárbaros um papel de defensores, mediadores e mantene-dores de uma civilização. Agostinho em Hipona assediada pelog vân-dalos, Nicásio em Reims, Aignan em Orleães, Paulino em Nola, Sinésio de Cirene, Eucher de Lião, Máximo de Turim e o bispo de Roma, Leão I, entre outros, foram escudos para suas cidades.

E depois, quando o furacão dos hunos, em meados do século V, uniu os germânicos em torno dos destroços do Império romano, quando as rudes virtudes dos bárbaros começaram a se desfazer em contato com uma civilização decadente, os bispos ainda tiveram que enfrentar a situação de um mundo informe, em que triunfavam a corrupção e a crueldade. O bispo tinha então que relembrar a to-dos a doutrina evangélica; devia também oficiar, administrar os bens da comunidade, entrar em contato com os bárbaros estabelecidos em sua Igreja, trabalhar pela recuperação de objetos perdidos — muitos bispos chegaram a vender os vasos sagrados, — proteger, alimentar e salvar os pobres, que são sempre os primeiros ameaçados em si-tuações de crise. J

O papa Leão I (440-461) é certamente a figura mais notável desse terrível século V. Chefe, ele se ergue diante de Átila (452); à vacilante autoridade de Bizâncio na Itália (Ravena) ele opõe a auto-ridade de Roma, "trono sagrado de Pedro"; à miséria dos romanos ele leva seus cuidados e seus bens. Sua correspondência — cento e setenta e três cartas conservadas — e o papel que desenvolve no concilio de Calcedônia (451) testemunham que ele não foi somente o chefe espiritual da Itália, mas também o árbitro da jovem cris-tandade.

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lie — ortde estão os burgúndios —, a velha civilização greco-romana ainda prolongará docemente sua agonia, não sem manifestar ainda seus últimos alentos. Entretanto, o arianismo desses grandes Estados bárbaros mais ou menos romanizados provoca a inimizade das co-munidade de obediência romana. Na África, particularmente, a luta entre os vândalos arianos e os autóctones católicos se prolongará até 533, quando Belisário reinstala os bizantinos nessa África cristã que, já enfraquecida pela crise donatista, só oferecerá ao Islã uma pe-quena resistência.

Fato curioso: foram as populações germânicas menos tocadas pelo romanismo, os francos, que, passando diretamente do paganismo ao catolicismo, obterão o apoio da Igreja romana, de seus bispos e monges.

2. Bispos e monges diante dos bárbaros É incontestável que numerosos bispos das civitates exerceram

diante dos bárbaros um papel de defensores, mediadores e mantene-dores de uma civilização. Agostinho em Hipona assediada pelog vân-dalos, Nicásio em Reims, Aignan em Orleães, Paulino em Nola, Sinésio de Cirene, Eucher de Lião, Máximo de Turim e o bispo de Roma, Leão I, entre outros, foram escudos para suas cidades.

E depois, quando o furacão dos hunos, em meados do século V, uniu os germânicos em torno dos destroços do Império romano, quando as rudes virtudes dos bárbaros começaram a se desfazer em contato com uma civilização decadente, os bispos ainda tiveram que enfrentar a situação de um mundo informe, em que triunfavam a corrupção e a crueldade. O bispo tinha então que relembrar a to-dos a doutrina evangélica; devia também oficiar, administrar os bens da comunidade, entrar em contato com os bárbaros estabelecidos em sua Igreja, trabalhar pela recuperação de objetos perdidos — muitos bispos chegaram a vender os vasos sagrados, — proteger, alimentar e salvar os pobres, que são sempre os primeiros ameaçados em si-tuações de crise.

O papa Leão I (440-461) é certamente a figura mais notável desse terrível século V. Chefe, ele se ergue diante de Átila (452); à vacilante autoridade de Bizâncio na Itália (Ravena) ele opõe a auto-ridade de Roma, "trono sagrado de Pedro"; à miséria dos romanos ele leva seus cuidados e seus bens. Sua correspondência — cento e setenta e três cartas conservadas — e o papel que desenvolve no concilio de Calcedônia (451) testemunham que ele não foi somente o chefe espiritual da Itália, mas também o árbitro da jovem cris-tandade.

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Outros pastores marcaram profundamente a terra onde traba-lharam e onde, graças a eles, foi criada uma primeira rede de Igrejas rurais. Hilário de Aries foi o animador da Gália meridional, forte-mente romanizada. Auvergne muito deve a Sidônio Apolinário, bispo de Clermont e poeta como diversos de seus pares. Papel semelhante desempenharam Pedro Crisólogo em Ravena, Leandro e depois seu irmão Isidoro em Sevilha, Martinho de Braga, fundador da Igreja portuguesa, e Avito de Vienne, primaz dos burgúndios.

Na França, permaneceu viva a lembrança de Remígio de Re-mos. Súdito de Siágrio e depois — após a derrota e a morte de Siá-grio (486) — do jovem rei dos francos, Clóvis, ele se impõe sem fanfarronices à atenção do brutal guerreiro: "Socorre teus concida-dãos, encoraja os aflitos, protege as viúvas, alimenta os órfãos. . . " A ambição leva Clóvis a combater os burgúndios e os visigodos aria-nos, senhores da Gália do sul; mas é a influência de Clotilde, sua esposa, sobrinha católica de Gondebaldo, que faz com que ele, jun-taments com inúmeros companheiros, se decida a se batizar por Re-mígio, provavelmente no Nãtal de 496. Um acontecimento de con-siderável importância, pois, aos olhos dos bispos, colocava o rei franco — único soberano bárbaro católico — como seu protetor na-tural e propagandista de eleição da religião cristã entre os bárbaros. Quando Clóvis, com a vitória de Vouillé (507), torna-se senhor do sudeste visigodo, a Gália inteira saúda nele um "novo Constantino". Em 511, ele reuniu em Orleães o primeiro concilio nacional da Gá-lia franca: como primeiro imperador cristão, Clóvis intervém decidi-damente nos assuntos do clero. É bem verdade, porém, que os con-cílios provinciais — que se multiplicavam na Itália, na Espanha (Toledo), na Provença (Aries, Vaison) e em outros lugares — tinham se tornado necessários devido à necessidade de reagrupar as forças espirituais que se haviam dispersado no tempo das invasões.

A ação da Igreja estava intimamente unida à ação dos monges. Não se trata ainda de um monasticismo inteiramente constituído, mas sim da irradiação de algumas grandes comunidades autônomas, que combinavam o cenobitismo e o eremitismo. Desde o fim do século IV, Honorato fizera de Lérins uma "ilha de santos", um celeiro de bispos e doutores, não somente para a Provença, mas também para Lião, Genebra e Troyes. São Vítor de Marselha, juntamente com João Cassiano (f aprox. 430), Assão em Aragão (fundado por santo Emiliano) e Dumio na Galícia, formavam, como bem dizia santo Hilário de Poitiers ao falar dos monges, "um episcopado privado". É bem verdade que os bispos e monges colaboravam estreitamente; reunindo em torno de si uma pequena comunidade fraternal de pa-dres e dando-lhe um regulamento, o bispo de Hipona, Agostinho — pai dos cônegos regulares —, já demonstrara a força de que é capaz a aliança entre os bispos e os monges. Aliás, não foi um monge

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tornado Papa, Gregório I, quem dominou o fim do século VI no Ocidente?

3. Gregório, o Grande, "cônsul de Deus" Os três futuros bastiões da Igreja católica romana, França,

, Itália e Espanha, começaram então a se desligar da massa ocidental. Os francos católicos, ainda em vida de Clóvis, eram os senho-

res da Aquitânia visigoda; após a morte prematura do rei (511), a velha Provença (532) e depois a Bungúndia, passada ao catolicismo há trinta anos (534), ampliaram as possessões francas. Na Ibéria, a conversão dos suevos arianos fez-se sem maiores choques (por volta de 450). Mas o mesmo não aconteceu com os visigodos, tenazes aria-nos, como os vândalos da África. Quando Leovegildo assume o trono de Toledo (567), esboça-se uma reviravolta em favor de Nicéia e Roma, mas o fato acaba assumindo contornos políticos: o filho do rei, Ermenegildo, que havia renegado o arianismo sob a influência de Leandro de Sevilha, coloca-se à frente de uma sedição de cató-licos; depois, arrependido, tenta negociar com seu pai, que manda executá-lo (585). Um ano mais tarde, Ricaredo, irmão de Ermene-gildo, sucedia a Leovegildo e pouco depois abraçava a fé romana. Começava a história da católica Espanha.

Na Itália — menos unificada que seus dois vizinhos —, a si-tuação é mais confusa. De 493 a 526, Teodorico reina — de Ra-vena — sobre toda a península^ onde o poder de Bizâncio é apenas teórico. Teodorico empreende a tarefa de restaurar a civilização ro-mana, mas seus sucessores são incapazes de impedir a reconquista da Itália por Justiniano (535-553); uma reconquista brutal e desas-trosa, além de efêmera, pois a dominação bizantina, insuportável para os italianos, abre caminho para o domínio dos lombardos, cujo rei Alboíno se instala em 572 no palácio de Teodorico em Pavia. Os bizantinos mantêm apenas territórios costeiros e o exarcado de Ra-vena; depois da morte de Alboíno, feudos militares repartem seus Estados e toda a Itália se vê reduzida àquilo que será até meados do século XIX: uma "expressão geográfica".

Justamente nesse momento o papado é chamado a desenvolver um papel salvador. Em 590, aflitos com o miserável estado da Itália e de uma capital assolada pela inundação e a peste, o povo e o clero romanos elegem o patrício Gregório como Papa: à santidade do monge, ele acrescenta a experiência do diplomata — ele fora apo-crisiário em Constantinopla — e do funcionário — também fora pre-feito de Roma. Ameaçado ao norte e ao sul pelos ducados lombar-dos, humilhado pelo orgulho de Bizâncio e pela indignidade de mui-

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tos de seus colaboradores, o papado dá toda a impressão de estar moribundo. Mas Gregório I — que a posteridade cognominou o Grande — serve a cidade terrestre tendo em vista edificar a Cidade de Deus. Bispo de Roma, ele toma em suas mãos ou controla as funções civis, sobretudo as relacionadas com a assistência e a edu-cação; ao mesmo tempo, dedica grandes cuidados à pregação, que quer prática: o tempo não é para os doutores, mas para os pasto-res — o Tratado de Pastoral de Gregório I ficaria na história; aliás, é forçoso confessar que a exegese e a teologia, por sua pobreza, são testemunhas da decadência geral da cultura antiga.

Fora dos muros de Roma, Gregório se substitui ao fraco exarca para tratar diretamente com os lombardos; sua correspondência re-vela que nada que se refira à vida da cristandade o deixa indiferente. Voltando as costas para Bizâncio, deposita esperanças nos povos ger-mânicos, mais jovens e menos embrutecidos; os francos, os lombar-dos, que ele prepara pacientemente para a conversão, os anglos, aos quais era muito apegado e para quem envia monges romanos levados por Agostinho, que se fixa em Canterbury; em breve, a Igreja anglo--saxã iria influenciar por seu turno todo o continente.

"Cônsul de Deus": é assim que o autor desconhecido do epitá-fio de Gregório I o cognomina. Em uma Roma esvaziada não ape-nas de sua glória, mas também de sua alma, Gregório e seus suces-sores se substituem ao Império derrocado: tornam-se os pedagogos do jovem Ocidente. Começa a surgir a Igreja medieval; pode-se até lamentar seu endurecimento e seu paternalismo, bem como o fato de que vários pontífices tenham esquecido a bela definição que Gre-gório 1 dera ao pontífice romano: Servus servorum Dei. Mas foi essa Igreja, apesar de tudo, que fez com que seus cânones conciliares, infiltrando-se no direito germânico, acabassem por humanizar os cos-tumes bárbaros. A um mundo em que campeavam a crueldade e o estupro, ela apresentava a sabedoria de seus monges e a pureza de suas virgens. No horizonte merovíngio, ela conseguiu fazer brilhar uma outra luz que não a dos incêndios.

4. A Igreja e os merovíngios Em meados do século VI, no Ocidente, o eixo de influência

transferiu-se da Itália (Roma, Milão, Ravena) para as margens do Sena e do Meuse. A dinastia dos merovíngios — herdeiros de Cló-vis — (511-751) converte-se na principal força política: um realis-mo absoluto e duro. Isso porque, no Ocidente merovíngio, não existe Estado; o reino é considerado como um patrimônio pelo seu senhor, sendo partilhado em cada sucessão. Se, por um lado, o rei pode exi-

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gir muito dos homens livres, por outro lado ele não lhes presta ne-nhum serviço em contrapartida. O "palácio" é freqüentemente um inferno de ódio, cupidez e luxúria: o assassínio e a libertinagem provocam habitualmente a morte prematura dos reis. E o que dizer de rainhas como Fredegunda?

Em uma sociedade essencialmente rural, que se imobiliza, a ci-dade galo-romana, anêmica, não é mais o órgão vivo de um grande corpo político; no entanto, a presença do bispo evita a sua morte. O povo? São essencialmente servos de gleba, uma massa nem me-lhor nem pior do que a de outras épocas, freqüentemente dizimada pelas epidemias e os surtos de fome e cuja piedade ingênua alimen-ta-se ainda de superstições pagãs, quando não se encontra obliterada pelo culto apaixonado das relíquias.

Diante disso tudo, o corpo episcopal. As doações e as imuni-dades haviam-no tornado rico e poderoso. Tendo a missão de vigiar os condes, os bispos eram algo assim como funcionários, sendo aliás estreitamente vigiados pelo rei, que os escolhia pessoalmente, amiúde em seu próprio círculo, inclusive entre leigos. Uma escolha que não era necessariamente má. Sem dúvida, a simonia já constituía uma praga secreta da Igreja e se poderiam citar inúmeros pastores que não passavam de indivíduos sem escrúpulos. Mas nunca como na época merovíngia o povo cristão — vos populi, vox Dei — beatificou tan-tos bispos. Pretextato em Ruão, Arnold em Metz, Leger em Autun e Eloi de Noyon, cuja memória restou para sempre ligada à de Da-goberto, representaram, entre tantos outros, a luz nas trevas.

Porque esses bispos francos não descansavam: entre 611 a 614, reuniram-se quarenta e dois concílios na Gália. Além disso, como o Estado merovíngio não se preocupava em absoluto com a assistên-cia e a instrução, é sob a sombra da Igreja que se encontravam todos os fracos, todos aqueles que sofriam com a crueldade da época.

Praticamente ignorada pelos leigos, a cultura greco-latina re-fluíra das cadeiras de retórica e gramática, abandonadas, para as escolas episcopais, onde jovens clérigos tonsurados viviam em co-munidades, procurando manter as escolas presbiteriais, ancestrais de nossas atuais escolas de vilarejo. Por mais que a palavra clérigo tenha acabado por confundir o homem de Igreja e o homem culto, é bem verdade que a cultura havia decaído muito — a gramática era o único domínio em que se exercia a reflexão.

Implicitamente, reis e bispos contavam com os monges para manter essa terra cristã sempre pronta para voltar a ser semeada. E, para tanto, não economizavam sua proteção nem suas doações. Alguns dos maiores nomes da história monástica — Saint-Germain des Prés, Saint-Médard de Soissons, Saint-Denis, Saint-Croix de Poitiers, Stavelot, Murbach etc. — inseriram-se na história do Oci-dente precisamente na época merovíngia.

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Mas seria da nebulosa Irlanda que iria surgir um novo tipo de monge e de missionário.

5. Uma luz na bruma: o monasticismo celta Sem choques, sem mártires, graças ao zelo e à sabedoria de

Patrício, seu herói nacional, a Irlanda passara do druidismo ao cris-tianismo mais ardente. Desde o fim do século V, o país estava co-berto de mosteiros-bispados: Bangor, Armagh, Clouard etc., que eram tanto focos de ascetismo como de cultura. Aquilo que se pas-sou a chamar — talvez com exagero — de "milagre irlandês" con-siste no fato de que esse país, em que Roma não tivera ação direta, foi o país do qual o continente decaído iria tirar sua salvação: a tendência vagabunda e o fervor dos celtas impeliram-nos a levar a luz para além-mar.

Logo começaria a extraordinária epopéia dos monges irlande-ses, epopéia que seria cercada de uma espécie de auréola dourada. Infelizmente, é impossível seguir o trajeto de todos os grandes gi-róvagos que, enfrentando perigos de toda sorte, atravessaram os ma-res: Colum, fundador do convento de lona, de onde nasceria a cris-tandade calcedoniana e de onde partiriam os evangelizadores da Is-lândia; os apóstolos da Armórica, onde tantas "paróquias" revelam ainda a marca de monges e bispos cuja vida maravilhosa o hagió-grafo traça com prudência: Maio, Brieuc, Cadoc, Guénolé, Gildas etc.

Limitamo-nos a seguir os passos do maior desses missionários irlandeses: Columbano (f 615), um gigante e um profeta, tão exi-gente para os outros como para si mesmo. Foi visto nos vales do Loire, do Sena, do Mosela, nos Alpes, Jura. .. Cada etapa de Co-lumbano é marcada pela fundação de um mosteiro. E sua morte na Itália não diminui o entusiasmo de seus discípulos. Luxeuil, Arbon, Saint-Gall, Bóbio, Jumièges, Saint-Bertin, Saint-Riquier, Saint-Armand e tantos outros: esses prestigiosos monastérios nasceram pelo traba-lho dos monges irlandeses. Estabelecidos o mais das vezes em re-giões pantanosas ou florestais, eles tornaram-se centros ativos de desbravamento, colonização e também de reconquista cristã lá ,onde tudo fora destruído pelas invasões.

Mas Columbano foi um furacão, um vento que passa sem se preocupar com os obstáculos ou os homens. Logo a hierarquia epis-copal julgará molesto esse profeta que, ademais, exigia de seus mon-ges uma vida incrivelmente austera, na qual as menores fraquezas eram afastadas com grandes golpes de disciplina e chicote, além de vigorosas deblaterações. A longo prazo, esse cristianismo de for-ça iria afastar os homens de boa vontade nascidos sob céus mais luminosos do que o céu da Irlanda.

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Ora, pois foi precisamente de um país de sol, a Sabina ro-mana, que Deus fez surgir aquele que iria ser o Pai dos monges do Ocidente.

6. Bento ou o equilíbrio Cóm efeito, fora dado a Bento da Núrcia o privilégio de resta-

belecer o equilíbrio do qual toda a vida monástica tira o seu orna-mento, ou melhor, a sua razão de ser. Sua vida (480-547), que não nos é inteiramente conhecida, foi marcada por duas grandes etapas: Subiaco, onde o jovem nobre, abalado com a corrupção romana, ieva a existência de um eremita até o dia em que seus discípulos são bastante numerosos para formar uma comunidade; Monte Cas-sino, onde, sobre as ruínas recentes de um templo de Júpiter, ele constrói um monastério, que ainda hoje é o coração da grande fa-mília beneditina.

O elemento essencial da obra de Bento — e por isso a histó-ria deve considerá-lo na elite — é sua regra. Uma regra vivida, feita de experiência e intuição, uma obra-prima de discrição e equi-líbrio: um molde suave, do qual saíram centenas de milhares de monges, vinte e três papas, cinco mil bispos. Em sua base, está a honestas romana, a antiga probidade, que transcende a humildade e a obediência evangélicas. Desse texto emana uma tal serenidade que se chega a ter dificuldade em acreditar que foi elaborado numa épo-ca tão movimentada: a reconquista da Itália por Bizâncio e as in-vasões lombardas.

Aliás, foi antes de mais nada para os homens daquele século inumano que a regra beneditina foi escrita: ela lhes oferecia a pro-cura de Deus através da oração litúrgica (.Lectio divina), o trabalho manual reabilitado e o estudo, mas também através de uma vida comum, fraternal, santificada menos pela mortificação do corpo do que pela doce autoridade do abade (abbas = pai) e a elevação do coração. Um Deus melhor servido e melhor amado graças ao tes-temunho da vida monástica: este foi o objetivo de Bento. Seus con-temporâneos que consideraram a regra de Bento como regra de vida por excelência não estavam enganados. A comunidade beneditina não era uma reunião de privilegiados, mas um porto seguro para os leigos ávidos de estabilidade e paz, numa época em que romanos e bárbaros, pobres e ricos, eram arrastados aos sabores da sorte de um século de terror.

A regra beneditina se propagou de tal forma que durante mui-tos séculos "beneditino" e "monge" seriam quase sinônimos. E o velho tronco beneditino, mesmo aparentemente seco, nunca deixaria

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de fazer brotar, até nossos dias, em ramos diversos, novas folhas, sempre verdes. Desde o século VII, a ordem de são Bento nunca deixou de ser um celeiro de missionários.

7. Germânicos evangelizando germânicos Vimos como Agostinho e seus monges, enviados pelo papa Gre-

gório, o Grande — ele próprio filho de são Bento —, partiram para a Inglaterra. Pois os reinos anglo-saxões do sul rapidamente passariam para o cristianismo. O norte da Inglaterra era um domí-nio dos monges celtas — pouco desejosos de colaborar com os mis-sionários romanos. Na ilhota de Lindisfarne (Holy Island), Aidan estabelecera (635) um monastério que iria se tornar o principal cen-tro religioso e cultural dos anglos. Por volta de 650, os reis de Mer-cie e Essex fizeram-se batizar. A região de Wessex era o domínio do bispo Wini; a zona de Sussex era o domínio do intransigente Wilfredo, cuja figura de grande estatura não deixa de ter traços em comum com a de Thomas Becket.

No fim do século VII, a Inglaterra cristã — que se beneficiou com a efervescência celta e a ponderação romana — já possui seus próprios quadros eclesiásticos e seus centros de irradiação: seus dois arcebispos encontram-se em York e Canterbury. É uma terra de san-tidade e de cultura cristã. O continente logo toma conhecimento do nome dos filhos dessa terra: Cuthbert (t 687), glória da abadia de Melrose e depois bispo de Lindisfarne; Benedito Biscop Baducing (t 690), fundador da abadia de Wearmouth, que por diversas vezes atravessa a Mancha para levar livros e relíquias; Teodoro (f 690), arcebispo de Canterbury, que multiplica as escolas monásticas e que, no concilio de Hertford, submete a Igreja inglesa à disciplina ro-mana. Mas, no início do século VIII, não surge ninguém compará-vel a Beda, o Venerável (f 735); ele passa quase toda a sua vida no monastério de Jarrow, em Northmbrie; sempre professando a teologia — uma teologia então reduzida somente à explicação dos textos das Escrituras —, Beda tudo estudava, como genial inicia-dor: à métrica, a cronologia, sobretudo a História; ele deixou o primeiro Martirológio crítico e, com sua História Eclesiástica da Na-ção dos Anglos, legou um documento insubstituível sobre as origens inglesas. Um discípulo de Beda, Egberto, foi quem fundou a escola de York (por volta de 750), de onde sairiam Alcuíno e outros mes-tres da Renascença carolíngia.

Além disso, a Inglaterra forneceu missionários para as regiões germânicas ainda bárbaras do continente. Um discípulo de Wilfrido, o monge Willibrord (t 739) já em 690 desembarcava na Frísia:

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52 A IGREJA, PEDAGOGIA DO OCIDENTE

com o apoio do conquistador Pepino d'Herstal, ele evangeliza o país; a morte de Pepino (714) o obriga a refugiar-se no monastério que fundara em Echternach; mais tarde, ele retorna à Frísia, depois vai ao estuário do Schelde e ao futuro Luxemburgo. Ludgero é quem prosseguiria sua obra.

A Germânia ocidental e meridional vinha recebendo missioná-rios celtas desde o século VII: Fridolin na Alemanha; o beneditino Pirmino, fundador em Reichenau da primeira abadia estabelecida em terras germânicas; Suitbert na Renânia; o escocês Kilian na Tu-ríngia; Rupert na Baviera; Corbiniano no Tirol. Mas esses bispos--viajantes não haviam estabelecido uma organização eclesiástica du-rável na Germânia. Essa tarefa estava reservada a Bonifácio.

Anglo de Wessex que se tornou monge beneditino, Winfrido foi encarregado de uma missão oficial — e recebeu um nome de mártir, Bonifácio — pelo papa Gregório II. A organização da Igreja germânica e o despertar da Igreja franca: esse foi o duplo objetivo a ele confiado. Sua missão na Germânia, iniciada na Frísia, esten-deu-se à Turíngia e Hesse, com o apoio de Carlos Martelo. Arce-bispo de Mayence, Bonifácio organiza os quatro bispados bávaros; Passau, Ratisbona, Freising e Salzburgo; depois, dá um pastor à Erfurt e Wurzburg na região da Francônia e a Buraburgo na região de Hesse. Em 741, funda a abadia de Fulda, que se torna o semi-nário das missões germânicas e o mais importante foco religioso e cultural da outra margem do Reno.

Enviado à França ocidental por Pepino, o Breve — que ele sa-graria rei dos francos —, Bonifácio esboça uma restauração da Igreja franca, onde pululam clérigos com concubinas, guerreiros e caçadores. Mas não consegue organizar o episcopado franco com base no modelo inglês, em torno de um primaz, promotor de eleição de toda reforma. Quando Bonifácio é morto pelos frisões (754), juntamente com cinqüenta e dois de seus monges, o Ocidente já estava enriquecido por territórios que seriam chamados a desenvol-ver um papel capital no enriquecimento da civilização cristã: os Países Baixos, a Bélgica, a Alemanha central e meridional.